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Tomo I
Introdução Cultural
Pascásio como Tradutor
Texto Crítico
Título: A Versão Latina por Pascásio de Dume dos Apophthegmata Patrum. Tomo I
Conselho Editorial: José Ribeiro Ferreira, Maria de Fátima Silva, Francisco de Oliveira e Nair
Castro Soares
Impressão: Simões & Linhares, Lda. Av. Fernando Namora, no 83 - Loja 4 3000 Coimbra
Universidade de Coimbra Faculdade de Letras Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 733
ISBN: 978-989-8281-81-4
ISBN Digital: 978-989-8281-82-1
Depósito Legal: 325994/11
POCI/2010
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José Geraldes Freire
Universidade de Coimbra
Coimbra
2011 — 2ª edição
Notas Introdutórias v
Notas Introdutórias
A vinte e seis de Janeiro de 959, a condessa D.
Mummadona Dias legou uma copiosa doação ao mosteiro de
Guimarães1. Entre os uiginti libros ecclesiasticos deixados, figuram
umas uitas patrum cum gerenticon. Trata-se de um testemunho
que confirma a extraordinária recepção da primeira literatura
monástica no Ocidente latino e, em especial, da manutenção do
interesse pelas biografias e pelas sentenças dos padres do deserto
enquanto fontes de inspiração que o eram para as comunidades
monásticas. Não é possível ter a certeza quanto aos textos referidos
sob a titulação indicada, mas estamos em crer que seguramente
se tratava de representantes da obra encetada por S. Martinho de
Dume, Apóstolo dos Suevos na Galécia precisamente a partir de
550.
S. Martinho, que em 556 foi consagrado bispo de Dume
e auxiliar de Braga, foi também o introdutor da vida monástica
no Noroeste hispânico, tendo fundado o mosteiro de Dume por
550. Entre as suas realizações, traduziu do grego uma colecção
das Sententiae Patrum Aegyptiorum2. Encomendou também a
um seu discípulo, Pascásio, monge em Dume, a tradução para
latim de uma colecção, em grego, de Apotegmas dos Padres que,
segundo o prefácio do dito volume, justamente se inicia por Vitas
patrum Graecorum ut cetera, facundia studiose conscriptas, iussus
1
PMH, DC, doc. 76: 44-48, 47.
2
O título completo, apurado por Freire, José Geraldes, (vide infra: 8-11)
será Sententiae Patrum Aegyptiorum quas de graeco in latinum transtulit Martinus
Dumiensis episcopus.
vi Paula Barata Dias
10
J. G. Freire omite os atributivos Diacono dado por Rosweydus, assim
como o título honorífico de Beato que se encontra nos principais manuscritos,
por não se encontrarem fundamentos históricos que o justifiquem (vide infra:
40).
Notas Introdutórias xi
11
Freire, J. G. (vide infra: 40). Os quadros dos lugares paralelos, e as
remissões para as respectivas edições, encontram-se em 43-53. Também a
edição de Bousset, W. (1923) Apophtegmata. Studien zur Geschichte des ältesten
Mönchtums, Tübingen apresentou quadros paralelos que facilitaram o confronto
entre a tradição grega e a latina.
12
Cotelier, J. B. Ecclesiae Graecae monumenta, I, 1677, também em PL 65:
71-440 edita uma colecção alfabética de 120 padres a que se atribuíram 946
apotegmas. Nau, F. (1907-1913) “Histoires des solitaires égyptiens” Revue de
l’Orient Chrétien 12: 48-69; 171-189; 393-413. 13: 47-66; 266-297. 14: 357-
379; 17: 204-211; 294-301; 18: 137-146. Nau publica uma colecção de 400
apotegmas anónimos.
xii Paula Barata Dias
13
Freire, J. G. (1974) Commonitiones Santorum Patrum, Uma Nova Colecção
de Apotegmas, Coimbra.
xiv Paula Barata Dias
14
Batlle, C. M., (1972) Die Adhortationes sanctorum partum (“Verba
seniorum”) in lateinishchen Mittelalter, Münster. O autor, então monge beneditino
de Montserrat (Catalunha), apresenta as primeiras referências literárias às
Vitae Patrum e a recepção das mesmas ao longo da Idade Média, procedendo
ao levantamento da transmissão manuscrita das obras de Pelágio e João, sem
contudo apresentar uma proposta de revisão da edição de Rosweydus.
