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REVISÃO DE VIDA, AUTOCONHECIMENTO E AUTO-ACEITAÇÃO: TAREFAS DA MATURIDADE


irene Sad
Com certeza, ser você mesmo, pleno de primavera, é muito mais belo do que o orvalho da manhã caindo sobre afolha de
lótus. Essa beleza passageira não pode ser comparada com a eterna primavera em seu ser. Por mais longe que você
consiga olhar para trás, verá que essa primavera sempre esteve ali. Olhando para frente o mais que pode, você se
surpreenderá: trata-se do seu próprio ser. Onde quer que você esteja, essa primavera estará também.
O seu interior apresenta-se repleto de flores. Este florescimento interior e a completude pessoal criam-lhe possibilidades
de uma mobilidade ilimitada (...), sua alegria e sua maturidade não podem ser diminuídas por fatores externos (...). tempo
de ceníramento pessoal e de expansividade.
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Maturidade e revisão de vida

O conjunto das experiências de vida o trouxeram a este tempo de peifeição. Agora suas bases são sólidas (...)
porque são a conseqüência natural do que já foi vivido em seu íntimo.
Osho (1999b, pp. 178-179)
Às vésperas de começar a escrever este texto, essa mensagem sobre a maturidade humana, veicu lada por
uma carta de Tarô, chegou até mim como um alimento de qualidade, compatível com as necessidades do meu
ser adulto. No limiar da velhice, eu muitas vezes tenho me dado conta de quão complexa é a tarefa de rever a
própria vida, da perspectiva de quem já viveu a sua maior parte. Com certeza, e apesar dos bons presságios
da carta de Tarô, é inegável que várias perguntas assaltam o espírito de quem sabe quejá cumpriu a maior
parte de sua trajetória. Qual é seu sentido? No balanço de expectativas e realizações, o que terá valido a pena?
O que permanecerá dos pensamentos e ações, na mente e nos comportamentos dos contemporâneos e dos
mais jovens? Qual é o sentido de viver, desenvolver-se, envelhecer, ser velho?
Geralmente, o termo maturidade é usado como um sucedâneo de velhice, como se fosse melhor e mais
aceitável, como se a troca de uma palavra fosse suficiente para negar a passagem do tempo e a acumulação de
experiências de vida. Não é essa conotação de maturidade que a carta de Tarô me sugere, e tampouco é esse o
sentido que vou lhe atribuir neste texto.
Diversamente, maturidade pode ser entendida como uma qualidade do self construída ao longo de toda a vida,
que inclui autoconhecimento e auto-aceitação. Na meia-idade e na velhice, um processo de busca interior e de
investimento no autoconhecimento e na espiritualidade são componentes essenciais ao desenvolvimento
pessoal, verdadeiro sentido da maturidade. Em seu estado ideal, esses processos desdobram-se em
preocupação com os semelhantes e com o bem-estar da humanidade.
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O pretexto de escrever este capítulo conduziu-me à introspecção, em busca de contato com a minha
história de vida. Isso me proporcionou também uma viagem através do tempo, permitindo-me rever
eventos que contribufram para a formação de minha identidade e para refletir sobre o patrimônio
pessoal que me foi possibilitado pela vivência de experiências.
Nessa revisão, fui aos poucos entrando em contato com diferentes influências que ocorreram e
dando-me conta de que algumas foram direta e positivamente acolhedoras. Outras, nem tanto, já
que se apresentaram na forma de obstáculos e impedimentos Outras, ainda, constitufram..se em
verdadeiros desafios que, quando por mim acolhidos, foram fatores decisivos ao meu
desenvolvimento nos aspectos físico, emocional e espiritual.
Se passo minha vida como num filme, vejo aqueles agentes culturais comuns aos humanos: minha
família, a escola, do jardim-de- infância ao curso superior, os grupos sociais, os movimentos
religiosos, os meios de comunicação, enfim, tudo que envolve transmissão de valores, idéias e
ideais.
O patrimônio cultural com o qual me deparo nesse processo de revisão de vida inclui, entre outras,
as riquezas de muitos amigos e ex-alunos e os frutos de muitos anos dedicados à busca da
espiritualidade. Descubro com sentimentos de alegria e gratidão um patrimônio de experiências e
conquistas realizadas na cronologia dos anos que se sucederam. Nesse processo de reconhecimento,
dou-me conta de que cada etapa do caminho percorrido foi marcada por uma busca pela verdade e
pela vida, na ânsia de resolver, ou pelo menos de não negar, a angústia existencial. O trabalho de
busca do autoconhecimento, muitas vezes árduo, especialmente nos momentos de revolver a terra
para o plantio foi e ainda hoje é mesclado pelas alegrias das boas colheitas, dos resultados por vezes
conquistados.
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Nesse processo de conscientização das experiências acumuladas de que recorto algumas que me parecem
mais vívidas, as mais significativas são as relacionadas com meu trabalho clínico. Ele tem me rendido frutos
valiosos, por intermédio das trocas com meus pacientes, dos cursos de formação de que participei, dos
trabalhos pessoais processos terapêuticos e psicanalíticos aos quais, paciente ou impacientemente, me
— —

