Professional Documents
Culture Documents
—
BRANQUIDADE
Identidade branca e m u l ti c u lt u r a l i s m o
branquidade
Garamond
U N I V E R S I T Á R I A j
OKTHOMI5TOPOJ
ARtO-IRASIliltOS
Revisão da Técnica
Fernando Rosa Ribeiro
Revisão
Mônica Machado
Editoração Eletrônica
Luiz Oliveira
Capa
Estúdio Garamond
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pelo Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Univer
sidade Cândido Mendes. E vetada a reprodução, por qualquer meio, mecânico, eletrônico, xerográfico, etc..
sem a permissão prévia por escrito dos editores, de parte ou da totalidade do conteúdo deste impresso.
Sumário
Introdução: O poder duradouro da branquidade:
“um problema a solucionar”
Vron Ware.........................................................................................7
Sobre autobiografia e teoria: uma introdução
David R. Roediger........................................................................... 41
“Pessoas brancas livres” na República, 1790-1840
Matthew Frye Jacobson...................................................................... 63
“Branquidade”: seu lugar na historiografia
da raça e da classe nos Estados Unidos
Reter Rachleff..................................................................................... 97
7
A miragem de uma
branquidade não-marcada
R uth F rankenberg
307
308
não apenas um ser que sofre, mas também um sujeito pensante. Como
assinala Roediger, esta última percepção é crucial e, sem ela, como o
autor deixa implícito, a empatia é, quando muito, parcial.20 No entan
to, no que Roediger continua, é como se os antolhos voltassem a cair
sobre seus próprios olhos. Quem é o grupo designado como “nós”
em sua frase seguinte, quando ele observa que “pouca coisa nos
prepara para ver essa escrava como alguém que olha, que estuda os
compradores”? Nesse ponto, parece que se contempla um público
leitor do texto de Roediger que é inteiramente branco. De outro modo,
não se ousaria fazer uma generalização sobre o despreparo do públi
co para a inteligência e a consciência da mulher escravizada.
Devemos situar o parágrafo de Roediger num conjunto de con
venções narrativas cujas longas histórias vão muito além dos Estados
Unidos.21 A representação do Outro oprimido ou ferido como sendo,
em primeiro lugar, um corpo sofredor, e em segundo, uma mente
que vê, é central na história da arregimentação de Eus ostensivamen
te mais sábios, mais conscientes, mais civilizados e mais brancos.
Essa visão parte dos registros feitos por funcionários e missionários
coloniais diante das piras fúnebres dos satis cometidos na índia22 e
percorre todo o caminho até os anúncios de organizações de carida
de voltadas para o Terceiro Mundo, nos atuais jornais de domingo.
Nesse esquema, o Outro prejudicado é também retirado do contexto,
tipificado ou tornado genérico, em vez de lhe ser permitido preservar
sua particularidade.23Afinal, a mulher escravizada do texto de Roediger
não caiu de Marte no tablado do leilão, mas ali chegou após uma
viagem pavorosa pelo Atlântico, ou, quem sabe, depois de nascer e
passar seus primeiros anos de vida em uma ou mais plantations. Na
verdade, pode ter sido levada às lágrimas e tremido de frio, medo ou
raiva num determinado dia. Ou poderia encontrar-se num estado de
quase catatonia. Ou qualquer outra coisa. Não posso e não devo, é
claro, especular sobre o estado de espírito e os sentimentos de ne
nhuma mulher específica. Mas quero assinalar que a representação
oferecida por Roediger provém de (e contribui para) um certo tipo de
316
Notas
* Agradeço a Lata Mani por seu comentário criterioso e perspicaz sobre este
ensaio, assim como aos integrantes do grupo editorial de T he M a k in g a n d
U nm aking o f W hiteness, por sua leitura e seus comentários cuidadosos.
1. Paul Gilroy. There A in 'l N o B lack in the Union Ja ck, Londres, Hutchinson,
1987, p. 38.
2. Id e m .
3. Ruth Frankenberg, W hite Women, Race M atters: The S o cia l C o n stru ctio n o f
W hiteness, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1993, p. 1 1 e passim .
4. Becky Thompson e Sangeeta Tyagi, “Storytelling as Social Conscience: The
Power of Autobiography", in Thompson e Tyagi (orgs.). iMames We Call Home:
A u to b io g ra p h y on R acial Id en tity , Nova York. Routledge, 1996, p. ix.
5. Nesse ponto, a autora joga com os termos aw ful (terrível, apavorante etc.) e
aw e-fu l (assombroso, que infunde terror ou admiração reverente). (N. da T.)
6. Frankenberg, W hite W omen, p. 11-18; 236-237.
7. Há aqui um jogo de palavras entre tried (comprovado, testado) e tired (esgota
do, cansado, extenuado, aborrecido). (N. da T.)
8. Ruth Frankenberg. “Introduction: Local Whitenesses, Localizing Whiteness”,
in Frankenberg (org.). D isp la cin g W hiteness: E ssays in S o cia l a n d C ultural
C riticism , Durham. Duke University Press, 1997, p. 11-15; Ruth Frankenberg
e Lata Mani, “Crosscurrents, Crosstalk: Race, ‘Postcoloniality’ and the Politics
of Location”. C ultural Studies 7 n° 2 (maio de 1993), p. 292-310.
