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BBC: COMO A ARTE FEZ O MUNDO O DIA EM QUE AS IMAGENS NASCERAM – Episódio 2

Dr. Nigel Spivey (Tradução e legendagem: NextFrontier@docs.PT)

Há algo que fazemos centenas de vezes por dia sem sequer nos apercebermos disso. É uma
habilidade da qual dependemos totalmente nas nossas vidas e no entanto, tomamo-la como
banal. Repare. Vemos algumas linhas e podemos dar-lhe significado. Podemos distinguir uma
forma de outra. E sabemos que um conjunto de cores pode representar algo. A habilidade de ler
imagens é uma parte essencial das nossas vidas. E se não tivéssemos esta habilidade? Imagine que
não podíamos compreender imagens. Como seria o nosso mundo? Para começar, as imagens
nunca teriam sido inventadas. Teríamos perdido uma coisa da qual dependemos totalmente. A
vida seria impossível e o nosso mundo seria irreconhecível. Mas nalgum momento do nosso
passado antigo, era assim que o mundo parecia: sem imagens. Agora, é claro, as nossas vidas são
dominadas pelas imagens. Esta é a extraordinária história de como nós humanos descobrimos o
poder das imagens e de como elas criaram o mundo em que vivemos hoje. Quanto tempo leva a
perceber que estou a desenhar um cavalo? Um segundo? Uma fracção de segundo? Nós
conseguimos dizer o que representa uma imagem bidimensional quase instantaneamente, sem
sequer ter de pensar nisso. Eu não sou grande artista, mas até eu consigo juntar algumas linhas
num pedaço de papel de forma a que veja o que eu quero que veja. E não desenho apenas
cavalos. Eu podia desenhar praticamente qualquer coisa que você provavelmente adivinharia o
que era. que você provavelmente adivinharia o que era. em que adquirimos esta habilidade pela
primeira vez, algum momento no tempo em que começámos a criar figuras e a entender o que
elas significavam. Então, o que aconteceu nessa altura? Como é que adquirimos pela primeira vez
esta habilidade de criar imagens? Para encontrar a resposta, temos de recuar muito no tempo. E
se recuássemos 2 mil anos? Esta é a imagem de um cavalo da antiguidade clássica. Foi feita para
decorar uma casa romana, cerca de 100 anos antes de Cristo. E vê-se claramente que o artista não
tinha dificuldades com representações bidimensionais. Recuámos mais 1. 000 anos, até ao ano 1.
200 a. C. Este pequeno fragmento vem do Antigo Egito. E a pessoa que o pintou sabia muito bem
como representar algo do mundo que a rodeava. Vamos ter de recuar muitíssimo mais. Estamos
no Norte de Espanha, num local chamado Altamira. Viemos aqui, porque por volta do final do
século XIX, aquilo que sabíamos sobre a altura em que as primeiras imagens do mundo foram
criadas. Esta descoberta histórica foi feita por uma rapariga de 9 anos. O seu nome era Maria. Era
a filha de Marcelino de Sautuola, um nobre espanhol local que também era arqueólogo amador.
Ele ficou intrigado com Altamira, e, no Outono de 1879, Maria e o seu pai fizeram uma visita à
caverna. “Esta era uma caverna totalmente desconhecida até há alguns anos”. Palavras retiradas
da biografia de Sautuola “Esta era uma caverna totalmente desconhecida até há alguns anos.”
