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- não sei se dá para dizer que stopes foi um “fracasso”; ela ficou no mercado ao
menos até 1935, com as três obras1. Era um livro só oferecido em listas de livrarias,
porém; não era comentado. /// Na verdade, “até 1935” é meio que um exagero. Houve o
lançamento em 1929, e o livro se tornou meio que esquecido, até 35. Não há muitas
propagandas nesse meio tempo. Talvez a reportagem da Gazeta (contra-concepção), de
1929, tenha a ver com o caso?
- 1938, Cruzeiro, Ed. 1, p. 75. Radiante maternidade era vendida ainda em 1938.
Nesta página também uma foto de mulher com o busto de fora2.
- 1952, Cruzeiro, Ed. 21 p. 9: 3 mulher, em 1952, diz que tem lido muito,
inclusive Marie Stopes, médica inglesa, “mas nem ela esclarece” sobre as cólicas.
- JB, 1938, ed. 148, p 254. Reportagem, certamente estrangeira, sobre um tal de
Rei Sobhuza, de “Swaziland”. O repórter vê um livro de Marie Stopes na biblioteca dele
(certamente o “Procriação racional”). “Ledes até Marie Stopes?” “Leio tudo”.
- 1937, Correio da Manhã, RJ, ed 12643 p. 255. Há um trecho de uns quatro
parágrafos (talvez mais) simplesmente copiado de Stopes. Coluna “Leituras de 1/2
minuto”, do suplemento “Correio feminino”
- 1929, A Gazeta SP, ed. 7003, p. 106; principal manchete: “Contra-concepção:
os livros da doutora Marie Stopes, de propaganda contra-concepcionista, são literatura
que deve ser banida das livrarias brasileiras - Cinco senhoras processadas nos Estados
Unidos pela divulgação de conselhos contra a concepção”. Tem foto das mulheres
ligadas à clínica da Stopes, entre elas Margaret Sanger. Segue-se a reportagem, longa.
Diz que o seu livro “Contra-concepção” (que eu não achei em nenhum lugar) era muito
popular no Brasil, “especialmente entre os livreiros das estradas de ferro”. É
interessante que o repórter dá uma pista de como esses livros eram vendidos: “Os
livreiros das estradas de ferro (...) aguçam a curiosidade dos passageiros distribuindo
antes, entre todos os que se encontram nos carros, um anúncio sobre o livro em
linguagem muito picante. Logo depois aparece o vendedor exibindo o livro em questão.
E a maioria dos viajantes adquire o livro”. O autor diz que as práticas de neo-

1
http://memoria.bn.br/DocReader/093718_01/23949
2
http://memoria.bn.br/DocReader/003581/21050
3
http://memoria.bn.br/DocReader/003581/79666
4
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/85353
5
http://memoria.bn.br/DocReader/089842_04/32096
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http://memoria.bn.br/DocReader/763900/29183
2

malthusianismo que o livro defende não são boas para o Brasil, pois o país tem um
território imenso que precisa ser povoado.
- 1932, O Radical, RJ, ed. 100, p. 91. Perguntada sobre qual livro colocaria nas
mãos das jovens, a escritora Rachel Prado disse: “Radiante maternidade”, para que a
mulher “tivesse a noção exata da mais alta finalidade da mulher”. [Opção 2: será que
Stopes não “voltou” justamente por conta da boa recepção de “radiante maternidade”?
Não é uma boa solução: radiante maternidade já estava à venda em 1929; v. no final da
página, à esquerda: A Noite, RJ, 1929 ed. 638, p. 42]
- Na resenha gigante do Estado de S. Paulo que é elogiosa ao livro 16/3/1929, p.
3, o resenhista (Plinio Barreto) recomenda o livro “aos maridos”, caso as mulheres
sejam, para eles um enigma (“os trazem tontos”). //// “A felicidade conjugal é,
principalmente, obra do marido. Salvo caso de anormalidades, a mulher é aquilo que o
marido a faz”. Interessante a interpretação dele do livro da Stopes. /// A resenha é longa,
aborrecida, e variante. Em certos momentos, louva a ciência; em outros, fala que o
melhor é o sentimento. E diz que, ao contrário do que acha a Sra. Stopes, o melhor é não
contar aos jovens sobre os “fatos da realidade”. Isso voltará a ser defendido por Velde e
Kahn: seriam fatos tão “pesados”, que isso acabaria com a fantasia dos jovens.
Especialmente dAs jovens: “Não me rendo a certas ousadias de ensino nem me
convenci ainda de que seja bem apressar a iniciação das meninas em todos os assuntos.
Se estivesse nas minhas mãos, elas só veriam “tiras” [??? não dá para ler; pode ser
“firas”] escolhidas e só leriam livros inocentes. Antes seco o espírito do que regado com
veneno...” Esse é o “espírito” de quem recebia os livros sexuais à época. /// O autor, um
pouco antes, fala que sempre preferiu mulher que não entendiam de fisiologia, e sim
aquelas de uma “cândida ignorância”.

1
http://memoria.bn.br/DocReader/830399/856
2
http://memoria.bn.br/DocReader/348970_02/26470
3

