Professional Documents
Culture Documents
e rituais na Antiguidade
Editor-chefe
Pablo Rodrigues
Conselho Editorial
Carolina Kesser Barcellos Dias – UFPel
Claudia Beltrão – UNIRIO
Fábio Vergara Cerqueira – UFPel
Luiz Karol – UFRJ
Conselho Consultivo
Alexandre Moraes – UFF
Alice da Silva Cunha – UFRJ
Dolores Puga – UFMS
Moisés Antiqueira – UNIOESTE
Assessoria Executiva
Bruno Torres dos Santos – UFRJ
Carlos Eduardo Schmitt – UFRJ
Luis Filipe Bantim de Assumpção – UFRJ
Luiz Karol – UFRJ
Revisores
Arthur Rodrigues – UFRJ
Bráulio Costa Pereira – UFRJ
Arlete José Mota e Carlos Eduardo da Costa Campos
(orgs.)
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1900, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Organização
Arlete José Mota e Carlos Eduardo da Costa Campos
CDD 930
[2019]
Desalinho
Rua Caricó. São João de Meriti, RJ.
Telefone: (21) 994428064
www.desalinhopublicacoes.com.br
www.blogdadesalinho.wordpress.com
desalinhopublicacoes@gmail.com
Sumário
Prefácio
Leandro Hecko 7
Apresentação
Arlete José Mota
Carlos Eduardo da Costa Campos 11
Sol Invicto Comiti: reflexões sobre a imagem dos deuses nas moedas de
Constantino I
Thiago Brandão Zardini 235
7
to mental diante do desconhecido tentando atribuir uma organização para o
mundo, um sentido para o mundo e para as ações humanas na terra. Não é à
toa que ainda hoje os mitos em toda sua riqueza nos atraem, transitam em nos-
so cotidiano pelo anseio que temos de tornar o passado presente de distintas
formas, seja em objetos do cotidiano, literatura ou ainda nas telas do cinema.
Em complementação ao fascínio pelos mitos, o interesse pelas práticas
cotidianas dos seres humanos do passado atrai igualmente a atenção dos con-
temporâneos. Desta forma, da relação humana com o mundo temos como for-
ma de ação os ritos, os quais representam a tentativa de garantir a continuidade
da organização do que existe, a continuidade de sentido e, primordialmente,
o interesse de produzir efeitos sobre o mundo real para aqueles inseridos num
sistema de crenças. No presente livro, questões relacionadas a este campo de
ação ritual são também abordadas, de forma a possibilitar vislumbres em casos
específicos conforme apontam os autores nos resultados de suas pesquisas.
Por fim, e em linhas mais gerais, sobra dizer algumas palavras sobre
aquilo que creem os antigos e por que acreditavam naquilo que observamos
nas entrelinhas das fontes ou ainda nas evidências que compõe sua natureza
diversificada. As crenças englobam, num complexo sistema do pensamento
humano, tudo o que existe de contraditório e que se deseja que faça sentido
para além da razão do ponto de vista da comprovação, firmando o ser no
mundo e o agir diante de tal mundo. Se observados esses fatores diante do
mundo contemporâneo poderemos ver em nós mesmos tais características no
sentido de que hodiernamente ainda somos muito capazes de acreditar em
coisas contraditórias e, para além disso, realizar ações contraditórias diante de
nossas formas de vida, de nossas crenças de vida e vivências religiosas ou não.
Desta forma, olhando para antigos e modernos, talvez possamos humanistica-
mente concluir que tudo o que parece contraditório compõe nossa própria na-
tureza humana, o que nos liga diretamente com as culturas das Antiguidades.
Nesta obra que temos em mãos, há um pouco de tudo isso: um refle-
xo de todas essas preocupações humanas que faziam e fazem parte do nosso
cotidiano! Tudo isso revelado no particular de fontes diversas, já que não era
preocupação dos antigos declinar descritivamente como hoje o fazemos por
meio de tratados. A preocupação se assentava em contar aquilo que em ou-
8
tros tempos já contaram configurando diversos momentos entre a oralidade
e o escrito, entre o que se vê e a imagem que se pinta, entre possibilidades de
documentação hoje apropriadas pelos investigadores no sentido de extrair de
fragmentos sistemas de crenças, questionar os antigos sobre seus mitos e ritos,
sobre sentidos de mundo estabelecidos pelos povos das diversas Antiguidades
espalhadas pelo mundo. Tem-se em mãos, portanto, uma aventura investiga-
tiva sobre algumas culturas das Antiguidades, exploradas frente a interesses
contemporâneos, buscando dar respostas, fazer perguntas, proceder análises
do espírito de homens no tempo transcorrido, lançando luz ao que pensavam
e a como viviam. Ao ler os capítulos que seguem é importante então conside-
rar o que de humano está por trás das linhas, ao que de vida está por trás dos
detalhes das fontes.