Palavras retiradas da biografia de Sautuola Apesar de ser um mero amador, Palavras retiradas da
biografia de Sautuola estava determinado a realizar as minhas próprias investigações. estava
determinado a realizar as minhas próprias investigações. Como nobre académico, De Sautuola
tinha um sério interesse em saber mais sobre o passado pré-histórico. Mas, tal como outros
arqueólogos da época, ele achava que as pessoas que outrora habitaram ou se abrigaram nestas
cavernas, não passavam de selvagens, rudes, ignorantes, pouco mais que símios e certamente
incapazes de qualquer tipo de rasgo criativo. “Eu esperava que, através destas investigações,
pudéssemos rasgar o fino véuque nos separava das origens e costumes dos antigos habitantes
destas montanhas”. De Sautuola veio até à caverna para escavar o chão, para procurar relíquias
pré-históricas como ossos e ferramentas. Foi Maria que fez a descoberta pela qual Altamira se
tornou famosa. “Papá! Veja, bois! Fiquei boquiaberto. O que vi deixou-me tão emocionado que
mal consegui falar”. A jovem Maria viu a primeira galeria de pinturas pré-históricas descoberta até
então. Muitas mais foram, desde aí, trazidas à luz em cavernas por todo o mundo, mas estas em
Altamira ainda se encontram entre as mais belas. A dominar o teto estão dezenas de pinturas de
auroques, uma espécie de boi que há muito estava extinta. Parecem estar imóveis, a dormir e a
correr. Assim que os viu, De Sautuola ficou convencido de que as imagens tinham sido pintadas
por pessoas pré-históricas. Mas outros não estavam tão certos. Quando De Sautuola anunciou a
sua descoberta ao mundo, os arqueólogos começaram de imediato a questionar a sua
autenticidade. As imagens eram boas demais. Era impensável que tivessem sido criadas por
selvagens pré-históricos. Os especialistas afirmavam que as pinturas tinham sido falsificadas, e que
De Sautuola era a vítima ou o autor de um embuste. Ele defendeu a sua descoberta. “É difícil de
acreditar que alguém se tivesse isolado na escuridão para pintar animais extintos. Não havia razão
nenhuma para duvidar que estas pinturas provinham de um período antigo”. De Sautuola lutou
muito para limpar o seu nome, mas os seus colegas arqueólogos mantiveram-se firmemente
cépticos. Poucos anos depois, morreu aqui em sua casa, não muito longe de Altamira, um homem
desacreditado e decepcionado. Os seus defensores afirmaram que as acusações de desonestidade
o destroçaram e causaram a sua morte. Mas chegaria o tempo em que De Sautuola seria ilibado.
Ao longo de décadas, foram feitas descobertas atrás de descobertas,tanto em França como em
Espanha, que provaram, sem sombra de dúvidas, que as pinturas das cavernas eram
pré-históricas. Então, apareceu um achado ainda mais excitante, numa caverna chamada Lascaux,
uma galeria de imagens cuja beleza é de tirar o fôlego. À medida que mais pinturas iam sendo
descobertas, revelavam que os artistas pré-históricos as tinham pintado com uma confiança e
habilidade que não ficavam nada a dever à arte moderna. O próprio Pablo Picasso disse quando as
viu pela primeira vez: “Nós não aprendemos nada”. E quando os especialistas começaram a datar
estas pinturas, houve outra surpresa. Eles descobriram que começámos a criar imagens
relativamente tarde na nossa história humana. Deixe-me mostrar-lhe o que quero dizer. Vamos
imaginar que toda a extensão de tempo em que os humanos modernos estão neste planeta, é
representada por estes degraus. As pessoas como você e eu, uma espécie conhecida como Homo
Sapiens, estamos por cá há cerca de 150 mil anos. É onde estou agora. Biologicamente, daí para
diante, os seres humanos não mudaram. Tínhamos exatamente o mesmo cérebro que temos hoje.
No entanto, ao longo de mais de 100 mil anos não criámos quaisquer imagens. Não foi senão aqui,
há cerca de 35 mil anos, que algo começou a mudar. Os arqueólogos chamam-lhe “a explosão
criativa”, o momento no tempo em que as pessoas começaram a criar imagens. Então, o que
aconteceu? O que levou as pessoas a decidirem, subitamente, começar a criar imagens do mundo
à sua volta? Os especialistas começaram a procurar uma resposta, e a sua primeira explicação
parecia óbvia. Hoje, uma das principais razões para fazermos imagens é para criar representações
das coisas do mundo que nos rodeia. Certamente, disseram os especialistas, há milhares de anos
os humanos pré-históricos também pintavam para criar representações das coisas à sua volta. Mas
à medida que mais cavernas de arte iam sendo descobertas, tornou-se claro que esta explicação
estava errada. Porque hoje, os artistas criam imagens de todos os aspectos do mundo em que
vivem. Mas no passado, eles criavam imagens de uma coisa em particular. Os artistas
pré-históricos estavam obcecados... por animais. E não de qualquer animal, mas alguns em
particular. Como cavalos... bisões... e renas. Mas porquê? O que havia nestes animais que tenha
impressionado tanto a mente dos nossos antepassados? Henri Breuil foi um padre francês, mas foi
também o maior perito em arte rupestre durante grande parte do século XX. Ele acreditava, talvez
sem grande surpresa, que as pinturas retratavam caçadas. Que os artistas pré-históricos pintaram
animais porque acreditavam que aumentariam as hipóteses de uma caçada bem sucedida. A
teoria fazia sentido. Não há dúvida que explicava o porquê de só alguns animais terem sido
pintados. Breuil parecia ter encerrado a questão. Mas mais recentemente, quando os arqueólogos
começaram a examinar os ossos de animais que foram caçados e depois comidos à volta das
cavernas, descobriram algo intrigante. Se as pessoas tinham criado estas imagens para aumentar
as hipóteses de uma caçada bem sucedida, seria de esperar que pintassem imagens das suas
presas. Mas não o fizeram. Em Altamira, por exemplo, os artistas pré-históricos pintaram bois.