A trajetória de “Amor e Casamento” no Brasil é curiosa, e fui capaz apenas de


identificar-lhes os fatos sem ter conseguido, confesso, desvendar-lhes precisamente as
causas. O primeiro fato é que o livro foi publicado em 1929, pela Companhia Editora
Nacional, e alguns poucos jornais apresentaram resenhas positivas, a maioria delas
bastante curta, limitadas a algumas linhas. A mais exaustiva, e no geral laudatória, foi
publicada no Estado de S. Paulo e escrita pelo jornalista e político Plínio Barreto (1882-
1958), que no ano seguinte seria chefe do governo provisório após a Revolução de 30.
Alertando os leitores pelo atraso da publicação no Brasil, elogiava a precisão da
tradução, e o conteúdo do texto, ao qual recomendava fortemente “aos maridos”: afinal,
“a felicidade conjugal é, principalmente, obra do marido. Salvo caso de anormalidades,
a mulher é aquilo que o marido a faz”1. E é disso que obra tratava, da felicidade do
casamento, ensinando aos maridos que as mulheres também “têm nervos”, e não são
máquinas: talvez, a forma oblíqua de Barreto de se referir ao desejo feminino.
Esse é um bom resumo da primeira parte de seu longo, aborrecido e indeciso
texto (em certos momentos louva a ciência; em outros, a critica por esquecer os
“sentimentos”). Nos parágrafos finais surgem os poréns, que antecipam alguns dos
problemas que o conteúdo da obra de Stopes teria em confronto com as concepções de
gênero, e de papeis sexuais, no Brasil do período. Barreto, por exemplo, condenava o
estilo direto da Stopes, especialmente no que se referia à educação das mulheres sobre a
questão sexual. Era contrário à educação feminina em relação aos “fatos da realidade”,
argumentando, como ser feito posteriormente por autores como van de Velde e Fritz
Kahn, que tais conhecimentos seriam fardos tão “pesados”, que acabaria com a feliz
fantasia juvenil. Mais grave seria, ainda, para as moças: “Não me rendo a certas
ousadias de ensino nem me convenci ainda de que seja bem apressar a iniciação das
meninas em todos os assuntos. Se estivesse nas minhas mãos, elas só veriam ‘tiras’2
escolhidas e só leriam livros inocentes. Antes seco o espírito do que regado com
veneno...”3.
Após algumas poucas resenhas positivas, as obras de Stopes passaram a ser
vistas com maus olhos. Ainda em 1929, A Gazeta, de São Paulo, em manchete de

1
BARRETO, P. Notícias literárias. Amor e Casamento, de Marie Stopes. São Paulo: Estado de S. Paulo,
16/3/1929, p. 3.
2
O trecho não está claro, e não pode ser lido adequadamente.
3
Segundo Barreto, ele sempre preferira mulheres que não entendiam de fisiologia, e que apresentavam
uma “cândida ignorância”.
4

primeira página, conclamava exaltado: “os livros da doutora Marie Stopes, de


propaganda contra-concepcionista, são literatura que deve ser banida das livrarias
brasileiras” 1 . Nos Estados Unidos, a prisão de Margaret Sanger por conta de suas
atividades ligadas à difusão do conhecimento de técnicas anticoncepcionais, levou o
jornal a discutir os perigos que a literatura de Stopes trazia a um país como o Brasil.
Enquanto na Europa as práticas anticoncepcionais tinham razão de ser, pois se tratavam
com grandes populações em pequenos territórios, tais práticas de neo-malthusianismo
não seriam boas para o Brasil, país tem de imenso território que precisava ser povoado.
Resenhas favoráveis e ataques diretos, simultaneamente, marcaram o lançamento
da obra “Amor e Casamento” no Brasil, assim como de “Procriação Racional”, que logo
se seguiu. Ambos, de toda forma, escassos. As propagandas foram, também, muito
tímidas. O fato é que o livro aparece pouco anunciado, raramente discutido na imprensa,
quase nunca recomendado.
Há um hiato da presença dos livros de Stopes nas livrarias. Eles reapareceram
em meados da década de 1930, já inseridos na Biblioteca de Educação Sexual com o
selo da Civilização Brasileira. Em conjunto com “Procriação racional”, e “Radiante
maternidade”, os livros voltam a aparecer nas propagandas das livrarias. E ainda que até
1938 tenham se mantido em catálogo, os anúncios eram cada vez mais raros e
espaçados. Não há indícios, também, que tenha havido novas edições dessas obras, mas
a revenda daqueles exemplares que haviam sido editados em 1929.
O que parece ter acontecido, então: o lançamento em 1929, seguido por uma
recepção algo amarga, e vendas que, a princípio, parecem ter sido bastante limitadas. O
livro deixou de ser anunciado por alguns anos, até reaparecer nos catálogos das
livrarias, mais fortemente, em 1935, entrando em um novo período de decadência até
cerca de 1938 quando ainda podia ser encontrado anunciado em catálogos de livros
novos.
O que poderia explicar o fracasso de vendas, no Brasil, de uma obra que, na
Inglaterra se tornou bestseller por décadas? A diferença cultural entre a Europa e o
Brasil não é razão suficiente: obras de tradições tão diferentes quanto a do holandês van
de Velde ou do suíço Fritz Kahn, foram sucesso no mercado nacional; no caso de Velde,
ainda, tratou-se de obra contemporânea, no Brasil, ao livro de Stopes.

1
http://memoria.bn.br/DocReader/763900/29183
5

Isso será visto com mais profundidade a seguir, quando for discutido o
significado do conteúdo da obra. Mas se pode dizer que havia uma dissociação entre o
conteúdo socialmente aceitável em relação às questões sexuais, e aquele proposto por
Marie Stopes; em busca de uma modernização do casamento, a sociedade de elite
brasileira parecia disposta a realizar algumas mudanças no relacionamento entre homens
e mulheres, mas se tratava de mudanças limitadas, e em aspectos específicos. E o livro
de Stopes ultrapassava, ao que parece, o tolerável.
Sem dúvida, um sucesso um pouco melhor foi obtido por sua obra “Procriação
racional”, lançada também em 1929. Tratava-se de um livro que, apesar do tema
controverso – a discussão de métodos anticoncepcionais – não os apresentava sob uma
nítida crítica dos papeis de gênero, como era o caso de “Amor e casamento”. Era um
guia prático, bastante objetivo e acessível, a respeito das vantagens e desvantagens dos
vários métodos anticoncepcionais conhecidos no período.
Parte de seu sucesso se devia à linguagem direta utilizada na obra, algo inédito
para livros destinados ao público em geral. Um repórter de A Gazeta, de São Paulo,
testemunhou como o livro era comercializado por livreiros mambembes:

Os livreiros das estradas de ferro (...) aguçam a curiosidade dos passageiros


distribuindo antes, entre todos os que se encontram nos carros, um anúncio
sobre o livro em linguagem muito picante. Logo depois aparece o vendedor
exibindo o livro em questão. E a maioria dos viajantes adquire o livro 1.
O trecho é interessante porque apresenta um pequeno instantâneo de formas
alternativas de comercialização de livros no Brasil do período. Não se tratavam,
portanto, de obras apenas disponíveis em sisudas livrarias nas cidades. De toda forma, e
ainda que importante, não se pode creditar a esses vendedores o pequeno sucesso de
“Procriação racional”. Sua acolhida, um pouco melhor que recebera “Amor e
casamento”, estava em seu conteúdo. O tema poderia ser controverso, mas não o
suficiente para ser considerado um atentado ao status quo. Era controverso, mas não
confrontador.
“Amor e casamento” foi, vários sentidos, uma obra única. Seu conteúdo era
absolutamente diverso do que existira até então, e do que vai existir, pelo menos nas três
décadas seguintes após seu lançamento. Analisar o seu conteúdo nos dará uma pista ao
silêncio ao qual, em sua maior parte, os leitores condenaram a obra de Stopes.

1
http://memoria.bn.br/DocReader/763900/29183 1929, A Gazeta SP, ed. 7003, p. 10.
6

1.1.1 “Amor e casamento”, de Marie Stopes: uma crítica aos papeis sociais
de gênero
Simple, direct and scientific language is necessary, though it may surprise
those who are accustomed only to the hazy vagueness which has led to so
much misapprehension of the truth.
Marie Stopes
Marie Stopes tinha como primeiro objetivo de seu livro aumentar o número de
lares felizes tornando “mais intensa a ventura do estado conjugal e [mostrando] como se
pode evitar o sofrimento dos consortes”; afinal, estava nos casais “a única base bem
sólida para uma nação moderna” 1. Visando a satisfação erótica tanto de mulheres como
de homens, Stopes acreditava atingir um dos pilares fundamentais do casamento que
era, até então, negligenciado. O livro é, assim, dirigido explicitamente aos homens
“recém-casados e aos moços que se vão casar por amor”2. Por que especificamente aos
moços? Porque, em sua ignorância, afirmava Stopes, deixavam de perceber a
importância que o ato sexual desempenhava também para suas mulheres; algo que não
faziam por maldade, mas simplesmente por que ninguém lhes havia ensinado sobre o
tema.
Sem conseguir antecipar o próprio sucesso que o livro alcançaria entre o público,
a própria Stopes considerava sua obra um complemento a outras que entendia serem
mais completas nas discussões sobre temas ligados à questão sexual; especialmente a de
Auguste Forel, que Stopes insistentemente referencia. Mas ela tinha consciência de
apresentar diferenciais importantes: especialmente, seu ponto de vista feminino sobre a
questão sexual, algo absolutamente inédito em relação à literatura do período.
O argumento de Marie Stopes é simples, sucinto, mas fundado no princípio
revolucionário da necessidade sexual feminina: para ela, homens e mulheres não
possuíam diferentes níveis de desejo sexual. Ou seja, não seria verdade que a mulher
tivesse menos desejos sexuais que os homens; mas, sim, que os desejos sexuais delas
flutuavam ao longo do mês, diferentemente do que ocorria em relação aos homens que
manteriam, durante toda sua vida adulta, praticamente um mesmo nível de desejo

1
STOPES, p. 11-12.
2
STOPES, p. 6.
7

sexual1. Tal situação seria decorrente da natureza própria dos corpos; portanto, algo
biológico, e que não poderia ser modificado.
Boa parte da medicina europeia vitoriana defendia que a mulher não possuía
desejos sexuais, que sua frigidez era inata, e que a prática do ato sexual era, para ela,
uma abnegação, uma entrega altruísta em benefício da manutenção do matrimônio. A
sexologia que surge a partir de meados do século XIX começa a contestar essa ideia;
começa a contestar, entenda-se bem. Permanecia a ideia comum de que

na mulher normal, especialmente nas mais altas classes sociais, o instinto


sexual não é inato e sim adquirido. Se for inato o despertar-se espontâneo será
uma anormalidade. Se as mulheres, antes de casar, não conhecem este instinto,
o ficarão ignorando no decurso de toda a vida, se não se azar ensejo de o
conhecerem2.
Opiniões semelhantes irão se popularizar, e serão republicadas como verdade
científica, pelos manuais sexuais durante as primeiras décadas do século XX. Era uma
concepção que tinha suas vantagens para a manutenção do status quo. Em primeiro
lugar, “salvava” a moral feminina: assim, a sociedade concebia que o desejo sexual de
uma mulher normal só despertaria, efetivamente, no casamento; seria um instinto
fundado no sentimento do amor, dirigido a seu único objeto natural de desejo (o
marido), e abrigado pela autoridade da instituição matrimonial. Tratava-se, assim, de
um desejo devidamente contido. Em segundo lugar, essa concepção auxiliava a
manutenção das diferenças sociais de gênero entre homens e mulheres, em algo que foi
exaustivamente explorado pelos autores de manuais sexuais, como van de Velde e Fritz
Kahn: o homem experiente é o mestre da mulher, ignorante em desejos. É ele que, com
toda responsabilidade e cuidados, guia a sua esposa, a partir de um longo, mas frutífero
caminho, na descoberta dos prazeres sexuais, aos quais ela teria virtual e idealmente
ignorado por praticamente toda sua vida3. Daí a desmedida importância dada à noite de

