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O poder da disciplina militar na paz e na guerra: uma abordagem

sociológica.

Wellington Ferreira Gomes1

Resumo

O presente artigo pretende apontar as dificuldades de se definir precisamente o que é a


disciplina para as instituições militares, bem como as dificuldades de se delimitar o seu
objeto de estudo. Mostrar, ainda, as diferentes abordagens sociológicas sobre o tema. O
artigo se fundamenta na revisão de literatura e na prática do autor como oficial do Exército
Brasileiro. Verifica-se que tais dificuldades está relacionada aos diferentes significados que a
disciplina militar assume no tempo e no espaço, assim como sua diversidade de papéis que
desempenha na guerra.
Palavras-chave: Disciplina; Poder; Instituições Militares; Guerra.

Introdução

Todo e qualquer ser humano tem uma noção intuitiva do que seja disciplina e,
normalmente, essa noção conduz o senso comum a um tipo de disciplina que está relacionada
às instituições militares. Não é incomum ouvir de pais de conscritos, recém-incorporados às
fileiras do Exército Brasileiro, que seus filhos aprenderão na disciplina militar o verdadeiro
valor da obediência. Esta concepção de disciplina não está no todo errado, pois segundo
Weber (1974), a disciplina tem suas origens na guerra. Nas instituições militares a palavra
disciplina, também, apresenta outros significados, tais como a punição ou o castigo.
Mas afinal de contas, o que é disciplina para as instituições sociais de caráter militar?
Existem, ainda, outros significados? Qual o impacto na vida social do indivíduo e do coletivo
de massa tipicamente militar? Qual sua importância para os exércitos profissionais? Qual a
função social da disciplina na guerra? A disciplina pode se desenvolver ou é imutável ao
longo do tempo histórico? A disciplina tem uma essência? Esses questionamentos
procuramos respondê-las no decorrer do artigo.
Este artigo trata da noção de poder disciplinar nas instituições militares e seu uso na
guerra, presente nas obras de diferentes abordagens sociológicas. Tal temática assume
significativa importância por contribuir para a compreensão de que as relações sociais num

1 Graduado em Ciências Militares, Pós-graduado em RI e Graduando em Ciências Sociais.


ambiente militar são constituídas por relações de poder, mas também por outras relações que
podem envolver fatores como o “carisma” e o “moral”.

Origens da Disciplina
Segundo Weber (1974), a disciplina tem suas origens na guerra, nos exércitos
burocráticos da antiguidade tanto do Oriente Próximo quanto do Ocidente, por intermédio da
concentração dos meios materiais de administração militar – equipamentos, provisões e
animais – nas mãos do senhor da guerra. Dito de outro modo, o desenvolvimento da
disciplina tem fundamentação de base econômica ou capitalista seja nos exércitos do faraó ou
nas legiões romanas, sendo o senhor da guerra um disciplinador cuja definição também é
administrador, organizador ou corretor.
A estrutura burocrática dos exércitos contrasta com a situação dos exércitos das tribos
agrícolas, dos cidadãos armados das cidades antigas, das milícias medievais e de todos os
exércitos feudais, onde os guerreiros tinham de prever para prover por seus próprios meios. A
burocracia nas organizações militares foi influenciada pela necessidade de criação de
exércitos permanentes, determinada pela política de poder e pelo desenvolvimento da
administração pública e privada. A disciplina e a arte militar só podem ser plenamente
desenvolvidos num exército burocrático, em face da guarda, manutenção e controle dos
materiais de guerra, exigindo-se, assim, a implantação de um sistema organizacional
disciplinar. (WEBER, 1974)
Ainda segundo Weber (1974), a disciplina numa instituição burocrática, como as
organizações militares, refere-se ao grupo de atitudes e comportamentos do funcionário
(militar), de obediência dentro de sua atividade habitual nas organizações públicas ou
privadas – seja nos exércitos permanentes dos Estados antigos ou nas milícias dos condottieri
na modernidade –, sendo que essa disciplina é a base de toda ordem social, em proporções
cada vez maiores. (WEBER, 1974)

