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Escrito inicialmente para integrar um ciclo de palestras sobre a evolução do teatro,

este texto destinava-se a um público heterogêneo. Daí seu caráter introdutório, e a


busca, proposital, de submetermos a informação e a discussão teórica ao crivo da
comunicabilidade. Quando do convite para a publicação, optamos por manter o tom
da comunicação original, tendo em vista a inexistência desse tipo de trabalho, no
que concerne à questão que nos coube expor. Contudo, apesar deste objetivo para-
didático, procuramos não nos descuidar de um nível de rigor, de preocupação
metodológica e de atualização teórica que consideramos imprescindíveis.

Nosso texto tem em vista abordar a questão da tragédia grega em dois


níveis: primeiramente, busca esclarecer a que mundo, histórica e socialmente nos
referimos quando falamos em tragédia grega; em segundo lugar, a que temas,
autores e procedimentos específicos nos reportamos, quando falamos de tragédia.

Em trabalho já traduzido, Jean-Pierre Vernant observa que se pode falar em


três momentos fundamentais do mundo grego: o período micênico, a invasão
dórica, e a formação da pólis e do pensamento racional.

O primeiro momento - o período micênico – corresponde aos séculos XVI a


XII a.C. Nele se dá o florescimento de uma sociedade ligada às grandes civilizações
do Mediterrâneo oriental, e integrada ao mundo do oriente. Foi uma época de
apogeu do mundo palaciano e aristocrático, fundada no mito, e que encontra na
figura do rei divino a concentração dos poderes religiosos, econômicos, militares,
políticos e administrativas. O soberano absoluto habitava o solar micênico, uma
fortaleza cercada de muros, que tinha ao centro a sala do trono. O solar situava-se
numa região alta, de onde se fiscalizava o espaço pleno que se estendia a seus pés.
Até na arquitetura e na topografia da casa real, se “escrevia” a forma típica desse
poder. Ao lado da casa do príncipe, ainda dentro da fortaleza, era costume
construir-se a casa dos familiares do rei, dos militares e dos altos dignitários do
poder. É bem explícito o papel militar desse solar micênico: sua função é defensiva,
e vinculada á proteção do teatro real. Ao rei divino chamavam ánax, e ele se
apoiava numa aristocracia guerreira. Tinha-se já a posse da escrita, apenas
conhecida pelos escribas a serviço do ánax, e destinada à constituição de seus
arquivos e a administração de seus bens.

O segundo momento - a invasão dórica - ocorre par volta do século XII a.C.,
e se caracteriza por promover a destruição da estrutura palaciana. Diz Vernant:

É todo esse conjunto que a invasão dórica destrói. Rompe, por longos
séculos, os vínculos da Grécia com o Oriente. Abatida Micenas, o mar
deixa de ser um caminho de passagem para tornar-se uma barreira.
Isolado, voltado para si mesmo, o continente grego retorna a uma
forma de economia puramente agrícola. O mundo homérico não
conhece mais uma divisão do trabalho comparável à do mundo
micênico, nem o emprego numa escala tão vasta da mão-de-obra
servil. Ignora as múltiplas corporações de “homens da ferramenta”
agrupados nos arredores do palácio ou colocados nas aldeias para aí
executar as ordens reais.

A partir desse momento, o termo ánax e o que ele designava desaparece.


Surge o basileus que, substituindo a idéia de uma única pessoa que concentra
poder absoluto, indica, no plural, um conjunto de figuras proeminentes da
hierarquia social. A escrita também desaparece, só retornando por volta do século
IX, através da influência dos fenícios. E, ao reaparecer, não é mais privilégio do
recesso de um palácio real, mas adquire a função de divulgar os diversos aspectos
da vida social. A famosa cerâmica micênica, com pinturas do reino animal, cede
lugar a uma pintura geométrica; a idade do bronze cede lugar á do ferro, bem
como o mundo dos mortos começa a distanciar-se do dos vivos, através da
instituição da cremação. Surge uma delimitação de domínios, e prepara-se a
semente da poesia de Homero,

“esta poesia épica que, no seio mesmo da religião, tende a afastar o


mistério”.

O que mais caracteriza essa época é a dissolução do poder absoluto e a instituição,


até nos mitos que rememoram este tempo, de urna concepção do poder dividida
em quatro domínios: religioso, guerreiro, agrícola e mágico, este último ligado às
forças do fogo, e expressando a idade do ferro, que simboliza a época, e o
surgimento de uma força de artesãos. Na guerra, desaparece a técnica do carro,
típica do mundo micênico, e institui-se o culto do cavalo, visto agora como animal
bélico por excelência.