1
“No comum, dos homens o desejo, mesmo sendo energicamente reprimido, apenas está dormitando; está
sempre presente, prestes a despertar à mais leve provocação e às vezes com insistência tão espontânea que
requer uma contínua repressão consciente” STOPES, p. 73.
2
WINDSCHEID, ?? Zentralblatt für Gynäkologie YYYY ACHAR? Apud STOPES, p. 57. YYYY
3
O nível de desejo sexual feminino variava conforme os autores: alguns acreditavam que, no momento do
casamento, era inexiste; outros, que era apenas pequeno, bem menor ao do marido. Ao longo do século
XX vai sendo reconhecido, socialmente, a realidade dos desejos sexuais femininos. Como bem o mostrará
o desabafo de Stopes logo a seguir – bem como, aliás, sua obra como um todo – a existência do desejo
sexual feminino estava longe de ser ignorada, mesmo por cientistas. Não fora, porém, socialmente
reconhecida, por não concordar com as expectativas do público leitor, bem como de outros profissionais
ligados aos estudos das questões sexuais.
8

núpcias e os cuidados adicionais dos manuais para o que o homem conduzisse, com
toda delicadeza, o defloramento1.
Posicionamentos esses que, segundo Stopes, eram “ridículos absurdos que se
cobrem com o rótulo de ciência”2; e a autora conclui, de maneira bastante direta: “os
homens (aliás, muito numerosos) que se queixam da falta de ardor de suas boas
mulheres, são em geral a causa exclusiva desse fato” 3 . Era uma absoluta bobagem,
afirmava, crer que as mulheres não possuíam instinto sexual. Uma bobagem que se
perpetuava porque, simplesmente, não havia estudos rigorosos sobre o desejo feminino,
ficando os especialistas satisfeitos com comprovações anedóticas de seus próprios
preconceitos.
Para Stopes, se havia algo de adquirido, e não inato, em todas essas ideias, era
justamente o inverso: o constante, permanente e incansável esforço para tornar o desejo
sexual feminino em algo vergonhoso e repreensível. Inato era o desejo; adquirida era a
sua ausência:

Todavia, não se pode negar que toda a educação das meninas, que tão
abundantemente consiste em ocultar-lhes s atos essenciais da procriação – que
o ensino repisado de que os instintos atávicos são baixos e vergonhosos – e
também que as condições sociais colocando muitas mulheres na posição de
dependentes do marido não só pecuniariamente mas até nas vibrações de seu
ser físico, tenderam a atrofiar os ingênitos impulsos sexuais nas mulheres,
ocultando e desviando de seu fim natural o que ficou remanescente 4.
O que homens percebiam como “ausência natural de desejo” seria, na verdade,
uma simples disjunção de naturezas: o marido, em permanente desejo sexual,
procurando sua esposa, que poderia ou não estar disposta, ou desejosa, da prática do
sexo. Tal disjunção levava a uma série de problemas conjugais, embora mais
particularmente os de ordem sexual: era bastante comum, afirmava Stopes, que as
mulheres não se sentissem sexualmente realizadas em seus casamentos, pois as relações
sexuais eram, muitas vezes, praticadas sem que elas apresentassem qualquer vontade ou
desejo; neste caso, acabavam por se submeter ao interesse do companheiro,
participando, de maneira desinteressada, e apenas por altruísmo, de muitos dos atos
sexuais conjugais. A constante falta de ardor, afirmava, acabava por desinteressá-la do

1
Pontos que serão vistos na análise das obras de Velde e Kahn, nos itens seguintes. Stopes reconhecia
que a mulher desenvolvia seus desejos sexuais mais fortemente por conta do casamento; mas seu
argumento é exatamente o oposto daqueles outros autores. Tendo sido adormecido à força, no casamento
tinha condições de ser redescoberto.
2
STOPES, p. 57.
3
STOPES, p. 59.
4
STOPES, p. 58.
9

ato sexual: algo que tendia a ser muito recorrente, particularmente em um período em
que praticamente negava à esposa o direito de rejeitar os avanços do marido. “Não
sendo [o desejo feminino] igual ao do homem, este propendeu a ignorá-lo ou a violentá-
lo, constrangendo-a (...) quer pela força física, quer pela força, mais poderosa ainda, ‘da
autoridade divina’ e das tradições sociais, a satisfazer-lhe os desejos”1. Deve-se lembrar
que, por um lado, a sociedade tomava como obrigação conjugal a constante disposição
do corpo da esposa; ou seja, ela não possuía apoio social, mesmo dentro de um
relacionamento a dois, para exigir mudanças comportamentais do marido,
especialmente aquelas sexuais2. Pelo menos até os anos 1970, não se acreditava existir a
prática de estupro de um marido sobre sua esposa3. “Do modo como são as coisas”,
complementava Stopes, bastante ciente do caráter social que tomava o desejo sexual, “é
impossível satisfazer-se as necessidades das pessoas dos dois sexos. Um deve ser
sacrificado. E, para a sociedade, é melhor que a vítima seja a mulher”4.
Ao longo do tempo, afirmava Stopes, este tipo de disjunção acabaria acarretando
uma dupla frustração: do marido, que não encontrava na esposa uma parceira
entusiasmada em participar dos atos sexuais conjugais; e da esposa que, aos poucos, ia
perdendo o interesse sexual como um todo, devido à grande quantidade de momentos
em que acabava praticando o sexo pelas exigências dos deveres conjugais. Ocorreria,
assim, a morte sexual do casamento, com grandes implicações para o matrimônio como
um todo.

