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Ponteiros vêm e vão

por
Rodrigo Dionarpe
PONTEIROS VÊM E VÃO
CENA UM
Dois atores entram em cena. São dois relógios de
parede na parede.

ATOR 1
Já me dói a batreria só de imaginar que mais uma vez
essa loja será aberta e ninguém vai me levar embora
daqui.

ATOR 2
Reclama assim, quase que se derramando em lágrimas, um
relógio de parede para o seu fiel escudeiro, outro
relógio de parede.

ATOR 1
Logo a minha bateria acabará e eu não terei vivido o
melhor dessa vida. Não vou ter vivido nada!
ATOR 2
Como assim não vai ter vivido nada?

ATOR 1
Você acha que vive?
ATOR 2
Não sei.

ATOR 1
É exatamente o que eles querem, que você não saiba o
que é viver.
ATOR 2
Do que você está falando?
ATOR 1
Você realmente acha que a vida de um relógio é ficar na
parede, estátua!, só vendo a vida passar?

ATOR 2
Mas você reclama quando ele te desliga.
ATOR 1
Antes ver a vida passar do que perdê-la dormindo.

ATOR 2
Então!
ATOR 1
Eu não quero ver a vida, eu quero vivê-la!

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 2.

ATOR 2
E qual é a diferença?

ATOR 1
Essa resposta eu não posso te dar. Ninguém sabe o que é
a vida. Só vivendo pra poder chegar perto de entender.
Mas isso aqui eu sei que não é.
ATOR 2
E com essa dúvida, o relógio seguiu o seu dia,
refletindo sobre o que o relógio sonhador havia dito...
ATOR 1
E com mais interesse, ele questionou:

ATOR 2
O que você acha que tem lá fora?
ATOR 1
Não sei, juro que não sei. Mas algo me diz que é
maravilhoso. Essas pessoas que passam por aqui, o que
será que elas fazem quando não estão passando por aqui?
ATOR 2
Ehh... Mas será que não estamos mais protegidos estando
aqui?

ATOR 1
Protegidos de quem? Nós somos dois relógios de parede!
ATOR 2
E precisamos sair daqui!

ATOR 1
Como!?
ATOR 2
Não sei. Nós só não podemos mais ficar aqui... Malditos
relógios de pulso! Arruinaram com a nossa vida,
transformaram-nos em meros objetos decorativos para
lugares velhos!
ATOR 1
Olha só eles ali embaixo!

Os dois congelam e entram três atores para fazerem


os relógios de pulso. Lado a lado, estão sorrindo.
ATOR 3
Juro! Uma vez ele entrou com ela para tomar banho e
esqueceu de me tirar. Todo animado, saiu tirando as
roupas e foi pro box doido pra transar... Bastou duas
batidas da mãe da menina na porta pra que toda aquela
animação amolecesse.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 3.

ATOR 4
Mas eles namoravam?
ATOR 3
Não, só ficavam. A família da moça tava conhecendo meu
dono.

ATOR 4
No caso estavam escondidos?
ATOR 3
Sim.
ATOR 5
Mas esse não é o caso!
ATOR 4
É sim!
ATOR 5
Não é! Ele só está dizendo isso porque já morreu por um
brocha,

ATOR 4
Já falei pra você não falar assim! Ele era um cara
legal.
ATOR 5
Mas e aí, como terminou a noite?

ATOR 3
Ele foi pra cama com ela.
ATOR 4
Uffa!

ATOR 5
Aí sim!
ATOR 3
E brochou de novo!
ATOR 5
Ihh...
ATOR 3
Pois é!
Os relógios de pulsam saem de cena, deitando, e
descongelam-se os atores 1 e 2.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 4.

ATOR 2
E seguiram pelo assunto.
ATOR 1
Enquanto os dois relógios...

ATOR 2
...entristecidos....
ATOR 1
...admiravam...

ATOR 2
...com um pouco de inveja...
ATOR 1
...os alegres relógios de pulso!

