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E
O DIREITO PRESSUPOSTO
ISBN fl57M2Dflbfl-X
iMALHEIROS
iEDITORES
o direito posto
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direito pressuposto
7a edição
revista e ampliada
E ro s R o b erto G rau
O DIREITO POSTO
E O
DIREITO PRESSUPOSTO
7a edição,
revista e ampliada
= =MALHE1R0S
i V s EDITORES
O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O
© E ros R oberto G rau
ISBN: 978-85-7420-868-8
Composição
Virtual Laser Editoração Eletrônica Ltda.
Capa
Vânia Lúcia Amato
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
03-2008
“Para que possamos servir-nos sem peri
go de uma teoria é necessário que, anterior
mente, tenhamos perdido completamente a
f é nela. ”
(v o n I h e r in g )
SUMÁRIO
N o ta à 7a e d iç ã o ................................................................ 11
N o ta à 5® e d iç ã o .................... ........................................... 12
N o ta à 4a e d iç ã o ..................................... .......................... 12
N o ta à 3a e d iç ã o ................................................................ 12
N ota e x p lic a tiv a ............................... .............................. 13
P r ó lo g o .................................... .......................................... 15
VI — A C R ÍTIC A DO D IR E IT O E O (iD IR E IT O
A L T E R N A T IV O ” .... .....'........................................... 148
V in — CRÍTICA
\ E DEFESA DA LE G A LID A D E ....;.... 168
I X — CRÍTICA DA DISCRICÍONARIEDADE
E RESTAURAÇÃO DA LEGALIDADE
1. Posição da questão ............ ........................................ 191
SUMÁRIO 9
X — C R ÍT IC A DA “SEPARAÇ ÃO DO S P O D Ê R E S ” :
A S FU N Ç Õ ES E S T A T A IS , OS R E G U LA M E N TO S
E A LE G A L ID A D E NO D IR E IT O B R A S IL E IR O,
A S “LE IS -M E D ID A ”
1. A “separação” dos poderes......................................... 225
2. Poder e função..............................................................236
3. Norma ju ríd ic a .......................... ..................................238
4. Função normativa e função legislativa........................ 240
5. O a leguiaiuemos e a. iegaiida.de no direi lo brasileiro ... 244
6 . As leis-medida ..............................................................254
X I — O E S TA D O , A L IB E R D A D E E O D IR E IT O
A D M IN IS T R A T IV O .................................................. 256
X IV — NO TA SOBRE A MORALIDADE
E O DIR EITO MODERNO ....................................... 288
3. A funçao de ju lg a r .......................................................294
4. Os cânones fundamentais da ética judicial ......... . 297
N O T A À 4 a E D IÇ Ã O
NOTA À E D IÇ Ã O
2. O direito e os direitos
3. Impõe-se distinguirmos o discurso que trata do direito
no plano das abstrações daquele que dele cogita como rea-
lidade(s) concreta(s). É que não existe, concretamente, o di
reito-, apenas existem, concretamente, os direitos.
O direito, como adiante demonstrarei, não é uma simples
representação da realidade social, externa a ela, mas, sim,
um nível funcional do todo social. Assim, enquanto nível da
20 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
2. V.g., Karl Renner, Gíí ístltuti dei dtrítto privato e la loro funzione
giurídica, trad. de Comclta Mittendorfer, Bologna, II Mulino, 1981.
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 29
1. Nota introdutória
1. Há anos cheguei à conclusão, nos meus estudos, de
que é equivocada a descrição, extraída à leitura de Marx, do
direito como mero reflexo da economia. A explicação do fenô
meno jurídico — sempre me pareceu assim — havia de ser
empreendida a partir da consideração das condições históri
cas da sociedade na qual ele se manifesta.
Essa explicação, desenvolvi-a, para mim mesmo, median
te a adoção das noções de direito posto e de direito pressupos
to. Pretendi, ao assim explicá-lo, privilegiar a sua dimensão
axiológica sem aderir às construções de caráter metafísico
que marcam a noção de direito natural. Cogito, destarte, de
uma explicação histõrico-cultural, que apenas poderia ser
aproximada a um “direito natural histõrico-cultural”; se for
assim, não me oporei a recebê-lo, com a ressalva, contudo,
de que a idéia de direito pressuposto prescinde dele (uma con
cepção de direito natural é que terá se aproximado da concep
ção de direito pressuposto, não o inverso).