submeti, das horas e horas de estudo individual e de grupo e das incontáveis supervisões realizadas.
Passar essas experiências a limpo é vital neste momento de minha vida em que pareço tomar fôlego para
prosseguir, quiçá mais fortalecida. É como se revisse minha vida, num processo avaliativo essencial à minha
integridade pessoal.
Não posso me furtar a lembrar que a literatura psicológica sobre o desenvolvimento do adulto valoriza esse
tipo específico de memórias em que me vejo envolvida, por revelar uma necessidade evolutiva e refletir um
conhecimento especializado sobre a existência. É a revisão de vida, uma forma de lembrança intencional,
estruturada em tomo de eventos de transição e aplicada à avaliação de si mesmo e da própria existência.
Para Jung (1971), a revisão de vida cumpre a função evolutiva de restaurar o equilíbrio psicológico quando,
na meia-idade e na velhice, a pessoa reconhece sua própria finitude. É disparada por uma necessidade interna
de autoconhecimento, que acompanha o processo de individuação, com crescente autocentração do self.
Conforme Erikson (1959, 1998), a função da revisão de vida é promover a integridade do ego, o que inclui
uma perspectiva sobre o ciclo de vida completo e um ponto de vista sobre a morte. A sabedoria é o seu
coroamento, manifesta na auto-aceitação. É processo cognitivo de solução de problemas e envolve
enfrentamento de conflitos internos.
Para esses autores, avaliar a vida envolve a recontextualização dos significados das experiências passadas e a
reconstrução de significados
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de experiências e sentimentos associados à trajetória de vida individual, às do grupo de idade e ao curso dos
acontecimentos sócio-históricos. Todas essas experiências se dão imersas na cultura, que constitui os sujeitos
humanos e é constituída por eles. A cultura é, por natureza, dinâmica e está também continuamente passando
por processos de transformação.
As relações do indivíduo com seu próprio desenvolvimento podem ser comparadas à relação do escultor com
a matéria-prima. Recentemente, aceitei o convite de uma amiga para conhecer o trabalho de uma artista que,
segundo ela, estava diretamente relacionado com o tema sobre o qual eu me debruçava para este capftulo. De
fato, no trabalho de Zulmira Libretti, reconheci algo fundamental em todo o processo de transformação, que
inclui a relação de dar e receber entre o artista e a matéria-prima no caso, a pedra bruta com que ela tem de

se haver.
Nesse encontro, quis saber da artista sobre a dinâmica de sua relação com a pedra até chegar ao resultado
desejado. Ela disse que é preciso conversar com a pedra, reconhecer suas características, para assim respeitar
seus limites e, logo, explorar suas possibilidades.
A ousadia do gesto criativo tem de considerar o respeito aos limites impostos pela qualidade da matéria-prima
ali contida. Se os limites não forem respeitados, o artista pode se machucar ou vir a perder o próprio trabalho.
Quanto aos acidentes de percurso, como quando a pedra quebra ou é lascada, surge a necessidade de criar
caminhos novos, isto é, aparece a possibilidade da paralisia ou da transformação. Esta última, a transformação
só acontecerá se for possível lidar com o acidente e seguir o fluxo do movimento que a experiência impôs.
Nesse momento, a intuição tem um papel preponderante, para que o acidente não seja considerado um
desastre, mas, antes de mais nada, a possibilidade de uma recriação, de uma transformação.