O terceiro momento - o da pólis e do pensamento racional ocorre par volta do


século VIII e VII a.C. Suas principais características coincidem com o surgimento do
pensamento filosófico e a valorização do elemento racional. Acerca desse momento,
Vernant destaca como configuração básica da pólis o novo uso que agora se faz da
palavra: instrumento de comunicação e força de persuasão, e da qual os gregos
farão urna deusa - Peithó. Será também dada plena publicidade às manifestações
sociais. Ou seja: a pólis começa a existir na medida em que também existe um
domínio público das instituições.

Se, na sociedade micênica, valorizava-se o domínio do privado, do secreto, do


universo do mito e do poder absoluto; no momento da pólis e da racionalidade
valorizam-se as práticas abertas, a democratização e a divulgação das instituições.
Inicia-se a prática dos cultos oficiais da cidade, que passam a divergir dos
processos religiosas antigos.

Surge um racionalismo político que se opõe aos antigos processos religiosos


de governo, mas sem excluí-los radicalmente. É neste terceiro momento do mundo
grego que se tecem as condições favoráveis ao aparecimento e à recepção do
trágico, visto aqui como o debate entre duas dikés (justiça) : a de um mundo
mítico que agoniza e a de um mundo racionalizante que emana da pólis.

l. O TRÁGICO COMO GÊNERO LITERÁRIO

Partimos do pressuposto de que os gêneros literários não são normas fixas e


atemporais, mas esquemas que respondem tanto temática quanto formalmente, ao
horizonte de expectativas de uma dada época e de uma dada cultura.

               A tragédia, como gênero responde à situação mesma de um tempo, o


mundo grego do século V aC., em crise de valores. Um mundo que se apresenta
como uma tensão, um choque de forças entre visões não só opostas mas
inconciliáveis. O mundo do trágico pode então ser visto como um debate cujo cerne
reside numa ambigüidade. A tragédia é a tematização de uma nova concepção da
própria função da palavra poética, não mais equivalente, como nos tempos míticos,
à revelação da verdade absoluta. A palavra trágica preside à concepção de que é
típico do poético uma zona de opacidade (zona mimética) em que a palavra é,
simultaneamente, pseudós e alethea (engano e verdade).
1.1. O trágico grego: duas possíveis origens

No capítulo IV da Poética , Aristóteles informa que a tragédia nasceu de um


princípio improvisado: dos solistas do ditirambo. Da interpretação dessa afirmativa
criou-se toda uma teoria da origem do trágico, baseada numa versão mítica, e de
explicação etimológica, que hoje cremos questionável. De trágos (bode) e õidé
(ode, canção), sua origem estaria no canto a Dionísio, deus do vinho e da
fertilidade, cuja celebração se correlacionava ao êxtase lírico do ditirambo, que era
um canto fervoroso, acompanhado de um coro dançante, originalmente composto
de 50 coreutas que se apresentavam em evoluções, usando máscaras de sátiros.
Mais tarde, ter-se-ia deslocado do próprio coro um elemento, o corifeu, que com ele
passaria a dialogar. A contradição de que a tragédia derivaria de coisas distintas -
dos ditirambos e dos autos satirescos - é contornada por esse tipo de versão, a
partir da idéia de que Dionísio era concebido como o deus da máscara e da
metamorfose. Ainda que seja bela essa concepção mítica da origem da tragédia, ela
não nos responde com segurança acerca da ambigüidade – o mundo que se
apresenta na tensão entre duas ordens opostas e inconciliáveis - que caracteriza o
trágico. ambigüidade a que se refere Nietzsche, ao dizer que no mundo trágico há
dois universos simultâneos: o traço dionisíaco e o apolíneo, diversos, mas ambos
presentes.

Vernant nos adverte que o problema da origem do trágico é, num certo


sentido, uma falsa questão. É válido falarmos em antecedentes do trágico, mas não
propriamente em sua origem. O universo mitológico a que a tragédia se refere não
é vivido por ela como um ritual, mas como um novo tipo de fenômeno. A citação

a seguir, de um outro livro de Vernant - Mito e tragédia na Grécia antiga é bem


esclarecedora:

Um exemplo: a máscara sublinharia o parentesco da tragédia com as


mascaradas rituais. Mas, por sua natureza, por sua função, a máscara
trágica é coisa bem diferente de um travestimento religioso. É uma
máscara humana, não um disfarce animal. Seu papel é estético, não
mais ritual. A máscara, entre outras coisas, pode servir para sublinhar a
distância, a diferenciação entre os dois elementos que ocupam a cena
trágica, elementos opostos mas, ao mesmo tempo, estreitamente
solidários. De um lado, o coro; a princípio, ao que parece, não
mascarado, mas apenas disfarçado, a personagem coletiva, encamada
por um colégio de cidadãos; de outro lado, a personagem trágica, vivida
por um ator profissional, individualizada por sua máscara em relação ao
grupo anônimo do coro. Essa individualização, de forma alguma, faz do
portador da máscara um sujeito psicológico, uma “pessoa” individual.
Ao contrário, a máscara integra a personagem trágica numa categoria
social e religiosa bem definida; a dos heróis.