Pretendi encontrar o fundamento do direito posto na socie
dade que historicamente o pressupõe, o que me leva a tratar
44 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
2. Observe-se também, desde logo, que são os homens que fazem a his
tória, embora sob as premissas e condições postas pela própria história. Diz
Marx (1969/17): “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem
como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado”, Ainda que com Isso antecipando verificações que adiante serão
apontadas, é oportuna a transcrição, neste passo, de exposição de Jean-
Marie Vincent (1973/30-31): “Pour Cerronl, le renversement matériallste de
. la dialectique hégélienne opéré par Marx ne peut se comprendre comme une
inversion de signes: la matière à la plaee de l’esprit ou du concept. Le
monisme marxlste est selon lui exempt de tout aspect métaphysique ou
48 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
6. A in d a o direito posto
19. Diz ainda Duguit que não importa não existir a orga
nização que pode — deve — usar de coerção para garantir o
78 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
S. A pretexto de conclusão
26. O discernimento da existência material de um direito
pressuposto próprio a cada sociedade — direito pressuposto
que funciona como uma das linguagens sociais (direito pressu
posto = relação jurídica involucrada nas relações sociais) —
abre vias à compreensão mais ampla do fenômeno jurídico.
O povo, isso me parece irrefutável, tem plena consciência
da dimensão ju ríd ica das relações sociais como uma de suas
dimensões.
1. O “direito fo r m a l”
2. Cada juiz, ao tomar decisões sobre conflitos (= litígios,
em verdade), interpreta e aplica um determinado direito positi
vo — o direito positivo brasileiro, v.g.
Por isso devo explicitar o que, ao aludir a um "direito for
mal”, neste contexto tomo por “formal". A que atribuo a quali
ficação de “formal”? Ao direito positivo brasileiro, no caso, ou
ao modo de interpretação/aplicação do (desse) direito (Isto é,
às normas criadas pelo juiz)?
É necessário que se esclareça, a esta altura, que tomo a in
terpretação como atividade que se presta a transformar dis
posições (textos, enunciados) em normas; a interpretação é
meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições,
meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas
disposições (Zagrebelsky 1990/68 e ss. e Grau 1995/5-7,
1997a/55 e ss. e 1998/65 e ss.). Por isso, as normas resultam
da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposi
ções, não dizem nada — elas dizem o que os intérpretes dizem
que elas dizem. O Intérprete dotado de poder suficiente para
criar as normas, a partir delas construindo, em cada caso, a
norma de decisão, é o “intérprete autêntico”, no sentido confe
rido a essa expressão por Kelsen (1979/469 e ss.) — isto é,
fundamentalmente o juiz.
3. O “direito m oderno"
7. Quando faço alusão ao “direito moderno” estou a refe
rir um modelo de direito positivo, direito posto pelo Estado.
ÍOO O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
5. A ju s tiç a
11. Nessa moldura — e sendo tão sucinto quanto basta
— , louvo-me em Epicuro para, seguindo as indicações de
Paul Nizan (1991/151), afirmar ser incabível discutirmos a
"justiça” ou “injustiça” da norma produzida ou da decisão to
mada pelo juiz, visto que nem uma, nem outra (“justiça” ou
“injustiça”), existem em sU os sentidos, de uma e outra, são
assumidos exclusivamente quando se as relacione à seguran
ça (segurança social), tal como concebida, em determinado
momento histórico vivido por determinada sociedade.
Por isso mesmo é que, em rigor, a teoria do direito não é uma
teoria da justiça, porém, na dicção de Habermas (1992/241), uma
teoria da prestaçãojurisdicional e do discursojurídico.
106 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
6. A d u p la desestruturação do direito
9. Conclusão prospectiva
2. A teoria, d a regulação
10 . O discurso neoliberal postula o rompimento da con
cepção de Estado do bem-estar.