Mas os ossos que foram deixados, pertenciam a veados. Noutros locais em França, eles pintaram
mamutes lanosos, mas comiam uma versão selvagem deste animal, a cabra. De modo geral, existe
muito pouco em comum entre os animais presentes na arte pré-histórica e os animais que figuram
na dieta pré-histórica. Assim, a teoria da caça de Breuil também falhou em resolver o mistério do
porquê de as pessoas terem começado a pintar. E havia um problema maior com estas teorias: as
figuras teriam de ser pintadas em locais onde as pessoas as pudessem ver. No entanto, alguma
coisa levou muitos artistas pré-históricos a pintar nas partes mais profundas e estreitas das
cavernas. Como aqui, em Peche-Merle, em França. Às vezes, as imagens encontram-se em partes
da caverna que são quase inacessíveis. É difícil imaginar como o artista conseguiu chegar aqui para
as pintar, sem falar de como alguém poderia entrar aqui para as admirar. Quer dizer, quem viria a
um local apertado como este... para decorar o teto? Estas pinturas não são apenas difíceis de
alcançar. Quando finalmente se consegue aqui chegar, é ainda mais difícil de entender o que estes
artistas estavam a pintar. Porque, como muitas outras imagens de cavernas, elas parecem não
representar nada São feitas de pontos e linhas, ou formas abstratas e padrões. Nada no mundo
natural do artista pré-histórico, se pareceria com isto. Ou isto. E, muito frequentemente, estes
padrões são repetidos ou espalhados sobre imagens mais reconhecíveis, de um modo
aparentemente aleatório. Aqui, nas cavernas Peche-Merle, em França, o artista pré-histórico
pintou um esplêndido par de cavalos. Mas repare, ele cobriu a imagem com uma série de
manchas. É difícil de perceber o que um padrão de manchas tem que ver com o mundo da caça.
Os arqueólogos perceberam que estavam mais longe do que nunca de entender as pinturas
rupestres. As explicações óbvias, como as pinturas terem sido criadas para representar coisas do
mundo, ou para caçar, jamais desvendariam o enigma destas imagens. Porque nenhuma destas
duas teorias abordou a questão fulcral. Em vez de explicarem o porquê de as pessoas estarem a
pintar imagens em cavernas, deviam estar a tentar resolver o mistério de como adquirimos a
espantosa habilidade de criar imagens. Para se ser capaz de pintar uma imagem de algo, há que
saber primeiro o que é uma imagem. E como se pode saber isso se nunca se viu uma antes? O
próprio Henri Breuil percebeu que este era o verdadeiro problema. Ele contava a curiosa história
de um turco do século XIX, a quem mostraram uma imagem. Era a imagem de um cavalo. Mas o
homem ficou assombrado. Ele não fazia ideia do que estava a ver porque nunca na sua vida tinha
visto uma imagem. Ao que parece, este turco era um muçulmano devoto. Na sua forma mais
ortodoxa, o islão proíbe imagens de criaturas vivas. Então, aqui temos alguém que,
aparentemente, se recusou a acreditar que se pode criar a imagem de um animal em duas
dimensões. Ele disse que não conseguiu ver que era um cavalo, porque não conseguia andar à
volta dele. Para nós, ao olharmos para uma pintura tão nítida como esta, é quase impossível de
acreditar. Não conseguimos imaginar como seria não entender o que era uma imagem, que ela
pode representar alguma coisa do mundo. Isto talvez seja o que uma pessoa que nunca tenha
visto uma imagem, vê. Uma colecção de linhas, cores, marcas, sem qualquer significado. Se não
conseguimos entender o que é uma imagem, a não ser que tenhamos visto uma antes, como
surgiu a ideia de criar uma pela primeira vez? Então, como é que os nossos antepassados se
aperceberam que uma colecção de linhas, pontos e cores, podia representar algo? Como é que se
fez luz há todos esses milhares de anos? Este é um dos grandes mistérios da criatividade humana.