1.2. O surgimento da tragédia grega

Informa Albin Lesky que, num dos três primeiros anos da Olimpíada de
536/5-533/2, nas festas chamadas dionisíacas urbanas, comemoradas na
primavera, sob o reinado de Psístrato, foi representada, pela primeira vez, uma
tragédia. Seu autor era Téspis, e contou com o patrocínio do Estado. Segundo
Lesky, é a partir dessa época que
fixa-se a ligação entre o drama trágico e as dionisíacas urbanas (...) e em cada
certame teatral é representada uma tetralogia, ou seja, três tragédias e o drama
satírico que as acompanha. O rápido crescimento da produção dramática no século
V fez com que, entre 436 e 426, também se introduzisse um concurso de tragédias.

Ao antigo ditirambo dionisíaco são introduzidas transformações, por Téspis:


cria o primeiro ator ou respondedor do coro/corifeu. Mais adiante, Ésquilo
introduzirá o segundo ator (deuteragonista) e Sófocles o terceiro (tritagonista),
conforme atesta Aristóteles na Poética.

1.3. Características do gênero

Era comum o uso da máscara, referência feita tanto por Lesky quanto por
Vernant, tendo cada um deles explicado este uso de maneira diferente. O primeiro
vê nela a essência da representação dramática: a metamorfose; enquanto o
segundo a focaliza como um instrumento de distanciamento, usado para pôr em
questão a personagem heróica.

A distinção coro/herói trágico: o primeiro representando a coletividade dos


cidadãos, e o segundo os valores religiosos, aristocráticos e individualistas que o
século V a.C. está questionando.

A duplicação lirismo/forma dialogada: de um lado, o coro se apresenta como


parte lírica; de outro, a fala das personagens trágicas, que é dialogada e apresenta
métrica mais próxima da prosa.

O sentido trágico da responsabilidade, isto é: a ação humana é posta em


questão, e constitui objeto de reflexão.

A articulação humano/divino: a tragédia apresenta, em debate, dois mundos:


o pensamento jurídico-social que emerge no século V a.C., e as tradições míticas e
heróicas. Diz Vernant: “O domínio próprio da tragédia situa-se nessa zona
fronteiriça onde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas”.

O choque do ethos e do dáimon: Na tragédia, a personagem trágica


se,debate entre duas ordens de fenômenos: pretende guiar-se por seu próprio
caráter (ethos), mas está pré-determinada por um dáimon (destino). É próprio do
trágico não optar, mas revelar a consciência trágica dessa ambigüidade.

Os acontecimentos aterrorizantes: o trágico se nutre de situações de intensa


dramaticidade. Um acontecimento aterrorizante tem que estar em jogo, para se
conseguir o clima trágico. Assim, os interditos do mundo cultural grego são
mobilizados: o regicídio, o parricídio, o incesto.

Principais oposições temáticas do trágico: poder, saber e querer são três dos
temas em que se insere a tensão trágica, em que se tematizam relações de
violência.

A personagem trágica. O herói: poder e violência

A personagem trágica remonta ao heroísmo. Através dela fala-nos o mundo


aristocrático dos reis divinos (ánax) e dos basileus, assim como através dela este
mesmo mundo é questionado.
A personagem trágica será um vulto proeminente da sociedade, no qual se
concentra uma gama considerável de poder político, religioso, econômico.