Notas Introdutórias xv
15
Atanase d’Alexandrie, Vie d’Antoine, ( 1994 ) texto grego e trad. francesa
por Bartelink, G. J., Souces Chrétiennes. A tradição literária sobre S. Pacómio é
muito complexa, mas, para a recepção de S. Pacómio no mundo greco-romano,
sobressaem Paládio, num dos capítulos da Historia Lausiaca (Butler, C., (1898;
1904) Paladio, La Historia Lausiaca, Una discusión crítica; II. El texto griego en
Textos y Estudios, VI, Cambridge, 2 vols; Halkin, F. (1932) Sancti Pachomii
Vitae Graecae, Societé des Bollandistes, Subsidia Hagiographica 19.
xviii Paula Barata Dias
a l’époque des Pères, Lyon: 41 Nesta obra, os autores estudam as origens da vida
monástica nas comunidades eclesiais urbanas do Oriente, Síria, Capadócia,
Palestina e na Gália “plutôt que de tout ramener a une seule racine, il faut
reconnaître que le monachisme s’est formé spontanément en de nombreux
points, au sein de l’église locale”.
17
Judge E. (1977) “The Earliest use of Monachos for ‘monk’ and the
origins of Monasticism”, Jahrbuch fur Antike und Christentum 20: 72-89. Trata-
se de uma petição legal, em que um Aurelius Isidorus se queixa de ter sido
agredido no campo, e que fora salvo da morte pela intervenção de um diácono
de nome Antonino, e de um “monachos”, de nome Isaac. No Ocidente, Conc.
de Saragoça, em 380, c. 6, tit: “ut clericus qui propter licentiam monacus uult
esse excommunicetur” (Vives, J. (1963) Concilios Visigoticos e hispano-romanos,
Madrid, p. 17. Esta disposição canónica pretende limitar as “deserções” do
estado clerical por causa do prestígio da condição de monge “propter luxum
uanitatemque praesumptam”. Trata-se de um texto muito interessante, na
medida em que o estatuto de monge parece presumir uma promoção social,
o que suscita uma reacção do episcopado no sentido de reduzir a fuga dos
clérigos em busca dessa condição mais apelativa.
Notas Introdutórias xix
18
Burton, Ph., (2000) The old latin gospels. A study of their texts and language,
Oxford: 14-18, veja-se a importância do cristianismo africano na produção das
primeiras versões latinas do NT : “The african tradition is universally agreed
to be the earliest identifiable continuous translation of the Gospels”,.Quasten,
J. (1953), Patrologia, I, cap. V “Las primeras Actas de los Martires”: 177-181
(trad. esp. BAC, Madrid, 2001) Os Actos dos Mártires Escilitanos em África
e os Actos Proconsulares de S. Cipriano contam-se entre os mais antigos
documentos literários cristãos em latim, e são relativos a acontecimentos dos
finais do séc. II aos inícios do séc. III. Bagnall, R. ; Worp, K. (2003) “The Era of
Diocletian and of the Martyrs,” The Chronological Systems of Byzantine Egypt,
Leiden: 63-87. Marrou, H. –I. (1963) L’Eglise de l’Antiquité tardive, p. 19-22.
