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Referencia do artigo

MONIÉ, Frédéric (2011): Globalização, modernização do sistema portuário e relações


cidade/porto no Brasil In: SILVEIRA, Márcio Rogério (org.): Geografia dos transportes,
circulação e logística no brasil. São Paulo: Outras Expressões, Col. “geografia em
movimento”, p. 299-330.

GLOBALIZAÇÃO, MODERNIZAÇÃO DO SISTEMA PORTUÁRIO E


RELAÇÕES CIDADE/PORTO NO BRASIL
Frédéric MONIÉ
Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
fmonie@uol.com.br

Introdução

A globalização redefiniu a geografia portuária das nações e relações cidades/portos


cuja intensidade e contornos variam em função do posicionamento dos governos centrais e
locais diante da consolidação dos grandes dispositivos logísticos mundiais e das estratégias
dos atores que controlam essas redes. As políticas públicas setoriais e/ou urbanas nas
cidades marítimas refletem leituras diferenciadas das dinâmicas em curso no espaço
econômico mundial. Por um lado, a globalização é essencialmente analisada em termos de
mudança de escala do comércio internacional. As autoridades buscam então uma inserção
no espaço de fluxos global (CASTELLS, 1999) que depende do desempenho das portas de
entrada por onde transitam capital, turistas, informação e mercadorias. Por isso, a
modernização dos aeroportos e dos portos marítimos se tornou prioritária. No entanto,
outros autores destacam a reestruturação dos modos de produzir e consumir que marca a
saída do fordismo (VELTZ, 1999 e 2002; BENKO e LIPIETZ, 1994; SASSEN, 1998).
Segundo Veltz (2002), a multilocalização da produção dentro de redes de valor agregado é
responsável por uma integração produtiva onde as regiões e cidades ganhadoras mobilizam
suas competências territoriais em prol do desenvolvimento. Nesses espaços, as políticas
públicas remetem as concepções proativas do papel do território nos processos
desenvolvimentistas que orientaram políticas públicas em algumas metrópoles marítimas
onde são valorizadas as complementaridades entre porto e cidade.

Como se situa o sistema portuário brasileiro diante dos desafios impostos pela
reestruturação do espaço econômico mundial e a transformação do território nacional? De
que maneira evoluiu a hierarquia portuária num país caracterizado pela dispersão
geográfica das instalações portuárias e pela concentração dos tráfegos em poucas cidades-
porto? Como as políticas públicas administram uma relação porto/cidade cada vez mais
complexa do ponto de vista da gestão dos conflitos de uso? Quais obstáculos enfrentam as
cidades marítimas brasileiras no caminho de promoção do desenvolvimento territorial?

1. Os portos e a formação do território brasileiro

As primeiras cidades-porto brasileiras surgiram como portas de entrada dos colonos


e mercadorias enviados de Portugal e de escravos trazidos da África e pontos de embarque
de produtos tropicais e agrícolas. Ou seja, as instalações portuárias eram instrumentos a
serviço do capitalismo mercantil e da dominação colonial representativos da inserção
dependente do Brasil nas redes de trocas da economia-mundo ocidental. Seu papel foi
também relevante no processo de formação do território brasileiro. A partir dos portos
surgiram eixos de drenagem da produção dos sucessivos ciclos econômicos (PRADO
JÚNIOR, 2000). Rapidamente, as cidades nordestinas que abrigavam os maiores
equipamentos portuários se transformaram em centros político-administrativos, comerciais
e de serviços. As cargas eram embargadas a bordo de navios lusitanos e de raras
embarcações inglesas que obtiveram uma permissão de atracar em portos brasileiros
(MARTINS PIMENTEL, 1999). Em seguida, o deslocamento do centro de gravidade da
economia do Nordeste para as Minas Gerais e a transferência da capital para o Rio de
Janeiro mudaram a hierarquia portuária que passou a ser dominada pelos portos do
Sudeste. Em 1808, a abertura dos portos às nações amigas constituiu outro marco na
história do sistema portuário por simbolizar o fim de exclusivismo colonial e o ingresso no
sistema liberal de trocas internacionais. Porém, a intensificação das importações e das
exportações não foi acompanhada por uma mudança da pauta do comércio exterior nem
por um aumento significativo da participação do Brasil no comércio mundial. Apesar
disso, a modernização dos portos já constituía uma prioridade para pioneiros como
Visconde de Mauá que, nos meados do Século XIX, propus uma organização do setor
marítimo portuário articulando construção naval, atividade portuária e estabelecimento de
rotas marítimas no Atlântico no âmbito da Companhia de Estabelecimento da Ponta da
Areia instalada em Niterói (KAPPEL, R. F, 2005). Mas, a ação isolada de Mauá não
amenizou a precariedade geral de equipamentos portuários que recebiam poucos recursos.

Na segunda metade do Século XIX, o ingresso da economia-mundo ocidental na


era da especialização produtiva acelerou a unificação do sistema mundial (MONIÉ e
VIDAL, 2006). A teoria das vantagens comparativas postulava que todo país tinha
interesse em se especializar na produção de bens para os quais ele dispunha de uma
vantagem em virtude de condições produtivas que explicam a diferença dos níveis de
produtividade do trabalho. Segundo Ricardo, a diminuição das barreiras alfandegárias e a
especialização dinamizariam as trocas internacionais. No mesmo momento, o progresso do
transporte marítimo permitia ampliar as áreas de mercado. O dinamismo do comércio
mundial, que passou a representar cerca de 20% do PIB mundial nos anos 1880, validou
parcialmente o esquema ricardiano 1. O Brasil participava desta dinâmica através da
modernização do seu modelo primário-exportador centrado na borracha e no café. O
primeiro ciclo alavancou a atividade portuária e comercial de Manaus e Belém. Mas foi no
Sudeste que as transformações do sistema portuário foram notáveis graças ao crescimento
das exportações de “ouro verde”. Inicialmente, o desenvolvimento da economia cafeeira no
Vale do Paraíba beneficiou à atividade portuária da capital. Porém, o crescimento da
produção no interior paulista teve aos poucos efeitos ainda maiores pois a inserção no
sistema de trocas mundial exigia uma modernização da base produtiva e institucional. No
que tange aos transportes, o objetivo consistia em facilitar o escoamento e a exportação do
grão. A atração de capital inglês permitiu construir ferrovias que melhoraram as condições
de acessibilidade ao porto de Santos onde a expansão da atividade estimulou o crescimento
da cidade e o desenvolvimento de atividades financeiras e de negócio (ARAÚJO FILHO,
J.R, 1969). Conforme ao esquema clássico apresentado pelo geógrafo Taafe, o porto
paulista se posicionou então como instrumento central de uma rede transporte irrigando a
hinterlândia regional (TAAFE, 1963). Paralelamente, o governo promulgou decretos
concedendo os portos ao capital privado, no intuito de modernizar os mesmos. Do ponto de
visto institucional, as instalações portuárias passaram sob a tutela do Ministério das Obras
Públicas enquanto a criação da Companhia Docas de Santos prefigurava os futuros portos
organizados (KAPPEL, R. F, 2005). A modernização dos portos acompanhava a tendência
mundial de reestruturação do sistema marítimo-portuário que precisava atender a demanda
de uma economia em via de internacionalização (CLERC, 2004). As primeiras inovações
técnicas de grande porte aconteceram no transporte marítimo: navios maiores, mais
velozes, seguros e oferecendo maior capacidade de carga obrigaram os portos a ampliar
suas instalações e transformar seu padrão operacional. As Conferências Marítimas, as

1
Validade parcial na medida em que Ricardo não tinha previsto a mobilidade dos fatores de produção no
momento da elaboração de sua teoria. A 2ª metade do Século XIX foi justamente marcada por uma
intensificação da circulação do fator trabalho –migrações européias rumo ao Novo Mundo – e do capital.
linhas regulares e os canais inter-oceânicos completavam um dispositivo de circulação
marítima mais sistêmico. No Brasil, os investimentos realizados em Santos e Manaus e a
construção do porto moderno do Rio de Janeiro sinalizavam a superação dos trapiches e
das técnicas tradicionais de manuseio de mercadorias. No entanto, Kappel (2005) aponta
que a privatização e a modernização das instalações portuárias não foi acompanhado por
uma política setorial nacional e que o sistema permaneceu precário e fragmentado.