Um mistério que os especialistas têm tentado resolver, mas sem sucesso. No entanto, há alguns
anos, surgiu uma ideia revolucionária. Era uma ideia que talvez solucionasse este problema. E teve
origem não na Europa, mas num local a milhares de quilómetros de distância. Surgiu na África do
Sul. Ocultas entre as rochas escarpadas destas montanhas, as Drakensberg, estão imagens em
paredes rochosas estranhamente semelhantes às pinturas das cavernas europeias. Também elas
retratam grandes animais, e também parecem mostrar cenas de caça. Mas ao contrário das
pinturas europeias, estas imagens não têm milhares de anos. Foram pintadas há apenas escassas
centenas de anos, quase dentro da memória viva. Foram pintadas por um povo chamado San,
mais conhecido por Bosquímanos. Durante muito tempo, estas pinturas foram ignoradas. Mas
houve um homem que ficou fascinado por elas. O seu nome era David Lewis Williams. Quando
olhei pela primeira vez para estas pinturas, a opinião geral era de que se tratava de cenas da vida
diária, e como eram do povo San achava-se que retratavam cenas de caça. Prof. David Lewis
Williams Universidade de Witwatersrand achava-se que retratavam cenas de caça. Prof. David
Lewis Williams Universidade de Witwatersrand Tomemos essa como exemplo. Aqui temos um
elande e um homem que parece estar a agarrar-lhe a cauda. Sim. Pensava-se que talvez quando o
elande era caçado pelos Bosquímanos estes lhe puxavam a cauda como demonstração da sua
bravura ou algo do género. Mas quando começamos a olhar mais atentamente para as pinturas,
reparamos que há coisas que não fazem sentido. Por exemplo, este homem aqui tem cascos e não
pés. Quer dizer que ninguém reparou nestes cascos antes? Acho que nunca ninguém meteu aí a
cabeça para reparar nisso. E depois, é claro, há coisas no próprio homem: as suas pernas estão
cruzadas e as pernas do elande também. E depois reparamos noutras coisas, como aquela ali em
cima, que tem claramente uma cabeça de antílope. Depois percebemos que ele tem cabelos
eriçados ao longo do corpo, assim como o elande tem pelos pelo corpo todo. Quando se diz que
isto são imagens da vida quotidiana, não faz sentido. E quando comecei a reparar em todas estas...
características estranhas nas pinturas, pensei: “Temos de encontrar alguma forma de desvendar o
que são estas pinturas”. Mas quando Lewis Williams começou a sua investigação, deparou-se
imediatamente com um problema. Porque estes são os San de hoje. Em vez de viverem nas
montanhas, eles vivem agora a 1. 600 km de distância, nas savanas do Kalahari da Namíbia. Ao
longo dos séculos, os seus antepassados foram perseguidos e expulsos das Drakensberg. Embora
os San ainda cacem, hoje já não pintam, e há uma boa razão para isso. Para começar, não há
rochas no Kalahari que eles possam pintar, e a sua tradição ancestral desapareceu. Os artistas San
extinguiram-se, levando consigo os seus segredos. Por isso, a chave para desvendar o mistério
destas estranhas pinturas nas montanhas, parecia perdida para sempre. Parecia não haver forma
de o conseguir, porque as pessoas que fizeram as pinturas estavam extintas. Mas então, bem
longe das Drakensberg, Lewis Williams encontrou a primeira pista. Foi o início de um percurso que
acabaria por levá-lo de volta às pinturas pré-históricas das cavernas da Europa. Apesar de não
existirem bosquímanos atualmente que se recordem do tempo em que o seu povo pintava na
rocha, havia alguns ainda vivos no final do século XIX. E felizmente, as histórias que eles tinham
para contar foram registadas e preservadas. São mantidas aqui, num arquivo da Cidade do Cabo.
No final do século XIX, um colono alemão, chamado Wilhelm Bleek, descobriu que ainda havia
alguns bosquímanos que tinham vivido junto às Drakensberg. Bleek percebeu que eles abriam
uma janela rara para o passado e começou a entrevistá-los. Este vasto arquivo, com 12 mil
documentos, é o seu testemunho. Dá-nos um vislumbre sedutor de uma cultura que já não existe.
Lewis Williams teve um pressentimento de que enterrado entre estes papéis, que são como uma
bíblia da fé dos Bosquímanos, existiriam pistas para o significado original das imagens das
Drakensberg. E de facto, havia algo nos documentos. Ao ler os manuscritos de Bleek, tornou-se
muito claro que a religião deles foi construída à volta da noção de viajar para um mundo espiritual.
Parecia que os San acreditavam que enquanto estavam vivos, o seu espírito podia deixar o seu
corpo e visitar o mundo espiritual. Acontece quando se entra num transe, ou àquilo a que por
vezes chamamos “um estado alterado da consciência”. E esta tradição San ainda é praticada
atualmente. Vim a uma aldeia próxima de Chunkwe, na Namíbia, na esperança de vê-la
pessoalmente. Aqui, fui apresentado ao curandeiro da comunidade, ou xamã. Foi-me dito que ele
era a pessoa que viaja ao mundo espiritual. Doutor, pode dizer-nos porque é que ele entra em
transe? Sempre que vem alguém perguntar pela sua família, se eu puder ajudá-los, porque sou o
médico deles, vou ajudá-los noutro mundo. E quando volto, descubro se resultou ou não. Soube
que a comunidade iria fazer uma dança de transe nessa noite. O xamã deu-me a sua permissão
para ficar e ver. Tudo começou com as mulheres da aldeia a criarem um poderoso canto rítmico.