“En Orient, la persécution a été beaucoup plus sévère et s’est prolongée, avec
quelques periods de remission il est vrai, jusqu’au printemps 313, les souverains
successifs qui ont régné sur l’Égypte, la Syrie et l’Asie Mineure n’ayant cessé
d’être de plus en plus hostiles au christianisme”. As perseguições no Egipto
marcaram o carácter da Igreja alexandrina como uma igreja especialmente
combativa, uma “igreja de mártires”. Frankfurter, D. (1994) “The cult of the
xx Paula Barata Dias
21
Fomos sensíveis a um outro argumento para justificar a importância
do Egipto nas origens do monaquismo, que é o do “privilégio topográfico”
(Goehring, J. E. (2003) “The dark side of Landskape: Ideology and power in
the christian myth of the desert” Journal of medieval and early modern studies
33: 437-451). Assim a paisagem egípcia, com uma topografia e uma ocupação
humana que segregavam a zona habitada da zona desértica, fornecia o cenário
perfeito para o contraste espiritual entre a cidade, o mundo habitado, e o
deserto, o espaço de todos os desafios.
22
Egéria, (1058) Itinerarium, Franceschini e Weber R. ed., CCSL ,175
176. A designada por Hélène Petré, Peregrinatio Aetheriae (SC 21, 1947) é
tratada desde 1967 por Itinerarium Egeriae e correspondeu a uma viagem real,
tendo sido datada com todo o rigor de Março de 381 à 2ª feira da Páscoa de
384 (25 de Março de 384) pelo Bolandista Paul Devos (Analecta Bollandiana
xxiv Paula Barata Dias
nº 1-2, 1967)
23
Historia Monachorum in Aegypto, édition critique du texte grec et traduction
annotée, (1971), A. J. Festugière ed. e trad, Bruxelles, prologus: 5-8. Palladius,
(1898-1904) Historia Lausiaca, 2 vols, Cambridge.
24
Boon, A. (1932) Pachomiana latina. Praecepta, Praecepta et instituta,
Praecepta atque iudicia, praecepta et leges, Epistulae S. Pachomii, Lovaina. PL, 23:
17 ss. Kozik, I. S., (1968) The first Desert Hero “Vita Pauli with introduction,
notes and vocabulary, Mount Vernon.
25
Há uma tradução latina anónima anterior à de Evágrio (Bartelink,
G.J., (1974) Vita di Antonio, Rome (texte critique, traduction italienne et
commentaite).
Notas Introdutórias xxv
26
Ver nota 6. Jean Cassien, De Institutis Coenobiorum J. Cl. Guy ed. e
trad., (1965) Sources Chrétiennes 109, Paris.
xxvi Paula Barata Dias
27
Krawiec, R. (2008) “Asceticism”, The Oxford Handbook of Early
Christianity, Harvey, A. S. e Hunter, David eds, Oxford: 764-779. (p. 767, cit.:
“Scholars have agreed that asceticism is performance…” p. 768, cit: “Christian
asceticism has its roots in the New Testament, and indeed ascetical passages in
scripture have provided an area of historical investigation for earliest Christian
asceticism”. Não consideramos aqui, por razões de espaço, os textos das
primeiras gerações apostólicas, como a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas,
o Evangelho de Tomás, os Actos de Paula e de Tecla, cujos contornos ascéticos
foram apontados por extensa bibliografia (vide op. cit.: 781 ss, estudos acerca
do ascetismo na literatura cristã até ao séc. IV.
xxviii Paula Barata Dias
28
O convite à imitação de Cristo (Ef. 5, 1-2 “Sêde, pois, imitadores de
Deus, como filhos muito amados. Progredi na caridade, segundo o exemplo
de Cristo
“. A exortação paulina ao combate espiritual (Ef. 6, 18). Em Col. 3,
1-15, a finalidade do ascetismo cristão. A caminhada cristã apresentada como
uma “corrida”, ou uma “luta” (1Cor. 9, 24-26); ainda a temática ascética em S.
Paulo 2Tim. 2,5; 4, 7-8.
29
(Act. 2, 42-43) “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna,
à fracção do pão, às orações. Perante os inumeráveis prodígios e milagres
realizados pelos apóstolos, o temor dominava todos os espíritos”; (Act. 4, 32-
35) “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma
só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas, entre eles, tudo
era comum. E era com grande poder que os apóstolos davam testemunho da
Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia. Entre eles
não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas
vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos
apóstolos. Distribuía-se então a cada um conforme a necessidade que tivesse”.