O sistema portuário brasileiro a serviço do desenvolvimento industrial

Nas décadas seguintes, guerras e crises provocaram uma desaceleração do processo


de mundialização. O protecionismo redirecionou as economias para o território nacional,
provocando uma retração do comércio internacional (MONIÉ e VIDAL, 2006). Nos países
centrais, as maiores empresas fortaleceram suas posições no mercado interno mediante a
generalização do modo de produção taylorista-fordista. Paralelamente alguns países da
periferia, como o Brasil, operaram a transição do modelo primário-exportador para um
modelo urbano-industrial. Estas dinâmicas impactaram no sistema portuário brasileiro que
depois de um declínio conseqüente à forte diminuição das exportações de café voltou a
movimentar volumes crescentes de fluxos.

As fases de declínio e recuperação da atividade provocaram uma intervenção do


governo federal que nos anos 1930 redefiniu a arquitetura institucional do sistema e
promulgou medidas como a transferência da administração dos portos para os Estados e
depois para União. Pela primeira vez, o Estado definiu então uma legislação setorial
nacional ressaltando o caráter estratégico da modernização dos portos para o processo de
industrialização sem, no entanto, planejar um projeto coerente e de longo prazo. Por isso,
os recursos têm sido sistematicamente aplicados para atender as demandas do momento
(GOULARTI FILHO, 2007). Neste contexto, a criação do GEIPOT, em 1965, ajudou a
repensar o sistema de transporte num contexto de crescimento econômico acelerado,
expansão do parque industrial e aumento das exportações de commodities. O Programa dos
Corredores de Exportações elaborado em seguida se traduziu em investimentos no sistema
de circulação terrestre e em portos considerados estratégicos: Paranaguá e Rio Grande
como centros de exportação dos grãos produzidos no Sul; Vitória que escoa a produção do
quadrilátero ferrífero de Minas Gerais e Santos onde a construção de um terminal de
contêineres marca o ingresso no novo padrão técnico-operacional do transporte marítimo
(GONÇALVES e PAULA NUNES, 2008). Terminais mais modestos foram também
contemplados apesar da concentração das inversões em poucas instalações portuárias de
maior porte.

Em 1975, o fracasso dos planos setoriais levaram o governo a criar a Portobrás


encarregada de administrar e planejar de forma centralizada um sistema portuário
pulverizado. A aplicação de recursos e a execução das diretrizes foram confiadas à
empresas portuárias estatais: as Companhias Docas. A eliminação dos gargalos
burocráticos e a criação dos conselhos de usuários deveriam também agilizar as operações.
Outra prioridade consistia na adequação do sistema aos novos padrões mundiais de
circulação marítima e operação portuária. Por isso, a ênfase foi dada à construção de novos
portos – Suape, Praia Mole e Barra do Riacho; de terminais de contêineres – Santos, Rio de
Janeiro e Rio Grande e terminais graneleiros em Santos, Paranaguá, Rio Grande e Vitória
(MARTINS PIMENTEL, 1999). Porém, apesar de alguns avanços, o sistema portuário
brasileiro sofria ainda da falta de planejamento e da insuficiência crônica de recursos, o
que aumentou a defasagem em relação ao nível de competitividade do sistema mundial.
Além dos gargalos infra-estruturais, a natureza do quadro jurídico e institucional contribuiu
para o engessamento dos portos, vítimas da burocracia excessiva, dos efetivos pletóricos de
mão-de-obra, da ausência de capacitação dos recursos humanos, ou seja, de padrões de
gestão e administração inadequados. A tradição das nomeações políticas na Portobrás e nas
Companhias Docas, por vezes transformadas em feudos por políticos locais, agravou um
quadro geral ilustrativo da patrimonialização do aparelho de Estado (FAORO, R, 2000).
Além disso, os portos funcionavam raramente a serviço do desenvolvimento das cidades.
Como aconteceu em outros países, a industrialização colocou a atividade comercial e de
negócio local entre parênteses em benefício de uma função exclusivo: o escoamento fluido
de insumos, bens de consumo e commodities. As infra-estruturas evoluíam segundo uma
lógica distinta da lógica da cidade. Segundo Cocco e Silva (1999, p.10), “os portos foram
como extraídos dos respectivos tecidos urbanos para tornarem-se infra-estruturas
terminais de corredores de exportação planejados e gerenciados no nível federal […]. O
porto transformou-se em um anexo específico dentro de uma organização cada vez mais
funcional do espaço nacional”. A centralização da administração do sistema agravou o
afastamento do porto e da cidade, como o atesta a degradação das áreas portuárias do Rio
de Janeiro e de Santos.

Por seu lado, a geografia portuária acompanhou as transformações do espaço


econômico nacional. A industrialização de São Paulo consolidou a primazia de Santos,
cuja hinterlândia imediata recebeu investimentos nos setores da petroquímica, da química e
da siderurgia, configurando um complexo industrialo-portuário regional (GONÇALVES e
PAULA NUNES, 2008). O papel estratégico da plataforma santista para o processo de
industrialização nacional e a ausência de concorrência inter-portos transformaram Santos
em maior porto da América Latina. O caso paulista ilustra a constituição de uma área de
influência terrestre baseada numa relativa contigüidade espacial em escala regional. A
sinergia entre qualidade das infra-estruturas de acesso e de manuseio das cargas criou, por
sua parte, uma renda de situação que permitiu ao porto de operar em situação de quase
monopólio na sua hinterlândia. Ao contrário, o porto do Rio de Janeiro vítima do declínio
relativo da economia fluminense e da precariedade dos eixos terrestres perdeu espaço em
relação ao concorrente paulista. Paralelamente, alguns portos consolidaram suas posições
no topo da hierarquia graças a expansão da produção e exportação de soja – Paranaguá e
Rio Grande – e de ferro – Tubarão em Vitoria e Itaqui em São Luis. Os dois últimos, que
pertencem a Vale (do Rio Doce), ilustram a força crescente das corporações na
reestruturação da base produtiva, na modernização do sistema de transporte, mas também
no ordenamento do território nacional. O dinamismo e a importância dos terminais da
Petrobrás – São Sebastião, Angra dos Reis e Aratu – insere-se também nesta dinâmica.