Leandro Hecko
Professor Adjunto de História da UFMS/CPTL
9
10
Apresentação
11
sempre presente curiosidade do leitor (e do pesquisador), oferece-se um brin-
de inicial. Não se fazem pesquisas sem reflexões e ponderações. Assim como
não se concretizam textos, produtos finais, sem elementos motivadores e um
alto grau de gáudio. É o que se percebe nos textos que foram incluídos aqui.
Falar de atmosfera mítica e religiosa é também falar de sonho. É o que
traz à lembrança do leitor o capítulo “O conceito de sonho na China Antiga”,
de André Bueno. As primeiras reflexões do autor, acerca do sonho como um
caminho para o conhecimento, desperta sobremaneira a atenção de quem se
depara com o interessante tema. Percorrendo os espaços da China Antiga –
fato que amplia as áreas de interesse da presente publicação –, usufrui-se e
compartilha-se de um olhar preciso acerca do que os pensadores, confucionis-
tas ou daoístas, consideravam a respeito do ato de sonhar. O autor detém-se,
primeiramente, em questões pertinentes às mudanças que o conceito de so-
nhar sofreu ao longo do tempo na China clássica, observando desde suas bases
xamânicas até o desenvolvimento em crenças religiosas. Parte em seguida para
uma detalhada análise acerca do confucionismo, esclarecendo o contexto de
inserção das ideias de Confúcio (século VI AEC) e destacando, dentre os tex-
tos importantes para o entendimento do tema, a coleção denominada Rituais
de Zhou. André Bueno comenta, como exemplo, o capítulo 24, onde se trata
da morfologia dos sonhos. Seguindo as considerações acerca da expressão da
religiosidade dos chineses à época, o autor atém-se à escola Daoísta (século IV
AEC), uma concorrente da escola de Confúcio. Tem-se aqui uma instigante
análise da passagem conhecida como “O Sonho da borboleta”. Pondera-se a
respeito do lugar do sonho na vida humana. Outros aspectos do sonho e mais
um texto base analisados vêm, ao final do capítulo, confirmar o deleite inicial
provocado pelas primeiras observações do autor.
A leitura do capítulo “Las deliciosas niñas del certero”, de Maria Cecília
Colombani, traz , mais uma vez, a noção de brinde, de saudação ao leitor.
O texto de Colombani é, de fato, um regalo que se oferece àquele que, ao
mesmo tempo em que aprende, se encanta com a difícil arte de unir lingua-
gens e formas de expressão bem distintas: a frieza dos conceitos teóricos e a
beleza da forma. A autora tece o texto a partir de reflexões iniciais a respeito
da relação entre o homem da Antiguidade e suas crenças. Colombani acentua
12
aspectos importantes a serem considerados pelo estudioso dos povos antigos:
deve-se sublinhar a complexidade e a riqueza das crenças. Deve-se por em
destaque que tais crenças se interpõem em todas as atividades cotidianas, o
que demonstra o quão fortes são os vínculos entre homens e divindades. Ten-
do como objetivo comentar uma dimensão festiva de Apolo, encontrada no
Hino Homérico dedicado ao deus grego, apontando perspectivas de estudo
divergentes, a autora desenvolve seus argumentos a partir de um excerto do
Hino III, versos 127 a 178, onde o deus assume, além de outras funções, a
incumbência de ser o condutor do Coro das Musas. Ao final da leitura, tem o
leitor a oportunidade de ponderar a respeito do quadro contrastivo que a au-
tora apresenta: um aspecto sorridente e encantador do deus, que ela tão bem
exemplifica, ao lado de uma outra imagem que Apolo oferece, terrível e hostil.
No capítulo “O cotidiano expressando a ação divina: uma análise do
símile homérico (Ilíada V, 770-2) citado por Longino em Do sublime (IX,
5)”, de Ricardo de Souza Nogueira, debruça-se o leitor em um texto de qua-
lidade excepcional, onde o autor, de forma clara e objetiva, trata do símile ou
comparação. Destaca, em especial, um símile homérico, extraído da Ilíada, e
a relação com o comentário de Longino para o excerto trabalhado. Com ar-
gumentos precisos e exemplos convenientemente selecionados, trata-se de um
texto de leitura mais do que recomendada, é indispensável.
