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91 - 109, 2007
Ricardo Baitz*
RESUMO:
O presente artigo discute a propriedade e as mudanças nela introduzidas com o Estatuto da Cidade.
A partir de uma perspectiva histórica de longa duração, investiga-se o processo que fragmenta a
Propriedade em elementos distintos, tais como posse, propriedade, direito de construir e direito de
superfície. Esses elementos são trabalhados enquanto uma necessidade do sistema que,
encontrando limites, mobiliza o objeto (a propriedade), abstraindo-o.
PALAVRAS-CHAVE:
Propriedade, Posse, Estatuto da Cidade.
ABSTRACT:
The present article argues the property and the changes introduced in it by the Statute of the City
(Federal Act number 10.257/2001, “Estatuto da Cidade”). From a long historical perspective, the
process that breaks the Property into distinct elements (such as ownership, property, right to
construct and surface right) is being investigated. These elements are studied as a system necessity
which, finding limits, mobilizes the object (the property), abstracting it.
KEY WORDS:
Property, Ownership, Statute of the City.
*Pós-Graduando em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciëncias Humanas - FFLCH/USP. E-mail: ricardobaitz@yahoo.com
92 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 BAITZ, R.
aqueles tidos como pessoais1 e culmina nos que primeira forma: a tautologia. Tornar toda e
conferem status , poder ou algum relevo no qualquer cuia “uma cuia” parece-nos bastante
contexto social. pouco, quase nada, quase o zero... Mas é a
partir desse momento inaugural, em que os
Esses últimos, nas sociedades que
conteúdos foram esvaziados para receber uma
conheceram o potlatch2 ou rituais similares, são
forma, que se efetivou o progresso no sentido
ofertados em sua inteireza, como dádiva ou
de uma sociedade, por assim dizer, “quente”,
revide aos oponentes; são assim Propriedades
dando início, faz-se necessário ressaltar, ao
das quais se dispõe para participação do ritual.
denominado processo civilizatório. c[A] = c[J] (cuia
Em síntese, nessas sociedades também se
de Antônio = cuia de José) suscita pôr em relação
encontra presente sobre a forma Propriedade (a
duas cuias, objetos em si infinitos de diferenças
qual os juristas discorrem tão bem, quase
(cor, forma, tamanho, aspereza, durabilidade…).
delimitando como propriedade privativa), em
especial ao que se refere sobre o dispor Em outros termos, para que
irrestritamente de um objeto. acontecesse a equivalência (“=”), para que c[A]
pudesse equivaler a c[J], foi necessário o
desenvolvimento de um pensamento
A Propriedade contra a posse e a propriedade extremamente abstrato, capaz de realizar
logicamente um esvaziamento momentâneo de
“Nem todas as partes do rio correm
todos os conteúdos das duas cuias, colocando-
igualmente. Além da espuma que se situa no
as em relação através da forma cuia, ficcionando
alto, existem as correntes mais profundas. A
logicamente tal equivalência. Essa complexa
espuma também faz parte do rio, mas ela só
operação beira a uma certa negligência 4 , mas
nos interessa se revela as correntes mais
foi através dela que a cuia (e demais objetos)
profundas. A espuma desaparece; os
pôde adentrar à sua forma mais pura, C = C,
redemoinhos e as grandes correntes se
que corresponde a uma tautologia quase estéril,
conservam. Assim, o inessencial, o que não é
um passo decisivo para a fórmula da identidade
causa de modo “profundo”, se desfaz,
(A = B, B = C, A = C, ..), e, para a troca! De um
desaparece. A “causa” é o lado calmo e
pensamento absoluto, no qual “a cuia é a cuia”,
profundo da corrente; é esse que recorta a
chegamos a um pensamento relativo, no qual
margem e manifesta a orientação do rio. Mas,
“uma cuia se equipara e equivale a toda e
certamente, o rio em sua totalidade muda, já
qualquer cuia”. E isso através da identidade, que
está mudando...” (LEFEBVRE, 1975, p. 199)
traz em seu bojo a equivalência, a troca possível,
Se por um lado a forma Propriedade a conversibilidade e a reversibilidade dos
existe em diversas sociedades, por outro lado termos, na medida em que a fórmula A = B
é apenas em condições muito específicas que também dita o inverso, que B = A5 .
