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Antonino Ferro

Os conceitos de associações li-


vres e de rêverie podem ser repen-
sados fazendo-se referência a um
modelo da mente inspirado em Bion
(1962, 1963, 1965) e em alguns de-
senvolvimentos de seu pensamento
(Ferro 1998, 1999a, 2002a, 2002b).
Podemos considerar as asso-
ciações livres como a forma mais
adequada para entrar em contato
com o pensamento onírico de vigí-
lia, sempre operante dentro de cada
mente: por parte do paciente, é a
forma de permitir que “os derivados
narrativos” (Ferro, 1999b; 2001) te-
nham o menor grau possível de de-
formação; por parte do analista, é a
Antonino Ferro
maneira de se sintonizar com os de-
rivados narrativos de seu pensa-
mento onírico. Considero as rêveries como um daqueles momentos felizes
nos quais há o acesso direto à imagem, sem nenhuma mediação (Ferro,
2000).
Ao longo do meu texto farei referência sempre ao aspecto visual, tanto
no que se refere à seqüência de elementos alfa, quanto ao que se refere aos
seus derivados narrativos, assim como para as rêveries. Mas o mesmo po-
deria ser dito, levando-se em consideração todos os outros vértices de for-
mação dos elementos alfa: acústicos, olfativos, gustativos, sinestésicos e
táteis (Bion, 1962, Di Benedetto, 2000).
Dentre as várias formas possíveis de nos aproximarmos deste tema,
prefiro propor uma reflexão sobre as contínuas sinalizações que os pacien-
tes nos fornecem para que possamos encontrar o caminho mais adequado
para alcançá-los.
A formulação interpretativa, suas diferentes formas e o grau de
exaustividade não podem derivar do nosso “casamento” com uma teoria
forte de interpretação, e sim de uma capacidade cada vez mais afiada de
captar as respostas, o colorido emocional que o paciente introduz no cam-
po após as nossas intervenções (Nissim Momigliano, 2000).
A “escuta da escuta” (Faimberg, 1996) não deve somente nos fazer
refletir sobre como funcionou a mente do paciente após o nosso “estímulo”
interpretativo, mas também nos fazer refletir sobre como nós funcionamos
e como podemos funcionar “aquele dia, com aquele paciente” para favore-
cer um número cada vez maior de transformações possíveis.
Este modo de interagir de forma “flexível” com o paciente tem, por
trás, uma teoria forte, que é uma expansão das reflexões de Bion referentes
ao funcionamento onírico da mente também no estado de vigília.
A mesma comunicação de um paciente: “Quando eu era criança, meu
pai nunca me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e,
se isso não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às
vezes, tapas” pode ser vista, dependendo do modelo predominante do ana-
lista, como uma cena da infância que ajuda a reconstruir o romance fami-
liar, como uma fantasia inconsciente persecutória em relação a um objeto
Antonino Ferro
interno frio e prepotente (que na ocasião poderia, também, ser “projetado”
no analista e, desta forma, interpretado) ou então como a descrição pontual
do que está acontecendo na sala de análise naquele momento a partir do
vértice do paciente.
Em uma ótica essencialmente relacional, isto poderia ser explicita-
mente interpretado como referente ao aqui e agora, o que achataria a cena
analítica, a “esticaria” num plano atual, tornando-a bidimensional, num
eixo horizontal, tirando-lhe a profundidade referente ao eixo vertical da
história (Di Chiara, 2001).
Segundo minha maneira atual de pensar, eu, sem dúvida, consideraria
esta comunicação como atinente ao aqui e agora, e como decorrente do
sonho de vigília que o paciente está fazendo naquele instante relacional
(Ferro, 2001). Mas eu me colocaria uma série de perguntas:
– Como posso intervir, para operar uma transformação, de tal forma
que eu não seja mais visto como um pai pouco afetivo, que olha somente
para os resultados, sem dar uma trégua?
– Como posso modificar minha maneira de interpretar, de me colocar
e, também, o meu eixo interno para que esta transformação comece a se
“dar”?
– De onde provém a percepção que o paciente tem de mim?
Provém da “história” do paciente e pode implicar um “assumir o pa-
pel” de minha parte, provém das suas identificações projetivas, provém de
um enactment, provém, de qualquer forma, de uma maneira minha de ser
ou de me colocar com ele.
Isto posto, optarei por uma interpretação que será na aparência
“reconstrutiva” ou centrada “na fantasia inconsciente”, ou “na relação”, ou
então simplesmente “enzimática”, prestando a máxima atenção à “respos-
ta” do paciente que virá em seguida à minha intervenção.
Digamos que eu fale: “Ter perto um pai assim não é certamente algo
que favoreça amar o ‘estudo’1, aliás coloca em um estado de constante
preocupação”. É obvio que eu estou “colocando na mesa” uma interpreta-