Então, a dança começou e a orquestrá-la, estava o xamã em pessoa. À medida que a dança se
intensificava, algo dramático parecia estar a acontecer-lhe. Parecia estar a perder-se no ritmo e a
desligar-se do que estava a acontecer à sua volta. Parecia realmente estar a entrar numa espécie
de transe. Então, caiu no chão, inconsciente. Tinham-me dito que quando os xamãs entram em
transe, por vezes perdem a consciência, e enquanto estão nesse estado, dizem que morrem e
visitam o mundo espiritual. E de lá, dizem que podem curar as pessoas. Lewis Williams descobrira
o papel vital que o transe representava para o povo San. Mas como é que isto podia ajudar a
resolver o mistério das impressionantes pinturas nas rochas criadas pelos seus antepassados? Ao
ler os documentos de Bleek e descobrir acerca dos estados alterados de consciência ou transe, e
confrontar isso com as pinturas na rocha, a verdadeira dificuldade foi combinar essas duas coisas.
Como é que se encaixam? Como é que as crenças San explicam as pinturas? Foi um verdadeiro
quebra-cabeças, que me manteve no escuro durante muito tempo. Quando a resposta apareceu
finalmente, percebeu que ela estivera sempre literalmente à sua frente. Naquele tempo, eu
costumava ter cópias das pinturas na rocha feitas por nós, levava-as para casa e colocava-as sobre
a lareira com ornamentos a segurá-las e sentava-me a contemplá-las. Há uma pintura que era
particularmente importante para mim, vinda de um dos sítios das Drakensberg. Era uma cópia da
mesma pintura que Lewis Williams me mostrou nas montanhas. E um dia, ao olhar para essa
pintura em particular, tudo fez sentido. O que se passava aqui? Do lado esquerdo da pintura, há
um elande, e, subitamente, ocorreu-me que este elande estava a morrer. Podíamos ver isso pelas
pernas cruzadas, ele está a tropeçar, a sua cabeça estava em baixo, o seu pelo estava eriçado. É
isso que um elande faz quando está a morrer, particularmente devido a uma flecha envenenada.
Junto a ele, a agarrar a sua cauda, estava um homem, e as suas pernas também estavam cruzadas.
E ele tinha cascos, pintados de forma lindíssima, cascos de elande fendidos. E também ele tinha
pelos eriçados. Era óbvio que ele estava a morrer, o elande estava a morrer, e então, tornou-se
claro que as pinturas não eram figuras da vida quotidiana. Elas retratavam uma experiência
espiritual em transe. Era este o verdadeiro significado por detrás das pinturas San. O elande é o
maior antílope de África, a sua elegância e poder capturaram a imaginação dos San e conferiram
ao animal uma força mágica. Era o que eles viam nos seus transes. As pinturas que os San fizeram
não eram sobre caçadas. Em vez disso, elas recriavam os seus encontros alucinados com o animal,
pintando-os na superfície da rocha. Então, houve uma ideia nova e ambiciosa que começou a
tomar forma na mente de Lewis William. Porque ele sabia que havia outras pinturas na rocha que
eram muito semelhantes às pintadas pelos San. Estas eram muitos milhares de anos mais antigas,
as primeiras pinturas jamais criadas, e encontravam-se na Europa. Durante muitos anos, eu
também estive interessado nas pinturas rupestres de França e Espanha, as pinturas do Paleolítico
Superior. Uma das coisas mais impressionantes é a semelhança entre as pinturas na Europa e a
arte rupestre da África do Sul. Tal como a obsessão dos San pelos elandes, os artistas das cavernas
pré-históricas também se sentiram cativados por alguns animais que lhes eram importantes. E tal
como nas imagens da África do Sul, as pinturas europeias parecem introduzir detalhes de animais
no corpo humano, para criar criaturas estranhas e novas. Mas acima de tudo, havia uma
característica inexplicável partilhada pelas pinturas San e europeias, que intrigou Lewis Williams. O
que temos aqui é um decalque de uma pintura feita pelos Bosquímanos, provavelmente há acerca
200 anos. Mostra a figura de um elande com alguns San a cercar o animal. Mas também tem outra
coisa. O artista espalhou pontos por toda a imagem. Parece-lhe familiar? Repare só nisto. É um