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Parece-me uma bela metáfora para pensar o processo que permite chegar à maturidade. Podemos
observar que, geralmente, as pessoas que se transformam são as que se entregam ao fluxo do
movimento que a vida impõe. Como o artista, que habilmente transforma o material bruto, lida com
a sua resistência e segue criando, apesar de acidentes e dificuldades, cada um reage como pode
diante de determinadas situações da vida, especialmente as imponderáveis e inesperadas. Essas
reações vão direcionar o processo de transformação. Ou seja, no desenvolvimento do adulto, o
resultado depende, em grande parte, das possibilidades de cada um de se entregar ao fluxo da vida,
de suportar o caos e de não negar as depressões e angústias, mas de buscar dentro e fora de si as
possibilidades de lidar com elas.
Dou-me conta de que, como um artista, segui o chamado das diferentes fases da minha vida, não
desistindo de me entregar ao fluxo que ela impôs e de buscar o que fazia sentido. Assim como o
artista que conversa com a pedra para reconhecer o potencial de trabalho desta, conversei com
aquilo que a cultura me ofereceu, seja através da arte, da religião ou da ciência, aceitando desafios e
mesmo rupturas para prosseguir na minha busca.
Maturidade e autoconhecimento: A busca da voz interior
O empenho da pessoa no desenvolvimento da vida interior terá sempre conseqüências na vida da
comunidade e da cultura em que ela se encontra. O desenvolvimento pessoal conduz, então, ao que
podemos chamar vida a partir de dentro, ou voz interior.
Dessa perspectiva, já não são as palavras nem as convenções e rotinas que nos fazem agir e pensar,
mas, sim, a voz interior, a chamada
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intuição incipiente. É no desenvolvimento dessa condição interior que começa a existir a


possibilidade de perseguir, cada dia mais, o objetivo do exercício da verdadeira liberdade,
característica máxima do aspecto positivo da maturidade.
No passado, os heréticos da voz interior foram condenados a taças de veneno ou à fogueira, mas,
em determinados momentos da história da humanidade, alguns deles puderam trazer grandes
contribuições para a cultura. No presente, eles são ignorados ou vítimas de preconceitos, já que são
vistos como socialmente insatisfeitos ou criadores de caso. É pequeno ainda o reconhecimento do
valor positivo da influência desses verdadeiros arautos da voz interior. Todos enfatizam a
importância do exercício da ponderação, da busca pelo caminho do meio, da contemplação e da
disciplina interior, evitando as polarizações, as posições extremadas e dogmatizantes.
Segundo Viktor Frankl (1963), que se destacou por seus escritos sobre a centralidade do significado
existencial na vida humana, o homem completo não é governado ou regrado por impulsos cegos
nem é moldado por sua herança, educação e ambiente. Ao contrário, ele procura seu próprio
caminho a despeito de tudo isso. O caminho que ele busca incorpora alegria, tristeza, amor e dor
como aspectos significativos de uma trajetória de desenvolvimento para alcançar a maturidade
plena.
Numa certa medida, o caminho do desenvolvimento interior pode ocorrer naturalmente, mas a
possibilidade de chegar mais próximo de sua plenitude é tanto maior quanto mais consciente for o
nosso empenho de levá-lo até o fim. A educação proposta de fora para dentro, característica das
fases da infância e da adolescência, é suplementada por um posicionamento interior, uma decisão
baseada no exercício da liberdade adulta em direção ao que estamos denominando, desse ponto de
vista, como caminho da liberdade interior.
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Convém aqui estabelecer uma diferença entre conhecimento intelectual e sabedoria. Uma possibilidade é
apontada por Lievegoed (1984, p.2 1):
A sabedoria não vem de atividade dirigida para fora, mas de ser capaz de esperar e ver, da moderação. de uma
ativa paz de espírito. Ajuventude tem pouca paciência: as coisas precisam acontecer agora. Uma pessoa sábia
aprendeu que o discernimento ocorre se não tivermos pressa, que tudo precisa ter tempo. A sabedoria é
baseada na inspiração, e INSPIRAÇÃO é, literalmente RESPIRAR PARA DENTRO. Sabedoria é inspirar,
enchendo-se de espírito, com normas e valores, com significado, com humanidade e super-humanidade com —

fé, esperança e caridade.