O sistema portuário brasileiro na era da integração produtiva

Definindo a integração produtiva

A precariedade institucional e operacional do sistema portuário aparece claramente


no início dos anos 1990 quando as autoridades federais decidem inserir o país de forma
competitiva no comércio mundial. A abertura comercial e a reestruturação produtiva
marcam a saída do nacional-desenvolvimentismo e o ingresso numa nova era de contornos
ainda mal delimitados. A “crise” obrigou as firmas a definir novas estratégias de expansão
num ambiente marcado pela mudança das condições da competitividade. Por um lado,
permanece a tradicional competitividade pelos custos que estimula a re-localização dos
setores de baixo conteúdo tecnológico dos países centrais rumo à regiões sem tradição
industrial moderna. A supressão de parte das barreiras ao livre-comércio e os avanços
técnicos e organizacionais no setor dos transportes, em particular marítimo, viabilizaram o
processo (MONIÉ e VIDAL, 2006). Nos setores intensivos em tecnologia, as estratégias
das organizações foram mais complexas. Veltz (1999) argumenta que doravante a
competitividade decorre, sobretudo, da capacidade de atender às demandas de mercados de
consumo mais heterogêneas. As empresas precisam oferecer bens baratos, de qualidade e
atendendo as exigências diferenciadas dos consumidores, da micro-escala do indivíduo até
a escala global. Neste contexto, a divisão rígida do trabalho se torna improdutiva, a
eficiência pelas operações não é suficiente enquanto a localização das atividades não é
determinada somente pelos laços espaciais entre recursos, fatores de produção e operações
produtivas (VELTZ, 2002). Por esta razão, surgem redes de valor agregado (VELTZ,
2002) que multilocalizam a fabricação e a montagem dos produtos em núcleos centrais
metropolitanos e em periferias múltiplas onde as unidades são localizadas em função de
sua capacidade de abastecer in time o sistema em peças, componentes e
semimanufaturados. A acessibilidade aos dispositivos logísticos regionais e mundiais
constitui um fator de competitividade central para os fornecedores que integram as redes
(MONIÉ, 2003). Em conseqüência disso, assistimos a integração das esferas da produção,
do consumo, do transporte e da distribuição em todas as escalas (VELTZ, 2002; MONIÉ &
VIDAL, 2006). A reestruturação produtiva criou então um espaço econômico mundial
integrado e interdependente que adquire, segundo Veltz (1999), uma feição de arquipélago
cujos centros mais competitivos são as metrópoles, as cidades médias dinâmicas, as
“cidades-estado” e as plataformas logísticas. As inter-relações entre as ilhas de
competitividade e sua articulação com as regiões provedoras de mão-de-obra barata e
recursos naturais provocam uma explosão dos fluxos imateriais e materiais. O ingresso do
ex-mundo comunista na economia de mercado, a emergência de novas potências
comerciais e os blocos regionais alimentam também o dinamismo do comercio e a
formação do espaço global de fluxos cuja constituição foi possível graças à combinação de
três tendências. A primeira é relativa à supressão, gradual e incompleta, de barreiras ao
livre-comércio que eliminou gargalos ao crescimento das trocas internacionais. A segunda
refere-se à adoção pelos órgãos internacionais, governos e corporações de leis, normas,
padrões que possibilitam a diversificação das estratégias territoriais dos atores econômicos.
A difusão das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação – NTCI – representa a
terceira tendência maior que possibilitou a integração dos fluxos de informação entre os
atores das redes produtivas e logísticas – fornecedores, transportadores, distribuidores e
clientes. Estas inovações articulam a ação de atores cujas estratégias adquirem uma feição
sistêmica conforme o ilustra a evolução das redes de transporte marítimo e do sistema
portuário mundial.
A emergência de um sistema marítimo-portuário mundial integrado

A explosão das trocas confere aos dispositivos logísticos uma função estratégica de
costura interna e externa dos espaços da produção e do consumo. Por um lado, mais países
e regiões participam à economia dos fluxos global provocando uma maior dispersão dos
fornecedores, produtores e consumidores que exige uma grande capilaridade dos sistemas
de transporte. Por outro lado, a organização da produção em redes supõe uma conexão
perfeita entre os nós e vetores. Ou seja, os sistemas logísticos combinam estratégias de
concentração dos fluxos em eixos maiores (economias de escala) e desconcentração em
eixos menores (distribuição espacialmente ubíqua). No coração dos dispositivos logísticos
o transporte marítimo é hoje responsável pelo escoamento de cerca de oito bilhões de
toneladas de bens o que representa 80% das trocas internacionais (em volume) (UNCTAD,
2008). A expansão da atividade marítima foi possibilitada por inovações tecnológicas,
institucionais e organizacionais (MARTNER PEYRELONGUE e MORENO MARTINEZ,
2001). No campo tecnológico, o gigantismo dos navios é fonte de economias de escala e o
equipamento dos mesmos em NTIC permite articular os atores das cadeias de valor
(FRÉMONT, 2005). Por sua parte, o uso do contêiner foi decisivo para diminuir os custos
e suavizar a gestão das interfaces intermodais. No campo institucional, o transporte
marítimo não escapou da onda neoliberal que se traduziu por privatizações e à
desregulamentação do setor. Enfim, a emergência de novos atores marcou a vertente
organizacional da atividade: o Operador Multi-Modal, que oferece um serviço porta-a-
porta sob contrato único (BARAT, 2007) e as Alianças Estratégicas são atores que por
garantir capilaridade ao sistema são essenciais para a organização sistêmica e multi-escalar
das redes (FRÉMONT, 2007).

A dupla tendência de integração e expansão geográfica do espaço econômico


mundial exige então respostas sistêmicas: nenhum nó ou vetor do sistema produtivo-
logístico é apreendido isoladamente. Considera-se o produto das interações entre
subsistemas. Todo ator precisa assim situar-se em permanência dentro de um Sistema
Marítimo-Portuário Mundial – SMPM – integrado que transporta e distribui cargas de
todos os tipos de qualquer lugar para qualquer outro lugar do mundo, num ambiente
caracterizado pela dispersão espacial dos clientes, pela extensão das distâncias a percorrer,
pelo aumento do volume das cargas movimentado e pelas exigências dos clientes em
termos de preço do serviço, pontualidade ou integridade física das mercadorias. Nessa
economia de fluxos os atores agem segundo uma dupla lógica de hierarquização e des-
hierarquização dos fluxos (MARTNER PEYRELONGUE e MORENO MARTINEZ,
2001). No topo da hierarquia, as rotas marítimas, que ligam América do Norte, Ásia
Oriental e União Européia, concentram aos maiores operadores globais que usam navios
gigantes e servem um grupo seleto de portos grandes e modernos. Nessas rotas, alguns
hubs como Cingapura, Dubai, Algeciras, Colon – redistribuem os contêineres para rotas
regionais que articulam os grandes centros econômicos às regiões de menor peso no mapa
econômico mundial, como a América do Sul. Enfim, rotas e portos locais garantem a
algumas áreas periféricas um acesso mínimo ao espaço global dos fluxos (MONIÉ e
VIDAL, 2006). Mas, os dispositivos logísticos seriam incompletos sem a incorporação dos
acessos terrestres. Os ganhos de produtividade nas rotas marítimas e na interface portuária
não podem ser aniquilados em ferrovias e rodovias cuja precariedade ou saturação
prejudicam o conjunto do sistema.

Em síntese, o SMPM proporciona uma circulação eficiente e de baixo custo num


espaço econômico mundial sujeito à dinâmicas de concentração e difusão dos fatores de
produção. Por isso, a circulação tradicionalmente organizada de forma funcional dentro de
modalidades segmentadas envolve doravante a incorporação de novas variáveis, garantindo
fluidez e agregação constante de valor a fluxos cuja gestão obedece às imposições do just-
in-time. Passamos então da economia dos transportes para a economia da logística que
ilustra o ingresso na “economia industrial de serviços” (VELTZ, 2002). A transição exige
a definição de políticas públicas inovadoras. A reforma portuária constituiu uma das
respostas das autoridades nos anos 1990. Mas será que a reforma incorporara as inovações
em curso nos cenários da produção, do consumo e da circulação?