Para a surpresa do leitor já um pouco saciado de proveitosas leituras e
pesquisas inovadoras, chega o momento dos enigmas e dos segredos – encan-
tamentos de todas as épocas e espaços geográficos. Depara-se com o impor-
tante capítulo “Killing riddles and secrets – a letalidade de segredos e de enig-
mas (não) decifrados nos mitos helênicos”, de Rainer Guggenberger. O autor
volta-se para dois enigmas e três segredos, percorrendo a narrativa poética
arcaica e o começo da época clássica grega, e aponta para os efeitos possíveis da
decifração ou não desses segredos e enigmas. Chama-se a atenção aqui, como
forma de provocar o leitor desta breve apresentação, o enigma da esfinge no
mito de Édipo e o conhecimento secreto e enigmático de Prometeu.
O texto literário sempre representa para o estudioso um grande desafio,
associado a um sempiterno prazer – na realidade indissociável de qualquer
outro aspecto que se possa apresentar. Há distintas formas de proceder a uma
13
análise e diferentes modos de abordar as questões do valor documental de
alguns dos textos. O capítulo “Nomes para os deuses: os Hinos Órficos e a
recepção homérica e hesiódica”, de Rafael Brunhara, bem o demonstra. Mais
do que isso: em texto de agradabilíssima leitura, o autor procede a uma bem
elaborada análise de aspectos estilísticos dos hinos. Ao fazê-lo, deixa encan-
tado o leitor, como encantadores, em variados pontos de vista, são os Hinos.
Nas duas sessões do texto, Rafael Brunhara, tece seus apontamentos, que con-
duzem a profundas reflexões, como as formas de estruturação da invocação
aos deuses, os ambientes de performance dos hinos e Apolo e a sua autoridade
no canto. Tem-se, assim, uma importante abordagem da forma como os hinos
dialogam com as tradições da poesia hexamétrica, caminha-se agradavelmente
por estruturas dos Hinos Órficos, dos Hinos Homéricos e da Teogonia, apu-
radamente confrontadas.
Com o inspirador artigo de Nathalia Monseff Junqueira, “Mythos e tho-
ma em Heródoto: os relatos fantásticos no Livro II da obra Histórias”, che-
ga-se aos relatos daquele que é considerado o pai da História. Muito já se
disse a respeito de Heródoto, mas o texto fluido, claro e bem exemplificado
da autora, lembra ao leitor da perenidade das produções literárias clássicas: é
sempre possível descobrir aspectos novos, com novos olhares. O olhar diferen-
ciado aqui se volta aos relatos fantásticos, observados no Livro II, em Histórias,
parte da obra dedicada à descrição geográfica e histórica do Egito. Apontar a
forma como Heródoto construiu alguns relatos fantásticos e a relevância de
suas escolhas para a obra representam o propósito do texto. Partindo de um
necessário comentário geral a respeito do historiador e da obra, Junqueira tece
importantes considerações acerca de duas estruturas de composição das Histó-
rias: Thôma e mythos. Com isso, chama a atenção do leitor para a forma como
Heródoto dirigia seu olhar aos povos por ele visitados.
As narrativas sobre o deus Apolo sempre despertam o interesse por sua
atuação, tanto no campo bélico quanto no poético (como se verá, por exem-
plo, na cultura latina), e o capítulo “Eparciatas e Periecos: identidade comum
em torno do culto a Apolo”, de Márcia Cristina Lacerda Ribeiro, vem de
encontro ao leitor, já movido pela curiosidade e um certo fascínio pelo mito.
E aquele que se dedica ao texto se surpreende com uma prosa clara, precisa, e
14
que desde o início traz importantes dados a respeito do culto ao deus. Embora
se apresentem dados localizados em uma temporalidade e um espaço especí-
ficos, aprende-se – e muito – a respeito de cerimônias e de implementação
de identidade religiosa. A fim de convidar à leitura de um excelente trabalho,
seguem abreviadamente alguns dos assuntos tratados. Partindo de considera-
ções a respeito da forma como Esparta procedeu a uma organização territorial,
em que amalgamou um imenso território formado por aldeias de diferentes
dimensões, formando um Estado Lacedemônio, e de questões acerca do culto
a Apolo, divindade preponderantemente militar em Esparta, a autora explana
as cerimônias do Festival de Apolo e Jacinto (Hyakinthia), as Gimnopédias,
de caráter iniciático, e as Carneias, onde o deus era representado com uma
cabeça de carneiro.
O capítulo “A relação de Esparta e Héracles – discursos, representações
e legitimidade política”, de Luis Filipe Bantim de Assumpção, leva o leitor
a observar a figura do herói. Um herói por excelência, Héracles. O viés de
análise apresenta-se instigante e move o pesquisador para além das narrativas
dos grandes feitos, que despertam a curiosidade. O autor percorre caminhos
que conduzem à Esparta, no período clássico e pondera as relações que esta
manteve com Héracles, chamando a atenção para a documentação literária,
destacando-se Heródoto e Xenofonte, onde aparecem tais ligações. Para tecer
suas considerações Luis Assumpção, parte de uma análise do personagem mi-
tológico e sua representatividade na Hélade. Segue a argumentação apontando
a relação entre o herói e Esparta e suas prerrogativas na região. Prossegue o
texto, chamando a atenção para os rituais em honra a Héracles. Deixa-se agora
como estímulo à leitura, a curiosidade sobre as conclusões do autor.
