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REENCARNAÇÃO: A QUEDA DO MITO DO “DOM MUSICAL” 1

Tiago de Lima Castro2

Resumo

O dom musical é um mito que tem influenciado a educação musical por muito tempo. O
meio sociocultural explica certos casos de grandes músicos, mas casos excepcionais, como Hermeto
Pascoal e muitos outros, levam o dom musical a sobreviver. Esse mito traz consequências negativas
à educação musical, já que o dom musical minimiza a ação do educador, como maximiza o orgulho
e egoísmo de educando, já que é um escolhido do transcendente ou do acaso. A reencarnação
permite explicar racionalmente essas habilidades inatas, como decorrentes de outras existências,
mas mostrando a influência do meio sociocultural, trazendo tanto soluções para a educação musical
tanto em seu aspecto pratico intelectual, como no aspecto moral, pois o educando torna-se um
indivíduo o qual pode ter potencialidades inatas, mas ainda necessita atualizá-las através de sua
existência, com a ajuda inclusive do educador.

Palavras-chave: educação musical, dom musical, reencarnação.

Summary

The gift for music is a myth has influenced music education for a long time. The social
cultural environment explains some cases of great musicians, but exceptional cases, such as
Hermeto Pascoal, and many others, take the gift for music to survive. This myth brings negative
effects to music education, since the gift for music minimizes the action of the educator, and
maximizes the pride and selfishness of a student, since he is a choice of the transcendent or of the
fortuity. The reincarnation allows rationally explain these innate abilities, as a consequence of other
existences, but showing the influence of the social cultural environment, bringing solutions to music
education both in its intellectual-practical aspect, as in the moral aspect, because the student
becomes an individual who may have innate potential but still needs to update them through their
existence, even with the help of the educator.

Keywords: music education, gift for music, reincarnation.

Introdução

1
Trabalho apresentado no dia 06/09/2010 no 1º Congresso Internacional de Educação e Espiritualidade e 4º
Congresso Brasileiro de Pedagogia Espírita.
2
Professor de Música no Conservatório Musical de São Caetano do Sul, e técnico em música pela mesma
instituição. Licenciando em Filosofia na Universidade Metodista de São Paulo. Expositor do IEEF (Instituto Espírita de
Estudos Filosóficos) e tarefeiro do Grupo Espírita Seara das Fraternidades. E-mail: tarpia@yahoo.com.br
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Sempre quando pensamos ou discutimos o ensino musical, desembocamos no mito do dom


musical e as questões polêmicas suscitadas. Afinal, se a habilidade musical é um dom, significa que
o ser somente poderá desenvolver essa habilidade se já o tiver, por motivos inexplicáveis
normalmente, e ao mesmo tempo, se o ser já tem esse dom, por consequência não há necessidade de
grande esforço por parte do educador, afinal o educando já tem o dom, e da mesma forma, o
educando por já tê-lo pode não considerar necessário esforçasse para desenvolvê-lo.

Pesquisas são realizadas buscando resolvendo este conflito através de teses onde o meio
em que o indivíduo está inserido é preponderante em seu desenvolvimento musical, mas por mais
que essas teorias explicam parte dos casos, ainda não explica em totalidade a precocidade musical
de muitos indivíduos, tendo como consequência apelar-se para o mito do dom musical.

Inicialmente, traremos uma definição para dom musical, de forma a guiar o trabalho com
precisão conceitual, em seguida mostraremos algumas das teorias da influência do meio.
Posteriormente, abordaremos a teoria da reencarnação 3, a qual articula uma teoria racionalmente
coerente para o dom musical e realiza sólida interface com as teorias vigentes, e destacando as
consequências desta teoria tanto para o educando, como para o educador.

O mistério do Dom Musical

A palavra “dom” tem como sinônimo os termos dádiva e presente, também desembocando
em um sentido teológico no qual dom é um “bem espiritual proporcionado por Deus”
(MICHAELIS, p. 296). Fucci Amato (2008) nos diz que

predomina no senso comum a visão de que o artista é um ser que foi


escolhido por uma entidade divina para receber um dom especial, que o
distingue do restante dos seres humanos. Idéias como destino, talento inato,
predestinação, ligadas a teorias religiosas e à ideologia veiculada pelos
meios de comunicação em massa, contribuem para formar nas pessoas a
concepção de que um músico, um pintor, um ator já nasceram para realizar
aquela atividade e são pessoas „únicas‟ e „especiais‟. (AMATO, 2008, p. 81)
Vemos esse senso comum no imaginário popular onde “os violeiros tradicionais acreditam
que a arte de pontear a viola é o dom de Deus: quem não nasceu com o dom nunca conseguirá tocá-
la, a não ser que faça um pacto-com-o-outro-lado [Diabo]” (CORREA, 2002, p. 46).