desenho daqueles dois cavalos que vimos nas cavernas em Peche-Merle. Também este tem este
estranho padrão de pontos por todo o lado. Há apenas 200 anos, nas paredes rochosas de África,
os San criavam os mesmos padrões abstratos que aqueles pintados há dezenas de milhares de
anos nas cavernas da Europa. Mas porquê? O que fez com que pessoas de partes totalmente
diferentes do mundo, e separadas por milhares de anos, surgissem com padrões geométricos tão
semelhantes? Lewis Williams começou a questionar-se se a resposta estava não na arte, mas nos
cérebros das pessoas que a criavam. Sabíamos que na África do Sul a arte vinha de uma
experiência de transe, a partir de estados alterados da consciência. Como tal, é uma simples
questão de nos voltarmos para as pessoas que têm estudado estados alterados de consciência em
trabalho de laboratório, e perguntar-lhes o que acontece ao cérebro quando as pessoas entram
num estado alterado. Foi então que soubemos que quando as pessoas entram num estado
alterado, a primeira coisa que veem são linhas em ziguezague, linhas em ziguezague brilhantes
como acontece numa forte dor de cabeça, por exemplo. Ou então, nuvens de pontos ou grelhas. E
veem estas coisas, porque elas estão enraizadas no cérebro humano. Todos os nossos cérebros
funcionam da mesma maneira, independentemente da nossa identidade ou origem. Fisicamente,
os nossos cérebros não mudaram desde que os humanos evoluíram. Isto significa que se os nossos
cérebros forem estimulados, por exemplo, através de um transe, eles respondem da mesma
maneira que os cérebros dos nossos antepassados. É uma explicação intrigante para os estranhos
padrões. Mas poderia ser verdade? Eu vim a Londres, ao Instituto de Psiquiatria, para descobrir.
Eles vão tentar induzir um efeito tipo transe no meu cérebro. Dominic, pode dizer-nos o que há no
interior desta sua caixa? Temos aqui um aparelho que me permite estimular Dr. Dominic Ffytche
Instituto de Psiquiatria para descobrir. Eles vão tentar induzir um efeito tipo transe no meu
cérebro. Dominic, pode dizer-nos o que há no interior desta sua caixa? Temos aqui um aparelho
que me permite estimular Dr. Dominic Ffytche Instituto de Psiquiatria Temos aqui um aparelho
que me permite estimular Dr. Dominic Ffytche Instituto de Psiquiatria as partes visuais do seu
cérebro Dr. Dominic Ffytche Instituto de Psiquiatria de uma forma bastante específica. O dr.
Dominic Ffytche trata pessoas com um raro tipo de disfunção visual. Elas não têm um problema
com os seus olhos propriamente ditos, mas com a parte do seu cérebro que lida com a visão. Para
investigar a sua doença, ele construiu um dispositivo invulgar. Na verdade é muito simples,
trata-se de um par de óculos com LEDs de alta intensidade, diodos emissores de luz, que estão
ligados ao computador, que me permite controlar o número de flashes que lhe irei apresentar por
segundo. - Coloque-os nos olhos... - Sim. A seguir, vai emitir coisas contra os meus globos oculares.
Exato, tem de manter os olhos fechados, porque, como já disse, os flashes são um pouco
brilhantes. Os seus pacientes relataram ter visto formas e padrões peculiares a aparecerem diante
dos olhos. Os óculos foram desenvolvidos para induzir essas imagens no cérebro. - Vai doer? - Não
vai doer. - Mantenha os olhos fechados. - Estão fechados. - O que está a ver agora? - O que vejo
agora é... um tipo de manchas a palpitar, se é que isso faz sentido, com um tipo de rede de linhas
pretas muito finas. Certo... ora bem... Cores muito, muito vivas... Todas as cores do espectro, ao
que parece, para cima e para baixo. E atrás das cores... Como é que hei-de dizer isto? Parece uma
rede de pesca ou... Linhas negras muito finas a unirem-se umas às outras como um favo de mel,
acho que é isso. O que acontece quando estimulo apenas um olho? Ah... parece um tabuleiro de
damas eléctrico, peço desculpa, um tabuleiro de xadrez eléctrico. Faz-me lembrar uma pista de
dança onde estive uma vez. Tem cores ou é preto e branco? É preto e branco, um preto e branco