seu conteúdo é movido abstratamente. Foi
Se retornarmos nossos olhares à
consoante a uma das mais notáveis conquistas
propriedade, em especial - mas não
da humanidade, a lógica formal, que se “chegou
exclusivamente - a territorial, esta seria
ao fim o que se chama falsamente de
representada, em sua forma tautológica, pela
‘pensamento primitivo’”3 e se abriu caminho
equação inaugural P = P, ou Propriedade =
para que a Propriedade fosse pensada
Propriedade, o que permite esvaziar os
abstratamente.
conteúdos espaciais e trabalhar abstratamente
Abandonando sua noção original - o continente, o território. Uma grosseria aos
aquela mais simples, geralmente vinculada à olhos da Geografia 6 , mas que faz sentido no
certas particularidades, e portanto, associada âmbito formal, aquele pelo qual o Direito se
a certas pessoas -, a Propriedade adentrou à enveredou.
forma tautológica, e aqui nos reportamos a sua
A propriedade contra a posse e a propriedade 2, pp. 91 - 109 93
para além do uso, sobre tudo o que fosse + t ) , o }, sendo a partícula ‘t’ o tipo de
passível de se exercer o poder de domínio (ou propriedade 14 (rural ou urbana).
simplesmente domínio , para evitar a
redundância) 12 . Assim foram pilhados os Exercendo o poder de normatizar o
territórios conhecidos por Roma, que conferia território, o poder público pôs no espaço sua
aos povos dominados o direito de posse, razão, dividindo a cidade em múltiplos usos:
reservando para si o direito de propriedade territórios industriais, comerciais, residenciais,
mediante o exercício do domínio; e pelo mesmo que podem ou não se justapor (uma área
meio - a força - esse modelo se universalizou residencial pode – ou não – admitir alguns tipos
mais tarde, abarcando o mundo, as Américas e de comércio, por exemplo, admitindo mais de
suas civilizações. um uso para a mesma porção do espaço, de
acordo com a vontade do seu proprietário) 15 .
A mobilização dos conteúdos da Limitando o exercício do poder de propriedade
propriedade (mas não só ela) deu flexibilidade individual ao submetê-lo à lei de zoneamento,
a um mundo estático, “frio”13 . Esse talvez seja de ordem pública, ele conseguiu, a partir desse
seu grande mérito, e esse registro precisa ser momento, dar relevância e peso ao elemento
feito. Considerando-o, resta-nos ir além e uso da propriedade, mobilizando a equação
compreender, nova e insistentemente, que um anterior para P = { ( p + t + u ) , o }, ou seja,
processo de abstração, enquanto uma forma de Propriedade = { ( propriedade + tipo + uso ) , posse },
pensamento, comporta um progresso, com ainda que a partícula p e t surjam, nesse
novas etapas que “superam” a anterior, momento, enquanto uma qualidade da
aprimorando-a. Esse progresso existe, e é o propriedade por ocasião da sua imutável posição
tema dos próximos parágrafos, que analisam a territorial. A produção do zoneamento foi
propriedade atualmente, retendo todo esse também a produção de uma raridade, cada vez
entendimento do passado como esquiva aos mais aprofundada, nas áreas urbanas.
fáceis idealismos modernos.
o direito de superfície, conforme o art. 22 (dentre anuncia a possibilidade de que quem “comprar”
outros) desse Estatuto. um apartamento construído com o conceito de
solo criado, sobre o direito de superfície,
Não é certo o papel desse novo
amarrado a um direito de propriedade alheio,
personagem, o superficiário; apenas se sabe
terá sua “propriedade” (o bem imóvel) bastante
que sua função é de segundo figurante, pois
volatilizada, especialmente quanto aos
ele é o mais “despossuído” desse conjunto
procedimentos cabíveis em caso de
(inclusive quando comparado ao posseiro), pois
inadimplemento, para citar um único exemplo26 .
aquele que usufrui da superfície pode estar
Por sua vez, o usucapião torna-se brando,
condicionado a procedimentos jurídicos
quando não ineficaz, vista que esse instituto
diferentes da tradicional reintegração de posse
supõe a posse mansa, e não a detenção da
(instrumento pelo qual o proprietário busca,
superfície 27 .