GRÁFICO P. 65

1
STOPES, p. 74.
2
Van de Velde, como veremos no próximo item, mostrou-se profundamente indignado com a sugestão de
Stopes de que o homem deveria ajustar seu desejo sexual ao da mulher. Isso violaria a “tradição”,
afirmou; seu argumento se apoiava inclusive nas epístolas de São Paulo.
3
Nota YYYY.
4
STOPES, p. 74.
10

Como funcionaria o organismo feminino em relação ao desejo sexual, de acordo


com as concepções de Stopes? Funcionaria sob o mês lunar, algo “tão evidente que não
1
[poderia] passar despercebido” , estabelecendo uma periodicidade notável no
organismo feminino. Algo que, como destaca, modificava-se conforme o indivíduo,
além de ser influenciado pelas condições modernas de existência às quais as mulheres
eram submetidas.
O gráfico, apresentado em seu livro, e que representa as variações do desejo
feminino, é acompanhado de sua explicação:

As ondulações de desejo surgem com regularidade notável de modo que se


notam dois “paroxismos” em cada mês lunar de vinte e oito dias. Um aparece
durante os dois ou três dias imediatamente antes da menstruação e o outro
depois; mas após o fim do período menstrual a linha forma aproximadamente
uma depressão que abrange cerca de oito ou nove dias. Depois deste espaço de
tempo sobrevém nova crise que dura dois ou três dias – sendo até aí cerca de
quatorze dias ou metade do mês lunar. A altura e o número das ondulações de
cada crise dependem da robustez da mulher e do seu estado de saúde 2.
Era a primeira formulação conhecida a respeito de uma característica orgânica
que seria intensamente debatida a partir do final do século XX: a de que os picos de
desejo sexual feminino coincidiriam com a ovulação, logo antes da menstruação.
Tais dados teriam sido, segundo ela, resultado de suas próprias observações; e
que seriam também comprovados por médicos, inclusive ginecologistas. Uma das cartas
que, no início do livro, dão aval à qualidade e moralidade da obra3 é de uma médica,
“Miss Jessie Murray”4 que, além de garantir a importância das sugestões presentes no
livro, acreditava que correspondiam à sua experiência profissional:

A dra. Stopes faz-nos algumas importantíssimas sugestões biológicas que não


devem ser levianamente desdenhadas. Observações ulteriores tornam-se
necessárias para confirmar ou refutar sua teoria sobre o normal ciclo sexual

1
STOPES, p. 62. O itálico é de Stopes.
2
STOPES, p. 66.
3
Prática bastante comum em livros de divulgação científica ligados à sexualidade no final do século XIX
e início do XX. Eram cartas de religiosos, médicos, cientistas diversos, que garantiam ao leitor que a
leitura da obra era tanto moral quanto cientificamente relevantes. O médico e sexólogo italiano Paolo
Mantegazza chegou a publicar cartas de sua própria mãe, que teria lido a obra e garantido sua decência.
YYYY CITAR LIVRO DO MANTEGAZZA Q TEM ISSO.
4
Trata-se de Jessie Margaret Murray, fundadora da primeira clínica britânica para atendimento público
em terapia psicanalítica e para treinamento em psicanálise. Manteve uma relação profissional com Marie
Stopes, participou ativamente no movimento sufragista britânico, e esteve envolvida em pesquisas para a
British Society for the Study of Sex Psychology. VALENTINE, E. R. “A brilliant and many-sided
personality”: Jessie Margaret Murray, founder of the Medico-Psychological Clinic. J Hist Behav Sci.
Estados Unidos. 2009 Primavera; 45(2): 145-61. Disponível em
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19360892 >. Acesso em 23 de abril de 2016.
11

das mulheres, mas as minhas observações pessoais tende, certamente a


confirmá-la1.
Nada ganhavam os homens, segundo Stopes, em forçar suas esposas a relações
sexuais indesejáveis a elas. E sendo aqueles que tinham um permanente desejo sexual,
caberia aos maridos o controle de seu próprio corpo, de modo a que se adequassem às
flutuações características do corpo feminino. E isso seria feito de duas formas: durante o
mês, aguardando os momentos em que ela estivesse disposta; e durante o ato,
controlando o momento da ejaculação.
Stopes faz, em seu livro, um grande elogio ao valor do controle dos instintos, e
cita vários autores que louvam a superioridade dos homens que se tornam mestres de
seus desejos e vontades. Para ela, a abstinência, desde que não exagerada, significava
um grande ganho de vitalidade para o homem. Com isso ela queria argumentar que não
era apenas as mulheres que ganhavam com uma melhor economia das relações sexuais,
mas também os homens, que passariam a ter um organismo ainda mais saudável.
Isso significava, em primeiro lugar, uma mudança na atitude masculina em todo
seu papel sexual dentro do matrimônio. Um de seus objetivos passava a ser o de
conhecer os momentos do mês em que sua esposa estaria mais disposta à atividade
sexual, e respeitá-los. Para isso, deveria aprender a sublimar os desejos, por cerca de
duas semanas no mês, direcionando-o a outras atividades intelectuais.

A suprema lei, para os maridos, é esta: “lembrem-se de que antes de cada


coabitação carnal, devem como que cortejar amorosamente a mulher e
‘conquistá-la’; e de que a união só deve efetuar-se quando a mulher a desejar
também e estiver fisicamente bem disposta”2.
Stopes faz questão de detalhar que essa disposição irá produzir na mulher uma
série de efeitos orgânicos que propiciam o ato sexual; e que, ao contrário, o tornam mais
difícil, e mesmo doloroso, quando é praticado sem o devido estímulo ou interesse.
Estabelecido o desejo, torna-se responsabilidade do homem controlar o próprio
organismo para que, ambos, alcancem o orgasmo simultâneo3. Essa discussão envolve
um aspecto que pode passar despercebido à primeira vista: a existência de uma relação
entre o tempo do ato sexual, e o significado social deste ato.

