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Eixo Temático
Quadrinhos e Linguagem
Resumo
Em Português, estranhamento quer dizer admiração, espanto diante de algo que não se
conhece ou não se espera – muitas belezas são estranhas; o estranhamento, entre outros
motivos, deriva de certa incompreensão semiótica. No universo da significação humana, não
há objeto fora da linguagem; enquanto significação, é na linguagem que esse objeto se define.
Desse ponto de vista, a significação emana da linguagem, inclusive as valorizações semânticas
capazes de determinar os limites e os alcances da beleza; por meio da linguagem, são
formados os valores que tornam a estética um campo semiótico tão tumultuado. No universo
das histórias em quadrinhos, entre as obras mais estranhas estão as histórias de Krazy Kat, de
George Herriman. Nossa comunicação trata desse estranhamento; pretende-se, em uma
abordagem semiótica, mostrar modos específicos de construir a realidade na obra de
Herriman, capaz de determinar seu estilo tão singular.
Abstract
The Portuguese word estranhamento means admiration, astonishment at something. That is
unknown or not expected – many beauties are strange, and thr strangeness arises, among
other reasons, from certain semiotic misunderstanding. In the world of humem meaning, there is
no object beyond the language; as meaning, this object is defined in the language; as meaning,
this object is defined in the language. From this point of view, the meaning comes from the
language, including semantic valuations that determine the limits and scope of beauty; the
values that make aesthetics a so tumultuous semiotic field are conceived through language. In
the world comics, George Herriman’s Krazy Kat stories are among the strangest works. Our
lecture deals with this strangeness; in a semiotic approach, we intend to show specific ways of
constructing reality in Herriman’s work, ways that are able to determine such unique style.
Palavras-chave
significação – semiótica – análise do discurso – metalinguagem – referencialização
Keywords
meaning - semiotics - discourse analysis - metalanguage - referenciation
O estranhamento
1
Professor Livre Docente. Departamnto de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo – SP, e-mail: avpietroforte@hotmail.com
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011
As tijoladas
Sem as tijoladas, praticamente não existiria Krazy Kat. Como boa parte
dos artistas das histórias em quadrinhos, Herriman publicou bastante nos
jornais da época; seu trabalho faz parte da primeira geração de quadrinistas
dos Estados Unidos da América, o que o coloca, também, entre os fundadores
da arte da HQ. Os textos do corpus são tiras de jornais; das 44 tiras, apenas
uma não é formada por uma charge depois do título, 8 quadrinhos e, entre eles,
há outra charge inserida na totalidade do texto. Além desse sintagma, que
articula uma HQ e duas charges na formação de um texto capaz de integrá-las
em uma totalidade de sentido, há outra constante na obra que garante sua
coerência semântica: toda a trama do universo de Krazy Kat está subordinada
a uma repetição narrativa cuja performance se realiza quando Ignatz Mouse
consegue, apesar das proibições do guarda Pupp, atirar um tijolo de encontro a
Krazy Kat.
Isso faria da relação gato versus rato imaginada por Herriman uma
variação daquilo que se repete nos desenhos de Tom e Jerry, Plic, Ploc e
Chuvisco, Bacamarte e Chumbinho, Ligeirinho e Frajola? Seriam Ignatz Mouse
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e Krazy Kat uma variação menos violenta das desventuras de seus sucessores
Comichão e Coçadinha, de Matt Groening, ou dos quadrinhos Squeak the
mouse, de Mattioli? Entre as investidas dos gatos iracundos – Jerry, Chuvisco,
Bacamarte – há as reações dos ratos em legítima defesa – Jerry, Plic e Ploc,
Chumbinho –, a relação entre Ignatz Mouse e Krazy Kat estaria bem mais
próxima das manias sádicas de Comichão e Coçadinha, uma vez que o gato
malvado não está à caça do rato bonzinho, mas o gato bonzinho, até boboca, é
a vítima do rato quase sociopata. Entretanto, a HQ se afasta do excesso de
violência em que gatos e ratos se estraçalham em banhos de sangue, tripas,
tiros e facadas ao estilo de Matt Groening ou Mattioli – cenas que já aparecem,
embora com menos intensidade, nas outras duplas ou trincas. Uma tijolada na
cabeça é um fazer bastante violento, sem dúvida, mas em Krazy Kat sua
recorrência leva a crer que trata de algo diferente da tematização da violência
por hipérbole em relação a outras perseguições, como parece ser nos casos de
Comichão e Coçadinha e Squeak the mouse. Além do mais, no lugar dos
envenenamentos, cortes, mutilações, etc. dos mais variados, na HQ de
Herriman, Ignatz Mouse se vale sempre de seus tijolos.