Observo em minha experiência clínica e na pessoal que é geralmente a partir dos 40 anos que a decisão de
encetar ou continuar o próprio desenvolvimento interior toma-se parte da existência, quase um
posicionamento obrigatório. Entretanto, quanto mais cedo se começar a desenvolver essa atitude de conversar
com si mesmo (ou self), maior a possibilidade de conversar de forma genuína com os objetos que a cultura
oferece.
Para tanto, são necessários o exercício da introspecção e uma atitude filosófica perante as questões
existenciais, que devem ser cultivados desde a infância e ajuventude e, depois, de modo especial, na vida
adulta. Trata-se de preparar e de oferecer meios à pessoa para que possa envelhecer bem, cuidando não apenas
dos aspectos físico, social e econômico, mas também das questões da vida interior. Esse é, a meu ver, um
meio de promover a continuidade do desenvolvimento adulto na maturidade. É a possibilidade de avivar as
luzes do espírito e da chamada voz interior com o fim de favorecer o encontro da pessoa com a essência do
seu ser, no reconhecimento, no acolhimento e no trato adequado da angústia existencial: a questão do sentido
da vida e da morte (Klinger 1998).

Maturidade como qualidade: Uma agenda para a sociedade


Como propiciar condições para que a pessoa persiga ativamente o caminho da maturidade, do
autoconhecimento, da liberdade e da sabedoria? Como enfrentar as dificuldades causadas por uma educação
basicamente voltada para o desenvolvimento intelectual, lógico e racional? Como romper com os paradigmas
que norteiam a maior parte dos enfoques da chamada “terceira idade”, que privilegiam o físico, o externo, o
que aparece, o mutante, o transitório, o novo? As imagens veiculadas nas propagandas de remédios, cirurgias
plásticas e exercícios físicos propõem como parâmetro ajuventude, que aparece como modelo a ser seguido
até mesmo na terceira idade. Por que será que a cultura quer ensinar o adulto, e especialmente o velho, a se
espelhar nesse parâmetro?
Talvez porque não se tenha um ponto de vista suficientemente questionado, firmado e compartilhado sobre o
significado último da existência. De fato, não há meios suficientemente favoráveis ou os que temos não são

completamente explorados para o desenvolvimento das condições internas, isto é, para lidarmos com
—,

questões existenciais como amor, morte e vida.


