Professional Documents
Culture Documents
Introdução
Como se situa o sistema portuário brasileiro diante dos desafios impostos pela
reestruturação do espaço econômico mundial e a transformação do território nacional? De
que maneira evoluiu a hierarquia portuária num país caracterizado pela dispersão
geográfica das instalações portuárias e pela concentração dos tráfegos em poucas cidades-
porto? Como as políticas públicas administram uma relação porto/cidade cada vez mais
complexa do ponto de vista da gestão dos conflitos de uso? Quais obstáculos enfrentam as
cidades marítimas brasileiras no caminho de promoção do desenvolvimento territorial?
1
Validade parcial na medida em que Ricardo não tinha previsto a mobilidade dos fatores de produção no
momento da elaboração de sua teoria. A 2ª metade do Século XIX foi justamente marcada por uma
intensificação da circulação do fator trabalho –migrações européias rumo ao Novo Mundo – e do capital.
linhas regulares e os canais inter-oceânicos completavam um dispositivo de circulação
marítima mais sistêmico. No Brasil, os investimentos realizados em Santos e Manaus e a
construção do porto moderno do Rio de Janeiro sinalizavam a superação dos trapiches e
das técnicas tradicionais de manuseio de mercadorias. No entanto, Kappel (2005) aponta
que a privatização e a modernização das instalações portuárias não foi acompanhado por
uma política setorial nacional e que o sistema permaneceu precário e fragmentado.
A explosão das trocas confere aos dispositivos logísticos uma função estratégica de
costura interna e externa dos espaços da produção e do consumo. Por um lado, mais países
e regiões participam à economia dos fluxos global provocando uma maior dispersão dos
fornecedores, produtores e consumidores que exige uma grande capilaridade dos sistemas
de transporte. Por outro lado, a organização da produção em redes supõe uma conexão
perfeita entre os nós e vetores. Ou seja, os sistemas logísticos combinam estratégias de
concentração dos fluxos em eixos maiores (economias de escala) e desconcentração em
eixos menores (distribuição espacialmente ubíqua). No coração dos dispositivos logísticos
o transporte marítimo é hoje responsável pelo escoamento de cerca de oito bilhões de
toneladas de bens o que representa 80% das trocas internacionais (em volume) (UNCTAD,
2008). A expansão da atividade marítima foi possibilitada por inovações tecnológicas,
institucionais e organizacionais (MARTNER PEYRELONGUE e MORENO MARTINEZ,
2001). No campo tecnológico, o gigantismo dos navios é fonte de economias de escala e o
equipamento dos mesmos em NTIC permite articular os atores das cadeias de valor
(FRÉMONT, 2005). Por sua parte, o uso do contêiner foi decisivo para diminuir os custos
e suavizar a gestão das interfaces intermodais. No campo institucional, o transporte
marítimo não escapou da onda neoliberal que se traduziu por privatizações e à
desregulamentação do setor. Enfim, a emergência de novos atores marcou a vertente
organizacional da atividade: o Operador Multi-Modal, que oferece um serviço porta-a-
porta sob contrato único (BARAT, 2007) e as Alianças Estratégicas são atores que por
garantir capilaridade ao sistema são essenciais para a organização sistêmica e multi-escalar
das redes (FRÉMONT, 2007).
2
Em 1990, os portos públicos brasileiros empregavam 45.000 trabalhadores e movimentaram 350 milhões de
toneladas de mercadorias, o que corresponde a um rendimento de 7,7 mil toneladas per capita. No mesmo
ano, o porto de Roterdã, que emprega 8.000 trabalhadores, movimentou sozinho 296 milhões de toneladas de
mercadorias, correspondendo a 37 mil toneladas per capita (Guimarães in Barat, 2007).