Por mais que existam pesquisas em busca de explicações mais racionais ao dom musical,
com propostas muito interessantes inclusive, ele ainda é um fato cultural, alimentado devido aos
casos de crianças com grandes habilidades musicais em tenra idade, as quais incluem desde grandes

3
Aqui ela é abordada dentro da Teoria do Conhecimento Espírita, definida e utilizada por Kardec (2004,
2005a, 2005b) e que Sayegh (2004) destaca e fundamenta a partir da tradição filosófica.
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compositores até mesmo anônimos, os quais podem, às vezes, serem classificados como
superdotados, ou mesmo outras classificações psicológicas e psiquiátricas. Mesmo em grupos de
crianças em escolas comuns, vemos diferenças na velocidade de aprendizado musical, o que
realimenta o mito.

De maneira que ainda há necessidade de alguma teoria que seja capaz de oferecer um
pensamento racional o qual organize e estruture todas estas vivências na educação musical sem
necessitar apelar ao incognoscível, a dogmas fideistas ou mesmo ao irracionalismo.

A influência do meio sociocultural

Fucci Amato (2008) analisa o problema dentro de uma linha sociológica para mostrar que
o ambiente familiar é o gatinho do desenvolvimento musical, utilizando de biografias de músicos
como Carlos Gomes, Almeida Prado, Villa-Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque, Milton Nascimento,
João Bosco, entre outros. Partindo do conceito de capital cultural, de Pierre Bordieu, à educação
musical, chega à conclusão que não há necessidade da existência do dom musical, devido ao meio
cultural onde o ser está inserido, seja suficiente para despertar as suas potencialidades musicais. Em
meio ao seu trabalho, nega inclusive a possibilidade de uma explicação genética para as habilidades
musicais de grandes músicos, que não deixa de ser uma reedição do dom musical, mas agora em
uma concepção materialista.

Pederiva (2009) delineia sua tese, buscando uma alternativa ao dom musical, partindo do
princípio que a musicalidade é uma habilidade natural, derivada da fala, que ao inserir-se
culturalmente, traz modificações nessa faculdade. No percurso, destaca os aspectos psicológicos do
indivíduo em relação à atividade musical, desembocando em uma análise da escolarização do
ensino musical por pressupostos mercantilistas. Dessa forma, delineando um percurso biológico da
potencialidade musical, a qual sofre alterações em sua inserção cultural, aonde se transforma e
alimenta, mas relacionando-se com a particularidade do indivíduo nesse processo.

Poderíamos pensar em outras análises do ensino musical, mas vemos que as explicações
tendem a colocar como o meio, familiar, social como explicação para o desenvolvimento musical
do indivíduo. Mas estas explicações não conseguem explicar plenamente casos excepcionais como
de músicos como Hermeto Pascoal, Mozart, etc.

Ao analisar a trajetória de Hermeto Pascoal, Neto (1999) chega a ficar consternado com o
fato de o músico ter desenvolvido sua linguagem musical característica sem ter grande contato com
a música erudita produzida no século XX, tendo sua iniciação musical em Arapiraca, no estado de
Alagoas, mas em pleno interior, sem nenhum ensino musical formal. Ao verificarmos sua biografia,
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vemos que seus irmãos eram músicos – no caso, seus irmãos executavam a música regional de
maneira tradicional - mas diferentes de Hermeto, que chegou a uma linguagem própria e
plenamente contemporânea e um domínio sobre uma série de instrumentos musicais, inclusive
transformando objetos como copo d´água, broca de dentista, entre outros, em instrumentos
musicais, sendo autodidata em diversos aspectos.

Por mais que não devemos negar a forte influência da inserção histórico-cultural do músico
como meio de seu desenvolvimento, não podemos considerar que esta explicação abarque todos os
casos, desde aqueles excepcionais aos indivíduos comuns.

