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DAS OLIMPÍADAS
NO BRASIL:
DIÁLOGOS E
OLHARES
1
organizadores
LIA CALABRE
EULA DANTAS TAVEIRA CABRAL
MAURÍCIO SIQUEIRA
VIVIAN FONSECA
presidente
marta de senna
diretor executivo
antonio herculano lopes
diretora do centro de pesquisa
joëlle rouchou
chefe do setor de pesquisa em políticas culturais
lia calabre
chefe do setor de editoração
benjamin albagli neto
CDD 796.480981
sumário
prefácio 7
lia calabre
apresentação 11
eula dantas taveira cabral
o registro de uma memória em movimento: 16
o desafio acerca da rio 2016
carla siqueira e vivian fonseca
pela memória da cidade esportiva: o rio de janeiro 21
e as competições esportivas internacionais
joão manuel casquinha malaia santos
esporte e modernidade: o caso do rio de janeiro 42
– uma abordagem panorâmica
victor andrade de melo e fabio de faria peres
política cultural, jogos olímpicos e os valores 54
da criatividade e da diversidade
alexandre barbalho
entre gaudí e o dragão chinês: 74
a experiência olímpica rio 2016
gilmar mascarenhas
sobre vaias: considerações acerca do jogo político 96
(political game) e da brincadeira política (political play)
viktor chagas
megaeventos esportivos, opinião pública e mídia: 115
um balanço da cobertura midiática e das pesquisas
quantitativas sobre os jogos olímpicos rio 2016
bernardo buarque, jimmy medeiros e luigi bisso
a museologia que não serve para a vida, não serve 139
para nada: o museu das remoções como potência criativa
e potência de resistência
mario chagas e diana bogado
resistência, pelo direito, história e memória 147
sandra maria teixeira
o impacto dos megaeventos e da militarização 165
na vida favelada
gizele de oliveira martins
esporte e modernidade: o caso do
rio de janeiro – uma abordagem panorâmica1
victor andrade de melo* e fabio de faria peres**
introdução
O intuito deste artigo é apresentar um breve panorama da relação entre a
conformação do fenômeno esportivo e a adesão ao ideário e imaginário de moder-
nidade na cidade do Rio de Janeiro. Dados os limites de espaço e a ocasião para o
qual foi produzida, certamente esta produção peca pela superficialidade, lacuna
que pode ser sanada com o acesso a outros estudos que já trataram os diversos
períodos abordados com maior profundidade. Pensamos, contudo, que o seu g
anho
esteja em ser um inventário de longa duração, algo que nem sempre é comum em
função das próprias características usuais das investigações históricas, em geral
mais recortadas temporalmente.
Do ponto de vista espacial, não teremos a pretensão de falar da realidade
brasileira. Nossa abordagem limita-se ao caso do Rio de Janeiro, que ocupa um
papel peculiar no país em função da sua condição de capitalidade durante muitos
anos: do Vice-Reinado (a partir de 1763), do Império Português (1808), do Reino
Unido de Brasil, Portugal e Algarves (1815), do Brasil monárquico independente
(1822) e da República (1889). Mesmo quando a sede do governo foi transferida
para Brasília, a cidade manteve (e em certo sentido ainda mantém) influência no
cenário nacional.
Essa condição foi responsável para que constantemente se estabelecesse
como um espaço protagonista de experiências de modernização, bem como caixa
de ressonância de modas e novos costumes para outras cidades, mesmo que essas
1 Este artigo foi originalmente publicado em livro sobre o esporte no cenário ibero-americano e
serviu de base para palestra proferida em evento organizado na Casa Rui Barbosa.
* Mestre (Unicamp) e doutor (Universidade Gama Filho) em Educação Física. Professor no Progra-
ma de Pós-Graduação em História Comparada e na Faculdade de Educação (graduação e pós-
-graduação) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
** Mestre e doutor em Saúde Pública pela Fiocruz. Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação
em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais.
victor andrade de melo e fabio de faria peres 43
tenham estabelecido outras relações com outras influências e não tenham apre-
endido linearmente o que vinha da capital. Da mesma forma, se o Rio de Janeiro
foi uma antena a captar aquilo que por seu porto desembarcava vindo especial-
mente do continente europeu, e depois dos Estados Unidos, também por lá se
promoveram releituras, desenvolveu-se uma cultura peculiar.
No caso do fenômeno esportivo, todavia, encontram-se muitas similarida-
des com o que se passou em outros cenários. A prática se desenvolveu em função
do desenvolvimento de uma cultura urbana, da conformação de uma pretensão à
civilidade e ao progresso, do forjar de um mercado de entretenimentos, da confi-
guração de novos hábitos, tudo isso de alguma forma relacionado a mudanças no
âmbito da economia e política.
Em todos os casos, no cenário da sociedade fluminense, pode-se dizer que
os diferentes fluxos de desenvolvimento do esporte estiveram relacionados às
distintas conformações da adesão à ideia de modernidade. Vamos aqui dividir
nossa abordagem em cinco momentos (que, embora guardem certa ordem crono-
lógica, se justapõem e se entrecruzam), elencando em cada um deles uma espe-
cificidade do objeto como exemplar das configurações.