O leitor é tomado de agradável surpresa ao se dedicar à leitura do ca-
pítulo “Bellum Iustum e os rituais romanos: o caso de Sagunto na Segunda
Guerra Púnica (218-202 a.C.)”, de Carlos Eduardo da Costa Campos e An-
derson de Araújo Martins Esteves. Os autores, já em suas palavras iniciais,
chamam a atenção para o conceito de guerra justa (Bellum Iustum) e para os
juízos de valor agregados. Valendo-se de refinado e preciso referencial teórico
e de fontes latinas imprescindíveis, o trabalho faz acurada análise do conflito
conhecido com Segunda Guerra Púnica (218 a.C. – 202 a.C.), onde Roma
15
apoia Sagunto, uma cidade aliada. Pesquisadores ou neófitos encontram no
texto relevantes observações sobre as implicações que o uso do termo Bellum
Iustum acarretam: valorização do mérito e sacralidade do conflito. Têm-se as
esferas da lei e da religião. O texto incita, então, dos argumentos iniciais até as
considerações finais, a reflexão; provoca o leitor a considerar um dos aspectos
que definem o perfil do homem romano, suas práticas religiosas, que marcam
todas as suas atividades, de ações privadas a atos públicos, como as guerras.
No capítulo intitulado “Reflexões acerca da elegia II.1 de Tibulo”, Ar-
lete José Mota, valendo-se de uma análise literária, salienta aspectos relativos
aos festejos campesinos dedicados a Baco e a Ceres, apontando, do mesmo
modo, o lugar do temática amorosa, ponto chave das composições dos poe-
tas elegíacos. A autora dá relevo dessarte às possíveis situações que envolvem
um relacionamento amoroso, que estariam presentes no poema escolhido. Ao
dividir o texto em passagens, que denomina “passos”, ressalta, utilizando vo-
cábulos-chave, um passo a passo dos rituais narrados por Tibulo.
Não poderiam faltar no livro os relevantes e respeitáveis estudos de Se-
míramis Corsi Silva acerca de religiosidades. A autora presenteia o leitor com
um estudo a respeito da divindade solar Elagabal, em “Cultuando divindades
solares: Apolônio de Tiana versus Heliogábalo (século III EC)”, onde analisa
a biografia apologética a Apolonio de Tiana, A vida de Apolonio de Tiana, de
Filóstrato, onde o autor apresenta Apolônio como filósofo pitagórico. Detém-
-se a autora em um tema não explorado: a relação entre os cultos à divindade
solar, realizadas pelo protagonista da obra de Filóstrato e o contexto de escrita
da obra, período da dinastia dos Severos. Frisa a autora o período de maior
culto a Elagabal em Roma, época do imperador Heliógábalo (218-222), pos-
suidor de imagem bastante negativa nos textos produzidos então. Observando
as críticas de Filóstrato a Heliogábalo, Semíramis Silva tece importantes con-
siderações sobre essas críticas.
A força da imagem. Esse é o convite à reflexão que apresenta Thiago
Brandão Zardini, no capítulo “Sol Invicto comiti: reflexões sobre a imagem dos
deuses nas moedas de Constantino I”. O autor inicia suas cogitações a partir
da ideia de sacralização do soberano no século IV d.C. Em texto de agrada-
bilíssima leitura e preciso na forma, trata, com propriedade, os panegíricos
16
latinos e as moedas, esclarecendo que faziam parte da cerimônia do aduentus
(a visita do imperador a um determinado local). O leitor encontrará conjec-
turas importantíssimas ao estudioso do período: a adoção do deus Apolo por
Constantino e a construção de sua imagem nas moedas.
Em suma, os textos organizados nessa coletânea refletem o estado atu-
al das pesquisas sobre Antiguidade, principalmente, com o foco nos estudos
religiosos. Por isso, ratificamos o nosso compromisso de divulgação do saber
histórico e trabalho em conjunto, em tempos em que se valorizam os estudos
interdisciplinares e interinstitucionais. Assim, desejamos aos leitores uma fasta
e gratificante reflexão a partir dos escritos contidos nessa obra. Boa leitura!