Tomemos alguns exemplos, deixando de lado, propositalmente, Édipo-rei,


que será objeto de um exame subseqüente. De início, vejamos Prometeu
acorrentado, de Ésquilo. Prometeu comete o crime de trair o pacto com os seus
iguais, os deuses, roubando o fogo de Zeus e dando-o aos homens. Nessa tragédia,
a grande questão é a do poder: a quem cabe, em que medida, e o quanto é justo
aplicá-lo. Em Antígona, de Sófocles, a heroína se defronta com o poder de Creonte,
seu tio, que no momento ocupa o trono, pela ausência de Édipo. Creonte publica
um decreto no qual impede de se oferecerem honras fúnebres a Polinice, um dos
filhos de Édipo, considerado por seu tio um traidor. Antígona se defronta, na defesa
do direito de sangue, na defesa da lei não escrita, contra o decreto de seu tio.
Como se pode claramente ver, Antígona representa uma forma de justiça (diké)
fundada na tradição, enquanto Creonte põe à luz, em que pese sua tirania, uma
nova figura jurídica, um novo direito (uma nova diké), o da polis. Em Medéia, do
mesmo modo, misturem-se poder/violência/direito. Com vistas ao amor de Jasão,
Medéia não hesita em trair violentamente os seus e em violar o direito da tradição,
roubando o velo de ouro do altar sagrado de Ares, bem como assassinando
cruelmente Pélias. Do mesmo modo, o helênico Jasão, com vistas ao trono, justifica
racionalmente o abandono de Medéia e de seus filhos, sempre em nome de exercer
uma melhor paternidade, mas sempre a partir de uma violência de meios, cuja
justificativa é a de um “fim nobre”.

O herói: sua hybris.

A hybris consiste numa desmedida, num desequilíbrio interno ao caráter do


herói.

Segundo Vernant, ela é um valor negativo que, de acordo com a


racionalidade do século V a.C., sempre em busca do equilíbrio e da mediania, se
refere à desmedida do individualismo (que o século repudia) representado e
defendido pela aristocracia.

Essa desmedida implica, sob outro prisma, o próprio desequilíbrio provocado


pela situação ambígua do herói, oscilando entre duas dikés, sem alcançar o
equilíbrio. Pela hybris, pode-se ver que o mundo trágico não fala da síntese entre
dois contrários, mas da ironia trágica de uma perene ambigüidade.

A hybris de Prometeu é romper provocadoramente o pacto com seus iguais,


enquanto a de Zeus é a punição impiedosa, o violento individualismo que impede
ao homem uma participação

nos níveis de poder.

A hybris de Antígona é a de manter a phylia apenas para com seus irmãos,


não sendo todavia capaz de ver nada além do direito de família e sangue, que ela
representa. Creonte, também revela sua hybris: fala em nome do povo, edita leis
escritas em nome da proteção deste, mas age como um tirano, fazendo de seu
decreto também um álibi, que encobre sua intransigência.

Medéia e Jasão marcham ao desencontro um do outro, também em nome de


um hybris: ela, a do amor, doentio, regido pelas forças da morte, pelas quais acaba
por matar os filhos; ele, a do poder, pela qual faz sucumbir todos os demais valores
da convivência humana.

O herói: a falha trágica

A personagem trágica está em erro, do qual não tem consciência, e quase


sempre motivada por essa hybris (a desmedida inconsciente que a impulsiona), que
funciona como força motriz. Ao mesmo tempo, muitas vezes a hybris se mistura ao
desígnio do dáimon (a força que a impulsiona, mas que advém de uma
“determinação dos deuses”).

Na figura de Édipo, por exemplo, aliada à hybris (ele tem orgulho de seu
saber, confia demasiado em si mesmo) surge a força dos deuses que, por oráculo e
maldição, lhe pré-determinam casar com a própria mãe e matar o pai, ou seja:
praticar o incesto e o parricídio.

O herói e a catarse: emissor e espectador

É nesse embate da hybris típica do herói, que existe sem que ele saiba,
configurando o seu ethos, com o dáimon (a parte que lhe cabe por determinação
dos deuses, externa ao herói e ao seu controle) e a falha trágica (o erro em que ele
incorre, sem culpa consciente), que o espectador vai sendo provocado, à medida
que a tensão progride em direção ao clímax, a sentir o terror e a piedade que,
segundo Aristóteles, seriam desencadeadores da catarse. Evidentemente, aliam-se
também à catarse a questão complexa da mímese, que exigiria considerações mais
profundas, incompatíveis com a comunicação que agora lhes é apresentada.
Todavia, fica indicado o problema.

A fábula trágica (ou mito) e a unidade de ação:

Segundo Aristóteles o mito ou fábula é o principal elemento do gênero


trágico. Fundamentalmente, é pela maneira como se estrutura a fábula que o
trágico se distingue do épico. Se no épico podemos ter um grande número de
aventuras dispersas do herói, se podemos acrescentar episódios, porque tudo se
adiciona; no trágico, ao contrário existe estreita subordinação entre as partes.