Voltam a serem os relógios.


ATOR 2
Até no jeito de falar te muma diferença. Olha como eles
conversam, gesticulam, como muito mais flexibilidade.

ATOR 1
Sao muito mais felizes, né?
ATOR 2
Por isso que não nos usam para fazer exercício físico.

ATOR 1
Por que não somos felizes?
ATOR 2
Claro, quem quer fazer esporte com gente triste!?

ATOR 1
Na verdade ninguém quer estar com gente triste na rua.
Por isso que só nos usam em casa. E na academia, porque
eu posso contar a ponteiros os pescoços que me
procuravam.

ATOR 2
Já esteve em uma academia?
ATOR 1
Estive! Bons tempos...
ATOR 2
E por que lá era bom e aqui não? Nós continuamos do
mesmo jeito: na parede vendo a vida.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 5.

ATOR 1
Será que os quadros se sentem assim?
ATOR 2
Não, porque a arte é imortal. Ele não está pensando na
morte como a gente, só estão parado contemplando a
beleza da vida porque nunca vão pifar, por exemplo.
ATOR 1
Tudo que a gente quer é ter histórias pra contar...

ATOR 2
Histórias vividas nos tornam maiores que a morte.
ATOR 1
Os relógios de pulso então perceberam que um rapaz se
aproximava demonstrando grande interesse por eles.

Um COMPRADOR e um VENDEDOR entram em cena. Falam


sobre os relógios de pulso.
ATOR 2
Passando a mão sobre um dos relógios, o rapaz
perguntou:
COMPRADOR
Esse é a prova d’água?
VENDEDOR
É sim. Ele aguenta até 200 metros.
ATOR 1
Duzentos metros... isso aí não desce nem a oitenta.
ATOR 2
Nem o ser humano. É por isso que eles falam.
COMPRADOR
Vou ficar com ele então! Quanto custa?
VENDEDOR
Noventa.
COMPRADOR
Tudo bem!

ATOR 2
Não! Pela metade do preço você me leva, eu sei que você
não pode gastar todo esse dinheiro. Sua mulher tá
grávida, a prestação do seu carro deve estar
atrasada... Não se vá!

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 6.

ATOR 1
E o comprador não ouviu uma lágrima sequer daquela
pobre alma de lata.
ATOR 2
Diferente do clima entre os relógios de parede, os de
pulso se despediam do que estava, por um troco, à
partir.
ATOR 3
Vai na luz! Que esse seu novo caminho seja repleto de
bons momentos para guardar. Que cada giro dado e cada
noite em claro valha a pena.
ATOR 5
Eu não sou muito bom com as palavras, então só desejo
que seja feliz. E se, até a sua morte, não lhe
encontrar novamente por essas vidas de revendas, que
seu descanso seja em paz.
ATOR 1
Assim que o comprador recebeu a sacola...

O Vendedor, Comprador e Ator 4 saem de cena.


ATOR 1
... um dos amigos não aguentou.
O Ator 3 desaba em choro.

ATOR 5
Calma, não fica assim. A gente sabe que nenhuma vida
ficará aqui para sempre. Exceto aqueles relógios de
parede.

ATOR 3
Verdade. Como deve ser triste a vida deles. Falo deles
porque estão aqui, mas na verdade, todo relógio de
parede deve ser triste.

ATOR 5
Por quê?
ATOR 3
Ficar parado...vendo a vida passar diante dos próprios
ponteiros...

ATOR 5
Pior que a deles, só a dos senhores relógios de bolso
que eram obrigados a viverem sem enxergarem
absolutamente nada.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 7.

ATOR 3
Sem contar o fedor que não devia ser.
ATOR 5
Vai além disso, meu caro, é como viver de flashs, sem
nunca ter visto uma cena completa a não ser quando
estavam em casa.
ATOR 3
Olhando para o teto...

ATOR 1
Da conversa sobre os antepassados para o susto de ser
escolhido!
Entram Vendedor e Comprador.