através de seu direito de propriedade,
reestabelecer a posse ao seu domínio) ou da Chega-se, agora, ao final dessa segunda
desapropriação. O rito para quem descumpre parte do texto, com o seguinte quadro
as cláusulas do direito de superfície ainda não propositivo28 para a compreensão do direito de
está completamente esclarecido pela propriedade:
jurisprudência, mas enquanto latência, já se
Do entendimento do lógico para uma estraté- produção. É remontando à maneira pela qual
gia da prática essa operação se efetiva que se pode averiguar
que posse e propriedade (para nos atermos a
O “problema” da propriedade se torna dois termos apenas, “simplificando” o conjunto
mais complexo à medida que surgem os novos que se sabe ser mais complexo) são
decalques, os novos elementos. Qualquer complementares da Propriedade, e não seus
tentativa de solução passa necessariamente, antônimos (formais ou dialéticos).
agora, pela compreensão do processo de sua
A propriedade contra a posse e a propriedade 2, pp. 91 - 109 97
a medida de todo valor; contudo, através dessa a como de domínio público era revolucionário,
estratégia são “recolhidos” e acumulados mas capturável), de modo a minar o inimigo em
valores, ainda que a propriedade em si, reitera- seu interior, compondo-se à sua lógica (coisa
se mais uma vez, não produza valor29 ). que o Domínio Público não permite, por ser uma
Trata-se de um processo bastante racionalidade exterior ao processo), de forma a
refinado de abstração, cujas similaridades com levá-la ao seu limite interno, realizando o
o que envolve a propriedade do solo fazem inverso daquilo para o qual foi projetada. É
deslocar seu ápice. O estágio atual deve ser então que aconteceu uma revolução digna do
compreendido não através de reflexos, mas de adjetivo genial: de uma concepção que negava
desenvolvimentos desiguais e combinados, com a propriedade privada passou-se a afirmá-la,
seu vértice representado pela propriedade tornando tudo o que se produzia anteriormente
intelectual, restando à propriedade do solo uma sob licença de “domínio público”, em proprietário.
condição de atraso para a qual o capitalismo Com isso, assegurando o direito de propriedade,
busca uma “atualização”, através dos os hackers garantiram o destino de sua
mecanismos já mencionados (nos quais inclui- produção 32 , evitando a captura da propriedade
se o Estatuto da Cidade). A investigação se intelectual pelas empresas que, com pequeno
desloca para a propriedade intelectual, e nos investimento, tornavam seu (através de
interessa em especial saber como, nesse meio, incorporações a sistemas mais complexos ou
as batalhas estão se realizando. derivados) o trabalho liberado como de domínio
público.
Compreendendo que ser proprietário
A guerrilha lógica assegurava também dispor irrestritamente da
criação, fez-se um decalque na propriedade
Reconstituição de um momento histórico,
permitindo sua reprodução a quem
na década de 80: após um período de batalhas
interessasse, desde que nesse processo não
“heróicas”, no qual frente aos programadores
houvesse ganhos superiores ao da mídia de
“de mercado” existiam os de “pesquisa”, a
suporte (CDs, disquetes, que são materiais que
vitória parecia assegurada ao mercado que
custam pouco). Em modelos mais abusados de
avançava indistintamente, comprando a
decalques, fez-se a permissão irrestrita de
produção intelectual daqueles dispostos a
cópia, reservado o direito integral de
vendê-la, por um lado, ou incorporando aquilo
propriedade, inclusive o da propriedade
que era tornado domínio público, pertencente
derivada, tornando esse tipo de software um
a todos, e por isso passível de apropriação,
“vírus”, fazendo com que tudo o que ele tocasse
inclusive pelas empresas 30 , por outro lado. As
se transformasse em software sob licença
tentativas de confronto com a propriedade
“GPL”33 , e assim em propriedade fora da forma
privada eram ineficazes, pois a transformação
mercadoria; ou melhor, numa forma que é contra
da propriedade privada em propriedade pública
a mercadoria e também contra a propriedade,
(de software privado em software de domínio
ainda que isso se dê afirmando-a!
público ) apenas permitia sua apropriação
irrestrita, pouco inibindo o sentido do mercado, Foi assegurando a condição de
que consiste em fazer o software girar enquanto proprietário que se pôde estabelecer a
mercadoria 31 . propriedade não como propriedade pública (que
é o espelho invertido da propriedade privada),
Havia um erro de estratégia, e os
mas enquanto propriedade comum (ou comunal,
hackers, altamente gabaritados na lógica formal,
indicando estágio de superação, para além da
o descobriram: era preciso ações
dicotomia público-privado), protegendo-a
procedimentais, e não genuinamente
inclusive de seu criador ao dar-lhe autonomia e
revolucionárias (abolir a propriedade, lançando-
vida própria através de dispositivos que
A propriedade contra a posse e a propriedade 2, pp. 91 - 109 99
demonstrando de que forma, com esse irrestrito sobre seu “bem”, podendo fazê-lo
Estatuto, a propriedade territorial no Brasil adentrar ao jogo na contramão do
ganhou, efetivamente, um grau mais abstrato carteado 39 .
