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de Bella Jozef
JORGE LUIS BORGES — OBRAS COMPLETAS
VOLUME III 1975-1985
Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges — Obras Completas 98-
3272
Copyright ©1998 by Maria Kodama
Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.
1ª Reimpressão-9/98
2ª Reimpressão-1/99
3ª Reimpressão — 12/99
Edição baseada em: Jorge Luis Borges — Obras Completas, publicada por
Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona — Espanha.
Coordenação editorial: Carlos V. Frías Capa: Joseph Ulbach / Emecé
Editores Ilustração: Alberto Ciupiak Coordenação editorial da edição brasileira:
Eliana Sá Assessoria editorial: Jorge Schwartz Preparação de textos: Maria
Carolina de Araújo Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian, Luciana
Vieira Alves e Márcia Menin Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.
Fotolitos: GraphBox Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite
Celada, Ana Cecilia Olmos, Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel
Samoilovich e Michel Sleiman Agradecimentos especiais a Élida Lois Direitos
mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à EDITORA GLOBO
S.A.
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E-mail: atendimento@edglobo.com.br Todos os direitos reservados.
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Impressão e acabamento: Gráfica Círculo CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
— Câmara Brasileira do Livro, SP
Borges, Jorge Luis, 1899-1986.
Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. —
São Paulo : Globo, 1999.
Título original: Obras completas Jorge Luis Borges.
Vários tradutores.
V. 1. 1923-1949 v. 2. 1952-1972 v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-
250-2877-0
(v. 1) / ISBN 85-250-2878-9 (v. 2) ISBN 85-250-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-
250-2880-0
(v. 4.) 1. Ficção argentina 1. Título.
Índices para catálogo sistemático 1. Ficção : Século 20 : Literatura argentina
ar863.4
2. Século 20 : Ficção : Literatura argentina ar863.4
CDD-ar863.4
A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE
La memória de Shakespeare
Tradução de Bella Jozef
Índice*
• Vinte e cinco de agosto, 1983
• Tigres azuis
• A rosa de Paracelso
• A memória de Shakespeare
Em sua oficina, que abrangia os dois quartos do porão, Paracelso pediu a seu
Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer Deus, que lhe enviasse um
discípulo. Entardecia.
O escasso fogo da lareira lançava sombras irregulares.
Levantar-se para acender o candeeiro de ferro dava trabalho demais.
Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu sua prece. A noite havia apagado os
empoeirados alambiques e o cadinho quando bateram à porta. O homem,
sonolento, levantou-se, subiu a breve escada de caracol e abriu uma das folhas
da porta. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso
indicou-lhe um banco; o outro sentou-se e esperou. Durante algum tempo não
trocaram uma palavra.
O mestre foi o primeiro a falar.
— Lembro rostos do Ocidente e rostos do Oriente — disse, não sem certa
pompa. — Não recordo o seu. Quem é você e o que deseja de mim?
— Meu nome é o de menos — replicou o outro. — Caminhei durante três
dias e três noites para entrar em sua casa. Quero ser seu discípulo. Trago todos
os meus bens.
Tirou um saco e virou-o sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro.
Fez isso com a mão direita. Paracelso lhe tinha dado as costas para acender o
candeeiro. Quando se virou, percebeu que a mão esquerda segurava uma rosa. A
rosa o inquietou.
Recostou-se, juntou a ponta dos dedos e disse: –Você me julga capaz de
elaborar a pedra que transforma todos os elementos em ouro e oferece-me ouro.
Não é ouro o que procuro, e, se o ouro lhe interessa, você nunca será meu
discípulo.
— O ouro não me interessa — respondeu o outro. — Essas moedas são
apenas uma parte de minha vontade de trabalha r.
Quero que você me ensine a Arte. Quero percorrer a seu lado o caminho que
conduz à Pedra.
Paracelso disse com lentidão: — O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a
Pedra. Se não entende estas palavras, você não começou a entender ainda. Cada
passo que você der será a meta.
O outro olhou-o com receio. Disse com voz diferente: — Mas há uma meta?
Paracelso riu.
— Meus detratores, que não são menos numerosos que estúpidos, dizem que
não e me chamam de impostor. Não lhes dou razão, mas não é impossível que
seja um iludido. Sei que "há" um Caminho.
Houve um silêncio, e o outro disse: — Estou pronto para percorrê-lo com
você, embora devamos caminhar muitos anos. Deixe-me atravessar o deserto.