Natureza e Significados da Disciplina


O que é a disciplina? De acordo com Almirante, a palavra disciplina merece
cuidadosa definição, pois conforme o modo como se a emprega pode apresentar “ideias
muito complexas, por vezes contraditórias ou incompatíveis, e ao mesmo tempo simultâneas
e correlatas de deveres e direitos, de estímulos e desalento, de ímpeto e repressão, de orgulho
e modéstia, de prêmio e castigo”. Ainda segundo Almirante, a disciplina é uma “força
invisível” e intangível que dá vigor a exércitos, como também os deixa inabilitados, porém
sem sua presença ela os extingue. (ALMIRANTE, 1869, apud ARRUDA, 2007, p. 21-3).
A partir dessa visão de Almirante sobre a disciplina, verifica-se uma amplitude de
ideias e significados que não contribui para a definição epistemológica do objeto. Dito de
outro modo, uma definição delimitada e precisa da disciplina tem pouca possibilidade de se
estabelecer, fruto de sua própria mutabilidade no tempo e no espaço e, também, de sua
amplitude.
Nesse contexto, segundo Mucchielli (1979), a disciplina tomou algumas direções ao
longo de sua trajetória histórica, como por exemplo, a palavra era ligada ao ensino – não é a
toa que, na contemporaneidade, a disciplina também se referi a uma área de conhecimento –,
com o tempo a palavra evoluiu para o sentido de método de ensino, posteriormente tomou o
sentido de regra e, por fim de submissão à regra.
Ainda segundo Mucchielli (1979, p. 83), a disciplina pode se definir de duas formas:
a primeira no sentido mais amplo, onde a disciplina é um conjunto de regras e regulamentos
que regem um corpo social; e a segunda, no sentido stricto sensu, “não é outra coisa senão a
substituição do comportamento espontâneo-livre, durante o tempo de trabalho, pelo
comportamento em um papel.”
Nesse sentido, Kellett (1987) afirma que a disciplina militar tem como importante
papel a socialização do indivíduo ao meio militar, tendo nesse processo de socialização a
instrução militar como ferramenta da disciplina. Segundo este autor, a disciplina militar tem
ainda mais dois papéis básicos: o primeiro deles é o de evitar o soldado, em momentos de
perigo, seguir seu instinto de autopreservação; e o segundo é o de manter a ordem na caserna,
de modo a estabelecer o controle social e evitar o abuso de poder.
Na concepção weberiana, a disciplina conduz à perda da individualidade, cujo o corpo
do agente se automatiza para um fim específico no estrito cumprimento da ordem recebida e
o indivíduo é censurado de qualquer juízo de valor. Verifica-se, também, o caráter
racionalista da disciplina, onde as massas na consecução da ordem recebida passam por um
processo racional, metódico e rotineiro de treinamento, obtendo-se o condicionamento
uniforme, “a fim de que seu ótimo, no poder de ataque físico e psíquico, possa ser calculado
racionalmente”. (WEBER, 1974, p. 293)
A definição weberiana da disciplina é conforme o texto a seguir:
[…] a execução da ordem recebida, coerentemente racionalizada, metòdicamente
treinada, e exata, na qual tôda crítica pessoal é incondicionalmente eliminada e o
agente se torna um mecanismo preparado exclusivamente para a realização da
ordem. Além disso, tal comportamento em relação às ordens é uniforme. Sua
qualidade como ação comunal de uma organização de massa condiciona os efeitos
específicos dessa uniformidade. […] Para a disciplina, é decisivo que a obediência
de uma pluralidade de homens seja racionalmente uniforme.(WEBER, 1974, p.292)
Cita-se, por exemplo, o caso de treinamento da ordem unida, cuja a prática era uma
obsessão de Frederico II, rei da Prússia no século XVIII, para a obtenção da disciplina nos
seus regimentos.
A Ordem Unida se caracteriza por uma disposição individual [...] para a obtenção
de determinados padrões coletivos de uniformidade, sincronização e garbo militar.
Deve ser considerada, por todos os participantes [...] como um significativo esforço
para demonstrar a própria disciplina militar, isto é, a situação de ordem e
obediência [...], em vista da necessidade de eficiência na guerra (MINISTÉRIO DA
DEFESA, 2000, p. 1-2).

