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SOBRE ARQUEOASTRONOMIA
Fernando Coimbra*
INTRODUÇÃO
Alguns autores referem que os nuraghes da Sardenha são, de modo geral, orientados
astronomicamente em relação ao sol, mas a intenção de quem os construiu talvez fosse
simplesmente beneficiar de mais luz durante o dia. Daí estarem “orientados” para aquele
astro, tendo sido uma finalidade pragmática que presidiu à sua construção e não um alto
saber astronómico dos seus construtores, como alguns pretendem. Isto não invalida que haja
verdadeiramente alinhamentos intencionais mas, para se chegar a essa conclusão, é
necessário conhecer a cultura dos povos que habitaram os nuraghes e não fazer tábua rasa
dos ensinamentos arqueológicos como acontece com alguns arqueoastrónomos.
Entretanto, um dos campos onde os estudos de Arqueoastronomia poderão ser mais
proveitosos é a pesquisa dos fenómenos astronómicos transitórios passados como eclipses, a
passagem de cometas, meteoros e queda de meteoritos. Juan A. Belmonte refere que este tipo
de investigação, surpreendentemente, sempre ocupou um lugar secundário do seio da
astronomia cultural (BELMONTE AVILÉS, 1999). Na nossa opinião será precisamente esta
a área onde a Arqueoastronomia poderá contribuir de forma decisiva para o melhor
conhecimento das culturas do passado. De facto existe um manancial de dados e informações
dispersas sobre aquele tipo de fenómenos que não têm recebido a atenção quer de
arqueólogos, quer de astrónomos. Mas, como já referimos na nota 2, esta temática seria
pretexto para outro trabalho de investigação com uma extensão considerável. (4)
2 - ARQUEOLOGIA E ASTRONOMIA
Actualmente, cada vez mais astrónomos reconhecem que a Terra, ao longo da sua
história, tem sido bombardeada por cometas, pequenos asteróides, meteoritos e chuvas de
meteoros (NAPIER, s/d). Bill Napier, astrónomo do Armagh Observatory (Irlanda), afirma
que existiram épocas em que o céu apresentou “one or more visible, periodic comets,
associated with annual fireball storms of huge intensity (...). Such phenomena (...) surely had
a profound effect on the minds of early peoples. At a minimum, traces of this ancient sky
should be detectable in the artefacts and belief systems of the earliest cultures” (NAPIER,
1998: 31).
A última frase que transcrevemos deste autor aponta para um vasto campo de
trabalho, onde os arqueoastrónomos encontrarão recursos quase inesgotáveis e não se
perderão em alinhamentos cuja intencionalidade poucas vezes conseguirão provar. De facto,
os vestígios de este céu antigo de que fala Napier parecem realmente surgir em algumas
gravuras rupestres pré-históricas, representando cometas, meteoros e eclipses, que vão sendo
descobertas em número crescente por todo o Mundo. Um dos sítios mais fascinantes onde
surgem estes motivos é a chamada Toca do Cosmos (Baía, Brasil), uma gruta com
representações de sóis, possíveis cometas e eclipses (Fig2).
Outros exemplos interessantes podem ser vistos na arte rupestre de Mont Bego
(França), com insculturas do III milénio a.C. muito semelhantes a representações cometárias
publicadas em obras de astronomia do séc. XVI (BARALE, 2003: 122-123).
Para além disso, de acordo com o astrónomo britânico Clive Ruggles, as actividades
dos povos pré-históricos, entre as quais a arte, eram fortemente dependentes das suas
percepções do mundo, sendo expressas em sistemas de crenças e rituais onde os fenómenos
celestes eram uma parte integrante dessas mesmas percepções (RUGGLES e BURL, 1995).
Na realidade, a arte megalítica apresenta com frequência imagens de sóis e de crescentes
lunares, conforme referimos atrás.
Na década de 90 do séc. XX, uma equipa interdisciplinar de arqueólogos e
astrónomos estudou mais de trezentos dólmenes na Península Ibérica, de Norte a Sul,
concluindo que apenas 3% estavam orientados para o nascer do sol em qualquer época do
ano (BELMONTE AVILÉS, 1999). É necessário referir aqui que, ainda não há muito tempo,
existia o “mito arqueológico” que quase todos os túmulos megalíticos estavam voltados a
leste devido a rituais funerários. Este é outro exemplo de trabalho arqueoastronómico que se
torna importante para a investigação arqueológica.