Deixe-me divisar, ainda que de longe, a terra prometida, apesar de os astros
não me deixarem pisá-la. Quero uma prova, antes de empreender o caminho.
— Quando? — disse Paracelso com inquietação.
— Agora mesmo — disse o discípulo com brusca decisão.
Começaram falando em latim; agora, em alemão.
O rapaz ergueu a rosa no ar.
— É fama — disse ele — que você pode queimar uma rosa e fazê-la
ressurgir das cinzas, por obra de sua arte. Deixe-me ser testemunha desse
prodígio. Isso lhe peço, e dar-lhe-ei depois minha vida inteira.
— Você é muito crédulo — disse o mestre. — Não preciso da credulidade;
exijo a fé.
O outro insistiu.
— Precisamente porque não sou crédulo quero ver com meus olhos a
extinção e a ressurreição da rosa.
Paracelso a havia segurado e, ao falar, brincava com ela.
— Você é crédulo — disse. — Você diz que sou capaz de destruí-la?
— Ninguém é capaz de destruí-la — disse o discípulo.
— Você está enganado. Porventura, acredita que algo pode ser devolvido ao
nada? Você acredita que o primeiro Adão no Paraíso conseguiu destruir uma
única flor ou um fiapo de capim?
— Não estamos no Paraíso — disse teimosamente o rapaz — ; aqui, sob a
lua, tudo é mortal.
Paracelso havia-se posto de pé.
— Em que outro lugar estamos? Você acha que a divindade pode criar um
lugar que não seja o Paraíso? Acredita que a Queda não é outra coisa senão
ignorar que estamos no Paraíso?
— Uma rosa pode queimar-se — disse com desafio o discípulo.
— Ainda resta fogo na lareira — disse Paracelso. — Se você atirasse esta
rosa às brasas, acreditaria que foi consumida e que as cinzas são verdadeiras.
Digo-lhe que a rosa é eterna e que só sua aparência pode mudar. Para mim, uma
palavra bastaria para que você a visse de novo.
— Uma palavra? — disse com estranheza o discípulo. -
O cadinho está apagado e os alambiques estão cheios de pó. O que faria você
para que ressurgisse?
Paracelso olhou-o com tristeza.
— O cadinho está apagado — repetiu — e os alambiques estão cheios de pó.
Neste trecho de minha longa jornada uso outros instrumentos.
— Não me atrevo a perguntar quais são — disse o outro com astúcia ou com
humildade.
— Falo daquilo que a divindade usou para criar os céus e a terra e o invisível
Paraíso em que estamos e que o pecado original nos oculta. Falo da Palavra que
nos ensina a ciência da Cabala.
O discípulo disse com frieza: — Peço-lhe a gentileza de mostrar-me o
desaparecimento e o aparecimento da rosa. Não me importa que você opere com
alquitaras ou com o Verbo.
Paracelso refletiu. Por fim, disse: — Se eu fizesse isso, você diria que se
trata de uma aparência imposta pela magia de seus olhos. O prodígio não lhe
daria a fé que você procura. Portanto, deixe a rosa.
O jovem olhou-o, sempre receoso. O mestre levantou a voz e disse-lhe: –
Além disso, quem é você para entrar na casa de um mestre e exigir-lhe um
prodígio? Que fez você para merecer semelhante dádiva?
O outro replicou, trêmulo: –Já sei que não fiz nada. Peço-lhe em nome dos
muitos anos que estudarei a sua sombra que você me deixe ver as cinzas e depois
a rosa. Não lhe pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho de meus olhos.
Bruscamente, pegou a rosa encarnada que Paracelso havia deixado sobre a
escrivaninha e lançou-a às chamas.
A cor perdeu-se e só ficou um pouco das cinzas. Durante um instante infinito
esperou as palavras e o milagre.
Paracelso não se alterara. Disse com curiosa simplicidade: –Todos os
médicos e todos os boticários de Basileia afirmam que sou um embusteiro.
Talvez estejam certos. Aí estão as cinzas que a rosa foi e que não tornará.
O rapaz sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ou um mero visionário,
e ele, um intruso, havia franqueado sua porta e obrigava-o agora a confessar que
suas famosas artes mágicas eram vãs.