17
18
O conceito de sonho na China Antiga
André Bueno
19
individual subjacente à vida corpórea, em chinês: 魂 Hun). Os chineses de-
senvolveram um profundo interesse pela atividade de sonhar como um meio
de explicação para as mais diversas questões – tanto metafísicas quanto das
atividades cotidianas.
O que faremos aqui, portanto, é uma apresentação de algumas dessas
passagens, onde o sonho é analisado conceitualmente, centrando principal-
mente nas visões de Confúcio 孔夫子 (551-479), Liezi 列子 (séc. V-IV AEC)
e Zhuangzi 莊子 (séc. IV AEC). Por meio desses três autores, buscaremos
compreender o papel do sonho na China Antiga, delimitando o tempo de
análise entre os séculos VI e III AEC, quando ocorrem profundas transforma-
ções no pensamento chinês, no que se denominou, na historiografia clássica
dessa civilização, como período das “Cem Escolas de Pensamento” (Zuzhi
Baijia 諸子百家) (BUENO, 2004).
A Análise Confuncionista
20
as antigas crenças chinesas. Como esse livro é extenso e variado, trataremos
especificamente das passagens ligadas à questão do sonhar.
No capítulo 24, é a apresentada a seguinte morfologia dos sonhos:
21
pírito fica livre e encontra com outros espíritos, recebendo deles orientações,
avisos ou ataques.
Isso ocorria porque, na mentalidade religiosa chinesa, herdeira ainda
das tradições xamânicas, o sonho era uma via de acesso ao mundo espiritual,
junto com o transe e o mediunismo. A religiosidade chinesa dessa época é
denominada, de fato, como “Ensinamentos dos Espíritos”, ou Shenjiao 神
教 (BUENO, 2017). Os chineses teriam compreendido a existência da alma
por meio, justamente, dos sonhos. Assim, no estado de “quase-morte” (sono),
o sonho era interpretado como a reminiscência dos passeios que alguém fazia
quando desprendido de seu corpo físico. Ao retornar, essas lembranças eram
impregnadas pelas sensações físicas; e, por isso, dificilmente era possível re-
cordar com absoluta clareza o que se havia sonhado. Daí, a necessidade de
um intérprete de sonhos. Um dos exemplos mais notáveis pode ser visto nesse
poema do Shijing 詩經:
Confúcio estava ciente de que essa era uma crença importante entre os
chineses, motivo pelo qual ela ficou registrada no Zhouli. Ele defenderia, con-
22
tudo, sua preferência pela conexão entre os dois mundos por meio da prática
ritual, através da manutenção de um canal institucionalizado de comunicação
entre os vivos e os espíritos. Sua abordagem consagrava-se na execução das
atividades devocionais descritas minuciosamente nos manuais de ritos, e ad-
mitia, ainda, que o uso oracular do Yijing 易經 (o Tratado das Mutações) pos-
sibilitava a atuação dos ancestrais por meio de avisos, conselhos e presságios.
Sua opção, pois, era de um contato consciente com o outro mundo, legando a
atividade do sonhar uma condição espontânea do momento na existência cor-
pórea; “Estou ficando assombrosamente velho. Passou-se muito tempo desde
que vi o duque de Zhou em sonhos pela última vez” (LUNYU, 7.5).
Confúcio dizia que antes de nos preocuparmos com os mortos, deví-
amos saber servir aos vivos (LUNYU, 11.12). Com isso, ele não descartava a
ação dos espíritos, mas insistia que discutir sua presença e atuação seria uma
questão extremamente problemática. O encontro com os ancestrais se dava
em ocasiões apropriadas, durante cerimônias que determinavam o trânsito
entre os mundos. No Zhong Yong 中庸, Confúcio disse: “O poder das forças
espirituais no Universo – como se faz sentir por toda a parte! invisível aos
olhos, e impalpável aos sentidos, é inerente a todas as coisas e nada escapa à
sua influência” (ZHONG YONG, 16). No entanto, seriam as forças materiais
que regeriam o mundo físico – e o Tratado das Mutações cumpriria devida-
mente este objetivo, servindo como mediador entre o mundo espiritual e as
necessidades imanentes.
Uma das escolas que concorriam com Confúcio era a chamada “Es-
cola Daoísta” (Daojia 道家), que defendia um desprendimento do mundo
materialista, um afastamento da cultura estabelecida e um gradual retorno
ao estado mais próximo de uma “natureza primitiva” (Ziran 自然). Isso não
impediu, porém, que os daoístas fizessem exames apurados dos conceitos e
práticas do pensamento tradicional.