de desestatização, desregulamentação e descentralização. O objetivo é a valorização da
função comercial das instalações portuárias num ambiente de livre mercado e de
concorrência inter-portos. Para isso, as autoridades pretendem abolir os monopólios -
monopólio normativo do Governo Federal sobre o serviço portuário; das Docas sobre as
operações; dos sindicatos sobre o recrutamento da mão-de-obra avulsa – e estimular uma
gestão co-participativa no âmbito de Autoridades Portuárias juntando os atores envolvidos
na vida do porto3. Finalmente, a esfera estatal permanece responsável pela construção e a
manutenção da infra-estrutura; pela gestão ambiental; pela fiscalização das instalações
portuárias ou ainda a promoção comercial do porto. Por sua parte, o setor privado pode
arrendar terminais, onde o Operador Portuário é responsável pelas operações de manuseio
das cargas e dos investimentos em equipamentos e instalações. Enfim, os terminais de uso
privativo são autorizados a movimentar cargas de terceiros. O novo quadro jurídico foi
completado pela Lei 9.277/96 autorizando a União à conceder a administração e
exploração dos portos aos estados e aos municípios. Em 2001, foi criada a Agência
Nacional de Transportes Aquáticos – ANTAQ, autarquia vinculada ao Ministério dos
Transportes, cuja missão consiste em regular e fiscalizar o transporte aquaviário e a
exploração da infra-estrutura setorial além de estimular a competição entre os operadores.
Enfim, em Maio de 2007, uma medida provisória criou a Secretaria Especial de Portos que
tem por principais atribuições a formulação de políticas e diretrizes para o fomento do
setor; a execução de projetos e ações de apoio ao desenvolvimento da infra-estrutura, a
participação na discussão e elaboração do planejamento estratégico setorial e a
consolidação do marco regulatório setorial.
3
Para uma analise detalhada da reforma cf Barat (2007) e Marcos Pimentel (1999).
onde as instalações portuárias passaram sob administração da Prefeitura Municipal ao
longo de um processo que se estendeu na segunda metade dos anos 1990. Desde então, o
porto começou a ser apreendido como um instrumento de desenvolvimento via à
aproximação do processo decisório das reivindicações dos atores econômicos e da
comunidade local expressas no Orçamento Participativo, em câmaras setoriais e
transversais, etc. A combinação de ação proativa do Município, de modernização do porto
e de dinamismo da economia catarinense teve resultados rápidos: entre 1995 e 2007, a
movimentação de cargas cresceu cerca de 11,5% ao ano ! Para além dos cais, a integração
entre as infra-estruturas portuárias e o território urbano estimulou os investimentos no
tecido produtivo por parte do setor empresarial local e nacional. A capacidade de inserir o
porto e a cidade na “cadeia logística do frio” é um exemplo deste dinamismo. A
inauguração recente de terminais privados especializados a proximidade de Itajaí reflete o
re-posicionamento do porto e da cidade no sistema marítimo-portuário mundial e significa
também novos desafios para definir um pólo portuário regional estruturado em torno de um
possível binômio Itajaí/Navegantes. Mas talvez o verdadeiro êxito da cidade catarinense
seja de natureza sócio-política na medida em que a municipalização nós parece ter sido
alimentada por uma mobilização dos atores locais inédita no Brasil, país onde os
municípios ainda não manifestaram muito interesse em administrar seus equipamentos
portuários. A imagem tradicionalmente negativa da atividade portuária, que ilustrava para
autores como Darcy Ribeiro o Gilberto Freire o caráter perverso da inserção do país no
sistema de trocas mundial explica em parte a dificuldade de re-aproximar o porto da cidade
(COCCO e SILVA,1999). Da mesma forma, vale ressaltar que o caso mais exitoso de
integração porto/cidade ocorre numa região cujo desenvolvimento sócio-econômico foi
pouco dependente da tecno-burocracia desenvolvimentista e onde a cooperação entre
atores locais é uma constante no processo de formação territorial (RAUD, 2000).