1
STOPES, p. 11
2
STOPES, p. 84.
3
“Esta coincidência do orgasmo é extremamente importante” STOPES, p. 94. Tratava-se de uma crença
importante do período: o único orgasmo significativo e saudável seria aquele simultâneo. Será mais
detalhado quando for discutido os trabalhos de van de Velde e Kahn.
12

Quando se tornaram crescentes as críticas ao modelo vitoriano de compreensão


do desejo sexual feminino, o estímulo ao prazer da mulher se deparou com uma questão
bastante prática: os homens, desacostumados a se preocuparem com o prazer delas,
mediam o tempo normal do ato sexual apenas a partir de seus próprios parâmetros, e
que eram bastante curtos. A duração do ato sexual, assim, era exclusivamente
determinada pelo orgasmo masculino, e isso era um reflexo da diferença social de
gêneros. Como afirmou Stopes, “Não haverá talvez exagero em afirmar-se que 70 a
80% das mulheres casadas pertencentes à classe média de nosso país são privadas de
sentir a plenitude do orgasmo pela excessiva rapidez com que este vem ao marido”1.
Com a exigência social do orgasmo feminino, os homens foram obrigados a
estender o tempo do ato sexual, de modo que abrigasse, também, a satisfação feminina.
Neste aspecto, a defesa do orgasmo simultâneo se tornou, ao menos, um referencial para
que o ato sexual fosse, pelo menos no nível mais básico das sensações, igualitário. Não
apenas Stopes, mas praticamente todos os autores de manuais sexuais passaram a
criticar o egoísmo masculino, e insistentemente recomendavam a controlar o próprio
corpo de modo a aguardar o aumento da excitação da esposa: “[a mulher] necessita de
dez a vinte minutos para atingir à crise de prazer, ao passo que ao homem bastam, com
frequência, dois ou três minutos”2
Outro aspecto do ato sexual que é reflexo da diferença social de gênero está nas
próprias posições consideradas adequadas ao ato sexual.

Contou-me uma mulher que a esmagava e lhe oprimia a respiração do peso do


marido, de tal modo que, depois de cada ato conjugal, levava horas para tornar
a seu estado ordinário; e que a princípio ele se recusava a escolher qualquer
outra posição, considerando ser essa a única normal 3.
E conclui: “cada casal deve preferir a posição que for mais cômoda” 4 . O
importante, afirmava, era evitar a monotonia: “tanto mais numerosas posições de
equilíbrio descobrirem, tanto maior o gozo sentido”5. Tais concepções não eram apenas
revolucionárias em comparação com o que existia antes do livro de Stopes; é, também,
em comparação com o que virá depois; e, mesmo, muito depois. A moralidade,
travestida de ciência, divulgada nos manuais sexuais, estabelecia claramente quais

1
STOPES, p. 93.
2
STOPES, p. 94.
3
STOPES, p. 90-1.
4
STOPES, p. 91.
5
STOPES, p. 91.
13

seriam as posições sexuais aceitas ou vetadas, quais eram moralmente adequadas, ou


exclusivas dos animais, dos brutos, ou dos selvagens; a mulher sobre o homem seria
inadequado, dizia Velde, pois infringia a estrutura social e causava desconforto; com a
mulher de costas para o marido, dirá Kahn, é próprio das bestas, e a mulher não pode ser
tratada como objeto sexual1. Será necessário mais de meio século para que manuais
sexuais comecem a ser divulgados sem poréns desta ordem, sem limitações
moralizantes.
Na verdade, praticamente não há julgamentos morais em Stopes. Segundo
acreditava, tudo se resumia nas seguintes palavras: “o amor não deva causar dano ao ser
amado”2. Não eram pressupostos religiosos ou morais que orientavam seus conselhos,
mas os conselhos da ciência de seu tempo (ou, quando a “ciência” se recusava a estudar
algum tópico, os conselhos partiam a despeito da ciência de seu tempo, mas em
concordância com suas próprias experiências junto às mulheres). Isso significava, no
caso de Stopes, uma visão eugênica do ato sexual e da reprodução humana, fundadas em
uma clara visão de raças.
A busca pelo constante ajuste entre marido e esposa deveria ser feito com
cuidado, respeitando-se os desejos de ambos. E não havia outra solução. A mulher,
como relembra Stopes, não pode experimentar o homem antes do sexo, para identificar
possíveis desacordos sexuais. Desta forma, conselhos dados tão comumente por
homens, como Forel, de que “o homem e a mulher deviam conhecer-se mutuamente a
respeito de seu temperamento sexual” 3 , ainda que interessantes em princípio, eram
impossíveis de serem realizados na prática.
As sugestões de Marie Stopes eram absolutamente contrárias à situação social
dos gêneros na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Ela afirmava a
existência de um desejo sexual natural nas mulheres, recomendava quaisquer posições
sexuais que fossem do acordo do casal, advertia aos homens a que respeitassem os
tempos específicos do organismo feminino e, maior das controvérsias, apresentava uma
crítica contundente ao comportamento sexual masculino. Ela não apenas sugeria
mudanças, como o farão outros autores depois dela. Sua abordagem era profundamente
diversa do modelo tradicional do relacionamento sexual conjugal, em que o poder de

1
Nos próximos itens, será visto como essas concepções estavam de acordo às ideias sociais e sexuais
desses autores, como um todo.
2
STOPES, p. 93.
3
Apud STOPES, p. 98.
14