23
Zhuangzi (séc. IV AEC), um dos principais expoentes do Daoísmo,
destacou-se, entre outras coisas, justamente, por uma análise do papel do so-
nho na realidade humana. Numa famosa passagem, intitulada “O Sonho da
borboleta”, bastante conhecida na tradição chinesa, e que se popularizou ao
redor do mundo, chegando a virar letra de música no Brasil, pelas mãos do
compositor Raul Seixas (“O Conto do sábio chinês”, 1980), Zhuangzi pro-
curava entender o que é a alma através da dinâmica do sonho. Observemos:
Um dia eu Zhuang zhou, sonhei que era uma borboleta voando aqui
e acolá, sendo somente uma borboleta. Só tinha consciência de mi-
nha felicidade como borboleta sem saber que eu era Zhuang zhou.
Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei
se eu era um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma bor-
boleta sonhando ser um homem. Entre um homem e uma borboleta
há, naturalmente, uma distinção. Isso se chama a transição das coisas
materiais. (ZHUANGZI, 2)
24
sua alma se transporta para outro lugar, obliterando–lhe os sentidos (mesmo
com os olhos abertos), e só retorna mediante o estímulo ou a vontade própria.
Todavia, no momento do sonho, o corpo relaxa seus laços e a alma pode
movimentar-se para fora. E para onde ela vai? A teoria de Zhuangzi se torna
complexa, neste ponto. Podemos ser uma alma que, ao dormir, transporta-se
para outro corpo (no caso, o da borboleta), que está em outro mundo – o do
sonho. Porém, podemos também estar acordados neste mesmo mundo, mas
apenas em outro corpo – o fato de dormirmos à noite não significa que não
seja dia em outro lugar. O sonho, pois, é tão somente a percepção de alguém
que está acordado em algum lugar e dormindo alhures. Isso significa que po-
demos estar, inclusive, adormecidos, agora, em outra instância, enquanto es-
crevemos; do mesmo modo, estar acordado equivaleria simplesmente a estar
sonhando. Mas podemos ir além: se sonhamos ser um tigre, uma outra pessoa,
ou mesmo nós numa realidade alternativa, então, podemos ser mais que uma
alma; podemos ser várias consciências que operam, paralelamente, em reali-
dades distintas. Se aceitarmos que há um mundo dos sonhos, então, a questão
ficaria resolvida: e lá seremos o que quisermos ser. Mas, se supusermos ser uma
borboleta sonhando ser gente, deste modo, somos de fato ente, borboleta, o
tigre, eu agora, outra pessoa e eu mesmo em um outro lugar cuja única dis-
tinção é aquela da consciência que predomina num dado momento. Logo, só
estamos tendo a impressão de estarmos acordados enquanto desempenhamos
uma atividade qualquer, porque esse eu de agora não fugiu para nenhum ou-
tro lugar ou está dormindo em outras formas corporais. Contudo, se esse eu
parar tudo e começar a se imaginar em outro lugar, ele estarei lá, e o corpo
permanecerá parado, aguardando sua presença.
Por esta razão, podemos concluir que, na visão de Zhuangzi, o que quer
que sejamos, somos a nossa mente. A distinção das realidades conscientes é
uma teorização do escapismo, mas enquanto nos encontramos em um certo
mundo, precisamos viver nele. Após a morte do corpo, podemos acordar em
outro lugar, mas tal suposição não nos isenta da necessidade de sobreviver
agora.
No plano do sonhar, portanto, poderíamos acessar uma outra realidade
supra-dimensionada, no qual o verdadeiro propósito da existência se revela em
25
suas sutilezas. Eis a razão fundamental pela qual, no mundo material, torna-se
difícil perceber o princípio subjacente (Li 理, forma, estrutura) das coisas;
como afirma novamente Zhuangzi:
26
você como eu somos coisas criadas. O que adianta criticarmo-nos mu-
tuamente? Um sujeito que não presta para nada em perigo de morte
iminente e uma pessoa indicada para falar de uma árvore que não pres-
ta para nada?”
Quando o carpinteiro Shi acordou e contou o sonho que tivera, o
aprendiz disse: “Se a árvore ansiava por ser inútil como foi que conse-
guiu tornar-se uma árvore sagrada?”
– “Psiu!” Volveu o mestre. “Fique calado. Ela simplesmente refugiou-
-se no templo para fugir ao abuso dos que a não apreciavam. Se não
tivesse se tornado sagrada quantos não teriam desejado cortá-la! Além
disso, os meios que adota para sua segurança são diferentes dos outros,
e criticá-los pelos padrões ordinários será ficar bem longe do objetivo”.
(ZHUANGZI, 2)
Liezi e os Sonhos
27
O rei Mu de Zhou foi visitado por um estranho do extremo oeste.
Tratava-se de um feiticeiro que era capaz de caminhar sobre o fogo e a
água, penetrar a pedra e o metal, voar pelos ares e mover montanhas e
rios. O rei Mu ficou sobejamente impressionado com as habilidades do
feiticeiro e tratou-o como a um deus.