como compensação aos limites que lhe são
internos 37 . A propriedade progrediu: e isso Paradoxo? Esse projeto carrega
foi uma conquista, um progresso. O que consigo contradições; mas de ordem formal.
muda radicalmente a maneira de guerrear Seu pressuposto é, com efeito, o indivíduo;
na luta pela cidade: a propriedade mudou, mas não um indivíduo utopista que se crê
e com ela as batalhas pelo morar se autosuficiente. Ao contrário, falamos aqui de
transformaram e ganharam outras um indivíduo consciente do processo social
possibilidades. que o emancipou, consciente que sua
individualidade é, antes de tudo, coletiva;
Por muito tempo os movimentos consciente que ele é fruto de uma luta contra
sociais foram acusados de fazer o jogo do a coletivização que dissolvia as
inimigo ao exigirem a propriedade privada possibilidates de se ser “alguém” (ANDRADE,
dos terrenos conquistados. Isso, diziam os 1995, p. 55, p. 127). É também um projeto
opositores, reforçaria o caráter de bem contra o individualismo abstrato, cuja
negociável, permitindo a compra e venda dos realização concreta resultou na sociedade
lotes, o que é bastante verdade. Assim como q u e b e m c o n h e c e m o s . S e r i a u m a “l u t a
também o é o fato de que todo chão tem um mortal” (Lebenskampf), no sentido
proprietário, e que se o movimento social hegeliano do termo, contra dois flancos? O
não exigir a titularidade das terras, a peso das palavras amedronta, mas dá a
municipalidade a reterá, podendo mobilizar dimensão (medida) da batalha. É também
em qualquer momento a população lá uma luta de classes, que encontra sua forma
s i t u a d a p o r “i n t e r e s s e p ú b l i c o ”. C o m o moderna de combate, na qual proliferam
capitalismo e a forma capitalista de pensar táticas subterrâneas ao passo que a luta
o mundo (o Estado é uma expressão), a horizontal é aposentada quase
propriedade se tornou efetivamente, um compulsoriamente, por se fazer quase
problema a ser pensado, mesmo que a única ineficaz.
coisa que se queira é o direito de ir, vir e
permanecer onde se vive. Como amenizar Inovar o estatuto da Propriedade,
esse problema sem cair num pensamento minando-a da condição de mercadoria (bem
idealista? negociável, comprável), re-estabelecendo-a
enquanto uso, enquanto propriedade
O passado auxilia. A GPL, resultado comunal: é uma via de riscos, que para se
desse processo de abstração num tipo muito efetivar necessita de uma profunda
especial de direito, demonstra ser possível pedagogia social, a fim de superar a
decalcar suavemente parte da Propriedade ideologia da propriedade privada, fazendo
de maneira a restabelecê-la enquanto uso, nascer um novo tipo de homem, que
permitindo o gozo e a festa. Sua luta recupere todas as potencialidades da
evidencia que o movimento de abstração de história e se desprende das suas
um objeto é plástico, e que com ele pode- repressões.
se também desenvolver o outro da
alienação, fazendo com que a propriedade
escape do domínio público e privado, e se
situe no âmbito do comum. E eis o paradoxo:
tal possibilidade não se dá enquanto uma
negação da Propriedade 38 , mas acirrando a
figura do proprietário que detém direito
A propriedade contra a posse e a propriedade 2, pp. 91 - 109 101
Notas
1
A cuia e a lança são bons exemplos de objetos escala ainda mais grandiosa. Caso contrário,
pessoais. Estão, de certa forma, tão atados destróem seu nome, sua honra, seu emblema e
à pessoa que ospossui, que se fundem ao seus totens, e até seus direitos civis e religiosos.
seu proprietário , justificando o fato de O resultado de tudo isto é que as posses de toda
acompanharem seu “dono” para além da a tribo vão circulando por entre as “grandes
vida. São vários os relatos etnográficos de famílias”, ao acaso.” (HUIZINGA, 2004, p. 66).