30
O passo em causa, também em Lc. 18, 18-25, é fundamental para
a noção de que ser-se cristão implica a adopção gradual de medidas que
Notas Introdutórias xxix
35
Eusébio de Cesareia, Historia Ecclesiastica 6, 40-42 (PG 21). O
historiógrafo, citando Dioniso o Germano em carta dirigida a Fábio, Bispo
de Antioquia, narra detalhadamente os efeitos da perseguição de Décio sobre
os cristãos alexandrinos. Menciona explicitamente a “multidão” de cristãos que
buscou refúgio no deserto e foi consumida pela fome, sede, doenças, bandidos,
animais selvagens ou escravizada pelos bárbaros sarracenos. Mas os que lhes
sobreviveram, no deserto, são chamados de “mártires”, no sentido exacto da
palavra, ou seja, “assistiram” à vitória dos que sacrificaram a vida terrena à sua
condição de cristãos, incompatível com a ordem de Décio.Também Chaeremon,
Bispo de Nilo, fugiu para o deserto com a sua esposa e nunca mais foi visto.
O termo “mártir”, neste passo, não se aplica aos que pereceram, mas aos que
sobreviveram à perseguição. Trata-se de um testemunho muito interessante,
enquanto explicação plausível, não só para a presença circunstanciada de
cristãos no deserto, como também da especial ligação entre o conceito de
martírio e o de eremitismo.
xxxii Paula Barata Dias
37
CTh 9.40.16, 10.3.1-2. Labriolle, P. de, (1934, reed. 2003) La Réaction
païenne, Étude sur la polémique antichrétienne du Ier au VIe siècle, préface par
Jean-Claude Fredouille, Paris, 2006.
38
S. Jerónimo Ep. 39, 6.
39
Malone, E. (1950) The Monk and the Martyr: the Monk as the Successor of
the Martyr. Washington, D.C.: Catholic University of America Press. Vööbus,
A. (1960) The History of Asceticism in the Syrian Orient: A Contribution to the
History of Culture in the Near East. Vol. I: The Origin of Asceticism, Eastern
Monasticism in Persia. Louvain: 10-12; 69-90. Dias, P. Barata (1997) “A
espiritualidade do monaquismo antigo: suas origens, suas características, sua
evolução”, Arquipélago 14: 211-230. Histoire de L’Église des Origines à nos jours,
De la paix Constantinienne à la mort de Théodose, Labriolle, P. de et al. ed., Paris,
xxxiv Paula Barata Dias
40
Festugière A. J. (1960) Les Moines de l’Orient. I Culture ou sainteté
introduction au monachisme oriental, Le Cerf. (Cf. 1Cor 3,19: “a sabedoria do
mundo é loucura aos olhos de Deus”. Festugière estuda, a partir dos primeiros
documentos que relatam as experiências monásticas, a atitude crítica em
relação à cultura e ao racionalismo, característicos do mundo antigo, bem como
a apologia que a cultura monástica faz do anti-intelectualismo.
41
Brown, P. (1971) The rise and function of the Holy Man in Late
Antiquity”, Journal of Religious Studies 61: 80-101; id. (1983) “The saint as
Exemplar in Late Antiquity” Representations, 1-2: 1-25.