Ajoelhou-se e disse-lhe: — Agi de modo imperdoável. Faltou-me a fé, que o
Senhor exigia dos crentes. Deixe que continue vendo a cinza. Voltarei quando
for mais forte e serei seu discípulo, e no fim do Caminho verei a rosa.
Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava
o velho mestre, tão venerado, tão agredido, tão insigne e, portanto, tão vazio.
Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega que por
trás da máscara não havia ninguém?
Deixar-lhe as moedas de ouro seria uma esmola. Retomou-as ao sair.
Paracelso acompanhou-o até o pé da escada e disse-lhe que nessa casa sempre
seria bem-vindo. Ambos sabiam que não voltariam a ver-se.
Paracelso ficou só. Antes de apagar o candeeiro e de sentar-se na fatigada
poltrona, virou o tênue punhado de cinzas na mão côncava e disse uma palavra
em voz baixa. A rosa ressurgiu.
A Memória de Shakespeare
Certa manhã discerni uma culpa no fundo de sua memória, Não procurei
defini-la; Shakespeare o fez para sempre.
Para mim, basta declarar que essa culpa nada tinha em comum com a
perversão.
Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento
e vontade, não são uma ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia
revelar-me outra coisa que as circunstâncias de Shakespeare. É evidente que
estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que
executou com esse material inconsistente.
Ingenuamente, eu havia premeditado, como Thorpe, uma biografia. Não
demorei em descobrir que esse gênero Literário requer condições de escritor que
por certo não são minhas. Não sei narrar. Não sei narrar minha própria história,
que é bem mais extraordinária que a de Shakespeare. Além do mais, esse livro
seria inútil. O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis
que todo homem conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens
muito mais vividos que o homem cinza que sonhou com eles, em versos que as
gerações não deixarão desaparecer, em música verbal. Para que destecer essa
rede, para que minar a torre, para que reduzir às módicas proporções de uma
biografia documental ou de um romance realista o som e a fúria de Macbeth?
Goethe constitui, segundo se sabe, o culto oficial da Alemanha; mais íntimo
é o culto a Shakespeare, que professamos com nostalgia. {Na Inglaterra,
Shakespeare, que tão distante está dos ingleses, constitui o culto oficial; o livro
da Inglaterra é a Bíblia.) Na primeira etapa da aventura senti a felicidade de ser
Shakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, as duas memórias não
misturavam suas águas. Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e
quase afogou, meu modesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo a
língua de meus pais. Já que a identidade pessoal baseia-se na memória, temi por
minha razão.
Meus amigos vinham visitar-me; assombrou-me que não percebessem que eu
estava no inferno.
Comecei a não entender as coisas cotidianas que me rodeavam (die
alltägliche Umwelt).1 Certa manhã perdi-me entre grandes formas de ferro, de
madeira e de cristal. Aturdiram-me assobios e clamores. Demorei um instante,
que pôde parecer-me infinito, em reconhecer as máquinas e vagões da estação de
Bremen.
À medida que transcorrem os anos, todo homem é obrigado a suportar o
crescente peso de sua memória. Duas me angustiavam, confundindo-se às vezes:
a minha e a do outro, incomunicável.
Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu 1 "O meio ambiente
cotidiano." (N. da T.) Spinoza. A pedra quer ser uma pedra, o tigre, um tigre, eu
queria voltar a ser Hermann Soergel.
Esqueci a data em que decidi libertar-me. Dei com o método mais fácil. No
telefone marquei números ao acaso.
Vozes de criança ou de mulher respondiam. Achei que meu dever era
respeitá-las. Dei por fim com uma voz culta de homem. Disse-lhe: — Você quer
a memória de Shakespeare? Sei que o que lhe ofereço é muito sério. Pense bem.
Uma voz incrédula replicou: — Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de
Shakespeare.
Declarei as condições da dádiva. Paradoxalmente, sentia ao mesmo tempo a
nostalgia do livro que eu deveria ter escrito e que me foi proibido escrever e o
temor de que o hóspede, o espectro, nunca me deixasse.
Desliguei o telefone e repeti como uma esperança estas resignadas palavras:
Simply the thing I am shall make me live.
Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga memória; tive de
buscar outras para apagá-la. Uma entre tantas foi o estudo da mitologia de
William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg. Comprovei que era menos
complexa do que complicada.
Esse e outros caminhos foram inúteis; todos levavam-me a Shakespeare.
Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: a estrita e vasta
música, Bach.