rituais fúnebres nos quais, curiosamente, os
objetos íntimos são mantidos com o morto,
3
Cf. LEFEBVRE, 1975, p. 166. Nesse trecho da obra,
por lhe serem “próprios”, fazendo-lhe Henri Lefebvre apresenta um quadro geral da
referência direta, o que torna a lança “em “história da lógica formal”, situando as condições
si” não uma lança apenas, mas uma que permitiram ao pensamento grego a abstração
extensão daquele que deixou a vida. Ela e o desenvolvimento deste.
perece com o ente da comunidade, ainda 4
“Essa eliminação só pode levar a uma negligência,
que haja uma escassez coletiva e no plano a uma supressão pura e simples, no caso do
racional seja interessante o entendimento, isolando-o a si mesmo, converter-
reaproveitamento do objeto por outros se em entendimento metafísico. Quando ele
entes da coletividade. realiza normalmente sua função, a eliminação do
2
“(...) em sua forma mais típica, encontrada conteúdo é apenas momentânea. O pensamento
na tribo dos Kwakiutl, o potlatch é uma (neste caso, a razão) toma uma consciência mais
grande festa solene, durante a qual um aguda desse conteúdo através do ato que
grupo, com grande pompa e cerimônia, faz determina uma sua parte restrita; e a razão, em
ofertas em grande escala ao outro grupo, seguida, preocupa-se em voltar ao conteúdo a
com a finalidade expressa de demonstrar fim de captá-lo em sua totalidade e em sua vida.
sua superioridade. A única retribuição A eliminação momentânea não é uma supressão,
esperada pelos doadores, e que é devida mas uma negação dialética, que ainda envolve o
pelos que recebem, consiste na obrigação que é negado.” Cf. LEFEBVRE, 1975, p. 131.
de estes últimos darem por sua vez uma 5
O exemplo não se esgota na cuia. O pensamento
festa, dentro de um certo período, se que conquistou tal abstração se predispõe a
possível ultrapassando a primeira. Este evoluir, a se tornar ainda mais abstrato, e a
curioso festival de donativos domina toda a relacionar outros objetos díspares, como a lança,
vida comunitária das tribos que os praticam: com a cuia. Através da equivalência duas lanças
os rituais, as leis, as artes. Qualquer passam a equivaler uma cuia, que por sua vez
acontecimento importante pode servir de equivale a 3 flechas (2L = 1C = 3F). Ao se
pretexto para um potlatch , seja um expressar proporções usamos o sinal de
nascimento, uma morte, um casamento, igualdade, o que faz com que 2L = 1C = 3F. Os
uma cerimônia de iniciação ou de tatuagem, termos podem ser rearranjados, desde que não
a construção de um túmulo, etc. É costume se altere as proporções, de forma que outra
o chefe oferecer um potlatch sempre que possibilidade de se expressar essa relação é
constrói uma casa ou um totem. No potlatch, 1C = 2L = 3F. Decerto, tal equação é bastante
as famílias ou clãs apresentam-se sob sua rígida, e pode ser relativizada, se ao invés de
forma mais brilhante, cantando suas números absolutos utilizássemos variáveis (ao
canções sagradas e exibindo suas invés do multiplicador 2, a variável “a”; e ao invés
máscaras, enquanto os feiticeiros, possuídos de 3, “b”). Com isso teríamos C = aL, para nos
pelos espíritos do clã, entregam-se à sua atermos aos dois primeiros elementos. Tais
fúria. Mas o principal é sempre a distribuição elementos podem ser incrementados sem perder
de bens. O promotor da festa dissipa nesta a proporcionalidade, de forma que 2C = 2aL, ou
todas as posses de seu clã. Contudo, o fato melhor, C2 = aL2. Se C2 = aL2 e C1 = aL1, então
de participarem da festa dá aos outros clãs C2 - C1 = aL2 - aL1, ou C2 - C1 = a(L2 - L1), ou C2 -
a obrigação de oferecer um potlatch em C = a(L2 - L). Agora, se seguirmos a orientação
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de um zoneamento, criou-se uma nova série de golpe, todo esse passado, inaugurando uma nova
atributos, de ordem mutável, para a propriedade. sociedade, livre dessas violências. Essa nova
Ainda que a distância espacial seja ínfima, de sociedade seria instituída pela lei, expressão da
poucos metros, é bastante diferente, no mundo razão, da transparência, da pureza... De forma
capitalista, um terreno com permissão de uso que, no lugar dos mandos pessoais, haveria a
comercial daquele que pode ser, pela legislação vontade da lei, a vontade da razão, cumprida com
urbana, empregado para residência apenas. orgulho pelos cidadãos cientes de que ao fazê-lo