Esse discurso é projetado desde um quadro de transfor
mação que se opera na base econômica —- a revolução da
informática, da microeletrônica, das telecomunicações. Um
passo histórico foi consumado, e esse é um dado da realida
de. O capitalismo transforma-se ao tempo em que fracassam
as experiências do chamado “socialismo real” — e isso o “re
força”. Reestrutura-se a nível planetário, no advento de uma
poliarquia global,2 internacionalizada, globalizada.
ainda que — e não sejamos ingênuos supondo que isso não viesse
a ocorrer — os que a produzem tomem o Estado como seu aliado.
Apenas a exo-regulação estatal permitirá, em uma sociedade fun
dada em relações de intercâmbio, a transformação da guerra (lu
ta) em jogo (v. minha exposição sobre a luta, o jogo e o debate no
c a p itu lo sobre A crítica do direito).
' '
O direito moderno /direito form a l apresenta como uma de
suas peculiaridades a universalidade abstrata. Os seres con
cretos que dão sustentação a suas funções estão distribuí
dos em duas categorias uniformes: as pessoas e as coisas. Se,
de uma parte, no capitalismo tardio já se desuniformizam as
coisas (bens de produção, bens de consumo), a uniformidade
(universalidade abstrata) das pessoas — sujeitos de direito —
é mantida, na instância do direito, como pressuposto neces
sário do modo de produção capitalista.
A igualdade (perante a lei) e a universalidade das form as
jurídicas, arrematadas na sujeição de todos ao domínio da lei
(legalidade), é fundamental ã estruturação desse modo de
produção. Quanto à igualdade entre os homens — e ã sua li
berdade — , é uma conseqüência da necessidade de os traba
lhadores obterem seu sustento mediante o intercâmbio entre
o preço de sua força de trabalho e ò conjunto dos bens social
mente produzidos; a igualdade, assim, presta-se a permitir o
acesso dos trabalhadores ao fundo social de bens produzidos
“livremente”, em-“condições de igualdade”, através do inter
câmbio de sua força de trabalho.
A igualdade, desde a sua entronização no momento libe
ral, alcançava çoncreção exclusivamente no nível formal.
Cuidava-se de uma igualdade ã moda do porco de Orwell
(1951/114), no bojo da qual havia — como há — os “iguais” e
os “mais iguais" (“Ali animais are equal/But some animais
VII — NOTA SOBRE A IGUALDADE 163
1. Posição da questão
2. A doutrina brasileira
5 . A interpretação do direito 2
9. Observações conclusivas
meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam sub
metidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos
quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominan
tes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, as relações materiais concebidas como idéias; por
tanto, a expressão das relações que tomara uma classe a classe
dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos
que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas,
também consciência e, por isso, pensam; na medida em que do
minam como classe e determinam todo o âmbito de uma época
histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão e, conse
qüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensa
dores, como produtores de idéias; que regulem a produção e a dis
tribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por
isso mesmo, as idéias dominantes da época. Por exemplo, numa
época e num país em que a aristocracia e a burguesia disputam a
dominação e em que, portanto, a dominação está dividida, mos
tra-se como idéia dominante a doutrina da divisão dos poderes,
enunciada então como ‘lei eterna”’.
ces trois parties, une première est celle que délibere sur les affai-
res communes; une seconde est celle qui a rapport aux magtstra-
tures (c’est-à~dire quelles magistratures 11 dolt y avoir, à quelles
matières dolt s’éntendre leur autorité, et quel doit être leur mode
de recrutement), et une troislème est la partie qui rend la justice”.
Releia-se o seguinte trecho: “Quand ces parties sont en bon. état,
la Constitution est nécessalrement en bon état (...)”. Bon état signi
fica, no contexto da exposição arlstotélica, bem ordenadas (o senti
do de bon état pode ser encontrado na Ética a Nicômaco, na idéia de
composição, justa medida, virtude no valor médio). Aristóteles, creio
seja assim, está imediatamente atento às funções, e não aos pode
res do Estado.
A respeito de Bolinbroke, vide Schmitt [1982/187-188) e Tro-
per (1980/109-110).