Construiu-lhe um palácio, enviou-lhe os melhores pratos que tinha
no reino, e providenciou-lhe as melhores cortesãs. Todavia o feiticeiro
não levou tais oferendas em grande consideração. Achou o palácio des-
confortável, a comida desagradável e as cortesãs feias, malcheirosas e
incultas. [...] Todos os dias lhe oferecia vestimentas caras e as melhores
iguarias e convocou os melhores músicos para tocar a melhor música
alguma vez composta.
O feiticeiro ainda se sentia insatisfeito, mas ao ver que o rei tinha dado
o seu melhor, de má vontade aceitou as oferendas.
Passado não muito tempo, o feiticeiro convidou o rei Mu para viajar
com ele à sua terra no oeste. Dizendo ao rei para fechar os olhos e
para se agarrar à manga da veste dele, alçou-se ao céu. Assim que o rei
abriu os olhos deu por si na terra do feiticeiro. Ao entrar na área do
palácio viu que os edifícios se achavam decorados com prata e ouro.
Jade, pérolas e outras joias preciosas adornavam as paredes e as janelas.
O palácio situava-se num leito de nuvens que ficava acima da chuva e
das tempestades. Tudo quanto viu, ou viu, experimentou, era desco-
nhecido no seu mundo. Foi então que o rei Mu percebeu que os deuses
deveriam ter apreciado tais luxos nos seus palácios celestes. Comparado
com aquilo, o seu próprio palácio parecia um mero casebre.
O rei Mu disse para consigo próprio: “Jamais vi coisa assim. Não me
importava de aqui ficar dez ou vinte anos.” O seu devaneio foi inter-
rompido pela aproximação do feiticeiro que o levou a visitar ainda um
outro reino.
Desta vez, quando o rei Mu chegou, não conseguiu vislumbrar sol nem
lua, montes nem mar. Para onde quer que olhasse a luz era de tal modo
deslumbrante que tudo quanto conseguia divisar era um caleidoscópio
de cores que o deixavam estonteado. Os sons que escutava eram estra-
nhos e misteriosos e logo ficou com os sentidos desorientados. O corpo
tremia-lhe e sentia a mente ofuscada; sentia-se enjoado e pensou que ia
adoecer. Rapidamente pediu ao feiticeiro que o levasse dali ou enlou-
28
queceria. O feiticeiro deu-lhe um leve empurrão, e o rei Mu viu-se de
volta ao seu palácio.
Ao abrir os olhos verificou que se encontrava sentado na sua cadei-
ra, que jamais tinha deixado. O vinho que tinha na taça ainda não
tinha sido ingerido, e a comida no prato ainda se encontrava tépida.
Os seus assistentes permaneciam na mesma posição anterior. Quando
lhes perguntou o que tinha acontecido, os assistentes responderam que
permanecera sentado na sua cadeira e que fechara os olhos por breves
instantes.
O rei Mu achava-se de tal modo chocado com aquilo que levou quase
três meses a recobrar de toda aquela experiência. Por fim decidiu per-
guntar ao feiticeiro o que tinha realmente sucedido e o seu distinto
convidado respondeu-lhe: “Fizemos uma jornada pelos domínios do
Espírito. Foi por isso que o teu corpo permaneceu imóvel e não sentiste
passagem de tempo. Experimentaste um mundo que te é desconhecido
enquanto permanecias sentado no seu próprio palácio. Existirá mesmo
alguma diferença entre os lugares que visitaste e aquele a que chamar
“lar”? Ficaste chocado e desorientado por te sentires confortado com
o que designas por permanente, e sentiste-te – nervoso com as coisas
que consideras transitórias. As reações que sofreste são o resultado das
partidas que a tua mente te provocou. Quem poderá asseverar quando
e com que rapidez uma situação pode mudar numa outra e qual será
real e qual não será?”
Após ouvir aquilo o rei Mu decidiu retirar-se da política. Ordenou
aos assistentes que preparassem a sua carruagem e os cavalos a partiu
numa longa viagem pelo seu reino. [...] O Rei Mu não era divino. Ele
desfrutou por completo da sua vida e morreu quando chegou a hora.
Mas toda a gente acreditava que se tinha tornado num deus e que tinha
ido para o céu.
