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POR QUE OS POETAS ESCREVEM

Alexandre Sugamosto e Silva 1

A princípio escrevia simplesmente


Para entreter o espírito…. Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
Do que por uma propulsão consciente.

Trecho de “Por que escrevo? “, de Augusto dos Anjos

Impulso, entretenimento - poetry had value as recreation rather than as


revelation - 2 dom, consciência social... afinal, por que os poetas escrevem?
Quando buscamos as explicações dos próprios artífices sobre o tema, percebemos
que as falas são bastante imprecisas e fugidias. Não é como se eles simplesmente
não soubessem a resposta para essa pergunta simples, mas o próprio
questionamento, na medida em que exige uma dose indesejada de
autoconsciência, parece estar deslocado do universo mesmo da composição.
No entanto, essa dúvida - que pode, como todas as dúvidas, soar tola ou
vazia de sentido - nos ajuda a descortinar as razões de ser do poema.
Comecemos, pois, com o poeta que sintetizou em si a complexidade do
vate.
Quando criança, Rimbaud compôs diversos poemas latinos para cumprir
atividades escolares. Ver Erat, a mais interessante dessas obras primeiras, narra a
aventura de um jovem que tenta fugir do regime tutelar do estudo e se deita perto
de um verdejante rio. De repente, é abatido por uma visão: Febo aparece e grava
em letras flamejantes: TU SERÁS POETA. 3 A cena imaginada pelo poeta francês tem
dois detalhes interessantíssimos: guarda semelhança com a iluminação súbita de
santos e místicos orientais e também antecipa a famosa Carta do Vidente que

1
Alexandre Sugamosto é bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina e especialista em
metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Estrangeira. Mestrando em Ciências da Religião (PUC-MG), tem realizado
pesquisas nas áreas de teopoética, religião e literatura e ciências da linguagem religiosa. Professor de Ética Corporativa,
Compliance e Filosofia Organizacional do ISAE-FGV e de "Evolução do pensar à luz da filosofia" no Master em
Neuroestratégia e Pensamento Transversal, da ESIC. Já publicou em revistas, jornais e livros didáticos e é consultor nas
áreas de Cultura, Educação, Comportamento Humano e Desenvolvimento de Equipes. Membro do corpo editorial
da Revista ANANKE.
2
Auden (The New York Review of Books, 23/10/1980)
3
Ou vate/vidente, a depender da tradução.
definirá o lugar transmutativo do poema na vida breve de Rimbaud: “a velharia
poética entrava em boa parte na minha alquimia do verbo”.
Antes de partir para o exílio mais estranho da história da literatura, o jovem
francês declarou ainda que o poeta verdadeiro é um ladrão de fogo e inscreveu
a atividade poética naquela antiquíssima linhagem que tem em Prometeu seu
patriarca. Qual seja a concepção final desse místico em estado selvagem que foi
Rimbaud, a verdade é que o seu mutismo posterior nunca será explicado: cessou,
afinal, a atividade divina? Ele perdeu o dom da vidência? Deixou de sonhar ou foi
aniquilado pelo próprio fogo que havia raptado? 4

Ao menos simbolicamente, o gênio rimbaudiano previa que seu trabalho


poético/profético cessaria envolto em uma bruma muito semelhante àquela que
enredou o Rei Arthur; escreveu, então, o poema Barco Ébrio enquanto meditava
em símbolos alquímicos e suas últimas palavras, segundo os biógrafos, foram: “me
digam a que horas vão me levar para o navio”.
Partiu o vate da mobilidade máxima para a imobilidade absoluta e sua
fuga nos indaga por que, afinal, escrevem os poetas. Longe da concepção sacra
sobre o papel do poema, mora uma ideia de que a razão do poeta é o próprio
trabalho. Daí os versos irônicos de Carlos Drummond de Andrade em Oficina
Irritada:

Eu quero compor um soneto duro


Como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,


Não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
Ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro


Há de pungir, há de fazer sofrer,
Tendão de vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,


Cão mijando no caos, enquanto arcturo,
Claro enigma, se deixa surpreender.

4
Em um poema inflamado, outro francês, Victor Hugo, usa uma dicção muito próxima daquela esboçada na Carta do
Vidente: Peuples! Écoutez le poète! Ecoutez le rêveur sacré! Dans votre nuit, sans lui complète, Lui seul a le front éclairé
(“Povos! Escutai o poeta! Escutai o sonhador sagrado! Na vossa noite, sem ele completa, ele apenas tem a iluminada
fronte! ”).
Contudo, há nessas linhas um elemento ainda não pensado: a quem o
soneto duro fará sofrer? Para quem está dirigida essa maquinação doentia
operada na oficina? Drummond não diz, mas está subentendido: chamar o poema
de tarefa, e não de destino ou vocação, é destituí-lo de seu caráter
sagrado/mágico. Afinal, toda tarefa precisa de um encarregado, alguém que
possa executar a função. Dessa condição surge o operário da palavra, o Bartleby
lírico, e com ele o fardo da composição que opera em suas próprias nuvens
semânticas: desgaste, suor, labuta, mecânica. Ao contrário da Todesfuge de
Celan, o poema mecânico, quase sempre representado pelo poeta parnasiano
fazendo malabarismos com o dicionário, é um mergulho na morte e na cisão. Eliot,
mesmo tendo sido bancário e levado uma vida rotineira, optou por singrar outros
universos com seu Waste Land: a rotina e o tédio estão no poema ou no próprio
poeta que o executa? Por acaso já escreveram os operários?
A vocação, por outro lado, mistifica seus eleitos. Os autores videntes -
Rimbaud, Blake, Nerval, etc. - se tornam os profetas de uma religião sem Deus e
pairam na bruma de um segredo só comunicável sob certas cifras. Mallarmé
escreveu pouco, mas seus alunos e admiradores diziam que havia algo naquele
estranho professor que ficava sentado pelos cantos baforando e murmurando
imprecações e desígnios pítios.
Há também o caso trágico de poetas que não foram considerados úteis o
suficiente e que, portanto, não passavam de parasitas da pátria. O exemplo mais
famoso é o do escritor russo Joseph Brodsky. Em 1963, um ainda jovem Brodsky foi
levado ao tribunal para prestar alguns esclarecimentos sobre as suas estranhas
atividades. Abaixo, transcrevo um pequeno trecho do delirante interrogatório 5:

Juiz: De modo geral, qual é a sua especialidade?


Brodsky: Eu sou poeta. Poeta-tradutor.

J.: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os
poetas?
B.: Ninguém. (Sem qualquer desafio) E quem me classificou no gênero
humano?
J.: E o senhor estudou com tal objetivo?
B.: Qual objetivo?
J.: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se
preparar… para aprender…

5
A tradução completa, realizada pelo poeta Guilherme Gontijo Flores, pode ser acessada em:
https://escamandro.wordpress.com/2015/01/16/o-julgamento-de-brodsky-melhores-momentos/
B.: Eu não pensava que seria possível aprender isso.
J.: Como se tornar poeta, então?
B.: Penso que… (Desconcertado) … é um dom de Deus…

Quando o público evacuava a sala, nós percebemos uma multidão,


sobretudo jovens, nos corredores e escadas.

J.: Quanta gente! Não imaginei que haveria tamanho agrupamento.

Alguém na multidão: Não é todo dia que se julga um poeta.

E o que poderia dizer Brodsky diante de perguntas tão disparatadas?


Objetivos, metas, como aprendeu? A oficina também tem os seus censores de
prontidão.
Antônio Brasileiro, pintor e ensaísta, escreveu um pequeno livro dedicado a
vasculhar a utilidade, ou inutilidade, última da poesia. Segundo ele, a investigação
sobre as razões dos poetas encontra uma boa resposta no trabalho lírico e aforístico
de Valéry. Sentenciando o poema como festa do intelecto, Paul Valéry, mesmo
tendo sido discípulo de Mallarmé, reagirá contra as tendências mistificadoras e
anunciará uma arte lírica intencional, medida e protegida contra a humilhação
das musas. No entanto, as propostas valeryanas de intenção e trabalho estão
muito distantes daquelas do operário. Para ele, a produção, o exercício e a
investigação rigorosa são, em si, os fins do poema e as razões substanciais de seus
executores:

Mais uma vez confesso que o trabalho me interessa infinitamente mais que
o produto do trabalho. Não amo senão o trabalho do trabalho: os começos
me entendiam e suspeito ser perfectível tudo aquilo que chega de uma vez.
6

Buscar, então, a motivação dos poetas em algo além da própria atividade


de escrever é criar uma ontologia desnecessária? É edulcorar uma tarefa rigorosa
que presenteia a observação de suas regras e engenhos? Fatalmente, o labor pelo
labor desagua no discurso de Celan, em um momento de hesitação sobre o papel
salvífico de sua arte, ao receber o prêmio George Büchner: a poesia, senhoras e
senhores, esse discurso infinito, feito de pura mortalidade e inútil...

6
VALÉRY apud BRASILEIRO, Antônio. Da Inutilidade da Poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 59.
Mas se é apenas pela tautologia existencial e extensão de seus próprios
domínios cognitivos, há ainda uma esperança de salvação - intelectual, anímica
ou mental - pelo poema? Matilde Campilho anuncia que a poesia não salva o
mundo, mas salva o minuto, e isto, segundo ela, já é o suficiente.
Sendo este um exercício antes interrogativo do que peremptório,
poderíamos estender a pergunta norteadora aos poetas mágicos, loucos, divinos,
possuídos, incompreendidos, solitários ou engajados. Que fazem em um mundo nas
raias da tecnocracia absoluta? Em quais poderes confiam para continuar a
construir mundos e linguagens? Por que não desistem, de uma vez por todas, de
seu ofício ou arte taciturna?
A sentença de Antônio Pina desembola, de maneira pouca esperançosa,
a linha que iniciamos:

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas


vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 7

7
PINA, Manuel António em "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma, é apenas um pouco tarde". Disponível
em: http://www.museudaimprensa.pt/biografiamultimedia_manuelantoniopina/opoeta/poemas.pdf Acesso em 11
nov 2018.
REFERÊNCIAS

BRASILEIRO, Antônio. Da Inutilidade da Poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1978.

RIMBAUD, Arthur. Prosa poética. Tradução: Ivo Barroso. 2ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2007.

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