A reencarnação como interface entre as habilidades inatas e o meio sociocultural

Partindo da reencarnação não como dogma fideista, mas sim como dogma de razão, ou
seja, como um princípio lógico, como nos mostra Pires (2005) e São Marcos (2001), pelo qual
deduziremos as consequências para concepção do ser, de maneira á articular as habilidades inatas
apresentadas por muitas crianças com a influência do meio sociocultural.

Kardec (2004) nos traz uma nova concepção de ser humano, e por consequente, de
educando e educador, a qual o indivíduo é um Espírito encarnado, ou seja, um Espírito imortal, pré-
existente, o qual está inserido na existência física. Os Espíritos, sem exceção, foram criados
“simples e ignorantes” (KARDEC, 2004, p. 86), os quais através das sucessivas encarnações vão
atu-alizando suas potencialidades intelecto-morais. Mas estes Espíritos, quando desencarnam – no
sentido de morte do corpo físico – não se dissolvem no Todo Universal, mas conservam sua
individualidade, tendo em si todo o percurso evolutivo, todas as ações, pensamentos, sentimentos,
aprendizados, equívocos, etc. A obra também nos mostra que a reencarnação tem como “fim de
levá-los à perfeição” (KARDEC, 2004, p. 91) relativa à qual o Espírito deve chegar.

Com toda essa bagagem adquirida ao longo de seu percurso evolutivo, ao retornar a
existência material, o Espírito carrega todo esse conteúdo em forma de tendências latentes e ideias
inatas, as quais vão emergindo ao longo da infância, também com as potencialidades ainda não atu-
alizadas para a continuidade da ascensão progressiva e teleológica do Espírito. Efetivamente, o
Espírito insere-se na existência com todo seu percurso evolutivo, mas ainda tendo percursos a
trilhar, os quais serão trilhados pelo próprio, através de suas novas vivências, das condições de seu
organismo físico, como Kardec (2004) nos mostras na questão 369, e das condições socioculturais
onde se insere.

Seria muita pretensão trazer todas as consequências da teoria da reencarnação, como


tratada por Allan Kardec, mas podemos ver algumas consequências para a educação musical.
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Consequências para o educando

Pires (2004) nos diz que o “educando é um reencarnado” (PIRES, 2004, p. 152), o que traz
gravíssimas consequências, pois sendo o educando um Espírito imortal, cheio de potencialidades a
serem atu-alizadas, portanto todo indivíduo, independe inclusive da idade física, tem a
possibilidade de aprender música. Aqueles que logo na infância inserem-se em um meio
sociocultural onde tem maiores condições de desenvolver as potencialidades relacionadas à Música,
irão ter um desenvolvimento mais precoce. Mas como este Espírito tem todo um percurso anterior,
todo este aprendizado anterior torna-se “origem das faculdades extraordinárias dos indivíduos que,
sem estudo prévio, parecem ter a intuição de certos conhecimentos” (KARDEC, 2004, p. 115),
entre eles o conhecimento musical.

De forma que o indivíduo com extrema precocidade musical, mesmo em situações onde o
meio não faculta ou explica essa precocidade, tem origem no esforço realizado em vidas anteriores.
Mas esta precocidade, quando se explica por um dom musical de origem sobrenatural, incentiva o
orgulho e o egoísmo do indivíduo, mas com a reencarnação, ele traz estas faculdades inatas às quais
necessitam ainda ser desenvolvidas, abastecidas por novos estudos e aprendizados. A teoria da
reencarnação torna-se um meio de equilíbrio ao próprio indivíduo que não mais é um escolhido do
acaso ou do transcendente, mas alguém que já realizou trabalhou sua faculdade musical e ainda tem
necessidade de trabalhá-la.

O educando comum também tem as mesmas potencialidades a serem desenvolvidas, ou


seja, não há barreiras em seu aprendizado – a não ser em certas situações onde o organismo
apresenta empecilhos – que impeçam o seu desenvolvimento, fazendo-o ver que ele pode
desenvolver-se musicalmente se esta for sua vontade, e quando bem orientado, mas sem acreditar
em métodos milagrosos para criar gênios musicais. Mesmo pessoas sem tanta precocidade podem
profissionalizar-se nas diversas áreas musicais, já que a potencialidade musical é imanente ao ser,
como todas as demais.