Verifica-se, no caso da citação anterior, que o desempenho eficiente de uma


organização militar passa, necessariamente, pela vontade espontânea de cada indivíduo em
estar posto aos serviços da autoridade militar. Sem essa liberdade consciente do indivíduo, o
processo de dominação não atingirá seu êxito, independentemente dos meios coercitivos
empregados, ou seja, “mesmo nos casos de subordinação mais opressivos e cruéis ainda
existe uma considerável medida de liberdade pessoal”, só cessando esta liberdade em caso de
violação física direta. (SIMMEL, 1983, p. 108)
Para Hevia (1857, p. 209), a disciplina é uma virtude e conditio sine qua non as
instituições militares não podem existir e serem eficazes no combate, conforme se observa no
trecho a seguir:

La disciplina es una virtud militar sumamente necesaria en la guerra y en la paz, y


sin ella no puede haber tropas buenas. Por ella se adquiere el soldado la
benevolencia y el respeto de cuantos le tratan, por ella las tropas maniobran con
exactitud y destreza, por ella se ganan las batallas, aunque el ejército disciplinado
sea inferior en numero al de los enemigos, y finalmente, ella hace que una batalla
perdida no llegue á ser una desatrosa derrota, y que el enimigo se contenga,
temiéndolo todo de la serenidad de sus adversarios, hija legitima de la disciplina.

Segundo Soerters (2006), há dois tipos de disciplina na cultura militar: a disciplina


formal ou cerimonial e a disciplina funcional. A primeira está relacionada com a
externalidade da disciplina, ou seja, é por intermédio da saudação militar (continência), da
apresentação do uniforme e da aparência física que o militar está agindo em conformidade
com as regras e as intenções do comandante. O segundo tipo (funcional) se apresenta como
uma concepção durkheimiana, onde a disciplina destina-se como um meio concreto para
permitir aos militares um melhor desempenho em determinadas circunstâncias ou atividades
específicas, desta forma a disciplina é um fato social e, por conseguinte, tem uma função no
corpo social (instituições militares) que visa um efeito desejado.

[...] § 1º São manifestações essenciais de disciplina: I - a correção de atitudes; II - a


obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos; III - a dedicação integral
ao serviço; e IV - a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a eficiência
das Forças Armadas. (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2002, p. 2)
Disciplina na concepção de Foucault (2014) é um poder que desde a antiguidade já
existia, entretanto, segundo este autor, a partir dos séculos XVII e XVIII o processo
disciplinar nas instituições militares, particularmente nos exércitos europeus, assume uma
nova dimensão no sentido da utilidade dos corpos do coletivo de massa para objetivos
políticos. Dito de outro modo, os corpos inaptos das massas se tornam alvos de poder político,
assim o Estado assume o comando dos corpos dos indivíduos e lhes impõem uma situação de
“docilidade-utilidade” a fim de obter o seu máximo de desempenho psicomotor nas guerras,
na qual os indivíduos se transformam em instrumentos de poder, fabricados em larga escala.
Ainda segundo Foucault (2014), “as disciplinas” do século XVIII se apresenta com
algumas características que lhe definem como um poder e que tem reflexos nas instituições
sociais da atualidade, como as organizações militares de qualquer Estado-nação. Essas
características são:
é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das
atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela
composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação
das forças, organiza ‘táticas’. (FOUCAULT, 2014, p. 164-65)