O mito ou fábula trágica se apresenta uno, ou é unificado na ação. É a isto


que chamamos unidade de ação. Examinando Medéia podemos ver bem este
princípio. Em Medéia articulam-se as histórias de Jasão, de Ino e de Medéia: mas
tudo isso não vem sob a forma de episódios dispersos, e sim como uma totalidade
articulada com vistas a um clímax, em que nada é expletivo. A história de Ino
aparece, no texto de Eurípides, entretecida com o mito de Medéia e Jasão, no
momento em que, no altar do deus Ares, doado ao pai de Medéia por Frixo, está o
Velo de Ouro, que Jasão vai buscar para recuperar o trono de Aeson, seu pai.
Explicando toda a força mágica de Medéia está o fato de que ela é filha do Titã
Eetes, e, portanto, neta do sol. Todos esses mitos eram do conhecimento do mundo
grego, e com eles dialogava, como acervo cultural e religioso, o espectador da
tragédia.

Em Édipo-rei, a ação também se passa toda no presente, e qualquer


referência ao passado, que irá pouco a pouco ligando o herói à história de Laios, é
feita por um personagem cuja fala é necessária, e não vem, jamais, à guisa de
desvio episódico.
O trágico como um sistema semiológico pleno

Se observarmos a Poética, e consideramos os seis elementos que Aristóteles


indica como fundadores do gênero trágico, em sua articulação, podemos concluir
que a tragédia não diz respeito apenas a um texto literário. Ela conjuga outros
sistemas de signos, desde a gestualidade da representação, o tom de voz, a
vestimenta típica, até o caráter de espetáculo, de cenografia e sonoplastia que
comporta.

2. ÉDIPO-REI: A QUESTÃO DA AMBIGUIDADE NA TRAGÉDIA GREGA

Édipo-rei é uma tragédia na qual se tematiza a relação do homem com um


enigma: - Quem sou eu? Esta é a pergunta que ressoa todo o tempo e para a qual
Édipo, o decifrador de enigmas, tem dificuldade de encontrar uma resposta.  A
tematização desta ambigüidade – sei / não sei quem sou - é o eixo central em
torno da qual gira a peça.

O texto começa no presente da vida do herói, já sagrado rei de Tebas, casado


com Jocasta, e pai de quatro filhos deste matrimônio. Embora o texto não
apresente mudanças de cenário, nem subdivisões indicadoras de atos ou cenas, e
embora todo o desenrolar trágico se passe, de preferência, num giro do sol, há a
possibilidade de o apreendermos em três seqüências, a título de viabilizar uma
aproximação analítica, ainda que embrionária. As seqüências são : a abertura das
peripécias por que vai passar o herói; o desenrolar destas, e o fechamento das
mesmas, que coincide com o desvendamento do enigma de sua verdadeira origem.
Ou seja, em linguagem aristotélica: coincide com o reconhecimento (a passagem
da ignorância ao saber).

No primeiro momento - a abertura das peripécias – aparece o diálogo de


Édipo com o sacerdote, que lhe suplica, em nome do povo, tomar medidas para
solucionar um enigma: qual a causa da peste que assola o reino, e o que fazer para
saná-la.  Édipo, crêem todos, é o único a poder dar a resposta adequada, pois é
tido como o maior decifrador de enigmas do reino.  E isto porque já se havia posto
a Édipo, antes de tornar-se rei de Tebas, o enigma da Esfinge (flash-back que
surge na fala do sacerdote), que ele solucionara, e que o conduzira ao trono e ao
leito deixados vagos pela morte de Laios, antigo rei e marido de Jocasta.

É dessa relação entre enigma solucionado e enigma a solucionar que principia


a estrutura de tensão da peça. Tensão que se vai acirrando, no desenrolar das
peripécias, próxima seqüência, de acordo com a segmentação que propusemos
para o texto.

E a tensão se agrava porque, quanto mais se indaga sobre a causa da peste


(que, segundo o oráculo, consiste em ter sido deixado impune o assassino de Laios
- Cf, p. 61), mais se adensa uma outra questão, correlata à primeira: Édipo soube
resolver a pergunta da Esfinge (cuja resposta era : o homem), mas não sabe
responder ao enigma cuja solução responderia à pergunta implícita: - quem é
Édipo? Ou seja: Édipo não sabe responder ao que lhe está muito próximo, em si
mesmo, Édipo não sabe quem é Édipo.

Já dissemos, em outro momento, que é típico do trágico tematizar uma crise.


O próprio gênero nasce (conforme a interpretação de Vernant, que estamos
privilegiando) do embate das tradições da antiga Grécia com a visão de mundo
racional que se anuncia ao homem na passagem do século VI ao V a-C.
O novo gênero que surge tematiza, então, urna ambigüidade: o homem
grego, agora em crise, não é mais o que fora, nora totalmente o deixou de ser. Por
outro lado, ele também não é ainda o que se anuncia, embora não possa deixar de
entrever uma mudança na estrutura social, pelo próprio fato de estar convivendo
com um novo mundo em que se destaca a figura da pólis e do cidadão.