2 . P od er e Ju n çã o
6. A s “ leis-medidci”
Cuida-se, aí, de leis apenas em sentido formai, leis que não são
norma jurídica dotada de generalidade e abstração; leis que não
constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por for
ça própria, autônoma (Alessi 1978/5). Vide Carl Schmitt (1971/XV1
e 106 e ss.), Larenz (1983/360), Canotilho (1991/829-832 e ss. e
1981/609-611 e 616-619) e Ataíde (1970/28-29).
A Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal não está referida
às leis-medida, A propósito, Hely Lopes Meirelles (1995/31) e Seabra
Fagundes (1979/261 e ss.).
1. Podemos situar o seu momento inicial no século XV, caso não quei
ramos remontar ao descobrimento da “Rota da seda". Desde aí — e após a
tomada de Constantlnopla pelos turcos, em 1453 — ela se desenrola, como
que levando tudo de roldão.
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO 271
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, pp, 303-404), em especial o seguinte
trecho: “Aufheben é semelhante à negação determinada que tem um resultado
positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que
ele e seu oposto sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao
item, ou à verdade do item suprassumido”.
3. Um último argumento de que se valem os que pretendem substituir
a racionalidade do direito moderno pelo subjetivismo da moralidade
repousa na alusão a uma ética pública. Como são muitas as morais e os
sistemas éticos aos quais nos podemos vincular - o que nos deixaria sem
rumo e sem padrões de comportamento recorrem à moralidade como
expressão dessa ética, pública. Mas essa moralidade pública não pode operar
como critério de juízos praticáveis no âmbito do direito, pois compromete a
segurança e certeza jurídicas, na medida em que, como observa José
Arthur Gianotti (“Moralidade pública e moralidade privada”, in Adauto
Moraes (org.), Êtica, p, 336), compreende um aprender a conviver com os
outros, um reconhecimento da unilateralidade do ponto vista de cada qual,
que não impõe conduta alguma. Anoto, por fim, a circunstância bizarra de
esse tipo de raciocínio ordinariamente coexistir com o sentimento de tédio e
cansaço que nossas elites, nos dias de hoje, nutrem em relação a sua
própria mediocridade.
X IV
N O T A S O B R E A M O R A L ID A D E
E O D IR E IT O M O D E R N O
2. A interpretação/aplicação do direito
4. Aqui se imporia, a fim de que possam ser explicitadas
algumas observações feitas linhas acima, breve exposição a
respeito da interpretação/aplicação do direito. Pretendendo não
ser repetitivo, remeto o leitor ao meu Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito,2 onde tratei dos seguintes
aspectos: (i) não se interpretam normas, senão textos nor
mativos - as normas resultam da interpretação; o significado da
norma ê produzido pelo intérprete; (ii) interpretamos para apli
car o direito, de modo que, ao interpretar os textos normativos,
interpretamos também os fatos do caso ao qual ele será aplicado
e a realidade; (iii) interpretação e aplicação não se realizam
autonomamente; (iv) a interpretação do direito é dotada de
caráter constitutivo, não meramente declaratório, pois.
Igualmente, cumpre, ainda, a esta altura, observarmos que
os juizes julgam segundo a ética do direito positivo. Do que
resulta claro o quanto inicialmente afirmei: aqui tratamos da
ética na atividade judicial; a ética judicial, enquanto ética do
direito {= ética da legalidade), compreende um outro tema.
s
3. A fu n çã o de ju lg a r
5. O ato de julgar é o ponto terminal de um processo de
compreensão que se desenrola como interpretação/aplicação
3. Cf. Martin Heidegger, El sery el tiempo, 2fl ed., 5a reimpr., pp. 21-22.
4. Cf. Ulrich Schroth, “Hermeneutica filosófica y jurídica”, In Arthur
Kaufmann e Winfried Hassemer (orgs.), El pensamiento jurídico contempo
râneo, p. 290.
5. Arthur Kaufmann, “Panorâmica histórica de los problemas de la
fllosolia dei derecho", in Arthur Kaufmann e Winfried Hassemer (orgs.), El
pensamiento jurídico contemporâneo, p. 130.
296 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
1. Jurisdição e arbitragem
2. O primeiro aspecto a considerar está em que a arbi
tragem não encerra jurisdição.1
Ao contrário, a arbitragem previne a jurisdição.
4. RTJ 68/382.
5. Parecer como consultor-geral da República no processo PR-11.210-
55, RDA 45/517.