O triunfo da disciplina repousa em dois artifícios simples: um é “o olhar hierárquico”,


o outro é a “sanção normalizadora”. O processo da disciplina supõe-se a vigilância dos
subordinados daquilo que foi ordenado executar, para isso, a autoridade hierárquica necessita
de um dispositivo que lhe permita o controle espacial de cada indivíduo – por exemplo, um
acampamento militar. Na essência de qualquer sistema disciplinar se faz necessário a
possibilidade do emprego da sanção, aplicada como corretivo de hábitos desviantes, pondo-se
em conformidade com as ordens dadas pela autoridade ou pelo conjunto de normas
impositivas da instituição. Na prática, é a combinação de ambos os artifícios (“olhar
hierárquico” e “sanção normalizadora”) que o poder disciplinar alcança seu êxito, conforme
se observa no trecho a seguir. (FOUCAULT, 2014, p. 167-80)
Frederico Segundo da Prússia, durante a primeira guerra da Silésia, desejava fazer
algumas alterações em seu acampamento durante a noite, proibiu a cada filho, sob
pena de morte, de manter, depois de uma certa hora, um fogo ou outro na sua tenda.
Ele próprio passou a ronda; e, de passagem, na tenda do capitão Zeitern, ele
percebeu uma luz. Entrou na tenda, encontrou o capitão selando uma carta à sua
esposa, por quem tinha uma grande afeição. “O que você está fazendo aí?” disse o
rei. “Você não sabe da ordem?” O capitão caiu de joelhos e pediu perdão, mas não
tentou fazer qualquer desculpa. “Sente-se”, disse Frederico, “e acrescente, ‘Amanhã
eu perecerei no cadafalso.’” O infeliz escreveu as palavras, e, no dia seguinte, foi
cruelmente executado. (MILITARY DISCIPLINE, 1849, p. 247-48, tradução nossa)

De acordo com Arruda (2007, p. 23), a disciplina militar contemporânea tem


apresentado uma concepção jurídica, onde a velha disciplina voltada para a ciência e arte da
guerra dar espaço agora para a ideia de repressão arbitrária, cujo o sentido é puramente penal.
“A finalidade da disciplina, que na grande civilização grega era a ordem da sociedade da
razão, passou a ser, na civilização moderna, a força capaz de esmagar o homem para
enquadrá-lo na massa.”
Nesse contexto, a disciplina não é outra coisa senão o acatamento fiel por parte do
subordinado (obediência) às regras impostas pelo corpo social bem como das ordens dadas
pela autoridade legítima, sob pena de ação coercitiva em caso de desobediência. Face a isso,
as instituições militares estabelecem, por intermédio de suas legislações, regras de
comportamento e de conduta dos militares, na paz ou na guerra, a fim de que estes tenham a
disciplina consciente do dever a ser cumprido e a ciência de seus direitos não violados.

Violência, Guerra e Disciplina


A medida que as comunidades civilizacionais se estruturam de forma complexa, seja
demográfica, econômica e burocraticamente, se fez mister o surgimento de organizações de
massa que tem o fim de proteger, defender e ampliar seus territórios por meio da guerra –
estas organizações são forças formadas por uma massa de guerreiros ou simplesmente
exércitos. (ARAÚJO, 1959).
A guerra é um fenômeno bélico que somente se faz verificar de forma coletiva. O
homem, na sua luta pela vida, como princípio básico de sua existência, percebe que a maneira
mais eficaz e vantajosa de lutar, desde suas origens mais remotas, é se associando em
coletividade para esse empreendimento. (ARAÚJO, 1959)
Segundo Clausewitz (2000, p. 92), “a guerra é um ato de violência destinado a obrigar
o inimigo a fazer a nossa vontade”, a partir deste conceito verifica-se que na origem de toda a
guerra encontra-se o recurso a violência, que ocasiona o derramamento de sangue, a
destruição de propriedades, a morte de combatentes e de civis, e outras consequências
decorrentes da violência da guerra como a escravidão, saques, emigração ou diáspora de um
povo.