O novo homem grego encontra-se num limiar: convive nele a recusa de um


passado que ainda ecoa, e a adoção de um presente do qual ainda não tem clareza.

Essa ambigüidade é um fenômeno gerador de tensão. A tragédia é a


tematização, na linguagem, dessa própria tensão ambígua.

A estrutura da Tragédia (tanto temática quanto formalmente), bem como sua


recepção, repousa na criação de um sentido ambíguo, duplo e simultâneo. E é com
este duplo sentido que joga o dramaturgo para expressar um mundo dilacerado
pelas contradições.

2.1. O nome Édipo e o nome de Édipo

Em Édipo-rei, o próprio personagem, em sua denominação, porta a


ambigüidade que o caracteriza em seu saber/ignorar quem verdadeiramente ele é.
Édipo é, simultaneamente, o ilustre (Cf. p. 58) e o de pés inchados (Cf, p. 113-4).
É, de início, o rei poderoso e amado pelo povo e, no término, o banido de Tebas,
assassino e incestuoso, que não soube trilhar seu próprio caminho, a salvo.

A etimologia do nome Édipo, em grego, pode prestar-se a uma dupla


significação: oidos + pous (inchados + pés) e oida + pous (sabe ver + pés). No
primeiro caso, aquele que tem os pés inchados e, no segundo, o que se sustenta
em si mesmo porque sabe ver. Com o desenrolar da peça, vê-se que a proposta de
Sófocles não é optar por um ou por outro significado, mas recuperar os dois. Édipo,
deste modo, concentra em si um duplo homem. Ele é o próprio paradigma do
homem trágico: um ser ambíguo.

2.2. A palavra trágica como pseudós e alethea

Indo um pouco além em nossa interpretação, podemos ver que é próprio da


palavra trágica (ou seja: aquela que se inaugura com o gênero dramático) esse
estado de ambigüidade. Ela é a palavra da crise.

A ambigüidade que caracteriza o trágico tem uma função específica: indica


que há zonas de opacidade na comunicação entre os homens: a comunicação
humana, no mundo do trágico, está sempre ameaçada da incomunicabilidade, e de
conduzir o herói ao erro e ao equívoco. E é isto que leva Vernant a afirmar que a
“mensagem trágica só é compreendida quando se admite a ambigüidade dos
valores da comunicação humana”. Quando as personagens trágicas falam, acabam
por dizer, também, algo que está latente no que manifestam. Alguns exemplos
interessantes disso podem ser encontrados nas falas de Édipo (p. 67), quando ele
diz que é uma pessoa alheia ao que ocorreu com Laios, embora já esteja sobre ele
lançada a suspeita do oráculo, que falara num mal ali nascido e agasalhado (o
próprio Édipo, como se saberá mais adiante). Também se pode indicar um outro
momento (p. 69) da fala de Édipo, em que ele se diz interessado em descobrir o
assassino de Laios, como se este fora seu próprio pai. A partir destes exemplos (e
de outros, que podem ser recolhidos em profusão), pode-se melhor compreender o
que queremos dizer quando afirmamos que a tragédia tematiza uma complexa
relação entre: ser/parecer; realidade/ficção; comunicação/incomunicabilidade;
pseudós/alethea.

Instaura-se no texto trágico um discurso claro e um secreto, que o próprio


Édipo se mostra incapaz de decifrar. Em tudo o que ele diz, há algo de latente e
algo de manifesto: ao querer dizer, diz sem querer; sem o saber, diz o que não
sabe e o que pensa saber. Encontram-se atadas em seu discurso, duas falas,
distintas: a de seu ethos e a de seu dáimon: quer descobrir o culpado, sem saber
que ele próprio o é.

2.3. A estrutura de peripécia e reconhecimento

Aristóteles assinala que em Édipo-rei encontram unidos os dois elementos


que compõem a fabulação trágica (para ele o fundamental elemento da tragédia):
peripécia e reconhecimento, porque, nesta peça, um coincide com o outro. Quando
a personagem proceder ao reconhecimento, este não será outro senão o de si
mesmo.

Vejamos, de acordo com as três seqüências em quê nos propusemos a


subdividir o texto, como este se processa.

- na abertura das peripécias, Édipo é apresentado como estrangeiro (vindo de


Corinto), decifrador de enigmas; salvador de Tebas, justiceiro.

- durante o desenrolar de ação, Édipo vai-se tomando ambíguo, duplo, opaco.