6. Da Fazenda Pública em juízo, 2a ed., p. 284.
306 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
que fosse veraz, não importaria que os atos de uma das partes
no dinamismo da relação contratual, a Administração, dei
xassem de caracterizar “atos de gestão” e pudessem ser con
cebidos como “atos de soberania” .
Desejo dizer, com isso, que, embora a Administração dis
ponha, nesse dinamismo, de poderes que se tomam como
expressão de puissance publique (alteração unilateral da
relação, v.g.), essa relação não deixa de ser contratual. Pois é
certo que esses mesmos poderes são contemplados como
estipulações de ordem contratual, ainda que por imposição
legal. Isso negássemos e, por força, teríamos de admitir que
toda e qualquer limitação disposta em lei ao pleno exercício
da liberdade de contratar teria a virtude de sonegar aos
acordos de vontade celebrados sob a égide do chamado
dirigismo contratual o caráter de contratos. Não seriam con
tratos, destarte, mesmo os celebrados entre agentes priva
dos em um regime de controle de preços; e também não o
seriam aqueles cujas condições de validez dependem de
preceitos normativos ou atos administrativos externos ã
vontade das partes. Da mesma forma, contratos não seriam
aqueles dotados de cláusulas padronizadas por ato estatal,
dos quais fazem exemplo os contratos de loteamento, de
seguro, as convenções condominiais, inúmeras fórmulas
contratuais praticadas no mercado financeiro. Nesta última
hipótese, sem dúvida, efetivamente surgèm modelos contra
tuais inteiramente padronizados — tal como no caso de
contratos celebrados com o BNDES e com o extinto BNH.
3. O direito - o p o s to e o pressuposto
—e as transform ações
6. Devo, não obstante, prosseguir.
Inicialmente para dizer que o direito de que falamos é o
direito posto pelo Estado, que referimos, em seús modelos,14
como direito modemo, direito formal. Este que ensinamos na
universidade e praticamos nos tribunais.
O fenômeno jurídico abrange o posto e o pressuposto. Em
síntese,15 direi que o direito é uma instância, um nível da
realidade. Instância que nela se manifesta de forma imen
samente rica, na medida em que se opera, na estrutura social
global, uma contínua, constante e permanente interpene-
tração de instâncias. Daí - fazendo uso da quase infeliz
metáfora da base e da superestrutura -, direi que o direito está
e não está na base e, a um tempo só, está e não está na
superestrutura. Na base manifesta-se como direito pressu
posto; na superestrutura, como direito posto. Produto histó-
rico-cultural, em seu momento de pressuposição condiciona a
formulação do direito posto. E assim é ainda que, conco-
mitantemente, o direito posto Finde por conformar novas ma
nifestações do direito pressuposto.
Instância do social, linguagem que instrumentaliza uma
modalidade de comunicação entre os homens, ele não se
altera - ainda que alterações paradoxalmente nele não
cessem de ocorrer - ele não se altera, dizia, enquanto não
esgotadas inteiramente suas possibilidades. Vem daí que do
futuro do direito não se pode cogitar senão na medida em que
estejamos a cogitar do futuro do modo de produção social, na
sua totalidade.
S. O “não-lugar da soberania.”
9. Um traço marcante do direito moderno está em que ele
é posto pelo Estado, sendo dotado de validade no espaço do
seu (= dele, Estado) território. O Estado é soberano nesse
(seu) espaço. O território - diz Natalino Irti - “marca também a
extensão da política e do direito. No ‘dentro dos limites’ (...)
nascem as normas jurídicas”.18
Pois a primeira tendência a apontarmos está em um pro
cesso de desterritorialização da soberania. Já não apenas a
produção e o consumo tornam-se cosmopolitas, mediante a
exploração do mercado mundial, como se disse na entusiás
tica descrição do capitalismo feita em um manifesto de 1848.
Agora, é o poder político que se projeta para além do(s) terri-
tório(s), reproduzindo-se na mundialização da(s) soberania(s).
