You are on page 1of 37

NORMAL E PATOLÓGICO

Georgess Cangüilhem

Adaptação da apresentação de
Octavio Domont de Serpa Jr.
Professor Adjunto do IPUB/UFRJ
“A existência começa a se descozer. Com a
fascinação da criança que desfaz a malha
puxando o seu fio, que vê os seus castelos
de areia se apagarem sob o ataque das
ondas do mar; com esta fascinação e
passividade, eu vejo a minha vida prévia
desaparecer sob a lâminas poderosas de
um corpo enlouquecido”
(Marin, Hors de moi, 2009, p.16)
O Normal e o Patológico – Georgess
Cangüilhem (1943)

Medicina:
“...uma técnica ou uma arte situada na
confluência de várias ciências, mais do
que uma ciência propriamente dita (...)
uma técnica de instauração e
restauração do normal, que não pode
ser reduzida ao simples conhecimento.”
Visão quantitativa da doença

Concepção quantitativa de doença :


- Broussais e a “irritabilidade”
- Claude Bernard : “toda doença tem uma
função normal correspondente da qual e
apenas a expressão perturbada, exagerada,
diminuída, anulada.
Visão quantitativa da doença

É a atividade normativa biológica dos


organismos que avalia e prefere certos
estados e comportamentos com referência a
determinados meios e por isso os escolhe,
tornando-os mais freqüentes
As médias fisiológicas não registram
objetivamente o normal tal como ele é,
sempre foi e sempre será. O que elas
registram são as “latitudes funcionais”
conquistadas pela espécie humana.
Visão quantitativa da doença

Normatividade Biológica : normas sãs e


normas patológicas
⚫ anormal  patológico
homem normal : homem normativo
Patológico : não se trata de ausência
de normas mas de norma diferente,
repelida pela vida
Visão quantitativa da doença

Doença : julgamento de valor virtual


(valor negativo)
Normal : valor e fato - equivoco facilitado
pela tradição realista, pela qual toda
generalidade indica uma essência, um
caráter comum adquire valor de tipo
ideal
Visão quantitativa da doença

⚫ “A diferença de valor que o ser vivo


estabelece entre a sua vida normal e a sua
vida patológica seria uma aparência ilusória
que o cientista deveria negar?”
⚫ “...fato patológico só pode ser apreendido
enquanto tal, ao nível da totalidade orgânica;
e, em se tratando de organismos humanos,
ao nível da totalidade individual
consciente(...) Ser doente é, para o homem,
viver uma vida diferente, mesmo no sentido
biológico.”
Georges Cangüilhem

⚫ “Pode-se praticar objetivamente, isto é,


imparcialmente, uma pesquisa cujo
objeto não pode ser concebido e
construído sem referência a uma
qualificação positiva e negativa; cujo
objeto, portanto, não é tanto um fato
mas, sobretudo, um valor.”
Visão quantitativa da doença
“O discurso da doença é quase sempre negativo,
discurso da restrição e da renúncia. Ele lembra o que
não podemos fazer. Código da vida, revisto e
empobrecido. (…) Mas a doença também desperta
uma sensibilidade que estava adormecida.(…) Ela
introduz um novo ritmo. Não, como poderíamos crer, o
ritmo lento daqueles cujos corpos são freados pelas
dores. Ao contrário, ela acelera a existência. (…) A
doença exalta e excita. (…) Ela nos mergulha no vivo
da vida, na sua desmedida…”
(Marin, op.cit., pp.9-10)
Introdução ao problema de
Cangüilhem
⚫ Seria o estado patológico apenas uma
modificação quantitativa do estado
normal?
➢ O que é Normal e Patológico?
➢ Concepção quantitativa/concepção
qualitativa
➢ Concepção ontológica e concepção
dinâmica da Saúde/Doença
O que é Normal e Patológico
Um traço humano seria normal porque é
frequente ou seria frequente porque é
normal?
Média: equivalente objetivo e cientificamente
válido do conceito de normal ou de norma?
Como decidir, só com base em
procedimentos estatísticos, dentro de que
intervalos de variação com relação à uma
posição média teórica os indivíduos ainda
podem ser considerados normais?
O que é Normal e Patológico

Normal e Patológico : fato ou valor?

Patológico : conceito idêntico ao de


anormal?