decisão do momento do coito, sob a lei do dever conjugal, estava inteiramente nas mãos
do homem. Para ela, era necessário um acordo conjunto, para que ambos, com igual
poder de decisão, explorassem melhor seus próprios desejos, e praticassem livremente
os atos sexuais.
Duas conclusões parciais dessa análise do livro de Stopes: 1. fica claro, a partir
de seu texto, que era sim possível pensar os desejos e atos sexuais de uma forma
totalmente diversa do modelo tradicional que se cristalizaria com autores como van de
Velde e Fritz Kahn. Marie Stopes vai ser sempre o exemplo explícito de que o
argumento “era assim que eles pensavam naquele tempo” é apenas relativamente
correto; era assim que se escolheu pensar, naquele tempo. 2. Será justamente pelo
confronto direto com as ideias sobre casamento, gênero e atos sexuais que o livro de
Stopes foi um relativo fracasso de vendas no mercado nacional.
Não há dúvida de que a Civilização Brasileira adquiriu os direitos da obra em
vista da expressiva venda de mais de meio milhão de cópias no Reino Unido 1. Parecia
uma aposta certeira. Porém, não foi o que ocorreu no Brasil: enquanto seu manual
prático, “Procriação Racional”, que explicava diferentes métodos contraceptivos, foi
recebido com mais carinho pelos leitores brasileiros, “Amor e Casamento” foi, em
poucos anos, retirado das prateleiras2. Não houve novas reedições. O que essas escassas
vendas revelam, são a parte de um diálogo: o público nacional deixava claro, por meio
da rejeição à obra, que as ideias de Stopes estavam em desacordo com o que a sociedade
local compreendia a respeito de sexo e sociedade.
Todos os manuais sexuais são generificados de alguma forma. De todos,
provavelmente o de Stopes o é mais explicitamente. Ela deixa claro que pretende
ensinar aos homens “o outro lado”, ou seja, a opinião e posição das mulheres, para além
dos discursos científicos que estavam, segundo ela, repletos de preconceitos e
equívocos. Os demais manuais sexuais que serão analisados nessa tese serão também
generificados; com o grande porém de que pretendem a neutralidade; e, o que acredito
ser mais deletério em relação aos objetivos que procuram, acreditam serem neutros.

1
YYYY Nota. Peguei da Wiki. Married Love.
2
O oposto exato do que ocorrera nos mercados inglês e estadunidense. Cf. GEPPERT, C. T. Divine sex,
happy marriage, regenerated nation: Marie Stopes’s marital manual Married Love and the making of a
best-seller, 1918-1955. Journal of the History of Sexuality, Vol. 8, No. 3 (Jan., 1998), pp. 389-433.
15

1.2 Dados biográficos de Stopes que peguei dos artigos sobre ela

De todos os autores que serão estudados nesta tese, Marie Stopes é a única que
pode ser classificada efetivamente como cientista, além de ser a única que fez efetivas
contribuições à ciência. Também é a única que transpôs (ou melhor, ignorou),
efetivamente, a barreira entre teoria e prática, pois democratizou seu conhecimento para
além de suas obras em sua Mother’s Clinic1 instalada em Holloway, um bairro operário
em Londres.
=
Stopes já estava escrevendo seu livro em 1915, embora tenha encontrado
inesperadas dificuldades para publicá-lo, o que só foi conseguido, na Inglaterra, em
1918, com uma pequena tiragem de duas mil cópias.
=
No prefácio de sua obra, Stopes revelou que uma de suas razões para a
publicação de Amor e Casamento havia sido, justamente, o fracasso de seu
relacionamento 2 : tendo se casado em 1911 com o também botânico Ruggle Gates,
Stopes já contava com 31 anos de idade, mas era virtualmente ignorante das questões
sexuais. Sem saber por que, afinal, não engravidava, resolveu pesquisar, na biblioteca,
todos os livros que encontrara que tratava das questões sexuais, tendo descoberto,
apenas então, que seu casamento não fora consumado. Por conta disso, conseguiu a
anulação em 1916 3 . Segundo a própria Stopes, era ainda virgem quando escreveu
Married Love1.

1
Segundo Stopes, em oito anos mais de dez mil mulheres haviam recebido treinamento no uso de
anticoncepcionais; em 1937, esse número já seria de 26 mil mulheres. Stopes é conhecida por sua extensa
defesa dos princípios eugênicos e de melhoria da raça, tanto que o mote de sua clínica era “Maternidade
feliz e intencional: uma luz segura em nossa escuridão racial”; segundo Cohen, porém, a prioridade dos
atendimentos na clínica de Stopes estava na melhoria da saúde individual das mulheres, e não na ideia de
superioridade da “raça”. Cf. COHEN, D. “Private lives in public spaces: Marie Stopes, the mothers’
clinics and the practice of contraception”, Estados Unidos. History Workshop Journal 35 [1993]: 95-116.
2
“Quando me casei a primeira vez, paguei tão terrível tributo pela minha ignorância sexual, que julguei
necessário por ao serviço da humanidade uma experiência adquirida por esse elevado preço (...); espero,
por isso, que continue a esclarecer a outros que se vejam rodeados de trevas, livrando-os de sofrimentos
desnecessários”. STOPES, p. 16-7.
3
HOLTZMAN, E. “The pursuit of Married Love: women’s attitudes toward sexuality and marriage in
Great Britain, 1918-1939,” Estados Unidos. Journal of Social History 16 (1982): 39-51. Esta é, porém, a
narrativa “oficial”, apresentada pela própria Stopes. Segundo a historiadora June Rose, é possível que
tenha sido criada pela própria Stopes, que agiu ativamente, durante toda sua vida, de modo a ter controle
sobre como eventos de sua seriam publicamente percebidos. A documentação existente sobre sua época
de casada com Ruggle Gates (inclusive cartas) parece indicar que sua suposta ingenuidade não atingia o
16