À medida que continua o processo de decifração do enigma (- quem matou Laios?),
as certezas de Édipo vão-se preenchendo de dúvidas e de contradições. O que
antes era tomado como verdade, vai sendo povoado pela névoa da dúvida; o
diálogo com Tirésias é o primeiro movimento em direção a essa capacidade. (Cf. p.
72 a 80)

E assim o herói, durante o desenrolar das peripécias, revela-se ele próprio um


enigma: parece ser algo e, simultaneamente, o seu contrário.

- no término das peripécias, Édipo surge como nativo de Tebas, mau


decifrador de enigmas, causador de dano a Tebas (incestuoso e regicida) e
assassino de seu próprio pai, Laios. (Cf. p. 125 e 129)

2.4. A técnica do processamento jurídico: as falas das personagens são


réplicas (dão provas e contra-provas)

Sem que se possa confundi-la com um debate jurídico, a tragédia, contudo,


ao pôr em debate as duas dikés, opera, nos diálogos, como se eles fossem réplicas
de um "debate jurídico" no qual se torna extremamente difícil discernir a verdade e
a culpa. Um exemplo desse "debate" é o diálogo de Édipo e Jocasta.

2.5. Édipo: paradigma do homem trágico

Se a tragédia representa, em seu ágon, um direito que ainda não se podia


suficientemente fundar, o herói experimenta, na aspereza de sua ipseidade, a
ameaça da solidão de sua individualidade, a todo momento contraposta à
experiência (malograda) da cidadania e da coletividade.

Se havia um enigma a esclarecer - e era verdadeiramente um duplo enigma,


uma vez que a pergunta sobre o assassino de Laios "desdobrava-se" e "dobrava-
se" sobre outra oculta - este é esclarecido. Mas é exatamente aí, quando Édipo é
lançado ao contato com o nada, com a dimensão mais ínfima de si mesmo,
assassino, parricida e incestuoso, é aí que ele de novo se ergue, na dignidade da
infâmia em que se vê colhido: é aí que ele adquire uma visão que não possuía - a
de lhe ser possível descobrir sua própria identidade. Contraditoriamente, o símbolo
dessa mais verdadeira e ampla forma de ver, é o próprio ato de cegar-se. Pagando
com os próprios olhos, mergulhando na obscuridade da cegueira voluntária, Édipo
indica uma outra zona, nada opaca, em que o homem se ilumina da consciência
responsável de traçar seu próprio destino. Ser trágico implica, neste caso, abdicar
da experiência de um único sentido (em Édipo e na própria cultura grega daquele
tempo, pelo privilégio do ver), que conduziria a uma verdade absoluta, em prol de
experimentar a ambigüidade que há no cerne de uma nova ordem que começa por
relativizar o absoluto.

3. ESQUILO, SÓFOCLES E EURÍPIDES

3.1. Esquilo foi o primeiro tragediógrafo famoso da Grécia. É o autor, dentre


outros textos, de Orestéia, Coéforas e Eumênides. Consta ter vivido entre 525 e
436 a.C. Suas peças falam muito mais da relação com a comunidade e os
dispositivos de poder, do que propriamente do indivíduo. Nele estamos muito mais
próximos de um discurso que lida com o mito e as tradições, do que em Sófocles e
Eurípides.

O seu Prometeu acorrentado (embora haja contestação de autoria, julgamos


haver uma base suficientemente assentada para crer que o texto seja de Ésquilo) é
um bom exemplo disso. A peça discute, nuclearmente, o poder, e a oposição
humano/divino. O poder e seus desdobramentos: o poder do poder, da palavra, da
verdade, do direito. Quem dispõe da verdade? Como manejá-la? Até que ponto
punir ou conceder? - parecem ser as questões que afloram da oposição entre Zeus
e Prometeu.

Todo o texto gira em tomo do castigo que Zeus inflige a Prometeu, pela
ousadia de dar o fogo de Zeus aos homens. Metáfora do poder, do conhecimento, o
fogo é privilégio dos deuses, ou algo que deve ser repartido entre deuses e
homens? A peça é tecida na discussão dessa questão, e termina com uma
imprecação do punido Prometeu, que não admite ser culpado.

Há no texto a mesma questão da ambigüidade, que foi apontada como centro


da problemática trágica. Só que a estruturação da peça de Ésquilo não repousa no
mesmo jogo hábil de simetrias e enigmas que caracterizou o procedimento de
Édipo-rei.

O poder é aqui objeto de duplo sentido, na duplicidade de interpretações de


como ele deve ser aplicado e a quem deve pertencer. Por Zeus, Vulcano, Mercúrio,
ele é visto como um direito dos deuses, através da posse do fogo; para Prometeu,
é um direito também do homem.

