8. Conclusso
‘Uma causa. Uma alma.
“Quereis saber o que é uma alma”, indaga Vieira, para em se-
guida responder: “Contemplai um corpo sem ela.” Aprecie 0 corpo
.de-um, homem vivo e.de outro morto..Apenas um tem alma, Essa
mesma imager, poderia ser aplicada a0 enriquecimento sem causa.
Sem causa, hé apenas o corpo. Para que se justifique um incremen-
to patrimonial faz-se necesséria: uma causa, urna justificativa eco-
.némico-social que dé sentido a0 fato.
Inyestido da misséo de cumprir uma fungio social, a andlise da
causa do contrato passa a ter fundamental importancia. Imbuido
do interesse de proteger relagSes sociais mais justas, a transferén-
cia de patrim6nio sem. causa, ou com uma causa considerada con-
trfria 20s valores sociais, também no deve prevalecer.
O principio que veda o enriquecimento sem causa emerge, as-
sim, como relevante fator na construgao de uma sociedade mais
justa-e solidaria, para citar objetives fundamentais da Repsblica,
registrados no art. 3°, I, da Constituicio Federal.
‘A admissao do enriquecimento sem causa como principio ¢
como fonte das obrigacées reflete o louvavel interesse do ordena-
mento, que busca dar a cada um o que é seu, nao lesar a ninguéme
garantir uma convivéncia harmonizada pela honestidade, para citar
a'sempre atual licdo de Ulpiano.
220
O Principio da Boa-Fé Contratual*
‘Teresa Negreiros
Nao é mais verdade que os ideais possam ser ilimitadamente maxi-
mizados. Ao contrério, se a deontologia continua a mesma; comeca a
operar no sentido inverso.
Giovanni Sartori
1. A consagracio do principio da boa-f6 no Cdigo Civil de
2002; — 2. O estar de bos-f6 e 0 agir com boe-fé:
vertentes subjetiva e objetiva da boa-fé; — 3. A aplicacéo do
princfpio da boa-fé; — 3.1. Boa-fé e eqiiidade; — 3.2. Boa-fé
razoabilidade; — 3.3. Boa-fé e cooperacio; — 4. Conclusio.
1. A consagragio do principio da boa-Fé no Cédigo Civil
de 2002
‘Se no mundo dos negécios fossem as pessoas, em geral, hories-
tas, confidveis € leais, a consagracio expressa do principio da boa-fé
contratual no Cédigo Civil de 2002 teria passado despercebida. La-
mentavelmente, porém, o agit com boa-fé, hoje tim comando nor-
5 Este tig etoma, com alteragSereatualizagbes,o item dedicado x0 prac
po da bon-é no Capt If de. NEGREIROS, Teoria d contrat: now pasdi
‘ras, editado pela Renovar em 2002
221imativo expressamente consagrado em um dos dispositivos de
maior ressondncia do Cédigo Civil de 2002 (art. 422), revela-se
cada vez menos fréqiiente, tanto na esfera dos negécios exclusiva-
mente privados, como no trato da coisa piblica, A extraordinéria
simpatia alcancada nos iltimos tempos pelo carter potencialmen-
te transformador do principio da boa-fé aparece, pot isso ¢ antes de
‘mais nada, como um indice da escassez de comportamentos
tuides que, na prética contraiual, expressem concfetamente o ideal
da boa-fé,-
Fato € que ao direito, como regra, é irrelevante o que as pessoas
item, Interessam, ao invés, o aspecto objetivo ¢ exterior da con-
duta humana, e também os. seus reflexos sociais. Se estio ou nio
vendedor. e.comprador genuinamente motivados pelos valores da
confianca ¢.da,lealdade pouco importa, e.¢ mesmo, provivel-que,
dada.a.inerente.contraposigio de interesses em jogo, cada um bus-
que-a:custa:da:contraparte contratual beneficios pessoais. Reco-
anhecér, assim,a existéncia em nosso ordenamento de um dever de
agir com boa-f6 imposto a todos os contratantes nada tem de ro-
‘mantismo juridico; & antes o resultado da constatacdo de que a boa-
Fé constitt uf valor ém notéria extiagio| e dé que por isso mesmo
se torna ‘imprescindivef um aparato'coercitivo capaz de induzir,
pela atnéaca da sancdo, os désonestos, desleais e mentirosos a agi-
rem como 8¢ nko 0 fossem.
‘Assim @ que um dos attigos de maior réssondncia do Cédigo
Civil de 2002 impde,os contratantes o dever de agir,com boa-fé,
quer na concluséo quer na execuco do contrato (art. 422). Trata
se da consagracéo expressa do principio segundo 0 qual as relagées
contratuais se devem pautar nao apenas pela autonomiae liberdade
das partes, mas igualmente pela lealdade e pela.confiancs:
A.boa:fé contratual, como se sabe, ingressara no.nosso ordena-
‘mento jurfdico no ambito das relagSes contratuais de consumo, em
1990 (art. 4°, II, e art. 51, IV, do Cédigo de Defesa do-Consumi-
dor); $6°em 2003, no entanto, com a entrada em vigor do novo
Codigo Civil, € que ela passa a usufruir do status de um principio
222
fundante:do:regime geral.de todos os -contratos) ees ae
paritérios ou ndo.' >
A repereussap. do principio da boa-fé ganha ainda maior ‘impac-
to.em.vigta do disposto no igualmente famoso art. 187 do Codigo
Civil de 2002. A boa-fé, ali, ¢ elevada a parimetro de licitude/ilici-
tude do exercicio dos direitos em geral (e ndo apenas das posigées
contratuais), de tal modo que, nas palavras da lei, “Também come-
te ato ilicito o titular de um direito que, a0 exercé-lo, excede ma-
nifestamente os limites impostos pelo seu fim econdmico ou so-
cial, pela boa-f€ ou pelos bons costumes”.
“Dispose ainda 0 Cédigo Civil, consistentemente, que os nego-
Glos juridicos devein ser interpretadds Conforme a bos-F6 (art.
113), em mais um dispositive qué ndo encontra cofrespondenté na
legislacio anterior, pois esta tiltima se baseava ainda na pesquisa da
vontade negocial como critério predominante de interpretacgao do
contrato.
Nesta:trinca de artigos:encontram-se delineadas as trés “fun-
cionalidades": atribuidas a boa-fé objetiva, quais sejam: i) a fungio
de cinone:interpretativo-integrativo do contrato (art. 113);
funcio-de fonte normativa de deveres juridicos, que podem até
mesmo pre-existir 4:conchisao do contrato, bem como sobreviver &
sua extingao (art. 422); e ii) a fungio de fonte narmativa de restri-
es 20 exercicio de posigSes juridicas (art. 187).? Na seqiiénci,
estes trés dominios da boa-fé slo explorados por meio de exemplos
concretos.que evidenciam as potencialidades do principio, nao sem
1. Bvidentemente, nfo se desconhecem as referencias & bos-fé constantes do
‘Cadigo Comercial de 1850 (art. 131), nem as inimeras regras que, no préprio
ge Cri 1916, tame audit 8 bee, No-pimeiro cao, pomp