O sistema portuário brasileiro no início dos anos 1990

A competitividade da base produtiva torna-se uma prioridade para o governo brasileiro


no início dos anos 1990. A inserção competitiva nos fluxos globais supõe a eliminação dos
gargalos burocráticos e infra-estruturais que compõem o “Custo Brasil”. No caso do setor
portuário, o diagnóstico aponta diversos problemas. O sistema é tecnologicamente obsoleto
e a precariedade das instalações tem efeitos negativos sobre o manuseio das cargas. Por sua
vez, a liberação das cargas é sujeita a inspeção, fiscalização e controle de ministérios e
órgãos estatais cuja atuação não coordenada torna os prazos de entrega imprevisíveis. Esta
incerteza prejudica a competitividade dos portos cujos clientes evoluem em redes onde o
just-in-time transformou a pontualidade em variável central da concorrência. Por sua vez, a
legislação trabalhista e a pulverização profissional dos recursos humanos favorecem
relações de trabalho hierarquizadas e paternalistas. Vale também ressaltar, a defasagem dos
programas de qualificação e o caráter pletórico dos efetivos da mão-de-obra2. A
combinação destes elementos prejudica a competitividade dos portos que figuram então
entre os mais caros do mundo. Num estudo de 1993, o Geipot avaliou que o custo da
movimentação de um contêiner era 30% superior ao custo registrado em grandes portos
estrangeiros. No caso dos grãos, a diferença chegava a 55% (ROCHA DOMINGUES,
2001). Porém, os problemas não se limitam a um “Custo Brasil setorial” que poderia ser
eliminado mediante a modernização das infra-estruturas. A administração do sistema pela
Portobrás sinaliza a incapacidade de elaborar uma política portuária nacional coerente
contemplando curto, médio e longo prazo. Por sua parte a burocratização e a tradição de
nomeações políticas na Portobrás e nas Docas contribuem para a inércia política geral.
Enfim, a centralização dos processos de tomada de decisão colabora para o afastamento
dos portos em relação às cidades. As relações entre a Portobrás e às Docas estatais, entre
estas últimas e às cidades-porto são caracterizadas pela sua verticalidade e a ausência de
diálogo interinstitucional. A cooperação é também insuficiente entre as autoridades
portuárias e os usuários de suas instalações (MAIA PORTO, 1999).

Diante deste cenário, a Comissão Portos da Ação Empresarial Integrada e a


Associação Brasileira de Terminais Portuários – ABTP – reivindicaram uma reforma do
sistema (FERREIRA VIDIGAL, 2007). As entidades cobravam uma Lei de modernização
dos portos indo no sentido das reformas neoliberais promulgadas em vários países. O
primeiro passo foi a extinção da Portobrás em 1990 e a transferência da tutela sobre os
portos públicos para o Ministério dos Transportes. A medida criou um vazio institucional e
uma paralisia da ação estatal. Goularti Filho (2007) aponta o ingresso numa era de
confusão administrativa e de degradação das estruturas em função da paralisia das obras,
da suspensão das licitações e da ausência de investimentos. Mas, a crise institucional
acelera a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei n.8.630/93 A chamada Lei de
Modernização dos Portos elabora uma nova arquitetura institucional seguindo os princípios

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Em 1990, os portos públicos brasileiros empregavam 45.000 trabalhadores e movimentaram 350 milhões de
toneladas de mercadorias, o que corresponde a um rendimento de 7,7 mil toneladas per capita. No mesmo
ano, o porto de Roterdã, que emprega 8.000 trabalhadores, movimentou sozinho 296 milhões de toneladas de
mercadorias, correspondendo a 37 mil toneladas per capita (Guimarães in Barat, 2007).
de desestatização, desregulamentação e descentralização. O objetivo é a valorização da
função comercial das instalações portuárias num ambiente de livre mercado e de
concorrência inter-portos. Para isso, as autoridades pretendem abolir os monopólios -
monopólio normativo do Governo Federal sobre o serviço portuário; das Docas sobre as
operações; dos sindicatos sobre o recrutamento da mão-de-obra avulsa – e estimular uma
gestão co-participativa no âmbito de Autoridades Portuárias juntando os atores envolvidos
na vida do porto3. Finalmente, a esfera estatal permanece responsável pela construção e a
manutenção da infra-estrutura; pela gestão ambiental; pela fiscalização das instalações
portuárias ou ainda a promoção comercial do porto. Por sua parte, o setor privado pode
arrendar terminais, onde o Operador Portuário é responsável pelas operações de manuseio
das cargas e dos investimentos em equipamentos e instalações. Enfim, os terminais de uso
privativo são autorizados a movimentar cargas de terceiros. O novo quadro jurídico foi
completado pela Lei 9.277/96 autorizando a União à conceder a administração e
exploração dos portos aos estados e aos municípios. Em 2001, foi criada a Agência
Nacional de Transportes Aquáticos – ANTAQ, autarquia vinculada ao Ministério dos
Transportes, cuja missão consiste em regular e fiscalizar o transporte aquaviário e a
exploração da infra-estrutura setorial além de estimular a competição entre os operadores.
Enfim, em Maio de 2007, uma medida provisória criou a Secretaria Especial de Portos que
tem por principais atribuições a formulação de políticas e diretrizes para o fomento do
setor; a execução de projetos e ações de apoio ao desenvolvimento da infra-estrutura, a
participação na discussão e elaboração do planejamento estratégico setorial e a
consolidação do marco regulatório setorial.

O novo sistema portuário: avanços e limites da modernização

Efeitos espaciais das mudanças institucionais


Uma das principais conseqüências da re-engenharia institucional dos anos 1990
reside na descentralização do sistema. Hoje somente 19 dos 82 portos do país são
administrados pelas Companhias Docas vinculadas ao Ministério dos Transportes. Mas se
muitos portos pequenos e médios passaram sob a tutela dos Municípios e dos Estados, as
possibilidades abertas pela Lei de 1996 não suscitaram uma ampla dinâmica de
mobilização dos atores locais, apesar da administração municipal ser bem sucedida em
diversas regiões do mundo (COLLIN, 1999). Convém, porém, mencionar o caso de Itajaí

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Para uma analise detalhada da reforma cf Barat (2007) e Marcos Pimentel (1999).
onde as instalações portuárias passaram sob administração da Prefeitura Municipal ao
longo de um processo que se estendeu na segunda metade dos anos 1990. Desde então, o
porto começou a ser apreendido como um instrumento de desenvolvimento via à
aproximação do processo decisório das reivindicações dos atores econômicos e da
comunidade local expressas no Orçamento Participativo, em câmaras setoriais e
transversais, etc. A combinação de ação proativa do Município, de modernização do porto
e de dinamismo da economia catarinense teve resultados rápidos: entre 1995 e 2007, a
movimentação de cargas cresceu cerca de 11,5% ao ano ! Para além dos cais, a integração
entre as infra-estruturas portuárias e o território urbano estimulou os investimentos no
tecido produtivo por parte do setor empresarial local e nacional. A capacidade de inserir o
porto e a cidade na “cadeia logística do frio” é um exemplo deste dinamismo. A
inauguração recente de terminais privados especializados a proximidade de Itajaí reflete o
re-posicionamento do porto e da cidade no sistema marítimo-portuário mundial e significa
também novos desafios para definir um pólo portuário regional estruturado em torno de um
possível binômio Itajaí/Navegantes. Mas talvez o verdadeiro êxito da cidade catarinense
seja de natureza sócio-política na medida em que a municipalização nós parece ter sido
alimentada por uma mobilização dos atores locais inédita no Brasil, país onde os
municípios ainda não manifestaram muito interesse em administrar seus equipamentos
portuários. A imagem tradicionalmente negativa da atividade portuária, que ilustrava para
autores como Darcy Ribeiro o Gilberto Freire o caráter perverso da inserção do país no
sistema de trocas mundial explica em parte a dificuldade de re-aproximar o porto da cidade
(COCCO e SILVA,1999). Da mesma forma, vale ressaltar que o caso mais exitoso de
integração porto/cidade ocorre numa região cujo desenvolvimento sócio-econômico foi
pouco dependente da tecno-burocracia desenvolvimentista e onde a cooperação entre
atores locais é uma constante no processo de formação territorial (RAUD, 2000).