Nos dois casos, o meio sociocultural em que o indivíduo está inserido, também é essencial,
de maneira que esse meio pode facilitar ou dificultar a atu-alização dessas potencialidades, de
forma que as teorias sobre o meio sociocultural também participam da própria reencarnação, mesmo
como já exposta por Kardec (2004).

Portanto, a reencarnação traz uma explicação racional para a existência de habilidades


inatas em música, ou seja, racionalizando o dom musical, da mesma maneira que dialoga com as
teses sobre a influência do meio sociocultural, confirmando-as e expandido-as como uma visão que
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abrange diversas existências, e também demonstrando a potencialidade natural à música em todos


os indivíduos, retirando qualquer barreira cultural ou ideológica ao aprendizado musical.

Consequências para o educador

Incontri (2006 e 2008) nos diz que “o educador deve ser justamente o agente de
mobilização da vontade de evolução do educando” (INCONTRI, 2006, p. 247), de maneira que ele
torna-se um agente que leva o indivíduo a buscar desenvolver-se, mesmo ele também tendo
potencialidades ainda a serem desenvolvidas.

Na educação musical isto traz grande mudança, pois todos os educandos, sem exceção, tem
a mesma potencialidade musical, somente existem alguns que já a atu-alizaram; o educador com
seu método, postura e relacionamento com o educando torna-se fator essencial, pois o educador não
pode utilizar-se do mito do dom musical como resposta as dificuldades apresentadas pelos
educandos, saindo de uma posição cômoda onde o educando se realiza progressos, é por já ter o
dom musical; se não, é porque não apresenta esse dom inato e transcendente.

Outra consequência, é que cada educando deve ser visto não mais como uma tabula rasa
onde o mesmo método pode ser aplicado, mas que ele deve buscar o educando em sua
individualidade, buscar ver onde este ser já se desenvolveu, para ver o que o ajudará a desenvolver-
se, já que a potencialidades musicais são diversas.

Da mesma maneira, tendo consciência do processo pedagógico como interexistencial4, ou


seja, abrangendo diversas existências, o educador torna-se atento também para o equilíbrio moral do
educando, buscando ajudá-lo a não cair nas malhas do orgulho e do egoísmo, que podem acabar por
estacionar o seu desenvolvimento musical, as quais podem derivar-se do mito do dom musical.

Conclusão

Vimos que o dom musical está ainda enraizado, mesmo havendo outras propostas melhor
fundamentadas, devido a não haver um pensamento racional que integre todos os casos.

Verificamos que a teoria da reencarnação, em um olhar filosófico como princípio lógico,


realiza uma interface entre as teorias da influência sociocultural com a as faculdades inatas de
certos indivíduos, trazendo além de uma solução racional para o problema do dom musical, uma
série de soluções para os problemas da educação musical, e também da vivência musical, cheio de
quedas devido à inflação do egoísmo e do orgulho gerados pelo conceito de dom musical.

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Nomenclatura utilizada por Herculano Pires (2005 e 2008), na articulação do Existencialismo Espírita.
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Hoje, em que além da solução filosófica trazida pela reencarnação há pesquisas científicas
continuando, de certa maneira, o trabalho iniciado por Allan Kardec no século XIX, precisamos
pensar numa educação musical com o suporte lógico da reencarnação, como forma de ver o
educando de maneira integral, e resolvermos os dilemas tanto pedagógicos, como na vivência
musical do indivíduo.

Referências

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http://www.hermetopascoal.com.br/biografia.asp>. Acesso: 01 jul. 2010.
CORREA, R. A arte de pontear a viola. 2. ed. Brasília: Viola Corrêa, 2002.
FUCCI AMATO, Rita de Cássia. Capital cultural versus dom inato: questionando
sociologicamente a trajetória musical de compositores e intérpretes brasileiros. Opus, Goiânia,v.
14, n. 1, p. 79-97, jun. 2008. ANPPOM
INCONTRI, D. A Educação Segundo o Espiritismo. Bragança Paulista: Editora
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____________. Pedagogia Espírita – Um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança
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KARDEC, A. A Gênese: Os milagres e as predições segundo o Espiritismo. São Paulo,
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SAYEGH, A. Ser para conhecer, conhecer para ser. São Paulo: Edições FEESP, 2004.

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