42
Regnaut, L. “Aux origines des Apophtegmes”, Les pères du desert à
travers leurs Apophtegmes, Solesmes: 57-58. Burton- Christie, D. (1993) The
Word in the desert, scripture and the quest for holiness in early christian monasticism,
Oxford, s.v. “The sayings of the desert fathers”: 76-103
xxxvi Paula Barata Dias
43
Gould, Graham, (1993) The Desert Fathers on Monastic Community,
Oxford. Gould estuda os elementos que, nos apotegmas, denunciam a existência
de relações interpessoais que reclamam a expressão de regras de conduta social
e a definição de uma moral que regule as relações entre os monges que vivem
em vários desertos, sendo os mais célebres as nas colónias monásticas de Scétis
(um monaquismo de realização muito diversificada). Os ascetas devem assim
evitar as falhas que o prejudicam na sua relação com o outro: a ira, a inveja, a
maledicência. Guy, J. –Cl. (1961) “Les Apophtegmata Patrum”, Théologie de la
Vie Monastique, Paris: 73-83. Também Burton Christie (1993) The Word in the
desert…: 5) fala da “charismatic relationship between master and disciple”.
xxxviii Paula Barata Dias
46
Regnaut, L. (1981) “Les apophtegmes en Palestine aux V-VI
siècles, Irénikon 54: 320-330. Harmless, W. (2000) “Remembering Poemen
Remembering: the Desert Fathers and the Spirituality of Memory”, Church
History, 69: 483-518. Constitui este um dos primeiros estudos que, ao que
sabemos, se debruçou sobre a hermenêutica da criação literária apoftegmática.
Segundo Harmless (p. 484), este grupo de fugitivos eram sete monges. Também
Bitton- Ashkelony and Kofsky A. (2000) “Gazan Monasticism in the fourth-
sixth Centuries: from Anchoritic to Cenobitic”, Proche-Orient Chrétien 50:
14-62.
47
Guy, J. C. (1984), Recherches…: 231-232.
xl Paula Barata Dias
48
Evágrio do Ponto, uma das vozes identificadas nos Apotegmas como
um dos padres do deserto, foi o primeiro asceta a teorizar sobre os “logismoi”,
os maus pensamentos que feriam a ascese monástica, e o modo de os combater
(Évagre le Pontique Traité Practique ou le Moine, , A. Guillaumont ed. e trad.
(1971) Sources Chrétiennes 170-171, Le Cerf. Guillaumont, A, “ un philosophe
au desert: Evagre le Pontique” , Aux origines du Monachisme chrétien. Pour une
phenomenologie du monachisme, SP 30, Ab. de Bellefontaine: 185-212. Sobre a
difusão dos tratados de virtudes e vícios, Newhauser, R. (1993) The treatise on
vices and virtues in latin and the vernacular, Turnhout.
Post Scriptum
Quando íamos entregar esta notas introdutórias, deparou-
se-me encontrar na Faculdade de Letras o Padre José Geraldes
Freire, que continua a frequentar a Escola, na sequência de vários
trabalhos. Ocorreu-me então a pergunta que deixei atrás: “- O que
não está feito, afinal?”; Com simplicidade e confiança, ousámos
fazer-lhe esta pergunta a ele próprio.
Como de costume, não se furtou ao diálogo. E com
naturalidade me respondeu mais ou menos o que se segue:
“Primeiro, há uma sugestão, e até um pedido, que me
tem sido feito várias vezes, ao longo dos anos: - para divulgação
junto de um público mais vasto, porque não apresenta a tradução
dos Apotegmas, que publicou em primeira mão, através da obra
de Pascásio de Dume, o Liber Geronticon, e da colecção por si
descoberta das Commonitiones Sanctorum Patrum?
Devo responder que essa hipótese esteve sempre subjacente.
Falaram-me até em colecções ideais para o fazer. A verdade é que
nunca avancei eu com a proposta. Nunca me faltou que fazer...
Segundo, passo a contar-lhe um interesse meu muito mais
antigo. Quando, no Instituto de Estudos Clássicos, de Coimbra,
logo em 1963, me foi proposto pelos professores que me tinham
convidado, em Julho anterior, que escolhesse um tema para um
projecto de investigação, em ordem ao doutoramento, eu respondi:
- Gostaria de estudar os autores latinos da Antiguidade Tardia,
isto é, do final do Período Romano e do Suévico-Visigótico até à
invasão árabe!