Efeitos operacionais da reforma portuária

Um dos principais efeitos da reforma portuária reside no aumento da produtividade


dos portos possibilitado pelos investimentos setoriais, pela diminuição da massa salarial e a
adoção de novos métodos de gestão. O processo de arrendamento atraiu operadores que
investiram em particular nos terminais de contêineres. Paralelamente, o governo federal
aplicou recursos na construção de novas instalações em Pecém-CE e na reestruturação de
portos existentes como Suape-PE e Itaguaí-RJ (MONIÉ e VIDAL, 2006). Os ganhos de
produtividade e a diminuição dos custos operacionais foram imediatos: entre 1997 e 2006
o custo médio de movimentação de um contêiner padrão diminuiu em cerca de 70%
enquanto a movimentação horária média das caixas passou de 10 para cerca de 30
unidades. Enfim, observamos uma redução do índice das perdas e danos. Os resultados
obtidos são essenciais para posicionar o Brasil de forma mais competitiva num sistema
marítimo-portuário mundial onde a ritmo de circulação das cargas, a qualidade do serviço,
a estabilidade institucional e o nível das tarifas são variáveis centrais na escolha das escalas
pelos operadores logísticos. Neste contexto, a modernização dos equipamentos e das infra-
estruturas foi globalmente suficiente para dar suporte ao crescimento do comércio exterior.

Porém, convém ressaltar a permanência de gargalos prejudicando o sistema. Apesar


dos progressos, os portos nacionais operam num patamar técnico-operacional inferior ao
dos concorrentes; os serviços prestados são relativamente precários e os custos superiores
ao padrão mundial. Ainda no campo operacional, o acesso às instalações portuárias
continua problemático: a acessibilidade náutica sofre do atraso das operações de dragagem
enquanto o acesso terrestre é prejudicado pela precariedade do sistema de transporte e a
ausência de redes intermodais. Outro dado preocupante é referente ao fato que os maiores
portos já usam 90% de sua capacidade instalada, situação que exige soluções técnicas e
gerenciais integradas que devem, por exemplo, considerar os impactos das obras sobre o
meio ambiente e a qualidade de vida da população. As disfunções são maiores nos portos
administrados pelas Docas do que nos terminais privativos pertencentes a firmas globais
como Vale, Petrobrás ou as tradings do complexo sojífero que operam dentro de padrões
de gestão modernos e dispõem de elevada capacidade de investimento para constituir
sofisticadas cadeias produtivas-logísticas verticalmente integradas. Além disso, o manuseio
das commodities apresenta um baixo grau de complexidade o que facilita o alinhamento
nos padrões dos grandes portos mineradores e petrolíferos mundiais.

Diversos fatores explicam que a competitividade do sistema portuário seja ainda


insuficiente. O arcabouço institucional sofre da superposição de competências e atribuições
dos CAP e das Autoridades Portuárias. Outro gargalo reside no baixo nível de eficiência
administrativa ilustrado pela lentidão na liberação das cargas: os órgãos governamentais
atuam de forma não integrada, as tarefas são raramente informatizadas e, em muitos portos,
os serviços de alfândega funcionam apenas em horário comercial (CNI, 2007). Por seu
lado, o padrão de gestão dos portos organizados sofre da politização das nomeações para
cargos cujos “titulares” não dispõem sempre da qualificação adequada para administrar um
porto moderno. O clientelismo e a descontinuidade na direção de algumas Docas
prejudicam também o planejamento e a execução de uma ação pública desprovida de
qualquer autonomia. Ou seja, os processos decisórios hierarquizados e burocratizados
ilustram a dificuldade de definir padrões de governança democráticos e descentralizados.
Outro aspecto problemático reside na questão das relações trabalhistas. A privatização das
operações e o uso de novas técnicas de manuseio de cargas se traduziram por uma onda de
demissões num universo onde a estabilidade era a regra. Diante deste cenário, o
enfrentamento das ortodoxias empresarial e sindical abriu pouco espaço paras soluções
socialmente sustentáveis. A reconversão dos trabalhadores portuários em trabalhadores da
logística foi prejudicada pela representação conservadora da questão portuária entre atores
que ignoram a tendência mundial de criação de empregos nas atividades retro-portuárias.
Outro obstáculo à resolução da questão trabalhista é relacionado às dificuldades para os
OGMOS de implementar as novas regras de racionalização do trabalho nos cais. Em
conseqüência disso, o excedente de mão-de- obra onera os serviços enquanto o trabalhador
se sente desprestigiado, ao contrario do que acontece nas cidades marítimas do Norte da
Europa onde participa de forma ativa ao processo de modernização portuária (COLLIN,
2003).

A competitividade dos portos brasileiros sofre ainda da insuficiência dos


investimentos no sistema. Por um lado, a iniciativa privada investiu na reaparelhamento
das infra-estruturas mas o volume das inversões à realizar é considerável numa atividade
onde o retorno operacional e financeiro é incerto e demorado. Por outro lado, a capacidade
de investimento das Docas é limitada pelo elevado número de ações judiciais que alimenta
uma dinâmica de endividamento4. Enfim, após a promulgação de Lei nº8.630/93, o
governo federal não tem dado prioridade ao setor portuário que recebeu relativamente
poucos recursos e dirigiu parte deles para a consolidação das cadeias logísticas integradas
de multinacionais da mineração ou da siderurgia como no caso de Itaguaí. Mais
recentemente, os planos de investimentos da Agenda Portos nos portos organizados foram
freqüentemente emperrados por mandados de segurança e pela própria burocracia estatal.

Uma nova geografia portuária?

4
Os passivos trabalhistas somam 800 milhões em Santos e aproximadamente 500 milhões no Rio de Janeiro
A atividade portuária brasileira está em franco crescimento desde o início dos anos
2000 em conseqüência do aumento do PIB, da expansão e diversificação do comércio
exterior, da internacionalização das corporações brasileiras e da reestruturação do aparelho
industrial, geradora de interações espaciais pluri-escalares mais intensas. No que diz
respeito à evolução por natureza de cargas, os dados indicam uma progressão heterogênea
dos diferentes segmentos. O dinamismo dos graneis sólidos foi alavancado pelo aumento
das exportações das commodities minerais – com destaque para o ferro que representa 35%
da carga movimentada– e agrícolas – em particular a soja – num contexto marcado por um
aumento da demanda na China e nos países emergentes. Oito produtos transportados à
granel representam dois terços da movimentação de mercadorias5. A movimentação de
carga geral também progrediu sob o impulso dos produtos siderúrgicos
(internacionalização das empresas brasileiras) e dos contêineres. Neste caso, a explicação
reside nas crescentes exportações e importações de manufaturados e no papel das firmas
industriais cujas cadeias produtivas participam de maneira mais efetiva do espaço global de
fluxos.

A dinâmica regional do sistema portuário apresenta tendências relevantes que


podemos relacionar tanto ao processo de formação do território brasileiro quanto à
reestruturação atual dos espaços econômicos mundial e nacional. Vale, em primeiro lugar,
lembrar que o Brasil conta com um grande número de portos marítimos distribuídos nos
seus 8.600 quilômetros de litoral e com alguns portos fluvio-marítimos que recebem navios
de longo curso (Belém, Vila do Conde, Santarém, Manaus, Itacoatiara etc.). A dispersão
geográfica do sistema portuário nacional encontra então suas origens nas dimensões
continentais do país mas também nas especificidades da estrutura territorial cuja formação
foi marcada por uma sucessão de ciclos econômicos regionalmente definidos (FURTADO,
2000). Ao longo do litoral surgiram, assim, instalações portuárias cuja atividade foi ligada
a uma hinterlândia especializada no fornecimento de determinado bem ao mercado
europeu. A incapacidade das autoridades de promulgar uma política nacional explica que
cada porto tenha se posicionado não dentro de um sistema integrado mas sim em relação a
sua área de mercado específica. Do seu lado, a função de etapa na navegação de cabotagem
era, ao mesmo tempo, estratégica para um país sem estradas longitudinais e residual devido
à baixa densidade das interações entre os principais núcleos de povoamento, situação que
favoreceu uma concentração dos tráfegos em poucas cidades-porto inseridas no sistema

5
Minério de ferro, petróleo e derivados, soja e farelo, bauxita, açúcar, fertilizantes (Antaq, 2008)
mundial e que atuavam também como pivôs alimentados em fluxos menores por portos de
segunda linha.