4
Os passivos trabalhistas somam 800 milhões em Santos e aproximadamente 500 milhões no Rio de Janeiro
A atividade portuária brasileira está em franco crescimento desde o início dos anos
2000 em conseqüência do aumento do PIB, da expansão e diversificação do comércio
exterior, da internacionalização das corporações brasileiras e da reestruturação do aparelho
industrial, geradora de interações espaciais pluri-escalares mais intensas. No que diz
respeito à evolução por natureza de cargas, os dados indicam uma progressão heterogênea
dos diferentes segmentos. O dinamismo dos graneis sólidos foi alavancado pelo aumento
das exportações das commodities minerais – com destaque para o ferro que representa 35%
da carga movimentada– e agrícolas – em particular a soja – num contexto marcado por um
aumento da demanda na China e nos países emergentes. Oito produtos transportados à
granel representam dois terços da movimentação de mercadorias5. A movimentação de
carga geral também progrediu sob o impulso dos produtos siderúrgicos
(internacionalização das empresas brasileiras) e dos contêineres. Neste caso, a explicação
reside nas crescentes exportações e importações de manufaturados e no papel das firmas
industriais cujas cadeias produtivas participam de maneira mais efetiva do espaço global de
fluxos.
5
Minério de ferro, petróleo e derivados, soja e farelo, bauxita, açúcar, fertilizantes (Antaq, 2008)
mundial e que atuavam também como pivôs alimentados em fluxos menores por portos de
segunda linha.
Fontes: Antaq, Companhias Docas, Ministério dos Transportes. Elaboração: Erika Ribeiro
Souza e Frédéric Monié/GEOPORTOS
O mercado dos graneis sólidos ilustra então o papel central das corporações no re-
ordenamento do território brasileiro e de sua base produtiva, com destaque para regiões
periféricas apresentando um baixo nível de inserção nos circuitos do capitalismo moderno.
6
O município de Sorriso no centro norte de Mato Grosso localiza-se, por exemplo, a cerca de 2000
quilômetros do porto de Santos.
As estratégias territoriais dos grupos almejam a re-funcionalização de regiões inteiras,
como ocorreu nos cerrados do Centro Oeste e na Amazônia oriental7. Os investimentos
foram em geral acompanhados pela aplicação de recursos em infra-estruturas de transporte
que desenharam eixos ligados a terminais portuários equipados em armazéns e esteiras de
carregamento. O conjunto das operações ilustra claramente o “efeito túnel” de corredores-
fronteira que interagem pouco com as regiões atravessadas (NUNES COELHO, 2008). As
ilhas do arquipélago produtivo de commodities formam então um espaço das operações
(VELTZ, 2002) espacialmente fragmentado e integrado por infra-estruturas cujo efeito
desenvolvimentista em escala regional e local é inversamente proporcional a retórica que
justifica os empreendimentos (OFFNER, 1993). Por essa razão, a escala de ação global das
corporações transforma as cidades que abrigam suas instalações em espaços de transbordo
dentro de território logísticos off shore. Mesmo se os volumes manipulados nesses
terminais impressionam –100 milhões de toneladas de minerais em Tubarão– cabe lembrar
que se trata de fluxos de baixo valor agregado que participam relativamente pouco na
formação da riqueza nacional e não abrem perspectivas de desenvolvimento territorial.
7
A especialização produtiva em commodities pode ser passageira, como o demonstram os casos de
Rondonópolis ou do eixo Nova Mutum-Sorriso no Mato Grosso que se consolidam progressivamente como
pólos industriais graças a investimentos em setores como o maquinário agrícola, a produção de bens
alimentares, etc.
Fonte: Antaq. Elaborado por Erika Ribeiro Souza e Frédéric Monié/GEOPORTOS
8
Os portos dessas duas regiões são responsáveis por cerca de 90% do tráfego de contêineres (TEUs) no país !
Vale do Paraíba, na Bacia de Sepetiba (RJ) e no Espírito Santo ampliaram um pouco os
limites deste espaço sem reverter o caráter concentrado do processo de desconcentração do
parque industrial. Na medida em que os contêineres transportam essencialmente produtos
manufaturados e semimanufaturados, a hierarquia dos tráfegos é dominada por plataformas
cuja hinterlândia preferencial localiza-se então dentro deste polígono. Maior porto do
subcontinente, Santos drena fluxos da macro-metrópole e do interior paulistas, além dos
estados que constituem sua área de influência tradicional (CAMPOS NETO, 2006). Por
sua parte, os equipamentos portuários do Sul registraram um aumento da movimentação de
contêineres que acompanhou o desenvolvimento industrial regional e a crescente abertura
comercial das áreas meridionais do polígono. Alguns portos conseguiram também ampliar
sua hinterlândia além dos seus limites tradicionais, como Itajaí que capta fluxos de bens
agro-alimentares frios e congelados no Centro Oeste. No Sudeste, os portos de Itaguaí e
Vitória incluem entre seus principais clientes firmas do estado de Minas Gerais.