Responderam-me logo que, nesse caso, havia que consultar
dois Mestres dessa época: o Prof. Díaz y Díaz, em Salamanca, e
a Profª Christine Mohrmann, em Nimega, (Holanda). Assim se
fez, logo desde as férias do Verão de 1963, por cartas. E assim
entrei em contacto: primeiro, com os autores do Latim Tardio
do Ocidente Hispânico, nomeadamente com Pascásio de Dume;
depois, para adquirir uma especialização em Latim Vulgar (lá
estava por detrás o professor de nós os três de Coimbra, que logo
me recebeu também amavelmente, o Doutor Paiva Boléo) e em
Latim e Grego dos Autores Cristãos, houve que frequentar a
xlii Paula Barata Dias
Escola de Nimega.
E daí arrancou um projecto que me tem ocupado até hoje,
sempre com novas metas à frente. Além disso, nunca deixei de
trabalhar com interesse na Filologia Clássica e na Linguística
Histórica e de desenvolver os inícios do Latim Medieval,
ministrados em Nimega, criando mesmo, a partir de 1978, o
Latim Medieval em Portugal, tanto notarial (sécs. IX-XIV) como
literário (sécs XII-XV)
um nunca mais acabar de textos, temas
e autores.
E, aqui para nós, nunca me esqueci de aplicar a mim o
conselho do Arcebispo de Braga, em 1948, ao Dr. Avelino de
Jesus da Costa: “- Vai para Coimbra, mas nunca se esqueça de
que é padre; e de Braga!” A mim, o meu Bispo não precisou de
me lembrar de que eu era de Portalegre e Castelo Branco! O Sr.
D. Agostinho, quando o Doutor Providência Costa e o Doutor
Walter de Medeiros foram a Portalegre pedir-lhe para me ceder, a
eles disse-lhes que sim; mas a mim, só me disse que ia pedir para
mim uma audiência ao antigo Professor de Coimbra, então já há
30 anos Cardeal-Patriarca de Lisboa.
Perdoe aonde foi desembocar a resposta a uma pergunta
sobre os apotegmas dos Padres do Deserto! Mas não consigo
terminar ainda sem lhe contar que o Doutor Cerejeira se
lembrava muito bem dos seus colegas de Faculdade; e me falou
com intimidade dos Doutores Carlos Ventura (de Clássicas) e
Joaquim de Carvalho (de Histórico-Filosóficas); e finalmente se
comoveu, invocando o seu Padrinho de imposição de insígnias,
Doutor António de Vasconcelos, que, tal como os quatro padres
que mencionei, acabaram por ganhar também um especial vínculo
à respectiva Sé Catedral. Que tudo seja dedicado a D. O. M.”
Por minha parte, terminei, agradecendo.
Notas introdutórias i
Paula Barata Dias
Impressão:
Simões & Linhares, Lda.
Av. Fernando Namora, n.º 83 - Loja 4
3000 Coimbra
A Versão Latina por Pascásio de Dume dos Apophtegmata Patrum publicada pela primeira
vez em 1971, veio disponibilizar para a comunidade científica a verdadeira obra de Pascásio,
porque de facto o texto que na edição de Rosweydus havia sido apresentado resultou como
uma colecção resumida e imperfeita dos apotegmas de Pascásio, sob o título Exhortationes
Sanctorum Patrum tam Graecorum quam Aegyptiorum (PL 73: 68).
O texto completo, traduzido por Pascásio, só foi dado pela primeira vez a ler na editio princeps
e tem mais do dobro dos capítulos e com o texto original muito aperfeiçoado, apresentado
na Universidade de Coimbra em Novembro de 1971, com o seu verdadeiro título que é Liber
Geronticon. De Octo Principalibus Vitiis, de graeco in latinum translatum a Paschasio.
Tendo esta tradução sido elaborada entre 550 e 556, data da chegada de Martinho à Galécia
e da sua elevação a bispo, verifica-se que Pascásio é praticamente contemporâneo de Pelágio
e João, os outros principais tradutores latinos dos Apotegmas gregos.