Os estudos de Arqueoastronomia devem também considerar o trabalho de autores
clássicos como Heródoto, Plínio-o-Velho, Séneca e Apolónio de Myndus, entre outros. Por
exemplo, o primeiro descreve a tribo dos Atarantes (Líbia) que amaldiçoavam o sol mas
invocavam o céu pelas suas capacidades de produzir chuva. De facto, em terras quentes e
secas o sol pode ser encarado como um inimigo, provocando seca e destruindo a agricultura.
Ao contrário, em países frios e húmidos, o sol pode ser visto como um deus, aquecendo os
corpos e iluminando o dia (COIMBRA, no prelo2). Este exemplo demonstra que o culto
solar, outro “mito arqueológico”, não é tão universal como parece à primeira vista.
Para além das informações de textos antigos, a investigação etnográfica também
contribui com dados importantes para a Arqueoastronomia. É o que acontece com as
pesquisas realizadas no Oeste americano com descendentes de tribos indígenas como os
Pueblo, Hopi, Zuni e Navajo. Por exemplo, de acordo com Charles Loloma, um líder
religioso dos Hopi, (5) o motivo da espiral, que surge frequentemente na arte rupestre do
Sudoeste Americano, representa o movimento anual do sol (SOFAER e SINCLAIR, 1983).
Esta informação é extremamente importante, quer para a interpretação daquele símbolo, quer
para a análise do possível significado astronómico de alguns petróglifos semelhantes
existentes no Novo México. Na realidade, em Fajada Butte, uma elevação proeminente da
região de Chaco Canyon existe uma grande espiral que é atravessada por uma espécie de
“espada de luz” em determinadas épocas do ano. No solstício de Verão, essa “espada”
atravessa exactamente o centro da espiral, enquanto que no solstício de Inverno surgem duas
“espadas” que enquadram tangencialmente aquele símbolo (Fig.3). Para além disso, alguns
autores argumentam que este “calendário” marca também o meio-dia e ainda a pausa maior e
a pausa menor lunar, através de jogos de sombra e luz (IDEM, IBIDEM).
Fig.3 – Marcas da luz solar sobre uma espiral em Fajada Butte: à esquerda, equinócios;
ao centro, solstício de Verão; à direita, solstício de Inverno (Segundo WARD, 2002).
Existem opiniões diversas quanto à intencionalidade ou causalidade destes factos,
mas é necessário referir que a passagem do meio-dia (6) é reconhecidamente significativa na
cosmologia do povo Pueblo, sendo parte integrante de muitos mitos e cerimónias que
frequentemente envolvem marcas de luz e sombra conseguidas através de lajes verticais, da
localização das casas dos chefes, etc. Para além disso importa ter presente que os Pueblo
foram responsáveis por estradas elaboradas, sistemas de irrigação e uma arquitectura de
armazenamento que implicam grandes capacidades de planeamento, engenharia e
observação. Acrescente-se que diversos edifícios importantes desta cultura estão
sistematicamente orientados para o Norte com um erro de apenas 0,25 graus, facto que na
latitude de Fajada Butte permite calcular o meio-dia com um erro inferior a um minuto ao
longo de todo o ano (SOFAER e SINCLAIR, 1983). Esta precisão de cálculo torna
admissível a intencionalidade das “espadas de luz” sobre a espiral referida atrás.
Através deste exemplo pode-se compreender como é crucial entrecruzar informações
de carácter arqueológico, etnográfico e astronómico para se conseguir fazer
Arqueoastronomia com rigor científico e sem subjectividade. De facto, esta disciplina não se
pode basear apenas na observação de hipotéticas orientações astronómicas, como já
referimos, mas, deve-se preocupar, antes de tudo, em compreender bem o contexto cultural
dos sítios ou dos monumentos que se pretende estudar. Ora, isto só pode ser realizado com a
participação da arqueologia, que se torna indispensável, pois efectuar Arqueoastronomia sem
aquela ciência estará mais próximo da ficção do que da realidade.
