INTRODUGAO A
METAPSICOLOGIA
(PREUDIANA - 3
Luiz Alfredo Garcia-Roza
JORGE ZAHAR EDLbOR4
Inconsciente
O conceito de inconsciente esté completando um século
de existéncia. Nao é uma idade excessivamente avancada
para um conceito; na hist6ria do saber ocidental podemos
apontar alguns que contam sua idade em milénios. Mas
isso também néo quer dizer que os conceitos nao se trans-
formem, nao envelhecam e nao morram; muitos desapa-
receram quase no préprio ato de sua criacdo, outros enve-
Ihecem rapidamente, e alguns conseguem sobreviver aos
séculos. Nessa perspectiva, cem anos nao é muito tempo,
mas também nio é pouco: mostram que 0 conceit sobre-
viveu e que essa sobrevivéncia esté indissoluvelmente li-
gada a sobrevivéncia da teoria a qual ele pertence, em que
Pese as transformacoes sofridas por ele, conceito, ou por
ela, teoria. J foi dito’ que os. verdadeiros conceitos trazem
-a.assinatura do seu autor; ¢ creio que poucos sio aqueles
que portam uma assinatura téo nitida quanto o inconscien-
_te de Freud. A assinatura no 6, porém, uma garantia de
“ imutabilidade do conceito. Exatamente por nao serem pu-
ras abstragdes formais produzidas artificialmente, por res-
ponderem a problemas reais, os conceitos estao sujeitos a
transformagdes e mutacées, a renovacbes, que caracteri-
zam a historia do saber.
Houve uma sensivel mudanga no conceito de incons-
ciente, tal como foi historicamente introduzido por Freud
em 1900, e 0 modo como ele 6 pensado hoje, apés as
1 Deleuze, G. ¢ Guattari, F, O que éa filosofia?, Rio de Janeiro, Editora
34, 1992, p. 16.
207208 / IntrodugSo A metapsicologis freudiana # 3
contribuigdes da lingiifstica, da légica e da etnologia, so-
bretudo a partir da leitura feita da obra de Freud por
Jacques Lacan. Isso nao significa, porém, um abandono do
conceito freudiano de inconsciente em favor de uma con-
cepeao lacaniana, até mesmo porque no estamos certos
de se tratar de uma “nova” concepsao do inconsciente
Certamente, os conceitos lacanianos nao eliminam os con-
ceitos freudianos, e nao sei, até mesmo, se poderiamos
afirmar que Lacan “ultrapassa” Freud, no sentido de uma
Aufhebung hegeliana.
Sem diivida, oconceito de inconsciente sofre uma trans-
formagio com o tempo, mas essa transformagdo jé se veri-
fica na propria obra de Freud. Desde seu aparecimento no
capitulo VII da Traumdeutung até os textos finais da chama-
da segunda t6pica, a modificagao ¢ visivel. Se nos textos
iniciais Freud esté preocupado em definir 0 sentido t6pico.
do inconsciente, nos textos posteriores a 1915 ele estd mais
preocupado com a relacao entre oinconsciente e as pulsdes.
Mas mesmo num texto como O eu e o isso, de 1923, onde o
das Es (0 Isso) é privilegiado, Freud mantém a idéia do
inconsciente como um lugar psiquico diferenciado e iden-
tificado com o recalcado. E nesta medida que podemos
dizer que a segunda tépica freudiana nao substitui a pri-
meira, e que 0s conceitos de Isso, Eu e Supereu nao reco-
brem os conceitos de Inconsciente, Consciente e Pré-cons-
ciente. O Isso é inconsciente, mas nao é o inconsciente.
I
A HIPOTESE DO INCONSCIENTE
O que o inconsciente nao 6.
O artigo Das Unbewusste comeca com uma justificativa do
conceito de inconsciente. A preocupagao de Freud 6 assi-
Inconsciente / 209
nalar as diferengas entre o inconsciente tal como é conce-
bido por ele e o inconsciente tal como era pensado pela
filosofia e pela psicologia, e uma das formas de se marcar
a diferenca é apontando 0 que o inconsciente freudiano
nio 6. Ele nao é uma franja ou margem da consciéncia,
também nao é 0 profundo da consciéncia, assim como nao
0 lugar do cadtico e do misterioso. E Freud, com plena
razio, estava preocupado em assinalar essas diferencas €
em afirmar a irredutibilidade do seu conceito 4s nogdes
até entao dominantes.
‘A concepcio de psiquismo dominante até Freud era a
de uma subjetividade identificada com a consciéncia e
dominada pela razdo; quando muito admitia-se que a
consciéncia pudesse conter uma franja ou margem incons-
ciente, ou ainda que, em alguns casos, se pudesse falar de
ocorréncias psiquicas que permaneciam abaixo do umbral
da consciéncia. O termo “inconsciente” era empregado de
forma puramente adjetiva para designar aquilo que nao
era consciente, mas nunca para designar um sistema psi-
quico auténomo e regido por leis proprias.
Mesmo depois de Freud ter elaborado seu conceito, 0
inconsciente psicanalitico ainda era identificado com 0 caé-
tico, o misterioso, 0 inefavel, o lugar da vontade em estado
bruto e impermedvel a qualquer inteligibilidade, visao ro-
méntica do inconsciente que nada tem aver com oconceito
freudiano. Qualquer diivida quanto ao inadequado dessa
concepgao pode ser eliminada pela simples leitura do capi-
tulo VII de A interpretagao do sonho, onde Freud declara
enfaticamente que nada hé de arbitrério nos acontecimen-
tos psiquicos, sejam eles conscientes ou inconscientes. O
inconsciente pensa, diz ele, e o proprio fato dos pensamen-
tos oniricos latentes serem submetidos a deformagées por
‘ja da censura atesta seu cardter l6gico e sua inteli-
gibilidade possivel para a consciéncia. Se os contetidos
latentes dos sonhos fossem cadticos e ininteligiveis, nao
haveria motivo para serem distorcidos pela defesa.