Para tratar das questões relacionadas ao significado da existência, talvez tivéssemos de transcender os limites
do cientificamente observável, levando em consideração os valores individuais, abarcando as possibilidades
não só biológicas, mas também psicológicas, envolvendo os aspectos das necessidades e possibilidades
intelectuais, emocionais, religiosas, políticas e sociais do ser humano.
Nesse aspecto, tanto a cultura oriental quanto a ocidental oferecem subsídios interessantes para que se possa
caminhar mais e melhor no entendimento das necessidades do adulto maduro, dentro de uma proposta que
envolva o cuidado com o físico, mas também o cultivo da vida
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interior. Uma reflexão cuidadosa sobre tais recursos poderá nos levar a constatar que, embora
diferentes em suas origens e propostas práticas, essas contribuições podem se complementar ou, ao
menos, oferecer oportunidades de opção para os adultos.
No que se refere ao Oriente, desde a antiga e a modema ioga e o zen-budismo, passando pelas mais
diversas, antigas e modernas, linhas budistas até o sufismo, todas as escolas de pensamento têm
suas raízes nas culturas que podem ser chamadas espiritualistas. Nessa visão, espiritualismo é a
filosofia que diz que o espírito é tudo, e a matéria é considerada uma ilusão. Em relação a isso,
Lievegoed (1984) nos faz lembrar de que, se remontarmos ao conteúdo grandioso das antigas
religiões, do ponto de vista do moderno personalismo, veremos a história da origem do eu humano,
nascido de um mundo divino. Mas esse eu tomou-se adulto, sendo atualmente um responsável
participante do desenvolvimento posterior. Assim sendo, não poderá mais permanecer quieto na sua
própria juventude, por mais brilhante e calorosa que ela tenha sido.
A aceleração dos avanços científicos e tecnológicos vivida pelo Ocidente, no curso de pouco mais
de um século de sua história recente, trouxe mudanças, descobertas, prosperidade material e
avanços em todas as áreas do conhecimento humano. Esse progresso influenciou diretamente a
possibilidade de ampliar a perspectiva de vida no que se refere à longevidade e aos recursos cada
vez mais eficientes para a promoção e a manutenção por mais tempo do vigor físico e da saúde.
Concomitantemente, assistimos, nas últimas décadas, ao aparecimento e à evolução das ciências
humanas, incluindo a sociologia e a psicologia. A partir daí, sobretudo o Ocidente se viu
enriquecido com a possibilidade de inúmeras correntes e tipos de terapias individuais e de grupos,
com diferentes propostas para atingir o autoconhecimento e a compreensão dos problemas mais de
perto relacionados com as angústias do ser humano.
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No decorrer do século XX, especialmente na segunda metade, da qual participei ativamente, fomos à procura
de novos caminhos, movidos pela necessidade de uma nova filosofia, na qual houvesse lugar tanto para as
coisas materiais como para as coisas do espírito, na qual não fosse preciso abandonar o pensamento exato e o
espírito pudesse ser incorporado à nossa imagem do mundo, aumentando assim o nosso rico patrimônio
cultural. Podemos falar, então, de uma nova forma de realismo, considerado aqui como uma postura filosófica
que procura examinar o espírito e a matéria em igual medida e reuni-los numa única imagem do mundo, uma
imagem nascida da necessidade histórica, que pode ser considerada como o próximo passo no caminho da
cultura ocidental.
Uma atitude positiva perante a rica contribuição tanto das escolas orientais de pensamento e de suas
orientações práticas sobre as coisas do corpo e do espírito (por exemplo artes marciais, liangong, kuninye, tai
chi chuan) quanto das conquistas e dos progressos das ciências e dos diferentes tipos de terapias
desenvolvidas no Ocidente pode nos levar a um cuidado maior com o desenvolvimento do ser humano em
todas as fases da vida. Nessa postura de conhecimento, discernimento e acolhimento do que cada uma das
culturas oriental e ocidental oferece pode estar uma indicação de um caminho a ser percorrido em direção
— —

à integridade do self e à maturidade entendida como qualidade do ego.


Maturidade e transformação pessoal: Os caminhos da liberdade
Podemos apontar como caminhos preferenciais de transformação pessoal o abrir-se para a filosofia, a religião,
a ciência, a arte, a natureza, a educação, a literatura. É dessa perspectiva que a vida de uma pessoa na meia-
idade e na velhice pode vir a ser de uma incomensurável riqueza
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interior no que se refere ao encontro com o próprio self, com o “si mesmo”, com sua essência.
Há uma metáfora usada na sabedoria oriental e na ocidental que me parece interessante explorar um pouco a essa altura de
nossas reflexões. Refiro-me ao homem novo, metáfora intimamente relacionada com outra, que é a do
renascimento. A cultura ocidental, com suas raízes judaico-cristãs, oferece-nos a esse respeito — a meu ver — a pérola de
um texto bíblico.
O texto joanino narra uma conversa de Jesus com um homem chamado Nicodemos, apresentado pelo evangelista como
um príncipe dos judeus, isto é, um membro do Conselho Supremo da Judéia, o Sinédrio; portanto, um adulto,
provavelmente já ancião.
Este foi ter com Jesus à noite e disse-lhe: “Rabi, sabemos que és um mestre vindo de Deus. Ninguém pode fazer os
milagres que fazes, se Deus não estiver com ele”. Jesus replicou-lhe: “Em verdade, em verdade te digo, quem não nascer
de novo, não poderá ver o reino de Deus”. Nicodemos perguntou-lhe: “Como pode um homem renascer sendo velho?
Porventura pode tomar a entrar no seio de sua mãe e nascer segunda vez?” Respondeu-’he Jesus: “Em verdade, em
verdade te digo, quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é
carne e o que nasceu do Espírito é espírito. Não te maravilhes de que eu te tenha dito: necessário vos é nascer de novo, O
vento sopra onde quer; ouve-lhe o ruído, mas não sabes donde vem, nem para onde vai. Assim acontece com as coisas do
Espírito”. Replicou Nicodemos: “Como se pode fazer isso?” Disse Jesus: “És doutor em Israel e ignoras essas coisas?...
Em verdade, em verdade te digo, dizemos o que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis o nosso
testemunho. Se vos tenho falado das coisas terrenas e não me credes, como crereis de vos falar das celestiais?” (Jo. 3, 2-
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Encontramos na figura de Nicodemos o ancião que procura pelo Rabi