O que está em causa é a pergunta pela posição que cabe ao homem, no seu
relacionamento com os deuses e o conhecimento, até então visto como de origem e
pertinência apenas divina. Marcando à anterioridade de Ésquilo em face de
S6fcoles, o homem não é aqui personagem, e o poder supremo de Zeus se faz
sentir sobre Prometeu, como punição exemplar que dê lições aos homens.
3. 2. Sófocles (497/6 - 406/5 AC). Autor de cerca de 130 dramas, a maior
parte deles tragédias, foi o mais célebre dos tragediógrafos gregos. Dessa intensa
produção conservaram-se 7 peças completas: As Traquínias, Antígona, Ájax, Édipo-
rei, Electra, Filoctetes, Édipo em Colona. Com ele o drama se torna mais complexo,
além de receber modificações, como o aumento do número de atores em cena, de
personagens secundárias e de coreutas.

Cremos que sua tragédia Édipo-rei, comentada anteriormente, mostra-nos


bem a sua principal contribuição à dramaturgia grega: o adensamento das questões
psicológicas e a discussão das complexas razões que regem os atos humanos em
seu inevitável confronto com o destino e a sociedade.

3.3. Eurípides foi o último tragediógrafo grego, tendo provavelmente vivido


entre 480 e 406 a.C. Diferentemente de Ésquilo e Sófocles, ele introduz no teatro
um maior traço de realismo social, também passando a dar mais voz a personagens
de classes sociais menos elevadas, como amas e preceptores, que antes

ou não apareciam ou participavam em nível de pequena importância. Em Medéia,


por exemplo, a fala da ama põe em questão o papel que cabe à mulher, na vida
social e no casamento.

Em Medéia discutem-se duas visões de mundo, que apenas têm em comum a


força da desmedida (hybris). De um lado, Jasão e sua desmedida ânsia de poder;
de outro, Medéia, desgovernada pela potência extremada de um amor destrutivo e
violento. Nesta tragédia a força do dáimon, no sentido de força inapelável que
conduz ou induz o destino humano, perdeu sensivelmente o relevo que
desempenhara em Sófocles e, mais ainda, em Ésquilo.

Aristóteles, no capítulo XV da Poética, menciona o fato de que Eurípides lança


mão do recurso ao deus ex-machina, que quase indica a transformação do destino
num acaso, pelo aparecimento dos deuses como algo "fora da engrenagem".

Medéia explícita urna questão interessante: o próprio conceito de direito


helênico: ela, uma bárbara que habita a Hélade, é repudiada de seus direitos de
esposa, por Jasão. Ele, criado pelo Centauro Quíron nas artes que compunham a
educação de um verdadeiro grego, expõe-lhe, por sofismas, as razões que
justificam seu abandono e repúdio. Na luta pelo que considera seu direito, mas
guiada pelo ódio de um amor desmedido, não é à ordem dos deuses olímpicos que
Medéia recorre, mas ao próprio poder mágico e titânico do qual ela descende, nesta
que é do Sol. Não há mais, nesta peça, o conflito entre o humano e o divino, tão
nítido em Prometeu e Édipo. Em Medéia, são dois espaços humanos em questão: a
tradição helênica e os valores alienígenas que com ela convivem e conflitam. Nesta
peça talvez aflore mais claramente o "debate jurídico" entre as duas dikés que,
para Vernant, caracteriza o trágico.

(Fonte:)

BIBLIOGRAFIA:

1. ARISTÓTELES. Poética. Trad. pref., introd., com. e apênd. De Eudoro de Sousa.


Porto Alegre, Globo.

2. BENJAMIN, Walter. Il dramma barocco tedesco.Torino. Einaudi. 1971.


3. HELENA, Lúcia. Medéia: o lugar da crise. In: Revista Tempo Brasileiro, 57:17-24.
Rio. abr.-jun. 1979.

4. JAUSS, Hans Robert. Littérature médiévale et théorie des genres. In; Poétique,1.
Paris, Seuil, 1970

5. LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. J.Guinsburg, Gerald Gerson de Souza e


Alberto Guzik. São Paulo, Perspectiva, 1971.

6. Prometeu acorrentado/Ésquilo; Édipo-rei/Sófocles; Medéia/Eurípides. Trad. de


Alberto Guzik, Geir Campos, Miroel Silveira e Júnia Gonçalves. São Paulo, Abril
Cultural, 1980.

7. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Duas


cidades, 1977.

8. __________. As origens do pensamento grego. 3. ed. São Paulo. Difel, 1981.

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