Não faço alusão, contudo, às soberanias, porém a uma
super-soberania, supranacional Aqui não se trata de afirmar
que as soberanias estatais excedem seus respectivos territó
rios, mas sim que a soberania avança sobre todos os terri
tórios. Algo antevisto por Kelsen em um texto de 1920: “Com a
superação do dogma da soberania dos Estados singulares
afirmar-se-á uma civitas maxima, um ordenamento de direito
internacional, ou, melhor, mundial, que será objetivo, inde
pendentemente de qualquer 'reconhecimento’, e superior aos
Estados singulares”.19
17. Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer - O poder soberano e a vida nua,
pp. 38 e 44.
18. iZ diritto nelVetà delia técnica, pp. 25-26.
19. Das Problem der Souverãnitãt und die Theorie des Võlkerrechts:
Béitrag zu einer Reinen Rechíslehre, reimpr. da 2a ed., § 65, p. 320 (tra
dução minha).
322 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
7. Um direito (= ordenamento)
sem “nom os da terra”?
15, Limito-me, nesta exposição, a considerar os desafios
instalados no quadro do pensamento sobre o direito. O Estado,
aqui, nos interessa imediatamente enquanto produtor do
direito positivo.
O que se passa no plano do direito interno*5é não mais que
tênue tendência - lembre-se que as super estruturas não se
alteram completamente enquanto não esgotadas inteiramen
te suas possibilidades. Evidentemente estou a aludir, aqui, ao
40. Por isso mesmo tenho insistido em que não existe o direito; existem
apenas, concretamente, os direitos (v. o capitulo I, itens 3 a 6, acima).
328 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO
9. A exceção
19. Não devo, no entanto, alongar-me. Cuido de pronto,
portanto, da segunda tendência que desejo apontar, referida
ã exceção.
Em outra ocasião42 anotei ser “realmente curioso que o
tema da exceção não tenha exercido fascínio sobre os nossos
juristas, o que há de ser atribuído ao prestígio que assumiu
entre nós, desde o século passado, o pensamento kelseniano.
Carl Schmitt, aliás, com indisfarçãvel ponta de ironia, obser
va ser natural que um neokantiano como Kelsen não saiba,
por definição, o que fazer com a situação excepcional”.
A conhecida afirmação de Carl Schmitt - soberano é quem
decide sobre o estado de exceção — exige detido cuidado em
relação ao que se deva entender como “estado de exceção” .
A exceção è o caso que não cabe no âmbito da norma
lidade abrangido pela norma geral - a norma geral deixaria de
IO. Contraponto
24. Parte do que acabei de afirmar linhas imediatamente
acima, no item 21, nos leva de volta ao quanto foi dito a
propósito da primeira tendência: a realidade estando em (=
sendo) movimento, tudo se movendo em transformação,
“nada mais se pode apontar em um escorço sobre o futuro do
direito senão aparentes tendências, ainda que e atê mesmo
contraditórias”.55 s
11 . Ainda a exceção
25. A exceção poderá, contudo, resvalar para a violência,
nela se cristalizando, de modo que o estado de natureza
exclua o nomos, qualquer nomos.
A anotação de Agamben58 é aterradora —e aqui jogo com
toda- a ambigüidade de palavra que pode derivar tanto de
terror, quanto de terra: “[o] que ocorreu e ainda está ocorrendo
sob os nossos olhos é que o espaço juridicamente vazio’ do
estado de exceção (...) irrompeu de seus confins espaço-
temporais e, esparramando-se para fora deles, tende a g o r a
(Honfleur, 18.12.2007-25.1.2008)
FAUSTO, Ruy. Marx ■ — Lógica epolítica, t. II. Sâo Paulo, Brasiliense, 1987.
FERRARI, Vincenzo. Funzione dei diritto. Roma, Laterza, 1987,
FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. 3a ed. Trad. de Ma
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FERRAZ JÜNIOR, Tércio Sampaio. “A relação meio/fim na teoria geral do di
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---------------Função social da Dogmática Jurídica. São Paulo, Ed, RT. 1978.
--------------- . Introdução ao estudo do direito. 2a ed. São Paulo, Atlas, 1994.
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.—-----:_____ "Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade”. Revis
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FERREIRA, Sérgio de Andréa. Direito administrativo didático. Rio de Janeiro,
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342 O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O
B IB L IO G R A F IA 345