à noite. O que poderia ser apenas um recurso de linguagem para indicar uma
categoria de tempo pode também sugerir outra leitura: a noite do estar só,
do clima que favorece a introspecção ou, quando nada, ode se perceber com
o desconforto interno que o ocaso pode fazer emergir dentro de quem
internamente se identifica com ele de alguma forma.
Alguns exegetas ou estudiosos da Bíblia apontam o lado político da questão da procura pelo Rabi à noite;
Nicodemos era um fariseu, posição politicamente antagônica à do mestre por quem ele procurava; aí teria o
sentido de ir escondido. Como verdadeiro fariseu, começou por elogiar “sabemos que és um mestre”,

“ninguém pode fazer os milagres que fazes”. Jesus, com a sabedoria do homem maduro que sabe ver e
ouvir, foi direto ao assunto. Apresentou-lhe uma possibilidade, a de nascer de novo, como uma metáfora que
poderia responder ao questionamento que estaria na mente daquele homem, que simbolicamente poderia estar
ali representando cada um de nós, seres humanos adultos ou idosos, muitas vezes inconscientemente
angustiados e desviando o curso de nossas verdadeiras perguntas. Nas respostas do Mestre estão, a meu ver,
as indicações do caminho de volta para dentro, de busca do eu interior, das coisas do Espírito: “quem não
nascer de novo (...), quem não renascer da água e do Espírito (...), o vento sopra onde quer, (...) mas não sabes
donde vem, nem para onde vai (...).
O reino de Deus ao qual Jesus se refere pode ser compreendido, dentro da teologia da encarnação, como uma
nova visão do homem novo, aqui e agora, e não somente de uma perspectiva escatológica do depois da morte
ou do fim dos tempos. Esse homem novo pode e deve ter o reino de Deus, isto é, do amor dentro de si
mesmo. É o reino da paz interior, advindo do exercício do espírito, cujos efeitos podem ser traduzidos

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concretamente em expressões ou gestos de bondade, de amor, em outras palavras, na sabedoria que


caracteriza o homem maduro.
Chegamos aqui, de novo, a um ponto essencial à possibilidade de transformação e de
desenvolvimento pessoal do ser humano adulto: a liberdade.
Diferentemente dos outros seres do reino animal, o destino do homem não é determinado pelos
instintos e pelo ambiente. É um ser aberto, com possibilidade de criar o seu ambiente e a si mesmo
pelo seu agir.
No diálogo com o Rabi, vimos retratada em Nicodemos uma possibilidade da condição humana
oposta à da consciência e da liberdade. Há em todos nós humanos, como em Nicodemos,
dificuldades, nem sempre conscientes, interferindo em nossas escolhas, apresentando-se na forma
de fechamento e de resistência ao novo, O exercício da liberdade humana supõe a existência dessas
dificuldades e também a possibilidade de vir a superá-las ou não.
À medida que passarmos a nos conhecer melhor e a nos compreender de forma mais direta,
poderemos ampliar a flexibilidade e a abertura da mente necessárias para podermos ver, ouvir, tocar e
optar por novas possibilidades de desenvolvimento e transformação.
Ampliando a compreensão de nós mesmos de forma mais direta, podemos vir a descobrir que nosso
corpo e nossa mente são capazes de comportar um prazer maior do que o já conhecido. O encontro
da vida interior será tanto mais verdadeiro quanto mais alegre puder ser. Uma piada, uma boa
gargalhada, uma boa música, uma caminhada, a contemplação de uma obra de arte, uma prazerosa
dança podem ser as melhores preces!
Com um conhecimento mais abrangente. poderemos exercitar o corpo e a mente até a plenitude de
suas capacidades e cultivar um modo mais livre e positivo de ser, características que nos permitirão
apreciar melhor as incontáveis dimensões da vida humana.