Aquellos que se adhieren a una teoría por la que la guerra irregular resulta
violenta a causa de su carácter medieval sostienen esto porque la guerra irregular
presupone una ausencia relativa de estructuras formales, causa un colapso de la
disciplina militar y convierte así a la guerra en un pretexto para el saqueo
descentralizado, para el bandidaje y para todos los tipos de violencia contra los
civiles. (IGNATIEFF, 1998, apud KALYVAS, 2010, p. 106, grifo nosso).

Mas o que leva um guerreiro a frear seus instintos mais primitivos de violência para
com o outro na guerra? Qual a força que inibe um exército a não saquear a cidade do inimigo,
mesmo depois de submeter a sua vontade? Pressupõe-se que a resposta a estas perguntas
pode ser definida em uma única palavra: disciplina. Porém, isto não implica afirmar que o
fim da disciplina seja de impedir ou restringir a violência dessa natureza, mas sim de
canalizar esta violência, como meio, para aplicá-la num esforço determinado e necessário na
guerra. (CORVISIER, 1999)
Los Griegos y los Romanos por medio del exercicio y disciplina militar
consiguieron ganar muchas batallas, y hacer muchas conquistas. Entre los
Romanos se hallaron dos modos de exercicios, uno general y otro particular. El
exercicio general consistía en acostumbrar los Soldados a trabajar y á la fatiga;
como hacerles hacer marchas forzadas, estado armados de pies á cabeça,
guardando cada uno su puesto y distancia; exercitarlos á correr y saltar;
enseñarlos á nadar y á disparar saetas. (SAEZ, 1794, p. 144)

Segundo Corvisier (1999), a guerra tem regras que constrangem os indivíduos à


determinadas ações, essas regras tendem, paralelamente, estimular a violência e conduzi-la
para a necessária disciplina e coesão. Ainda segundo este autor, o sucesso na guerra exige
eficácia e, para isso, faz-se necessário o controle da violência por meio da preparação na arte
militar, pois a violência desmedida pode acarretar perda de eficiência, de tempo e de foco no
objetivo principal do combate.

Carisma versus Disciplina


Exercer o comando de uma massa de guerreiros ou de um exército de soldados
profissionais exige-se o emprego de dois artifícios: o carisma e a disciplina, que podem ser
aplicados na combinação de ambos ou de forma isolada. Na primeira, o “senhor da guerra”,
portador deste prestígio:
toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência e um séquito em virtude de sua
missão. Seu êxito é determinado pela capacidade de consegui-los. Sua pretensão
carismática entra em colapso quando sua missão não é reconhecida por aqueles que,
na sua opinião, deveriam segui-lo. […] é o dever daqueles a quem dirige sua missão
reconhecê-lo como seu líder carismàticamente qualificado. (WEBER, 1974, p. 285)

Entretanto, segundo Weber (1974, p. 287), o carisma apresenta uma deficiência na


condução de homens para a guerra, pois “a existência da autoridade carismática é
especificamente instável”. Esse fato implica ao detentor desse dom ter de provar
constantemente a seus seguidores sua força, sua virtude e “sua missão divina” – “se quer ser
senhor da guerra, deve realizar feitos heróicos” –, sob o risco de perder o carisma e,
consequentemente, a extinção da sua missão e o abandono daqueles que o apoiavam e
seguiam-no, assim como fiéis deixam de seguir a um profeta.
De acordo com Pernoud (1996, p. 79), após a retomada da cidade de Orléans pelos
franceses sob o comando de Joana d’Arc, em 1429, as tropas inglesas organizaram-se para o
combate, posicionando-se junto às muralhas da cidade. Joana e os demais capitães
apressaram-se em organizar igualmente suas tropas. “E as tropas rivais estiveram frente a
frente sem se atacarem durante uma hora inteira, [...], fazendo-o apenas em obediência à
vontade da Donzela [Joana d’Arc] que os comandava e defendia desde o começo; por amor e
honra ao Domingo santo, eles não começariam o combate”.