Tabela 1. Participação dos principais portos no comércio exterior brasileiro - 1905

Porto % das exportações % das importações


Santos 39% 17%
Rio de Janeiro 19% 39%
Belém 12% 10%
Salvador 8% 6%
Recife 2,5% 10%
Fonte: Vidal (1998)

A hierarquia portuária de 1905 é um retrato bastante fiel da sucessão de ciclos que


definiu em épocas diferentes a posição dos portos: o posicionamento de Recife e Salvador
ilustra o papel doravante secundário dos portos do açúcar; Belém se beneficia dos últimos
momentos do ciclo da borracha enquanto Rio de Janeiro perde espaço para Santos na
medida que São Paulo desponta como maior centro econômico do país. Observamos
também a feição específica do porto fluminense que desde a instalação da Corte
transformou-se em centro importador de manufaturados europeus. Por sua parte, Santos,
responsável por cerca de 40% do comércio exterior, ocupa o topo da hierarquia na fase que
corresponde ao auge do ciclo do café e à aceleração do processo de industrialização de sua
hinterlândia regional, momento simbolizado pela construção de um porto moderno
indispensável à inserção do estado de São Paulo nos circuitos do capitalismo moderno
(ARAÚJO FILHO, 1969).

Nas décadas seguintes a geografia portuária continuou evoluindo em função da


reestruturação do território brasileiro, cujas linhas de força sofrem o efeito da transição do
modelo primário exportador para um modelo urbano-industrial e da expansão de dois
setores econômicos tradicionais, a agricultura e a mineração. Nos anos 1960, a
movimentação total das cargas quase dobrou sob o efeito do crescimento econômico e da
expansão do mercado das commodities. As exportações do complexo soja deslancharam,
como o ilustra o dinamismo de Rio Grande e Paranaguá que recebem grão e farelo do sul
do país onde a agricultura moderna se desenvolve. No sudeste, o fenômeno marcante é a
constituição de uma fachada portuária capixaba cuja atividade é relacionada às exportações
do ferro do quadrilátero ferrífero e ao crescimento industrial de Minas Gerais. Por seu lado,
a expansão da movimentação de cargas no Rio de Janeiro decorre em grande parte da
evolução do segmento granel e dos produtos siderúrgicos. Enfim, Santos continua no topo
da hierarquia quanto consideramos o valor das cargas revelando uma tendência relevante: o
desenvolvimento paralelo dos terminais especializados no transporte de produtos
volumosos e de baixo valor unitário, e dos portos generalistas urbanos onde cresce o
segmento dos produtos manufaturados, cujo valor agregado é superior. A evolução da
hierarquia portuária ilustra a tendência em curso a partir dos anos 1960.

Figura 1. Movimentação de cargas nos principais portos brasileiros 1996-2007

Fontes: Antaq, Companhias Docas, Ministério dos Transportes. Elaboração: Erika Ribeiro
Souza e Frédéric Monié/GEOPORTOS

A figura retrata em primeiro lugar o dinamismo dos portos especializados na


movimentação de granéis líquidos e sólidos. O fato de somente doze produtos representar
80% da operação total em volume ilustra uma tendência à especialização relacionada ao
duplo processo de internacionalização e expansão dos mercados de produtos agrícolas e
das commodities minerais. A agricultura voltada para exportação se modernizou e
apresenta elevados níveis de produtividade, alcançados através da inovação técnica, da
introdução de novos métodos gerenciais e da transformação da geografia da produção onde
se destacam as áreas de cerrado (grãos) e os polígonos de irrigação do Nordeste (frutas
tropicais) (ADÃO BERNARDES, 2005; ELIAS e PEQUENO, 2006). Estas dinâmicas
espaciais colocaram a agricultura moderna diante de novos desafios em termos de
escoamento da produção em particular no que diz respeito a soja do Centro Oeste
produzida a distâncias crescentes dos portos exportadores tradicionais 6 e em regiões onde a
malha de transporte é precária além de pouco capilar (MONIÉ, 2007; CASTILLO, 2007).
A perda parcial da competitividade durante as operações de transporte suscitou iniciativas
de criação de novos corredores desembocando em cidades-porto da Amazônia e do
Nordeste. Podemos, por exemplo, ressaltar o caso do Grupo Maggi que através de sua filial
Hermasa S.A usa um terminal fluvial em Porto Velho a partir do qual a soja é transportada
pelos rios Madeira e Amazonas até as instalações de Itacoatiara. Por sua parte, a Cargill
investiu num terminal em Santarém, apostando no asfaltamento da BR-163 e na posição de
entroncamento rodo-fluvial da cidade que permitiria o escoamento da produção de grão do
eixo Nova Mutum-Sorriso e da área de cerrado local. Diante do atraso nas obras a firma
mudou suas estratégias territoriais em benefício da rota fluvial Madeira-Amazonas que
permite escoar soja produzida no Oeste de Mato Grosso e em Rondônia até os mercados
externos via Santarém. O porto de Itaqui desponta também como alternativa para os
produtores de grãos de Piauí, Tocantins e Maranhão. Nesse caso, o ator central não é mais
uma trading do setor e sim a operadora logística Vale que busca diversificar sua carteira de
clientes. O projeto de Ferrovia Norte Sul é estratégico para a firma que poderá, entre
outros, transportar soja das áreas citadas e do Leste de Mato Grosso. A integração das
estradas de ferro Norte-Sul e Carajás transformaria Itaqui em centro de exportação de soja.

No que diz respeito à exportação de commodities minerais a geografia portuária foi


marcada pela consolidação da posição de Itaqui, relacionada ao desenvolvimento das
atividades da Vale em Carajás, e pela ascensão dos terminais de Itaguaí na baia de
Sepetiba. Nos últimos meses, foi também anunciada a construção de terminais pelo grupo
MMX em diversos estados, mas a conjuntura mundial temporariamente desfavorável, os
conflitos socioambientais nas áreas preteridas pela corporação e problemas específicos a
holding deveriam adiar alguns destes projetos. A geografia portuária da exportação do
minério de ferro deveria, assim, permanecer estável a médio e curto prazo.

O mercado dos graneis sólidos ilustra então o papel central das corporações no re-
ordenamento do território brasileiro e de sua base produtiva, com destaque para regiões
periféricas apresentando um baixo nível de inserção nos circuitos do capitalismo moderno.

6
O município de Sorriso no centro norte de Mato Grosso localiza-se, por exemplo, a cerca de 2000
quilômetros do porto de Santos.
As estratégias territoriais dos grupos almejam a re-funcionalização de regiões inteiras,
como ocorreu nos cerrados do Centro Oeste e na Amazônia oriental7. Os investimentos
foram em geral acompanhados pela aplicação de recursos em infra-estruturas de transporte
que desenharam eixos ligados a terminais portuários equipados em armazéns e esteiras de
carregamento. O conjunto das operações ilustra claramente o “efeito túnel” de corredores-
fronteira que interagem pouco com as regiões atravessadas (NUNES COELHO, 2008). As
ilhas do arquipélago produtivo de commodities formam então um espaço das operações
(VELTZ, 2002) espacialmente fragmentado e integrado por infra-estruturas cujo efeito
desenvolvimentista em escala regional e local é inversamente proporcional a retórica que
justifica os empreendimentos (OFFNER, 1993). Por essa razão, a escala de ação global das
corporações transforma as cidades que abrigam suas instalações em espaços de transbordo
dentro de território logísticos off shore. Mesmo se os volumes manipulados nesses
terminais impressionam –100 milhões de toneladas de minerais em Tubarão– cabe lembrar
que se trata de fluxos de baixo valor agregado que participam relativamente pouco na
formação da riqueza nacional e não abrem perspectivas de desenvolvimento territorial.