muito brilhante. Dominic, isto é uma nova experiência para mim. Tinha os meus olhos fechados,
mas via coisas. Diga-me porquê. Há partes do cérebro visual, que parecem codificar ou
representar os tipos de padrões e grelhas que você viu. E, presumivelmente, o que acontece é que
a luz irrita essas áreas e induz uma alucinação em si. Por isso, qualquer pessoa que receba este
tipo de estímulo terá o mesmo tipo de experiências. Paradoxalmente, você pode observar
exatamente o mesmo fenómeno quando chega pouca informação ao sistema visual. Há muitos
indivíduos que quando estão vendados, após algum tempo, começam a ver aquele tipo de padrões
que hoje lhe induzimos. Então, se eu entrar numa caverna, sem qualquer tipo de luz, ou vendar os
meus olhos, posso começar a ver o mesmo tipo de coisas? Sem dúvida. Isto explicaria os estranhos
padrões. Na escuridão profunda das cavernas, os artistas pré-históricos passavam por um estado
de privação sensorial, e isto induziu alucinações de formas abstratas e padrões, que os nossos
antepassados pintaram. Mas Lewis Williams percebeu que as formas abstratas eram apenas o
começo. À medida que as pessoas passavam mais tempo em transe, as suas alucinações tomavam
a forma de coisas de grande significado emocional Tal como aconteceu com os San, para os nossos
antepassados pré-históricos eram os animais que detinham essa importância, cujo poder tinham
capturado as suas imaginações. Vamos alucinar com um elande se pertencermos aos San, ao passo
que se estivermos a viver em França, vamos alucinar com um bisonte, por exemplo. Ou veremos
um cavalo. Ou seja, a cultura tem um papel preponderante. E porque estas imagens eram
alucinações, elas apareciam, e mais tarde eram recordadas, como representações a duas
dimensões, visões que eram estampadas na parede da caverna. As pessoas não inventaram as
imagens de um dia para o outro. O que aconteceu, foi que as pessoas estavam familiarizadas com
as imagens que os seus cérebros estavam a produzir e que eram projetadas nas paredes. E
queriam reter e tornar essas imagens permanentes, essas visões que viam. Eles não estavam a
fazer figuras de cavalos que viam no exterior da caverna, estavam a registar as suas visões. Lewis
Williams encontrara finalmente uma resposta para o mistério de como as pessoas que nunca
tinham visto uma imagem, criaram representações a duas dimensões, todos aqueles milhares de
anos atrás. Eles não estavam a copiar a Natureza mas a reproduzir visões criadas dentro das suas
cabeças. Aqui, pela primeira vez, encontrámos uma teoria que parece resolver muitos dos enigmas
que iludiram os peritos no passado. É uma teoria baseada não apenas na investigação da arte
rupestre em si, mas uma compreensão científica do que se passava na cabeça dos seus autores.
Ela explica como passámos de um mundo sem imagens, para um mundo com pinturas em
cavernas. Mas não explica como chegámos de lá até hoje, o mundo moderno onde as imagens
dominam as nossas vidas. Porque, há cerca de 12 mil anos, aconteceu algo de estranho. As
pessoas deixaram de pintar em cavernas. Os arqueólogos não sabem exatamente porque
aconteceu. Mas por toda a Europa, para onde quer que olhassem, encontravam poucas provas da
criação de imagens, num período correspondente a muitos milhares de anos. O povo pré-histórico
que descobriu como criar imagens e depois reproduzi-las durante inúmeras gerações, parece ter
perdido o interesse nelas. Foi como se em vez de ser uma parte essencial da existência humana...
as imagens tivessem sido apenas um extra opcional. As imagens pareciam ter perdido o controlo
sobre a mente humana. Então, como chegámos dali... até hoje? Como é que o poder das imagens
voltou a capturar a nossa imaginação e nos conduziu a um mundo tão repleto de imagens, que
não conseguimos imaginar a vida sem elas? Só recentemente é que começámos a descobrir a
resposta. Viemos até o Sul da Turquia, ao sopé de uma grande colina chamada Göbekli Tepe. No
topo, encontra-se algo que revela o que aconteceu às imagens, há todos aqueles milhares de anos.