Joana não mais esperou para entrar em ação. […] ela deixou o castelo de Sully sem
despertar a atenção das autoridades, levando consigo uma companhia de 200
Piemonteses, […]. Ela foi combater nas regiões ameaçadas, pois já sabia, de há
muito, que só haveria paz “na ponta da lança”. [...] Porém, em lugar daquela chefe
guerreira dos tempos da marcha sobre Orléans, ela parecia, agora, um pouco
sem brilho, como se fosse uma simples capitã de tropa. (PERNOUD, 1996, p.
109. Grifo nosso)

Já a disciplina é impessoal e neutra, não está afeta a um único indivíduo com dons
especiais ou divinos, mas está à disposição a toda e qualquer autoridade que possa fazer o
bom uso deste argumento para um fim específico. A força da disciplina é racional e diminui a
relevância do carisma pessoal numa comunidade até o ponto de eliminá-la, prevalecendo as
tradições e a socialização em vez da ação individual, no entanto a disciplina não é hostil ao
carisma e não impede um líder carismático ou um “senhor da guerra” de empregá-la.
(WEBER, 1974).

Disciplina e Moral

As mudanças na tática e na técnica bélica, ocorridas nas guerras do século XX,


proporcionaram também mudanças na disciplina militar. Segundo Araújo (1959, p. 289),
quando a técnica bélica aumenta a intensidade das excitações do combate, requer do
combatente um maior autodomínio do que em épocas passadas. Segundo esse autor, “o
combate é sobretudo uma luta moral; em igualdade de forças, de valor técnico e de
organização material, a vitória pertence em definitivo àquele dos adversários que conservou
um moral mais elevado”.

Arruda (2007) comenta que o moral elevado e a disciplina militar andam de mãos
dadas e acrescenta, ainda, que o exército que possui um moral cambaleante está fadado ao
fracasso.

Mas o que é o moral na guerra? Qual a sua ligação com a disciplina? De acordo com
Houaiss (2010), o conceito de moral é atrelado ao estado de espírito, ao ânimo ou a
determinação de um indivíduo. Segundo Marshall (2003, p. 162), “moral é todo o complexo
conjunto de pensamento de um exército; o modo que ele se sente em relação à terra e ao povo
a qual pertence; […]. Como se sente em relação aos seus amigos e aliados, bem como aos
inimigos, em relação aos seus comandantes e aos seus maus elementos”. Fruto destas
definições verifica-se, portanto, que o campo da moral dos combatentes na guerra pode ser
mensurado como um valor positivo ou negativo em relação ao moral do inimigo e que,
também, pode ser estimulado por um outro processo: pela disciplina.

Segundo Weber (1974), na conduta da guerra moderna, tem-se um peso os elementos


morais da resistência de um soldado. Toda a liderança militar emprega, habitualmente, meios
emocionais ou busca influenciar os soldados por intermédio da inspiração e treiná-los para a
compreensão da vontade do chefe militar. Nesse sentido, ainda segundo Weber, todos os
fatores imponderáveis, como por exemplo, o moral são racionalmente calculados e a
dedicação ao combate passa a ser a da causa comum ou ao êxito pretendido racionalmente.

De acordo com Araújo (1959, p. 288), a disciplina é uma das “forças morais” que um
chefe militar deve conduzir suas tropas. Para esse autor, “a disciplina supõe a existência de
chefes e deve ser ela mesma a resultante de uma convergência de tôdas as vontades para o
objetivo perseguido pelo chefe; os soldados devem agir no sentido por ele desejado, mesmo
na sua ausência.” Dito de outro modo, a disciplina deixa de formar autômatos, de uma
obediência cega e despersonalizados para formar homens conscientes de sua missão, tomados
de suficiente iniciativa para o cumprimentos das ordens emanadas das autoridades militares e
de espírito combativo face as vicissitudes da guerra.