29
Outro aspecto dessa relação era que, quando acordamos do sonho, te-
mos sensações físicas reais e profundas. Todavia, ao longo do sono, nosso cor-
po se aproxima de um estado de quase morte, que é a inação total; para onde
foi o nosso “eu real”? Porque, aos que observam (acordados), ao chamá-lo,
ele não responde? E quando o espírito retorna, ele conta que esteve em outro
lugar, em outro mundo. Disso poderia se extrair a concepção de que o mundo
espiritual e o material estão interligados, são indissociáveis – e, confirmando o
que já fora dito por Zhuangzi, quando estamos acordados em uma realidade,
estamos “dormindo” em outra. Conta-nos novamente o Liezi;
30
o gamo e agora o disputa contigo, mas sua mulher pensa que ele so-
nhou que havia encontrado um gamo que outra pessoa matara. Assim,
ninguém, na realidade, matou o gamo. Como, porém, temos o gamo
diante de nós, pode ele ser dividido entre os dois.
Essa história foi levada aos ouvidos do rei de Zheng, e o rei de Zheng
disse:
– Ah! Não tornou esse juiz a sonhar que está dividindo o gamo entre
os outros?
31
você são ambos sonhos; e eu que afirmo que são sonhos – eu não passo
de um sonho também. É um paradoxo. Amanhã um Sábio talvez se
erga para explicar isso; mas o amanhã não virá senão depois que se
tiverem passado dez mil gerações; e, no entanto, [se tudo é um so-
nho] você poderá encontrá-lo amanhã, por acaso, em qualquer lugar.
(ZHUANGZI, 3)
Considerações Finais
32
distâncias, visitar ancestrais, imortais ou deuses e por fim, ativar a conexão
entre os dois mundos através do seu próprio corpo espiritual-material (WIL-
SON, 2004).
Ademais, a experiência do sonho premonitório, curativo ou revela-
dor já havia sido experienciada pelos xamãs chineses e siberianos (ELIADE,
1978). O que os daoístas fazem, porém, é desenvolver estas técnicas, não so-
mente aprimorando os métodos de entrada no mundo do sonho como ainda,
mapeando as divisões do plano espiritual (céus, infernos, zonas intermediá-
rias), suas criaturas, potencialidades, etc., e projetando-as no imaginário re-
ligioso chinês. O aperfeiçoamento do sonho extático favorecia, igualmente,
o controle do transe mediúnico (o “sono acordado”, onde o praticante sai
de si para enxergar o mundo espiritual). Tais experiências seriam fartamente
descritas pelos daoístas como meios de acesso e prática da alquimia interior.
No sonho extático, pois, os chineses encontram uma via de acesso ao plano
espiritual, uma forma de alcançar a unidade plena das faculdades intelectuais
e físicas nos dois planos. Do sonho, advém a idéia do espírito; por ele, reen-
contrava-se com o real, com a existência plena.
Documentação
33
Referências Bibliográficas
34
Notas biográficas
255
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha em especial com os seguintes
temas: literatura latina, cultura romana, língua latina, comportamento, perso-
nagem, riso e história romana. Professora do Programa de Pós-graduação em
Letras Clássicas da UFRJ. Líder do Grupo de Pesquisa NVMINA – Crenças,
Rituais e Magia na Roma Antiga/Cnpq até 2017. Coordenadora Adjunta do
Laboratório ATRIVM – Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade,
que integra o PPGLC da Faculdade de Letras da UFRJ. Substituta Eventual
do Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas, da UFRJ
(PPGLC/ UFRJ).
256
perspectivas entre o passado e o presente» onde desenvolve dois projetos de
pesquisa: «As Antiguidades e os Usos do Passado: sobre a presença do passado
na vida prática das pessoas» e «História e Cultura da Alimentação: a função
social da cerveja na história».
257
tropología Filosófica (Universidad de Morón) Coordinadora académica de la
Cátedra Abierta de Estudios de Género (Universidad de Morón). Directora de
la carrera de Filosofía (Universidad de Morón). Profesora Titular de Filosofía
Antigua y Problemas Especiales de Filosofía Antigua (Universidad Nacional
de Mar del Plata). Profesora del Instituto Superior de Formación Docente
Ricardo Rojas, Moreno. Investigadora principal por la Universidad de Morón.
Codirectora del Proyecto de Investigación “Mundo Antiguo y Cultura Histó-
rica; formas de dominación, dependencia y resistencia”. Facultad de Humani-
dades. Universidad Nacional de Mar del Plata.
258
niversität München). Ministrou palestras na Áustria, no Brasil, na Inglaterra e
na Alemanha. Os seus últimos projetos abordam as citações e alusões poéticas
nas obras de Platão, Xenofonte e Aristóteles, a métrica grega, a Vida de Ale-
xandre de Plutarco e a auto-representação de helenos e a sua visão de povos
não considerados helenos.
259
barbaridades, fronteiras e integração no Império Romano; Usos dos prazeres,
Gênero e Poder no Império Romano; Heliogábalo e a Dinastia dos Severos.