obedeceriam não aos reis ou governantes, mas
16
“A noção de solo criado desenvolveu-se à própria sociedade. Esse reino da razão foi
inicialmente a partir da observação da muitas vezes acusado de fazer tábula rasa do
possibilidade de criação artificial de área passado – especialmente em nosso país – ao
horizontal, mediante a sua construção sobre ou desconsiderar a história e almejar reinaugurá-la
sob o solo natural. Compreendia-se assim o solo à força; contudo essa razia é expressão nítida
criado como o resultado da criação de áreas de um profundo conhecimento do passado e de
adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente uma vontade imensa em tomar as rédeas do
sobre o solo natural. Não se confunde, no entanto, futuro para que nele tais violências não mais
a noção – mesmo quando nestes termos aconteçam. É a possibilidade de se criar,
entendida – com a de ocupação do espaço aéreo, efetivamente, um novo mundo, mais belo, para
visto que pode haver ocupação de espaço aéreo todos. Fazendo um salto, quase mortal, pode-se,
sem criação de solo; seria o caso de construção com efeito, dizer que esse é o sentido do
de uma torre de grande altura, sem pavimentos zoneamento urbano: propiciar uma cidade mais
intermediários, ou de nave de uma catedral gótica bela, com um horizonte harmonioso, sem grandes
também de grande altura, mas sem nenhum plano rupturas, com ruas e calçadas largas,
utilizado no intermediário. Por outro lado, pode responsáveis por uma boa ventilação, às custas
haver criação de solo sem ocupação do espaço de um cerceamento do direito de propriedade
aéreo: seria o caso das construções no subsolo, naquilo que tange à altura edificável dos imóveis
que ocupam um espaço subterrâneo.” (GRAU, e de seu uso. Uma cidade bonita, gostosa de
1983, p. 57). morar, expressão da espécie humana, dizem os
idealistas, compeliria todos a exercerem seus
17
A crise não é externa, mas interna ao sistema.
direitos com certos limites, com razoabilidade,
Num sistema crítico, como o capitalista, as
para não invadirem o direito dos demais. Os
contradições internas sugerem seu próprio limite
motivos dessa cidade não se concretizar são
e destino: a morte. O que não implica a noção de
inerentes a esse pensamento [idealista], que
fatalidade (determinista). Sendo a natureza da
desconhecendo a materialidade da sociedade,
crise endógena (como no caso de um conteúdo
sonha em concretizar, pela força de idéias, um
que cresçe mais que a forma, força-a a se romper,
mundo utópico abstrato.
e com ela, a derramar a si próprio), a fatalidade
se daria apenas sem intervenções exteriores 19
Direito Real ou Direito de Rei. Embora haja toda
(essa tendência ao encontro dos seus limites é uma classificação moderna dada pela ciência
considerada sem a intervenção de terceiros). O jurídica, parece certo que o adjetivo advém da
que sugere haver possibilidade de continuidade condição ímpar de se poder dispor livremente,
da vida desse organismo, ainda que de maneira como um rei, do objeto de direito. Não por menos
crítica, com a adoção de intervenções exteriores esta é a definição mais corrente de propriedade
(como aquelas que lhe mudem a forma, territorial (no inglês o é termo Real Estate, sendo
ampliando-a e fazendo com que o conteúdo Real, nesse caso, uma derivação de Royal, coisa
sobreviva ao invés de se esgotar por suas de rei). O processo de abstração da propriedade
próprias contradições). admite, também, um movimento que vai da
condição de coisa à situação de sujeito. Um certo
18
O direito positivo reconhece um passado onde
individualismo prometeu a todos homens a
imperou toda ordem de constrangimentos e
possibilidade de serem reis na terra, de se
coações pessoais, ao qual se opõe. Ele é fruto de
tornarem indivíduos; enfim, do homem comum
um idealismo que pensa poder eliminar, num só
A propriedade contra a posse e a propriedade 2, pp. 91 - 109 105
ser alguém. Promessa que não se efetivou em a um novo tipo de direito, o qual pode ser
sua plenitude, mas que permanece até hoje rascunhado sob a noção de “direito permissivo
latente, representando um certo progresso. Esse oneroso”. Esse tema será desenvolvido em outro
tema, numa primeira variação, incompleta, está artigo por ocasião do conceito de Estado
presente no meu “Anotações sobre a história do Interventório de Urgência.