Considerações finais
Referencias bibliográficas
KAPPEL, R. F. Portos brasileiros: novo desafio para a sociedade. Anais da 57ª reunião
anual da SBPC, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2005. Disponível em
http://www.sbpcnet.org.br/livro/57ra/programas/conf_simp/textos/raimundokappel.htm
LEBORGNE, D & LIPIETZ, A. Flexibilidade ofensiva, flexibilidade defensiva in:
BENKO, G & LIPIETZ, A: As regiões ganhadoras. Distritos e redes: os novos
paradigmas da geografia econômica. Oeiras: Celta Editora, p.223-243, 1994.
MAGALHÃES LACERDA, S. Navegação e portos no transporte de contêineres. Revista
do BNDES, Rio de Janeiro, v.11, n.22, p.215-243, 2004.
MAIA PORTO, M. Desenho institucional e modelos de gestão portuária: o caso brasileiro.
In COCCO, G. & SILVA, G. Cidades e Portos. Os espaços da globalização. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 1999.
MARTINS PIMENTEL, C. Evolucion de la gestion portuária brasileña. Serie
Monografias da UNCTAD, Nova Iorque-Genebra, n.16, UNCTAD, 1999.
MARTNER PEYRELONGUE, C e MORENO MARTINEZ, M.A. Tendencias recientes
en el transporte marítimo internacional y su impacto em los puertos mexicanos.
Sanfandila: Publicacion temática, n.162, Secretaria de Comunicaciones y
Transportes/Instituto Mexicano del transporte, 2001.
MONIÉ, F. & SILVA, G. (org.). A mobilização produtiva dos territórios. Instituições e
logística do desenvolvimento local. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2003.
MONIÉ F. & VIDAL S. M. do S.C. Cidades, portos e cidades portuárias na era da
integração produtiva. Revista de Administração Pública. Fundação Getulio Vargas, Rio
de Janeiro, v.40, n.6, p.975-995, 2006
MONIÉ F. Transporte e expansão da fronteira da soja na BR-163 – Estado de Mato
Grosso. In: GONÇALVES PEREIRA ZAMPARONI, C.A. e TOMASINI MAITELLI, G
(org): Expansão da soja na Pré-Amazônia Mato-Grossense. Impactos socioambientais.
Cuiabá: Entrelinhas e EdUFMT, p.153-170, 2007.
NUNES COELHO, M.C. Commodities minerais e permanência do padrão corredor-
fronteira na Amazônia Oriental. In: PIÑON DE OLIVEIRA, M et alli.: O Brasil, a
América Latina e o Mundo: espacialidades contemporâneas. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2008.
OFFNER, JM. Les ‘‘effets structurants’’ du transport: mythe politique et mystification
scientifique. L’espace géographique, Paris, n.3, p.233-242, 1993.
PACHECO, CA. Novos padrões de localização industrial? Brasília, col. Textos para
Discussão, IPEA, n.633, 1999.
PRADO JÚNIOR, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: PubliFolha, 2000.
RAUD, C. L'industrialisation dans les pays en développement. Une analyse à partir du cas
brésilien. In: Georges BENKO; Alain LIPIETZ. (org.). La richesse des régions. Paris:
PUF, p. 249-269, 2000.
ROCHA DOMINGUES, M.V de La. Logística e transporte marítimo internacional:
impactos sobre o sistema portuário brasileiro, 2001. Tese (Doutorado em Geografia),
Programa de Pós Graduação em Geografia, UFRJ, 2001.
SASSEN, S. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
STORPER, M. Territories, Flows and Hierachies in the global economy. In: BARNES et
alli Reading Economic Geography. Oxford: Blackwell, 2004.
TAAFE, E.J. et alli. Transport expansion in underdeveloped countries. Geographical
Review, n.53, 1963.
UNCTAD. Review of maritime transport. Genève/New York, UNCTAD, 2008.