Isso não significa que outras modalidades ou outras formas de compreen-
são não tenham se estruturado no mesmo momento. Apenas se tratou de uma
estratégia para, dentro dos curtos limites deste texto, dar a conhecer ao leitor ao
menos as linhas mestras no que tange a nosso tema.
síveis à importância das práticas corporais e, ao mesmo tempo, por uma profusão
da vida associativa e clubística.
A emergência e consolidação do futebol no Rio de Janeiro foram caudatá-
rias dessa ambiência. Embora os primeiros indícios da presença da modalidade
remontem ao quartel final do século XIX (que, aliás, ainda merecem ser melhor
investigados), a prática apenas se estruturou no século XX, deixando de ser algo
eventual e se tornando mais frequente na paisagem da cidade.
Em um primeiro momento, parte de seu desenvolvimento esteve ligado às
agremiações e aos clubes que contavam com a presença de ingleses e seus des-
cendentes. Esse é o caso, por exemplo, do Rio Cricket and Athletic Association, em
Niterói, e do Paissandu Cricket Clube – que acabaram entrando para a história
como as primeiras agremiações a promoverem jogos, em 1901, na cidade. Houve
também outros espaços onde a modalidade foi praticada, como na fábrica Bangu,
igualmente ligada à presença de ingleses, que posteriormente fundaram, em 1904,
The Bangu Athletic Club (depois Bangu Atlético Clube). O mesmo aconteceria com
os clubes cariocas de futebol, o Rio Futebol Clube e o Fluminense Football Club,
ambos fundados em 1902 por membros ligados às agremiações de críquete.
A partir desse momento, a criação de novos clubes se deu de forma acele-
rada, em muitos casos possuindo relações com outras antigas associações e so-
ciedades da cidade. No fim de 1904, já havia um número considerável de equipes:
além do Bangu Atlético Clube e dos times do Rio Cricket e do Paissandu, o America
Football Club (fundado por um grupo ligado ao Clube Atlético Fluminense, uma
agremiação importante na difusão e promoção de corridas a pé e de velocípedes),
o Football and Athletic Club e o Botafogo Football Club.
Em pouco tempo, ainda nas primeiras décadas do século XX, um grande
número de agremiações se espraiaria pelas diversas regiões da cidade, acompa-
nhando a infraestrutura urbana e, em especial, a malha ferroviária. Dezenas e
dezenas de clubes foram criados, inclusive em bairros considerados na época mais
afastados, como Méier, Irajá, Cascadura, Engenho de Dentro, Caju, Bonsucesso,
Jacarepaguá, Pavuna, entre outros. De fato, a prática se distanciava do que dese-
javam certos círculos e agremiações mais restritos, que a imaginavam associada
a certos valores de status e distinção. Aliás, vários indícios levam a colocar em
xeque a linearidade e mesmo o sentido da relação entre elite e o restante da po-
pulação no que se refere à introdução e difusão do futebol na cidade, sendo até
mesmo mais adequado pensá-las a partir de uma dinâmica múltipla e complexa.
Não por acaso, portanto, o futebol dramatizou as tensões e ambiguidades
da sociedade carioca, justapondo e fazendo cruzar questões de classe, raça e ori-
victor andrade de melo e fabio de faria peres 49
grau, a busca pela realização de tais eventos. Afinal, a cidade ocupou por muitas
décadas importante papel na cena nacional, sendo palco de relevantes aconteci-
mentos e, ao mesmo tempo, se estabelecendo como ponto de convergência e
ressonância de modas e costumes. Essa posição será mitigada com a transferência
da capital do país para Brasília (1960) e com o fim do estado da Guanabara (1975),
que juntamente com sucessivas crises políticas e econômicas implicariam um
processo de degradação e decadência do tecido urbano.
Os megaeventos, nesse sentido, seriam vistos (em parte, de forma ingênua
e parcial) como modo de reverter e recuperar a cidade por meio do que se conven-
cionou chamar de legado. Dessa perspectiva, a preparação e a produção para os
jogos seriam interpretados como panaceia para os diversos problemas que o Rio
de Janeiro enfrenta.
Por outro lado, de forma articulada a isso, esses eventos movimentam quan-
tidades de recursos sem precedentes, inserindo-se em um mercado global, num
momento em que os Estados nacionais já perderam parte de seu protagonismo.
Sem esquecer a relação política e esporte (que parece mais forte do que
nunca), os megaeventos esportivos são hoje mais uma faceta da cidade enquanto
mercadoria. Mesmo sem considerar interesses particulares e escusos envolvidos
frequentemente na produção dessas iniciativas, os “legados” podem trazer – pelo
menos para parte significativa da população – mais exclusão do que inclusão, mais
controle do que liberdade, mais distância do que aproximação da cidade. Enfim,
podem tornar árida nossa cidadania, em vez de fortalecê-la.
Nesse sentido, a história do esporte na cidade – que sempre será história da
cidade – parece ter que lidar de maneira mais fina e menos linear com “antino-
mias clássicas” que informam a modernidade, como as relações entre: continui-
dade-ruptura; tradicional-moderno; rural-urbano; popular-elite; nacional-estran-
geiro; e global-local. Sem isso, corremos o risco de construir narrativas marcadas
por ausências relevantes e, portanto, anacrônicas.
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