Os investigadores visitaram Göbekli Tepe pela primeira vez na década de 1960. O que
encontraram foi uma encosta que estava coberta com os restos de sílex. Mas presumiram que o
local não tinha significado arqueológico especial. Então, há cerca de 10 anos, arqueólogos alemães
começaram a escavar aqui. O que encontraram deixou-os estupefatos. Porque debaixo dos seus
pés, estavam estruturas colossais, círculos de pedra construídos com enormes megálitos em forma
de T, o sítio é enorme. Pelo menos 20 círculos de pedra permaneciam soterrados, contendo
centenas de pilares. Na Grã-Bretanha, Stonehenge foi construído há 4. 500 anos. Mas este local é
quase três vezes mais antigo. Data de cerca de 12 mil anos atrás, no tempo em que as pessoas
deixaram de pintar em cavernas. É bastante óbvio que Göbekli Tepe era uma espécie de centro de
rituais, um lugar de encontro nas montanhas com um grande poder religioso para as pessoas que
o criaram. Então, como é que isto ajuda a explicar o que aconteceu à nossa capacidade de criar
imagens? Bem, a melhor altura para ver isso é à noite. Porque é aquilo que existe nestes pilares
que é essencial para a nossa história. Não são apenas megálitos, grandes pedras. Estão decorados,
cobertos com relevos de dezenas de animais selvagens. Vemos isso melhor à noite, à luz de uma
simples chama. Tal como os seus criadores outrora as viram. Leões... grous... javalis... raposas. Há
12 mil anos, na mesma época em que as imagens eram abandonadas nas cavernas da Europa,
aqui, numa encosta da Turquia, elas capturaram por completo a imaginação das pessoas. Significa
que as imagens nunca foram um extra opcional. Assim que os humanos descobriram como as
criar, não mais pararam. Ficaram gravadas na mente humana. Mas este local pode conter um
segredo ainda maior, porque, extraordinariamente, parece revelar que foram as imagens que
criaram o mundo em que vivemos hoje. Tudo se resume ao imenso esforço que está por detrás
destas imagens. Num dos lados da colina, os arqueólogos descobriram uma área que foi usada
como pedreira. Foi daqui que os enormes pilares que dominavam Göbekli Tepe, foram cortados
do leito de pedra calcária. Aqui está um pilar inacabado. Esta é a parte alongada da cabeça e aqui
ele estreita-se para o veio. Por alguma razão que nunca viremos a saber, ele foi abandonado
enquanto ainda estava incompleto no seu leito rochoso. E aqui, fica o espaço onde outro pilar foi
extraído com sucesso. É realmente impressionante pensar que estas pedras foram cortadas da
rocha e esculpidas com imagens usando apenas ferramentas de pedra, o metal não existia. Mas
igualmente impressionante é o seu tamanho. Cada um deles tem cerca de 6 metros de
comprimento e pesa cerca de 50 toneladas. Isso significa que seriam necessárias cerca de 500
pessoas só para os deslocar até ao topo da colina. Até a própria colina foi feita pelo Homem. Mas
o mais importante acerca deste enorme esforço é o efeito que tinha sobre a sociedade que
construiu Göbekli Tepe. Há 12 mil anos, centenas de pessoas viajavam longas distâncias para
trabalhar e prestar culto aqui. E todas tinham de comer. Naquela altura, as pessoas por todo o
mundo levavam uma vida de caçadores-recolectores, caçando animais selvagens, recolhendo
plantas selvagens. Este modo de vida tinha sustentado com sucesso pequenos grupos de pessoas
desde que os humanos começaram a evoluir. No entanto, hoje alimentamos um enorme número
de pessoas através da agricultura. Cultivamos colheitas e criamos animais domesticados. A
agricultura é a pedra angular do nosso mundo moderno. Os arqueólogos sempre se questionaram
o que nos fez desistir da nossa existência de caçadores-recolectores. O que causou a revolução
agrícola, a maior mudança na história humana? Göbekli Tepe levou-os a refletir, porque foi nesta
área que a agricultura começou pela primeira vez, e aconteceu na mesma altura em que este local
estava a ser construído. Será que foi a necessidade de alimentar todas as pessoas que construíam
Göbekli Tepe e aí prestavam culto, que levou as pessoas a começarem a cultivar? Há algumas
provas convincentes. Recentemente, os cientistas tentaram descobrir de onde veio o nosso trigo
moderno. Começaram por analisar a estirpe de trigo cultivado que entra na nossa comida e
extraíram o seu ADN. Fizeram o mesmo a várias variedades de trigo selvagem. Depois
compararam a sua constituição genética. E o que descobriram foi que o parente selvagem mais
próximo do nosso trigo cultivado cresce naquelas montanhas além, as Karacadag, a cerca de 32 km
de Göbekli Tepe. A teoria é que o trigo selvagem foi trazido das montanhas e cultivado aqui para
alimentar os milhares de pessoas que frequentavam o local. Eis-nos chegados à grande conclusão:
as imagens tornaram-se tão poderosas na mente dos seres humanos, que promoveram a maior
transformação na história da Humanidade. Hoje, o nosso mundo moderno é dominado pelas
imagens de um modo que os nossos antepassados jamais poderiam imaginar. O que teriam eles
feito das imagens que se movem... que são emitidas por todo o globo e vistas por milhões? No
entanto, nada disto teria acontecido se as pessoas de há milhares de anos não tivessem tido uma
revelação a revelação de que com linhas, formas e cores, elas podiam capturar o mundo.

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