a disciplina e a autoridades militares não se deviam basear na dominação autoritária,


e sim numa maior utilização de manipulação, persuasão e consenso grupal. […]
‘conceito de equipe’ do moral: ‘sucintamente, a atmosfera do Exército atualmente é
uma atmosfera de vidas limpas, trato honroso, uma entusiástica devoção `a pátria,
uma atmosfera construída por um sistema de rígida disciplina cujo objetivo é antes
a correção e o estímulo, que a punição do indivíduo’ (JANOWITZ, 1967, p. 40-1)

Segundo Janowitz (1967), a instituição militar é um reflexo da estrutura da sociedade,


por conseguinte, as mudanças na disciplina surge em decorrência de alterações
comportamentais dos indivíduos quanto a igualdade de tratamento, melhores condições de
vida e o ceticismo da vida urbana do século XX, refletindo diretamente nas forças armadas
em maior grau do que de anos anteriores, de forma que os soldados exigirão explicações de
seus comandantes sobre o porquê disso ou daquilo. Para esse autor as “relações sociais,
liderança pessoal, benefícios materiais, doutrinação ideológica e a justiça e o significado dos
objetivos de guerra, tudo isso agora faz parte do moral militar.”

Para Marshall (2003), as mudanças da técnica bélica do século XX provocaram uma


alteração na tática, de modo que as formações cerradas2 deram lugar a formações compactas
e de pequenas frações de homens. Desta forma, fazia-se necessário a aplicação de uma nova
disciplina militar, baseada não mais na obediência pura e cega – conforme observada na

2 Formação tática de soldados marchando, normalmente, ombro a ombro


execução da carga da Brigada Ligeira do exército britânico na Batalha de Balaclava, Guerra
da Criméia em meados do século XIX –, mas sim a estimular a capacidade de inteligência e
do espírito dos militares.

A filosofia da disciplina tem se ajustado a condições mutáveis. À proporção que


crescia o impacto do poder ofensivo das armas, exigindo desdobramentos cada vez
mais amplos das forças na batalha, a qualidade da iniciativa, nos indivíduos, veio se
tornando a mais apreciada das virtudes militares. (MARSHALL, 2003, p. 24)

Por fim, as novas condições táticas, a organização das unidades de combate e as


incertezas da guerra moderna suscitam em treinar homens para um nível mais elevado de
coragem, determinação, iniciativa e compreensão situacional do combate, desta compreensão
fez surgir um novo conceito de disciplina que valoriza o indivíduo, devolvendo sua
personalidade em prol do bem comum. (MARSHALL, 2003); (JANOWITZ, 1967)

Considerações finais

Do conteúdo anteriormente exposto, verifica-se que a disciplina militar apresenta


papéis múltiplos nas instituições militares, seja na paz ou na guerra, tanto para o coletivo de
massa como para o indivíduo, mostrando as diversas facetas que essa palavra pode assumir
conforme o contexto e a abordagem empregada.

Face a essa amplitude, observa-se a dificuldade de se estabelecer uma definição


epistemológica e precisa da disciplina militar bem como o delineamento de seu objeto de
estudo. Entretanto, esse fato não implica afirmar que as instituições militares sejam confusas
quanto ao uso da disciplina, muito pelo contrário, o emprego da disciplina pelas organizações
militares é racional e sempre busca um fim, ou seja, para instituições sociais desta natureza a
disciplina é apenas um meio para se alcançar uma finalidade ou utilidade, seja ela política,
econômica ou ambas.

Considerando a compulsão agressiva e violenta da natureza humana, uma massa de


homens devem buscar a cooperação e a coesão para a realização de objetivos específicos.
Assim, a disciplina se torna uma característica intrínseca da cultura militar, e sua natureza e
poder são a verdadeira medida da eficiência de uma força militar. Portanto, comandar e
obedecer são características essenciais da disciplina que pode ser definido como um
treinamento, instrução e desenvolvimento de hábitos físicos e mentais em cada indivíduo,
para que ele possa interpretar o espírito das ordens com precisão, para permitir cooperar de
forma harmoniosa e eficiente com seus companheiros e buscar dados objetivos, sem
hesitação e com firmeza.
Referências Bibliográficas (Em elaboração)

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