Tomada facilmente como uma atitude sem sentido, essa forma
narrativa, que garante a semiose das tiras de Krazy Kat, tenderia a fazer crer
que sua função seria apenas a de não fazer sentido em uma tira também sem
sentido – afinal, qual o sentido de uma HQ que diz sempre a mesma coisa, que
insiste sempre numa tijolada? A seu modo, talvez Herriman seja um artista
conceitual antes da cunhagem do termo pelas vanguardas norte-americanas da
segunda metade do século XX; sua repetição faria sentido além do nonsense.
Para confirmar essa impressão inicial a respeito de seu trabalho, convém
analisar a semiose dessas tijoladas, buscando determinar, na dinâmica da
narrativa, quando elas ocorrem. A tira do dia 14 de fevereiro é um bom
exemplo do que se pretende propor como uma explicação semiótica das
tijoladas de Herriman, porque explicita, com bastante ênfase, a retórica em que
a atitude do rato pode encontrar sua significação.
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011
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Por meio do exemplo, percebe-se que Ignatz Mouse acerta Krazy Kat
quando ele – não se sabe ao certo se Krazy é gato ou gata – realiza aquilo que
o caracteriza tanto quanto as tijoladas de Ignatz, sua deriva para construir a
linguagem por meio de delírios figurativos, insistindo, quando se trata de
linguagem verbal, naquilo que se poderia chamar, com inspiração nos estudos
de Ferdinand de Saussure a respeito do tema, percursos anagramáticos.
Para Saussure, um anagrama se forma quando uma palavra ressoa em
outras palavras, o que faz com que a aliteração, a assonância, a rima, a
paronomásia, o acróstico e o tradicional anagrama – palavra obtida pela
transposição das letras de outra palavra –, entre outras figuras de linguagem,
sejam considerados, desse ponto vista, anagramas. Cuidadoso, o tradutor
Heitor Pitombo faz questão de chamar atenção para as falas do gato e as
dificuldades de reproduzir em português o original em inglês – de acordo com
as notas, Krazy Kat faz vários trocadilhos com as palavras pine, pineapple,
apple, appeal, apple of the eye, Minneapolis, etc., insistindo, em seus jogos
verbais, que uma palavra ressoe em outras ao longo de seu discurso. Isso se
dá na HQ do primeiro ao sexto quadrinho quando, no sétimo, ocorre a tijolada
e, no oitavo e último quadrinho, a reprimenda do guarda Pupp. A tijolada,
portanto, colocaria fim nos delírios anagramáticos do gato e permite propor,
pelo menos, duas questões: trata-se de uma particularidade da tira ou de uma
recorrência narrativa de toda a série? Tratando-se de uma recorrência, qual
seria seu estatuto semiótico?
Embora com frequência, não é sempre que Krazy Kat faz seus
anagramas; contudo, os percursos anagramáticos do gato estão de acordo
com um processo semiótico mais geral, do qual ele sempre se vale em seus
discursos. Krazy Kat vive em um regime semiótico que se poderia chamar
delirante; seja em suas falas, seja em suas ações, o gato articula uma visão de
mundo que vai de encontro – como as tijoladas vão de encontro a ele – a
visões supostamente mais “realistas” – inclusive, a contundente “realidade” das
tijoladas. Desse modo, entre outros temas, é possível apresentar a hipótese de
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A articulação da realidade
A insinuação metalinguística
Bibliografia
2003.
SAUSSURE, F. de – “As palavras sob as palavras” em Os pensadores. São
Paulo, Abril Cultural.