Patológico : contrário ou contraditório de


normal?
O que é Normal e Patológico

É possível/desejável reduzir a
diferença entre saudável e doente a
uma diferença quantitativa?
obedecer ao espírito das ciências
físicas, que só podem explicar os
fenômenos por sua redução a uma
medida comum.
O que é Normal e Patológico
“Podem me colocar em uma tabela de
estatísticas, me converter em números, me
oferecer uma previsão em percentagem,
pouco importa. Podem traçar toda cadeia
causal que se desenrola desde que a
doença tomou conta de mim, ainda assim
se passa ao largo da pergunta principal: por
que eu estou doente?”
(Marin, op.cit., pp.66-67)
“A fronteira entre o normal e o
patológico é imprecisa para
diversos indivíduos considerados
simultaneamente, mas é
perfeitamente precisa para um
único e mesmo indivíduo
considerado sucessivamente.
Aquilo que é normal, apesar de ser
normativo em determinadas
situações, pode se tornar
patológico em outra situação, se
permanecer inalterado.
O indivíduo é que avalia essa
transformação porque ele é que
sofre suas conseqüências, no
próprio momento em que se sente
incapaz de realizar as tarefas que a
nova situação lhe impõe.”
O que é Normal e Patológico

Illness: Disease:
experiência humana dos
sintomas e do o que o clínico produz
sofrimento; como o processando as queixas
doente, os membros de em termos técnicos; é o
sua família ou sua rede problema vista da
social mais ampla perspectiva do clínico;
percebem, convivem e em termos do modelo
respondem aos sintomas biomédico trata-se de
e incapacidade; uma alteração da
experiência vivida de
monitoramento de estrutura ou do
processos corporais funcionamento biológico
O que é Normal e Patológico
“Não existe nome para esta dor. Os nomes das
doenças não refletem os tormentos que elas
infligem. Eles só exprimem as fantasias dos
médicos, talvez os seus medos obscuros, o
seu orgulho de descobridores. Eles pensam
que assim fazem o seu trabalho. Mas a
doença nos possui. Nomeá-la, compreendê-
la, só nos oferece um poder ilusório sobre ela”
(Marin, op.cit, pp.21-22)
K.Goldstein (1878-1965)

inicialmente seguidor de Wernicke, em


Breslau.
⚫ Critica a correspondência entre sintoma
e localização de função → vários
mecanismos convergem para a
formação do sintoma
⚫ Sintomas: respostas do organismo
como um todo às solicitações do
ambiente.
K.Goldstein (1878-1965)


“Esta espécie de composição que ocorre
entre o organismo e o mundo ambiente
é o que nós chamamos da lei biológica
fundamental(...) a mesma mudança
exterior, o “mesmo estímulo”, pode agir
de modos muito diferentes” (Goldstein,
1934[1983], p.96)
K.Goldstein (1878-1965)

⚫ “Os sintomas são respostas que o organismo dá a


certas questões bem determinadas que lhe são
colocadas” (Goldstein, 1934[1983], p.18)
⚫ “...sintomas nada mais são do que respostas dadas à
certas questões especiais feitas pelo examinador. E
estas questões não são fortuitas pois dependem das
idéias teóricas fundamentais do examinador no que
concerne ao fenômeno por ele examinado.”
(Goldstein, op.cit, pp.18-19, grifo do autor)
K.Goldstein (1878-1965)

⚫ “Pode-se dizer que o ambiente é


extraído do mundo pela existência do
organismo, (...) que um organismo só
pode existir se ele consegue encontrar,
se ele consegue talhar, no mundo, um
ambiente adequado” (Goldstein, op.cit.,
p.76).
RELATO

“Eu não me identifico mais com a minha imagem


refletida no espelho. As transformações físicas
são rápidas demais para que o esquema corporal
interior se adapte a elas. A memória conserva
piedosamente a relíquia daquela que eu era. Ela
se aproveita para idealizá-la e torna ainda mais
cruel a comparação.”
(Marin, op.cit., p.23)
Georges Cangüilhem: Normal e
Patológico
➢ A fronteira entre o normal e o patológico é
imprecisa quando comparamos sujeitos diversos.

➢ Aquilo que é normal pode se tornar patológico


(mesmo que inalterado) em outra situação.

➢ O SER NORMATIVO é aquele capaz de criar


normas e estabelecer modos de vida flexíveis.
Georges Cangüilhem: ser
patológico
◆A vida é que faz do normal
biológico um conceito de valor
e não um conceito estatístico.

◆“...a vida não é indiferente às


condições nas quais ela é
possível...a vida é polaridade e
por isso mesmo, posição
inconsciente de valor...a vida
é, de fato, uma atividade
normativa.