O ser humano possui inúmeras possibilidades e é dotado de liberdade que pode se manifestar até na escolha
do sentido que vai procurar imprimir no encaminhamento da própria velhice, O investimento no processo de
vida interior por meio do trilhar os caminhos do autoconhecjmento e da espiritualidade humana foi a idéia que
pretendi explorar e compartilhar aqui. Esse é um caminho de busca contínua, que pressupõe o conhecimento,
desde o início, de que o resultado conseguido em cada etapa não deve ser considerado como um término ou
como uma resposta final. O processo do desenvolvimento e da conseqüente busca por transformação, tanto da
pessoa como da cultura na qual ela está inserida, é dinâmico e constante,
É preciso caminhar alimentando a confiança na permanência do essencial da identidade do ser na meia-idade
e na velhice, Os medos advindos das perdas relacionadas às mudanças físicas e os que surgem nos momentos
de transformação interior, exigida pelo fluxo da vida, são naturais e precisam ser considerados, acolhidos e
tratados com o cuidado que merecem. Esses momentos de transformação envolvem quase sempre um
sentimento de perda do que se foi, do que é preciso deixar para trás, desocupando lugar para que o novo possa
entrar, E perder é sempre difícil! O novo tem seu preço!
A fábula das areias é um conto sufi que dá voz a um rio. Numa conversa com as areias, esse rio expressa as
dúvidas e os medos que Costumam nos assaltar nos momentos de impasses que surgem em nosso íntimo
quando nos deparamos com o novo, com o inesperado, O conto, parafraseado de Osho (1999a), é o seguinte:
Havia um rio que, vindo de sua fonte nas longínquas montanhas, passando por todos os tipos de regiões,
finalmente alcançou as areias do deserto. Da mesma forma como atravessou as outras barreiras, tentou
atravessar

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esta também, mas se deu conta de que, ao entrar em contato com a areia, suas águas desapareceriam. Ficou paralisado pelo
pânico. Pensava que não podia se deter naquele ponto sem perder o fluxo da natureza de seu ser. Por outro lado, não podia
continuar, pois certamente desapareceria por entre as areias do deserto, transformando-se em pântano, O que fazer?
No meio desse impasse, ouve a voz das areias do deserto incentivando-o a prosseguir em seu curso.
— Não posso! — dizia ele — Tenho medo! Deixarei de ser um rio... Retrucaram as areias:

— Você não pode atravessar, abrindo caminho de sua maneira costumeira. Você ou desaparecerá ou se tomará um pântano.

Você precisa permitir que o vento o carregue ao seu destino. Confie em nós! Sabemos que assim tem de ser. Você se
surpreenderá com o que é realmente ser um rio!
O rio, assustado, sem saber o que fazer, decide prosseguir o seu caminho. Espantado, percebe que o vento quente do
deserto o carrega em direção às nuvens do céu. Em meio às nuvens, prossegue a viagem e, repentina- mente, precipita-se
sobre as montanhas mais adiante, em forma de chuva. Alegremente, sente-se correr pelas encostas das montanhas:
continua sendo um rio!
Grato, despede-se das areias e elas lhe dizem:
— Este é o ciclo da vida! Testemunhamos esse processo desde o início dos tempos!

É preciso confiar na manutenção do essencial, que poderá ser mais bem percebido e vivenciado quanto mais formos
capazes de deixar para trás o acidental, o impermanente, o que teve valor por algum momento, mas não é inerente à
essência do ser. É preciso confiar.
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