Público: Contribuição para a análise geográfica 22
A crise se evidencia pela necessidade de criação
do social moderno a partir do bairro de Pinheiros, de complexos instrumentos jurídicos (como o das
São Paulo”, cuja leitura se faz sugerida. Operações Urbanas) para quecontinuem a ser
lucrativos os negócios envolvendo as construções
20
Nos documentos da Municipalidade, a definição de
na cidade, pois de outro modo a necessária
Operação Urbana consta como: “Uma Operação
destruição de valor (compreendidos como a
Urbana é a execução de um plano de renovação, compra de sobrados ou pequenos prédios para
promovido em porções do território municipal, demolição, que dada sua localização – um atributo
cuja potencialidade de desenvolvimento e s p a c i a l – apresentam grande custo) para
ap resenta-se ampliada em razão de edificação em maior escala (torres de escritórios
investimentos públicos, realizados ou propostos, ou apartamentos) tornaria os lucros demasiados
e onde existe interesse da Municipalidade e de pequenos – ou nulos –, visto que essa construção
agentes privados na sua promoção. A seja limitada em número de andares pelas regras
oportunidade da ação está, em geral, relacionada do zoneamento urbano. A introdução desses
à possibilidade do investimento público em instrumentos renova a possibilidade desses
capacitar uma área envoltória para a negócios, na medida em que se pode extrapolar
intensificação de sua utilização, seja pela oferta o gabarito urbano com a aquisição de títulos
de infra-estrutura suplementar, seja pela públicos, que normalmente são negociados com
neutralização ou supressão de fatores de certo “desconto” (em comparação ao custo do
desqualificação ambiental. A viabilidade m 2 na região, caso existisse algum terreno
econômica da intervenção depende do interesse disponível).
d o s i n v e s t i d o r e s p r i v a d o s e m a d q u i r i r, da
Prefeitura, direitos adicionais aos da legislação
23
“O direito de superfície é o direito real de construir
regular de zoneamento.” (SÃO PAULO (Cidade), ou plantar em solo alheio. / Trata-se de direito
2000, p. 6). Em resumo forçado, a modalidade real sobre coisa alheia, já que não afeta o domínio
Operação Urbana é caracterizada por um do proprietário do solo. Um aspecto que os
perímetro previsto em lei (o que evita ações autores salientam com relação ao direito de
jurídicas de inconstitucionalidade, como no caso superfície é o fato de que ele afasta a acessão,
das Operações Interligadas), uma quantidade ou seja, a regra segundo a qual todas as coisas
igualmente limitada de metros quadrados virtuais que se acrescentam ao solo, sejam plantações
(metros edificáveis além do zoneamento, solo ou construções, pertencem ao dono do solo
criado) a serem vendidos para empreendimentos (superfícies solo cedit ). Tal regra, no Direito
interessados em edificar além do permitido pelo Brasileiro, consta do art. 545 do Código Civil
zoneamento original do local, um conjunto de Brasileiro, segundo a qual ‘ toda construção, ou
ações (ou investimentos em aparelhos urbanos) plantação, existente em um terreno, se presume
que tornam a área interessante para novos feita pelo proprietário e à sua custa, até que o
empreendimentos, e uma conta própria para gerir contrário se prove’ . / No caso do direito de
os valores recebidos pela venda dos metros superfície, enquanto o mesmo perdura, a
quadrados (virtuais) edificáveis que propriedade do dono do solo coexiste com a
ultrapassarem o zoneamento original da área. propriedade do dono das plantações ou
construções que se acrescentam ao solo. Trata-
21
A extrapolação do zoneamento deve ser se de exceção ao princípio de que o acessório
compreendida para além de seu aspecto segue o principal”. (PIETRO, 2002, p. 172).