=
Lembrar que o livro, ao tentar descrever os detalhes de como o homem e a
mulher deviam organizar seus desejos sexuais, era um livro sobre como o casal deveria
aproveitar o prazer sexual. Isso eu tinha esquecido de escrever. / Importância do ato
sexual para a mulher, e de sua satisfação no casamento.
=
Stopes, assim, faz parte de um conjunto de autores que ajudou a modificar o
papel do sexo dentro do casamento, incentivando a busca pelo prazer erótico e,
principalmente, a inserção da mulher nesse prazer. O erotismo conjugal, alertava, seria
algo que o casal deveria buscar conjuntamente, e de maneira independente da
procriação.
==
Ao que se deve o sucesso da obra de Stopes? E quais temas, efetivamente,
despertaram interesse do público britânico? Enquanto tais respostas são difíceis de
serem encontradas para outros autores de manuais sexuais, há importantes pistas sobre
como o público leitor foi impactado por “Amor e Casamento”. Após sua publicação,
leitoras e leitores se sentiram impelidos a escrever a Stopes, pedindo conselhos e
esclarecimento de suas dúvidas. Em 1929, Stopes reuniu cerca de 180 destas cartas e
publicou “Mother England”: em sua maioria, escritas por mulheres classe trabalhadora2,
solicitavam conselhos sobre como realizar o controle de natalidade, mesmo que o tema
não ocupasse senão duas páginas da primeira edição do livro. Posteriormente, por conta
da demanda, o tema foi grandemente ampliado nas edições seguintes.
Assim, ainda que tenha sido escrita tendo os jovens homens em mente, as
mulheres parecem ter sido as leitoras preferenciais de Stopes; e, dos temas trabalhados
em seu livro, a questão do controle da natalidade se sobressaía. Foi por conta desta
resposta de suas leitoras que Stopes publicou, em primeiro lugar, “Procriação racional”
(“Wise parenthood”, no original) e, a seguir, “Radiante maternidade”3, ampliando ainda
mais o tema. Chegará, posteriormente, a escrever um livro sobre tema dirigido à

nível afirmado por ela. Cf. ROSE, J. Marie Stopes and the sexual revolution. Londres: Faber and Faber,
1992.
1
CHOW, K. Popular sexual knowledges and women’s agency in 1920s England: Marie Stopes’s
“Married Love” and E. M. Hull’s “The Sheik”. Estados Unidos. Feminist Review, No. 63, Negotiations
and Resistances (Autumn, 1999), pp. 64-87.
2
O objetivo social na seleção de cartas feita por Stopes era o de demonstrar para a classe média inglesa
que o problema sexual da classe trabalhadora era significativo.
3
No Brasil, publicado em 1929, sem reedições.
17

comunidade médica, “Concraception”: este último bastante controverso, não pelos


temas que trabalhava, mas por ser uma obra de medicina escrita por alguém que não era
médica.
“Amor e Casamento” se apresentava, assim, como uma obra que tratava de
temas até então praticamente secretos, para um conjunto de mulheres que, vivendo um
período de transição, desejavam conhecer e participar, mais ativamente, da vida sexual
dos novos modelos de casamento. Essa era, pelo menos, a interpretação da própria
Marie Stopes sobre o sucesso de seu livro; escrevendo em 1935, afirma:

Embora meu livro Married Love tenha sido publicado há apenas dezesseis
anos (...), a tradição vitoriana era ainda tão prevalecente que as ideias
principais do livro caíram sobre a sociedade inglesa como uma bomba. Seu
tema principal, explosivamente contagioso – o de que a mulher, tal como o
homem, apresentava a mesma reação fisiológica, uma recíproca necessidade
de prazer e de benefício a partir da união sexual no casamento, distinto do
exercício das funções maternas – fez com que os maridos vitorianos
engasgassem1.
Uma nova temática que era acompanhada por novidades de forma: era um livro
bastante explícito, com uma econômica quantidade de metáforas para se referir às partes
do corpo ou ao ato sexual; sem desconsiderar, contudo, a importância do sentimento
amoroso no casamento. Além disso, era de leitura bastante fácil e direta, com muitos
exemplos e, em geral, bastante acessível. E, mais do que tudo, era um conhecimento
atualizado. Tome todas estas características, e compare com um dos principais
concorrentes, à época em que foi lançado: “A Obra Prima de Aristóteles”.
Tanto os trechos que tratavam de métodos anticoncepcionais, quanto a
preocupação da obra com a harmonização do desejo sexual de homens e mulheres
tinham um fundo em comum: a novidade da presença do desejo sexual feminino dentro
do casamento, e a necessidade de que os homens se adequassem a essa realidade.
===
O ato sexual adequado, para Stopes, era bastante claro e específico: tratava-se do
ato sexual conjugal, heterossexual, sem quais “perversões”, quaisquer que fossem.
Afirmou, certa vez, que a simpatia de Havelock Ellis por comportamentos desviantes a
havia deixado “chocada e suja por três meses”2. Considerando-se, ainda, que seu livro

1
STOPES, M. Marriage in my time. Londres: Rich & Cowan, 1935. p. 40-49.
2
CHOW, K. Popular sexual knowledges and women’s agency in 1920s England: Marie Stopes’s
“Married Love” and E. M. Hull’s “The Sheik”. Estados Unidos. Feminist Review, No. 63, Negotiations
and Resistances (Outono, 1999), p. 82.
18

era dirigido para a classe média e alta da Inglaterra, pode-se afirmar que sua visão de
ato sexual tinha muito de adequação às visões sociais de seu tempo1.

1
O que explica sua aceitação social. Considerando-se, como se faz nessa tese, que a recepção pública a
uma obra literária faz parte de um diálogo com a sociedade, e o sucesso de vendas indica sintonia de
ideias entre autor e leitores, pode-se concluir que a obra de Stopes atendia a uma demanda social, dentro
das expectativas e limites de seu tempo. Por isso, críticas como a de Sheila Jeffreys de que a visão de
sexo promovida por Stopes, além de excludente, ia de encontro às necessidades do feminismo inglês,
recai em dois erros: o primeiro, mais óbvio, do anacronismo, pois Jeffreys condena severamente Stopes
por não ser uma mulher de São Francisco dos anos 1970; segundo, pelo óbvio motivo de que, mesmo que
pensássemos numa ficcional neo-Stopes-inclusiva, seu livro certamente não alcançaria o público que
alcançou, não teria o impacto que teve, e provavelmente jamais seria conhecida de forma que pudesse ser
congratulada por ser exatamente aquilo que pessoas que escreveriam mais de meio século depois
esperavam que ela fosse. Cf. JEFFREYS, S. The spinster and her enemies: feminism and sexuality, 1880-
1930. Londres: Pandora Press, 1985. pp. 115-21.

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