COMPRADOR
Aquele me parece útil!
VENDEDOR
Qual?

COMPRADOR
Aquele!
ATOR 2
Eu!?

VENDEDOR
Esse?
COMPRADOR
Isso! Quanto está?

VENDEDOR
Trinta e cinco.
ATOR 2
Eu vou embora, amigo! Não estou acreditando.

ATOR 1
Pois é! Que legal, fico muito feliz por você!
ATOR 2
Fala sério?

ATOR 1
Mas é claro que sim!
ATOR 2
Não parece estar muito feliz.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 8.

ATOR 1
Não é isso, é que você sabe aa vontade que eu tenho de
partir. De viver uma vida nova.
ATOR 2
Eu sei, eu sei. Mas fica bem, logo logo a sua hora vai
chegar, assim como a minha chegou.
ATOR 1
Não sei, não.

ATOR 2
É claro que vai!
ATOR 1
As vezes eu sinto que vou apenas assistir a minha vida
indo embora. Antes tivesse vindo na época dos relógios
de bolso que não tinham tempo de se apaixonar pela
vida.
ATOR 2
(Diminuindo o som da voz como quem se
distancia)
E vendo o seu amigo se distanciando, foi ficando,
ficando, ficando cada vez mais só...
O Vendedor e Comprador SAEM.
ATOR 1
E o relógio que se foi, não aguentava de ansiedade para
sair da sacola e saber qual seria o seu novo lugar de
exposição.
ATOR 2
Se atrairia muitos olhares, se admiraria uma bela
paisagem...
ATOR 1
E o senhor comprador, para acabar com a aflição do
relógio, o tirou da bolsa.

ATOR 2
Admirado, ele analisava o lugar com várias
possibilidades para ser pendurado, enquanto o senhor
caminhava pela casa.

ATOR 1
E interrompeu seus passos quando chegou de frente para
uma porta.
ATOR 2
Abriu-a.

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 9.

ATOR 1
E acendeu a luz.
ATOR 2
Era um quarto cheio de relógios de parede pendurados.

Cria-se um círculo com alguns atores fazendo os


relógios pendurados e o Comprador o adentra.
ATOR 1
Um lugar aterrorizante!

ATOR 2
Os relógios, vendo nos outros, o que acontecia consigo,
surtavam.
ATOR 1
Os ponteiros já não giravam normalmente.
ATOR 2
Uns não tinham sequer os ponteiros, apenas ouviam os
gritos de morte de seus amigos de confinamento.

ATOR 1
E o relógio que sonhava em sair da loja de revendas,
foi instalado.
ATOR 2
Seus ponteiros arregalados, enxergavam a mais cruel
tortura dos relógios enquanto o homem, em seu momento
de prazer, sentava-se em sua poltrona de couro bem no
centro da sala e degustava, como um maravilhoso
concerto de música clássica, o choro agonizante dos
relógios.

ATOR 1
E na loja...
O quarto se defaz, volta a ser a loja, com apenas
um relógio.

ATOR 1
... estava o velho e solitário relógio, com seus
ponteiros paralisados, tendo perdido completamente o
fascínio pela vida.

Entram o Vendedor e o Comprador.


COMPRADOR
Quero aquele ali!

(CONTINUA)
CONTINUANDO: 10.

ATOR 1
Eu!?
VENDEDOR
Esse?!

COMPRADOR
É!
ATOR 1
Não estou acreditando! Não pode ser! Estou saindo dessa
vida, dessa merda de loja, para ir exatamente para o
mesmo lugar que o meu amigo está. Eu não poderia ir
para um lugar mais feliz!
VENDEDOR
Aqui está!

O Comprador caminha com o Ator 1 e o Vendedor SAI.


ATOR 1
O comprador seguiu caminhando para distante da loja e o
relógio cada vez mais ansioso para reencontrar seu
amigo e conhecer seu novo e feliz lar...
A sala se fora ao redor dos dois. O Ator 1
felissíssimo se depara com o seu amigo
extremamente surtado.

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