Em contrapartida, a evolução o tráfego de contêineres traduz de maneira mais fiel o


grau de desenvolvimento das economias e das sociedades, como o ilustra a evolução deste
mercado nas últimas décadas. Vale notar que este mercado se expandiu muito desde os
anos 1960 primeiro no Atlântico Norte depois na Bacia do Pacifico onde a Ásia oriental já
é responsável por mais da metade do tráfego mundial. Mesmo se a expansão do mercado
alcançou todas as regiões do mundo inseridas na globalização o hemisfério sul continua
ocupando uma posição periférica nas redes de transporte conteinerizado. No Brasil, apesar
de contínuo, o crescimento deste mercado foi inferior a média mundial.

Figura 2. Evolução da movimentação de contêineres nos principais portos brasileiros

7
A especialização produtiva em commodities pode ser passageira, como o demonstram os casos de
Rondonópolis ou do eixo Nova Mutum-Sorriso no Mato Grosso que se consolidam progressivamente como
pólos industriais graças a investimentos em setores como o maquinário agrícola, a produção de bens
alimentares, etc.
Fonte: Antaq. Elaborado por Erika Ribeiro Souza e Frédéric Monié/GEOPORTOS

A localização no Sudeste e no Sul de oito entre os dez primeiros portos deste


ranking é logicamente o reflexo da distribuição espacial do parque industrial e das bacias
de consumo 8. A concentração dos fatores de produção nessas regiões intensificou-se a
partir dos anos 1950 quando as firmas procuravam as economias de aglomeração
propiciadas por espaços metropolitanos conectados ao território nacional pelas redes de
transporte e telecomunicações modernas. A partir dos anos 1970, a dinâmica regional do
investimento industrial evoluiu sem que a primazia do Centro Sul seja contestada. A
flexibilização defensiva (LIPIETZ e LEBORGNE, 1994) marcada pela re-alocação de
atividades intensivas de mão-de-obra para o Nordeste; os investimentos recentes do setor
agro-alimentar no Centro Oeste ou a instalação de unidades de montagem de automóveis
em estados sem grande tradição industrial, não alteraram significativamente o padrão de
concentração herdado do período desenvolvimentista. Num estudo realizado nos anos
1990, Pacheco (1996) mostrou que a desconcentração espacial da indústria ocorreu
essencialmente em escala intra-regional, dentro de um polígono Belo Horizonte, Maringá,
Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São José dos Campos. Desde então, investimentos no

8
Os portos dessas duas regiões são responsáveis por cerca de 90% do tráfego de contêineres (TEUs) no país !
Vale do Paraíba, na Bacia de Sepetiba (RJ) e no Espírito Santo ampliaram um pouco os
limites deste espaço sem reverter o caráter concentrado do processo de desconcentração do
parque industrial. Na medida em que os contêineres transportam essencialmente produtos
manufaturados e semimanufaturados, a hierarquia dos tráfegos é dominada por plataformas
cuja hinterlândia preferencial localiza-se então dentro deste polígono. Maior porto do
subcontinente, Santos drena fluxos da macro-metrópole e do interior paulistas, além dos
estados que constituem sua área de influência tradicional (CAMPOS NETO, 2006). Por
sua parte, os equipamentos portuários do Sul registraram um aumento da movimentação de
contêineres que acompanhou o desenvolvimento industrial regional e a crescente abertura
comercial das áreas meridionais do polígono. Alguns portos conseguiram também ampliar
sua hinterlândia além dos seus limites tradicionais, como Itajaí que capta fluxos de bens
agro-alimentares frios e congelados no Centro Oeste. No Sudeste, os portos de Itaguaí e
Vitória incluem entre seus principais clientes firmas do estado de Minas Gerais.

A análise da evolução recente da geografia portuária brasileira confirma então uma


tendência observada na escala sul-americana: os tráfegos crescem, mas o ritmo do
crescimento é inferior a média mundial, em particular no que diz respeito à movimentação
de contêineres que constituem o segmento nobre do transporte marítimo e oferecem
possibilidades de geração de emprego e atividades nos espaços de interface.

Uma modernização incompleta

A modernização do sistema portuário se traduziu então por um aumento de seu


nível de competitividade. No entanto, a ação pública e os investimentos foram
caracterizados por um viés ainda predominantemente setorial, funcionalista e segregador
do ponto de vista da relação entre o equipamento portuário e o território urbano (COCCO e
SILVA, 1999; MONIÉ e VIDAL, 2006). O aumento da produtividade circulatória
(ROCHA DOMINGUES, 2001) continua sendo o objetivo maior dos atores do setor que
privilegiam a competitividade do espaço das operações sem necessariamente pensar a
relação cidade/porto de maneira inovadora. Ou seja, a possibilidade de transformar as
plataformas portuárias em ferramentas a serviço do desenvolvimento do território
metropolitano e/ou regional permanece em geral ignorada. Vários fatores dificultam a
discussão de um novo “paradigma portuário”. Em primeiro lugar, a globalização é ainda
apreendida como uma nova etapa da internacionalização da economia cuja conseqüência
principal seria uma simples mudança de escala do comércio, do espaço nacional para o
espaço mundial. Esta representação estimulou as autoridades locais e nacionais a investir
nas portas de entrada aeroportuárias, teleportuárias ou portuárias que seriam os vetores da
inserção competitiva na globalização. Nas cidades marítimas, a extração definitiva do
porto do tecido urbano é assim apresentada como condição absoluta para a captação dos
fluxos de cargas, turistas e investimentos. As novas exigências do transporte marítimo e do
turismo condenariam os portos urbanos: acessibilidade terrestre precária, canal de acesso e
área retro-portuária não adaptados ao gigantismo dos navios, atividades impactantes sobre
o meio-ambiente e radicalidade dos conflitos de uso são os argumentos mais comumente
avançados. A extinção da atividade portuária também seria benéfica pois permitiria atrair
turistas – navios de cruzeiro – e consumidores de equipamentos culturais e de lazer em
waterfronts simbolizando uma relação renovada entre a cidade e a água. A solução
consistiria então na construção de plataformas em meio extra-urbano, ao exemplo dos
investimentos aplicados em Pecém, Suape ou Itaguaí.

A reprovação aos portos urbanos é ilustrativa de uma retórica, a nosso ver,


contestável. Em primeiro lugar, a incompatibilidade entre a dimensão produtiva do porto e
as oportunidades que surgem na frente de água é contestada por exemplos de metrópoles
que investem conjuntamente nos dois campos – Barcelona, Valência, Amsterdã, Miami,
Valparaiso, etc. Em segundo lugar, a superação do padrão técnico-operacional dos portos
brasileiros ante as exigências dos integradores logísticos globais deve ser relativizada. O
volume de recursos aplicado na modernização de portos que figuram entre os maiores e
mais competitivos do mundo sinaliza que todos os equipamentos portuários mundiais
requerem investimentos constantes diante dos crescentes problemas de acessibilidade,
disponibilidade de amplas áreas retroportuárias, etc. Mas, nestas aglomerações os
necessários ajustes aos padrões técnicos impostos pelo transporte marítimo não são
motivos de condenação dos portos urbanos. Em terceiro lugar, condenar portos brasileiros
argumentando que eles não podem receber porta-contêineres gigantes revela a dificuldade
de contextualizar o país dentro do Sistema Marítimo Portuário Mundial onde este tipo
navio só circula no hemisfério norte, que abriga as maiores bacias de produção e consumo.