◆Patológico deriva de pathos:


afecção, “...sentimento direto e
concreto de sofrimento e de
impotência, sentimento de vida
contrariada.”
Georges Cangüilhem: ser
patológico
Doença: não mais uma situação de
privação, de falta de um atributo ou
capacidade que faz do doente um ser
diminuído.
O doente é um ser modificado em sua
individualidade que mesmo quando é
capaz de chegar aos mesmos
desempenhos de que era capaz antes da
doença agora o faz percorrendo
caminhos diferentes dos anteriores
Georges Cangüilhem: ser
patológico

⚫ Doença: Primeiro momento → imperativo de


criação: ao doente é exigido o
estabelecimento de novas normas que
permitam a continuidade da vida
⚫ Doença: Segundo momento → imperativo de
conservação: o doente só é normativo se a
norma permanecer a mesma, tornando-se
vulnerável às modificações do meio
Georges Cangüilhem: ser
patológico

⚫ Foge dos problemas causados pelas


alterações de seus hábitos, mesmo em
termos fisiológicos.
⚫ Perdeu sua capacidade normativa e
está apenas adaptado ao meio e às
suas exigências.
⚫ Atribui-se, ao próprio ser humano, a
responsabilidade de distinguir o ponto onde
começa a doença.

⚫ O patológico só pode ser apreciado em uma


relação com o contexto no qual ele surge.
Georges Cangüilhem: cura

Inversão do senso comum, que atribui à


saúde uma posição fixa e definida dentro de
certos limites fisiológicos e à doença uma
indefinição quanto aqueles marcos de
funcionamento no corpo
Cura: restauração de normatividade?
Retorno ao estado anterior?
⚫ “Aprender a curar é aprender a conhecer a
contradição entre a esperança de um dia e o
fracasso no fim. Sem dizer não à esperança
de um dia. Inteligência ou simplicidade?”
Georges Cangüilhem: cura

➢ Na ética da cura o aprender a curar é visto como


aprender a conhecer a contradição entre as
possibilidades de fracasso sem perder a esperança.
➢ A posição ética do terapeuta na cura diz sempre sim
à esperança de um dia seu cliente criar novas
normas.
➢ A técnica terapêutica não é considerada normativa
por analogia com as técnicas humanas de
restauração do normal.
➢ A vida é considerada a matriz de toda a atividade
humana.
Georges Cangüilhem: saúde

⚫ Margem de tolerância às infidelidades do


meio

“...limitar os esforços e os riscos mata


pouco a pouco as esperanças. A gente se
fecha em uma existência na qual nada
mais nos motiva, nos excita, na qual nada
mais nos mantem vivos. Uma existência
morna, repetitiva, enevoada(...)”
(Marin, op.cit., p.18)
Georges Cangüilhem: saúde

➢ A saúde é um guia regulador das possibilidades de reação.


➢ A saúde é a vida mostrando-se superior à sua capacidade
presumida.
➢ Ser sadio é ser capaz de criar novas normas de vida, novos
valores.
➢ Ser sadio é ser capaz ser criador de valor, de instaurar
normas vitais.
➢ Ser sadio é ser capaz superar e instaurar nova ordem em
suas crises.
Georges Cangüilhem: saúde

➢ Ser sadio é aquele que institui normas diferentes em


condições diferentes.
➢ O ser sadio mede sua saúde pela capacidade de superar
as crises e instaurar uma nova ordem.
➢ O normal é um sentimento de segurança na vida a partir
do poder controlar as variáveis do meio.
➢ O normal é viver em um meio em que flutuações no qual
novos acontecimentos são possíveis.
Georges Cangüilhem:
considerações
“Os progressos da medicina poderão muito bem fazer desaparecer
a doença mental, como a lepra e a tuberculose; mas uma coisa
permanecerá, que é a relação do homem com os seus
fantasmas, com o seu impossível , com a sua dor sem corpo,
com a sua carcaça de noite; ...
O patológico, uma vez colocado fora de circulação, o sombrio
pertencimento do homem à loucura será a memória sem idade
de um mal apagado na sua forma de doença [maladie] mas se
obstinando como infelicidade [malheur].
35
Georges Cangüilhem:
considerações

Na verdade, esta ideia supõe inalterável o que sem dúvida é o mais


precário, muito mais precário do que as constâncias do
patológico: a relação de uma cultura com aquilo mesmo
que ela exclui, e, mais precisamente, a relação da nossa
com esta verdade de si mesmo, longínqua e invertida,
que ela descobre e recobre na loucura.” (Foucault, 1994)

36
REFERÊNCIA

➢ CANGUILHEM, Georges. (2007). O normal e o


patológico (6 ed.) (M. T. R. de C. B., Trad.) (M. B. da
Mota, P. Macherey Trad. Pósfácio) (L. Althusser Trad.
Apresentação) (L. O. F. B. Leite, Rev. Original) Rio de
Janeiro: Forense Universitária. (Obra original publicada
em 1966 com o título Le normal et le Pathologique).

You might also like