O exemplo seguinte revela como o idealismo e o entusiasmo irreflectido de alguns
arqueoastrónomos pode levar a falsas interpretações:
Em Julho de 1054, uma supernova mais brilhante que Vénus apareceu no céu, sendo
visível por vinte e três dias e seiscentas e cinquenta noites e citada em crónicas diversas.
Durante cerca de quarenta anos, inúmeros investigadores consideraram certas pinturas
rupestres do Oeste dos Estados Unidos da América como sendo representações deste evento,
existindo um total de vinte exemplos. Entre estes, contam-se dois painéis com pinturas do
monumento de Lava Beds (Califórnia), que, em 1997, foram submetidos a uma datação
através de um acelerador espectométrico de massa, tendo sido demonstrado que eram alguns
séculos posteriores ao aparecimento da supernova (ARMITAGE et alli, 1997). Deste modo,
o estudo das pinturas de Lava Beds, apoiado num método de datação utilizado em
arqueologia, permitiu demonstrar que a sua associação com o evento astronómico de 1054 é
incorrecta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fig.4 – Pinturas rupestres dos índios Chumash interpretadas como representações de cometas
ou meteoros (Segundo WHIPPLE, 1985).
Este tipo de astros surge com grande importância na mitologia e nas crenças de vários
povos nativos do continente Norte-Americano. Por exemplo, os Chumash acreditavam que
um meteoro era a alma de uma pessoa a caminho da outra vida. Por outro lado, para os Pés
Negros, de Montana, tal evento era encarado como um mau presságio, um sinal que a doença
chegaria à tribo no Inverno seguinte ou que um grande chefe tinha morrido (KRONK, s/d).
As possíveis representações astronómicas em arte rupestre devem ser estudadas em
conjunto por especialistas desta área e por astrónomos ou astrofísicos, de modo a se retirar o
máximo de informação dessas imagens. Por exemplo, no abrigo calcolítico da Pala Pinta
(Carlão, Alijó) existem dois motivos que sugerem sóis, encontrando-se afastados um do outro
mas no mesmo alinhamento. Será que correspondem à posição do sol nos solstícios, tendo
assim um carácter de calendário? Só um estudo arqueoastronómico poderá responder a esta
questão, através de observações e medições diversas.
Curiosamente, no abrigo da Lapa dos Gaivões (Arronches), junto a uma figura
antropomórfica pintada a vermelho existem quatro filas de sete marcas individuais, como se
pretendesse representar o ciclo completo da lua com as suas quatro fases de sete dias cada,
aproximadamente (OLIVEIRA e SILVA, 2006).
O homem pré-histórico, tornado sedentário, começou a observar o fluxo do tempo na
natureza e conseguiu assim compreender as transformações cíclicas da paisagem. Surgiu
então a necessidade de efectuar marcações que estabelecessem as épocas apropriadas para os
trabalhos agrícolas, dando origem aos primeiros calendários que eram de carácter
eminentemente astral.
Num conceito de Arqueologia da Paisagem não se pode esquecer que o céu também é
paisagem. Este facto faz-nos lembrar uma palestra do nosso colega e amigo Giorgos
Dimitriadis, quando referiu que os arqueólogos começaram por olhar para o chão, mais tarde
passaram a observar em redor e recentemente dedicam-se a olhar para cima. (7)
Evidentemente, “olhar para o chão” corresponde à escavação arqueológica, “observar em
redor” marca o aparecimento da Arqueologia da Paisagem e “olhar para cima” refere-se ao
nascimento da Arqueoastronomia.
De facto, é importante olhar também para o céu, como paisagem que é, mas com os
pés bem assentes na terra e conjugando essa observação com todas as informações retiradas
do “chão” pela Arqueologia.
NOTAS
(1) Uma breve história da Arqueoastronomia pode ser vista em IWANISZEWSKI, 1994.
(3) Isto no caso de o ser humano não ter entretanto destruído o planeta.
(6) As marcas da luz solar sobre a espiral de Fajada Butte são obtidas precisamente ao meio-
dia, e não ao nascer ou ao pôr-do-sol como acontece em outras observações de carácter
arqueoastronómico.
(7) Palestra efectuada em 2006 no âmbito do II Rock Art Course, organizado pelo Helenic
Rock Art Center em Philippi, Grécia.
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