negativo. Ao criar um limite, ainda que fictício,
para as construções, a lei de zoneamento criou,
24
A gleba da Telefônica pertencia originalmente ao
para a cidade, um limite de reprodução do capital. poder público, mais precisamente à Estatal
Essa barreira é superada por títulos que se T E L E S P ( Telefonia de São Paulo). Com a
compõe à lei do zoneamento para incrementar privatização, todo seu patrimônio foi incorporado
seus limites, decretando que a cidade adentrou ao da Telefônica, e assim essa grande gleba
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através de técnicas mais modernas de escritos do autor, datados de 1983-84, ele, ainda,
comunicação e controle da produção. O assinala que, mesmo em termos metodológicos,
empreendimento comercial ou industrial pode é possível examinar de perto e desenvolver o
desenvolver seus programas de controle pensamento de Marx, completando-o. É preciso
(mantendo uma equipe de analistas e sublinhar que a lógica fez grandes progressos;
programadores) ou adquirir licenças de quem ‘que se tornou operatória, isto é, que ela entra
realiza esse tipo de P&D na praça pública, o que na prática social; e isto cada vez mais com suas
é mais comum, por envolver gastos menores. aplicações que vão da organização do trabalho
Por sua vez, nesse segundo caso, a empresa de produtivo ao emprego militar e político dos
programas de computadores ao vender licenças computadores. Como não reconsiderar as
de seus produtos, adentra à produção relações da lógica e da dialética? Mesmo se
analogamente ao possuidor de capital a juros. permanecermos ligados a esta última, mesmo se
Ela, com seus softwares de controle, viabiliza a continuarmos a compreender, no sentido de Hegel
produção dentro das médias sociais e, dessa e Marx, o ‘ trabalho do negativo’(e isto no curso
produção, retira uma parte da mais-valia do do que se chama a ‘ crise’
), uma problemática
processo, que se funda sempre na produção. nova surge das relações entre a lógica e a
dialética’
. (Revue La Somme et le Reste – Études
32
Maiores detalhes dessa história podem ser obtidos
Lefebvriennes, 2002).”
nos livros indicados na bibliografia e no último
capítulo das dissertação de mestrado “O metrô 35
Compeende-se nessa telescopagem uma
chega ao centro da Periferia”. complexidade que extrapola a resolução da
condição público-privado da propriedade, e
33
A GPL, ou General Public Licence (Licença Pública
abarca o formato da Produção na discussão, a
Geral), é o termo que rege esse tipo de
qual passa a ser autogestionada, mediante um
propriedade. É um tipo especial de licença (ou
constante processo de pedagogia dos atores
decalque da propriedade) que, como outras
envolvidos. Esse é o maior ensinamento que Eric
licenças, não vende a propriedade, mas permite
Raymond extraiu do seu trabalho de campo
seu uso quase irrestrito por outras pessoas, desde
“implicado”, que consistiu na manutenção de um
que seus termos sejam respeitados. Dentre eles
sistema regido pela GPL. Parte dessa experiência
há uma cláusula de preço, por assim dizer, que
está reportada no texto-manifesto “A Catedral e
curiosamente não taxa as pessoas a pagarem
o Bazar”. A leitura desse texto revela,
dinheiro algum, mas a tornar igualmente GPL
induvidavelmente, uma profunda mudança nas
qualquer modificação, perpetuando o ciclo.
relações sociais sob a GPL, sendo Raymond,
34
“Esta sociedade não obedece a uma lógica, naquele momento, sua expressão.
repitamos-lo uma vez mais: tende para ela. Esta 36
A concessão de uso especial para moradia (MP
sociedade não representa um sistema; se esforça
2.220/2001), medida através da qual o poder
em sê-lo, reunindo o constrangimento e a
público cederia áreas públicas para particulares
utilização das representações.”(LEFEBVRE, 1976,
que as tivessem ocupado por mais de 5 anos,
p. 42). Ainda sobre a lógica, Damiani esclarece
carrega consigo uma série de avanços e também
que “No nível do real e no nível da representação,
imperfeições. Dentre os avanços havia, nos
nossa época, aquela da reprodução das
artigos vetados do Estatuto da Cidade, a
estruturas da sociedade moderna, faz a lógica
possibilidade de concessão coletiva, o que a
se tornar real, não só pensamento*. Somente
aproximaria da propriedade comunal. Quanto aos
considerando a interferência da lógica na
aspectos negativos, basta lembrar que esse
realidade concreta, como estratégia, como sócio-
instrumento não elimina a titularidade da terra,
lógica é possível compreender essa outra dialética
de modo que o poder Público pode intervir em
e estabelecer a passagem das contradições no
sua concessão direcionando a população para
espaço para aquelas do espaço.” (DAMIANI,
outra área, nas várias hipóteses elencadas no
2004, p. 85). E, em nota, Damiani complementa:
artigo 5º, realizando uma economia política do
*“Trata-se de uma das contribuições mais
espaço. Esse é o seu lado mais visível. Existem
significativas da obra de Henri Lefebvre. Em
outros, escondidos nos porões do Direito, como
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