9. Uma das primeiras e influentes articulações dessa idéia encontra-se no artigo
de Richard Dyer, “White”, Screen 29, n° 4 (outono de 1988), p. 44-64.
10. Quanto ao conceito de “projeto racial”, ver Michael Omi e Howard Winant,
R a cia l F orm ation in the U nited States: From the 1960s to the 1990s, Nova
York, Routledge, 1994. p. 55-56.
I 1. Ver, por exemplo. Theodore W. Allen, The Invention o f the W hite Race, vol.
1. R a c ia l O p p r e ss io n a n d S o c ia l C o n tr o l, Londres, Verso, 1994; Tomás
335
25. Maxine Hong Kingston. The W oman W arrior, Nova York. Vintage, 1976; e
C hina M en. Nova York, Ballantine, 1981.
25. Louise Erdrich, Lave M edicine, edição revista e ampliada, Nova York, Harper
Collins, 1993, p. 124-125. [Perde-se na tradução o equívoco possibilitado pela
homonímia de whale e wail na frase “A história da grande baleia branca” (The
sto ry o f lhe great white whale) e “A história do grande lamento branco” (The
sto ry o f the great white wail), tal como a frase é escutada pelo personagem da
mãe do narrador. (N. da T.)]
27. Frankenberg, W hite Women, p. 198.
28. Loving v. Virgínia, US 338, p. 1, 1967.
29. Brown v. B oard o f E ducation, US 347, p. 483. 1954.
30. Além dos textos citados nas notas precedentes, ver, entre outros. Michelle
Fine et al. (orgs.). O ff W hite: R ea d in g s on Race, P ow er a n d S o ciety, Nova
York. Routledge. 1997; Matt Wray e Annalee Newitz (orgs.). W hite Trasli:
R ace a n d C lass in A m erica, Nova York, Routledge, 1997; John Hartigan Jr.,
R a c ia l S itu a tio n s: C la ss P re d ic a m e n ts o f W h ite n ess in D e tr o it, Princeton,
Princeton University Press, 1999: Grace Elizabcth Hale, M aking W h ite n ess:
The C ullure o f S egregation in the South, 1890-1940, Nova York, Pantheon.
1998).
31. Além dos textos citados nas notas acima, ver, entre outros, Bob Blauner, Black
Lives, W hite L ives: Three D eca d es o f Race R ela tio n s in A m erica . Berkeley,
University of Califórnia Press, 1989: Toni Morrison. P la y in g in the D ark:
W hiteness and the L iterary Im agination. Nova York. Vintage, 1993: David T.
Wellman, P ortraits o f W hite Racism. 2a ed., Cambridge. Cambridge University
Press, 1993.
32. Michael Apple. “Foreword”. in Joe L. Kincheloe et al. (orgs.), W hite R eign:
Learning a n d D eploying W hiteness in Am erica. Nova York, St. Martin's, 1999,
p. xi.
33. Ver. por exemplo, os comentários de Ruth Frankenberg e Matt Wray no
programa da KCSM-TV, A H ig h er E d u ca tio n . no segmento sobre “Estudos
sobre os Brancos”, 6 de maio de 1998.
34. Frankenberg, W hite Women, p. 33.
35. Annalee Newitz e Matt Wray em A H igher Education. “White Studies”. KCSM-
TV. 6 de maio de 1998.
36. Frankenberg, “ Introduction: Local W hitenesses” , p. 1-2; Frankenberg,
“Whiteness and Americanness”, p. 62.
37. Frankenberg. “Introduction: Local Whitenesses”. p. 18-20.
38. O artigo “Anti-Gay Use of Research Angers Boston Doctor” [Uso Anti-Gay de
Pesquisa Enfurece Médico de Boston], publicado no San F rancisco C lironicle
de 4 de agosto de 1998. afirma: “Criticando uma campanha nacional de propa
ganda anti-gay que se baseou numa pesquisa sua, um médico de Boston acusou
337
Introdução
Pequeno rincão de Deus, o romance sulista escrito por Erskine
Caldwell em 1933, começa com uma cena arquetípica da fronteira
americana: um grupo patético de homens, que são a “ralé branca”,
escava ouro. Com o desdobrar da narrativa, descobrimos que eles
escavam ouro há mais de quinze anos, sem nenhum sucesso. Essa
triste família de personagens, liderada por Ty Ty Walden, comica-
mente grotesco, é feita de lavradores pobres e decaídos, cujo esfor
ço inútil de mineração destrói o pouco que lhes resta de sua terra.
Eles rasgaram o terreno em volta de seu povoamento arruinado na
Geórgia e escavaram a poeira, a areia e o barro como toupeiras ce
gas, em busca do precioso e fugidio metal dourado.
Entretanto, logo somos informados de que, segundo a sabedoria
popular africano-americana do local, há um segredo simples para se
encontrar ouro: é preciso ter “um adivinho”. E o que afirma um homem
obeso e afeminado, chamado Pluto, o plutocrata local da cidadezinha,
que diz a Ty Ty que conseguir um adivinho implica capturar um albino -
339