Enfim, diversos autores ressaltam a centralidade das metrópoles no espaço


econômico global onde elas atuam não só com centros de comando mas também como
territórios produtivos responsáveis pela maior parte do PIB mundial (VELTZ, 1999;
SASSEN, 1998; STORPER, 2004). Entre elas, as cidades marítimas abrigam atividades de
alto nível, funcionam como espaços de comando, organização e gestão das redes globais e
como lugares de produção usando suas portas de entrada para fazer transitar e valorizar os
fluxos comerciais (BAUDOUIN, 1999; MONIÉ e VIDAL, 2006). Algumas delas
aproveitam assim sua situação litorânea, sua posição nas redes produtivas e os recursos
específicos do território urbano para transformar seus equipamentos portuários em vetores
de desenvolvimento. O Randstad Holland, o Pearl River Delta chinês, Xangai, Antuérpia
ou ainda Barcelona são exemplos de cidades-região e metrópoles que valorizam estes
trunfos e apostam na logística como ingrediente do desenvolvimento (COLLIN, 2003).
Neste caso, a estratégia das autoridades e dos atores privados consiste numa análise prévia
da forma de inserção da cidade na esfera mundial de produção multilocalizada/ montagem/
transporte/ distribuição final que caracteriza a era da integração produtiva (MONIÉ, 2003).
O esforço de contextualização é imprescindível para delimitar suas potencialidades
logísticas. Em seguida, as cidades-porto citadas definem políticas públicas de
desenvolvimento onde os portos constituem uma das ferramentas a serviço da expansão
das atividades logísticas, comerciais e industriais. Ao exemplo das dinâmicas observadas
nos distritos industriais, pólos tecnológicos, arranjos produtivos locais ou meios
inovadores, a valorização dos recursos territoriais constitui a chave do sucesso dos espaços
ganhadores (BENKO e LIPIETZ, 1994). O uso conjunto dos recursos técnicos (o porto) e
dos recursos produtivos da cidade (serviços, P&D, negócio e indústria) desenha a transição
da cidade-porto, voltada para o transito das mercadorias, para a cidade portuária que
constrói um novo paradigma portuário e logístico onde a fixação de valor agregado é um
objetivo central. A produção de riqueza acontece quando o fornecedor do serviço supera a
função transporte tradicional e gera, segundo Guillaume (2008), “sinergias entre fluxos de
origem e de destino diferentes (efeitos de redes), entre as etapas de elaboração de um
produto (efeitos de cadeias) ou a mercantilização deste produto (efeitos de mercado)”.
Concretamente, os contêineres contém subsistemas, peças, componentes e destinados aos
centros de montagem continentais ou regionais que as cidades portuárias mercantilizam
mobilizando serviços à produção além de operações clássicas relacionadas a economia dos
transportes (MONIÉ & VIDAL, 2006).

Mas, apesar de experiências bem sucedidas mundo afora, a inserção da variável


portuária nas estratégias de desenvolvimento é globalmente secundária ou inexistente nas
metrópoles marítimas brasileiras. A força do discurso desenvolvimentista tradicional
pautado nos “impactos estruturadores” dos grandes empreendimentos é ainda dominante
(DIAS, 2005) e limita freqüentemente a reflexão à melhor maneira de aumentar a
competitividade operacional do porto. Outro obstáculo reside na baixa densidade
institucional comum a “Estados territoriais” (Braudel) onde imperam formas de governos e
administração centralizadores. A cultura sócio-política que privilegia a relação direta e
vertical entre os micro-corporativismos e o aparelho de estado prejudica a busca de
soluções dos conflitos negociadas horizontalmente entre os diferentes atores. Da mesma
maneira, a ausência de cooperação inter-portuária entre cidades de uma mesma fachada
marítima oblitera a formação de pólos logísticos regionais suscetíveis de atrair armadores
que definem suas estratégias territoriais nesta escala. Ou seja, a cidade portuária, que se
distingue pela existência de um projeto incorporando o porto ao desenvolvimento urbano,
pela mobilização dos atores locais voltada para a definição de políticas públicas integradas,
por ações em prol do crescimento da atividade portuária, pela disponibilização de parte da
área portuária para o consumo da população e dos turistas e, afinal, por uma participação
expressiva do porto na geração de riqueza, emprego e trabalho, permanece então no Brasil
uma idéia nova.

Considerações finais

A atividade portuária foi historicamente decisiva para a colonização do território


brasileiro e sua inserção no sistema mundial das trocas. Na virada dos séculos XIX e XX,
quando o modelo primário exportador alcançou seu auge, Belém, Rio de Janeiro e Santos
eram plataformas de transbordo de mercadorias mas também importantes centros
financeiros, comerciais e de negócios. Laços estreitos ligavam porto e cidade. Nas décadas
seguintes, a industrialização transformou o sistema portuário em todas as escalas. Os
portos por serem considerados instrumentos estratégicos a serviço do projeto
desenvolvimento nacional foram incorporados no espaço das operações do parque
industrial brasileiro segundo uma lógica funcionalista que converteu a interface mar-terra
em simples espaço de transbordo. Neste contexto, a relação cidade/porto afrouxa-se
provocando uma degradação brutal dos bairros portuários onde desaparecem indústrias e
atividades relacionadas ao negócio. Como o ilustra a administração centralizada do
sistema, a reestruturação em curso foi imposta por atores externos cuja escala de ação
privilegiada era um espaço econômico nacional redefinido pelo processo de
industrialização. A tradução imediata desta dinâmica sobre a hierarquia portuária foi a
consolidação da primazia de Santos e dos portos do Centro-Sul sobre o tráfego das
mercadorias de maior valor agregado. Paralelamente, emergiram em regiões periféricas
portos sem cidades (FOULQUIER, 2008) especializados na exportação de commodities
agrícolas e minerais.

O sistema portuário da época era caracterizado por um baixo nível de produtividade


que se revelou problemático no início dos anos 1990 quando as autoridades brasileiras
almejaram uma inserção competitiva do país nos fluxos da globalização. Mas, apesar da
reengenharia institucional promovida pela Lei de Modernização dos Portos e dos avanços
no campo operacional, as políticas públicas se limitaram em geral a modernizar as
instalações e a administração portuárias sem definir estratégias de adaptação do sistema ao
novo paradigma produtivo (COCCO & SILVA, 1999; MONIÉ e VIDAL, 2006). Por isso,
a discussão sobre a relação cidade/porto pouco evoluiu. Hoje, porto e cidade continuam
apresentados como antagônicos: a cidade seria um obstáculo a fluidez da circulação; o
porto afetaria negativamente a paisagem urbana e a qualidade de vida da população. A
opção em favor da extração das instalações portuárias de dentro do tecido urbano
predomina enquanto as políticas setoriais, vítimas de determinismo técnico, continuam
voltadas para a solução de problemas exclusivamente operacionais. Paralelamente,
segundo a ortodoxia pós-moderna, as velhas áreas portuárias deveriam ser exclusivamente
destinadas a operações imobiliárias e a usos recreativos (HARVEY, 1989). Ou seja, as
políticas públicas são ainda marcadas pelas crenças e práticas da era industrial que era
caracterizada por “uma segmentação espacial rígida das funções e dos empregos, deixando
ao território um papel passivo” (VELTZ: 2002, p80). A alocação vertical de recursos
destinados a um espaço considerado uma base física neutra e residual prevalece. Se por um
lado os investimentos conferem maior agilidade no escoamento das exportações nacionais,
por outro lado o papel mais ativo do território nas dinâmicas desenvolvimentistas
contemporâneas é ignorado. Por esta razão, apesar das potencialidades abertas pela
reestruturação produtiva e pela diferenciação crescente dos mercados de consumo,
nenhuma grande metrópole marítima brasileira apostou sistematicamente na valorização
integrada dos recursos do território urbano e regional e do potencial técnico-operacional
das instalações portuárias suscetível de transformar a cidade-porto em “região ganhadora”.

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