1. A palavra studio, em italiano, tem duplo significado: estudo e consultório. (N. do T.)
ção transferencial: “se eu fico ao seu lado desta forma, com certeza não
facilito o trabalho neste consultório”.
O paciente poderia responder: “Ontem fui a uma exposição de foto-
grafias mas achei que todas as fotografias estavam pouco nítidas”, e eu não
poderia deixar de pensar que na minha interpretação faltou “incisividade”,
e eu deveria, então, me preocupar em ter uma maior “nitidez”.
Se, ao contrário, o paciente dissesse: “Ontem estive na casa da minha
tia, onde come-se muito bem, mas sempre em demasia, e é necessário um
dia inteiro para fazer a digestão”, então eu deveria deduzir que aquela for-
mulação, que do meu ponto de vista era suficientemente leve e não
saturada, para o paciente constituía algo ainda “muito pesado”.
Como alternativa, eu poderia considerar útil – em um momento dife-
rente da análise – uma explicitação “forte” de transferência, do tipo: “Você
me sentiu pouco afetivo, mais interessado nos progressos de sua análise do
que em você mesmo, e que não o deixo em paz até que realize estes pro-
gressos”.
Aqui também o paciente poderia ter respondido das mais diferentes
formas, desde: “Mas era bom quando eu percebia que meu pai me enten-
dia”, até: “Vi na televisão uma reportagem de como é feito o foie-gras;
enfiam comida goela abaixo, através de uma espécie de funil, naqueles
coitados dos patos até que o fígado deles fica enorme”.
O que eu quero dizer é que, quando estas sinalizações são acolhidas,
permitem progressivos ajustes.
Naturalmente, desde a primeira formulação do paciente, seriam possí-
veis dezenas de diferentes intervenções por parte do analista, desde: “Po-
demos compreender agora uma das raízes da sua inibição ao estudo”, até:
“Bem, certamente hoje você prefere estudar com o colega que nunca o
apressa e respeita seus horários”.
Portanto, infinitos os percursos possíveis e infinitos os “mundos” que
podem se abrir.
Entretanto, por trás de qualquer escolha interpretativa, está subenten-
dido um modelo de fator de cura, “tirar o véu do recalcamento”, “captar o
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ponto de emergência da angústia”, descrever “os fantasmas originários” e,
no meu caso, desenvolver a capacidade de pensar do paciente, no sentido
de desenvolver aqueles instrumentos mentais que servem para produzir
processos de pensamento e de formação de emoções a partir de estímulos
sensoriais de qualquer tipo. Preciso usar um jargão – inspirado em Bion –
que me leva a dizer que o objetivo de uma análise é o desenvolvimento da
função alfa do paciente e, portanto, da capacidade de produzir elementos
alfa; o desenvolvimento de e, portanto, da possibilidade de tecer pen-
samentos e emoções; o desenvolvimento da oscilação PS D e, portanto,
daquela originalidade criativa e do luto; o desenvolvimento da oscilação
entre capacidade negativa fato selecionado e, portanto, da espera que
um sentido se realize e da renuncia a todos os outros sentidos possíveis em
favor de um escolhido.
Se retornássemos aos exemplos citados, poderíamos imaginar que a
primeira formulação do paciente: “Quando eu era criança, meu pai nunca
me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e, se isso
não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às vezes,
tapas” pode ser pensada como um dos derivados narrativos (Ferro, 2001;
2002a; 2000b) (entre os vários possíveis) de uma seqüência de elementos
alfa que poderíamos imaginar pictografada desta forma:

O importante é considerar que a formação dos pictogramas emocio-


nais é contínua (e forma o pensamento onírico de vigília) e que os “deriva-
dos narrativos” podem ser os mais diversos possíveis, com o único requisi-
to de que sejam compatíveis com a seqüência de elementos alfa. Por exem-
plo, o mesmo “clima” emocional poderia ser trazido por um paciente que
tivesse começado a sessão dizendo: “Ontem vi na televisão aquele filme no
qual havia um terrível capitão de navio que tratava muito mal todos os
marinheiros, infligindo-lhes contínuas punições”; ou então: “Fazer amor
com Martina é extenuante porque não circula nenhum afeto, ela fica toda
tomada em alcançar o próprio prazer e nada mais lhe interessa”.
De tudo isso derivam duas conseqüências, a meu ver, importantes:
que “as associações livres” são, na realidade, “associações obrigadas”, no
sentido que derivam, instante após instante, dos fotogramas visuais (ou
pictogramas emocionais) que a função alfa gera continuamente, dando vida
ao “pensamento onírico da vigília”, e que, por outro lado, são absoluta-
mente livres no que se refere “ao gênero narrativo escolhido”, que pode ir
“pescar” em uma infinidade de gêneros expressivos (filmes, lembranças de
infância, pequenos fatos, diário íntimo, etc.).
Os “gêneros literários” são, portanto, infinitos; obrigatória é a coerên-
cia entre cada um deles e a seqüência de elementos alfa do pensamento
onírico da vigília que pode ser expressa através desses diferentes gêneros.
Também o sonho narrado na sessão pode ser – quase paradoxalmente
– considerado como um “derivado narrativo” (uma livre associação obri-
gada) em relação ao momento no qual o sonho é narrado: isto é, como algo
que dá expressividade ao pensamento onírico de vigília que se formou na-
quele momento. Merece um aprofundamento a comparação entre seqüên-
cias de elementos alfa e o conceito de travail de la figurabilité de C. e S.
Botella (2001), proposto como meio de acesso do analista às “memórias
sem lembrança” e como forma de revelar o “negativo do trauma”, isto é, o
aspecto não representável de todo trauma infantil.
Um analista faz uma interpretação refinada e complexa, o paciente
responde dizendo que lembrou de um sonho: estava na escola, e a profes-
sora escrevia fórmulas no quadro-negro desenhando figuras que reproduzi-
am algumas murrine2. Ele não entendia, então queria quebrá-las, cheio de
raiva.
Este sonho é, justamente, algo que permite dar expressão às emoções
do paciente no momento no qual ele o conta, é portanto escolhido como
derivado narrativo da sua seqüência alfa. Valor semelhante teria uma co-
municação do tipo: “Ontem ouvi uma televisão árabe, sem entender uma
só palavra”, ou então: “Lembro que, quando era criança, nunca conseguia
entender as explicações do professor e ficava muito bravo”.

2. Murrine – preciosas jóias em cristal fabricadas em Murano (Veneza), com desenhos


policromados. (N. do T.)
Antonino Ferro
Merece uma reflexão também a profunda diferença entre o sonho que
é narrado espontaneamente e aquele que é narrado a pedido do analista
(prática esta com certeza não correta, mas bastante freqüente: o analista,
que em um momento de cansaço, de silêncio, pergunta “Você teve algum
sonho?”).
No primeiro caso, o sonho tem um duplo ou triplo valor, isto é: o valor
de testemunhar uma disponibilidade num nível mais profundo de comuni-
cação; o valor da elaboração que foi realizada no sonho; e o valor de ser,
também, um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília daquele
momento e, portanto, permitir uma avaliação, em tomada direta, do campo
emocional atual.
A certa altura de uma sessão (a última da semana), Rossella relata que
recebeu, à noite, um estranho telefonema: alguém que dizia ser um antigo
namorado e que lhe perguntava, também, quanto ela calçava; depois relata
ter tido um sonho: havia alguém para o qual o seu cachorro não latia, e ela,
aliás, continuava dormindo; essa pessoa desmontava a maçaneta de uma
porta-janela e, assim, penetrava na casa; depois ela está deitada com esse
“desconhecido na cama”... Tinha muito medo. O sonho acontece num mo-
mento no qual Rossella tinha iniciado a análise, mas “cara a cara”, não
tendo ainda aceitado deitar-se no divã, “porque precisava olhar e permane-
cer atenta” (pouco valeram as interpretações sobre isto). Próximo ao fim da
semana, ela se encontra perdida pelo novo clima emocional que vive: tele-
fonemas inesperados, um interesse que teme possa ser mórbido (ou é o
príncipe encantando?). Ela não está mais tão vigilante (o cachorro dorme),
alguém desmonta suas defesas, e ela se encontra com uma intimidade não
prevista que a assusta, e com a idéia da cama (analítica) que se aproxima.
Isso tudo descreve tanto a elaboração do “tema” quanto a atualidade
do clima relacional: o sonho é também um derivado narrativo do pensa-
mento onírico de vigília, isto é, em outra linguagem, o sonho é também
uma associação livre em relação ao “pensamento onírico de vigília ao qual
permite dar expressão”.
Na segunda-feira seguinte, ao contrário, nossa conversa é muito difí-
cil, longos silêncios, tentativas minhas de interpretar o longo
distanciamento, sem que Rossella dê ganchos, aliás ostentando somente
modalidades de oposição.
Neste ponto pergunto-lhe – para retomar um diálogo – se teve algum
sonho; é como dizer: “Você quer, ou não, retomar a comunicação comi-
go?”. Rossella responde que sim e conta: estava se separando do namorado
depois de um certo tempo juntos; entrava em casa e o pai via televisão,
depois saía com a intenção – talvez – de um gesto autodestrutivo, voltava
para casa porque esquecera algo, mas nesse momento a mãe retornava,
indo para a cozinha com as compras e era carinhosa com ela. Acrescenta
que o sonho não lhe traz nada à mente; Eu poderia interpretá-lo pelo menos
em relação a alguns significados que me parecem evidentes (a separação, o
sentimento de desespero experimentado, o reencontro), mas me parece uma
leitura intrusiva e decodificatória, uma operação “fria”, feita sobre o relato
do sonho e não sobre o sonho espontâneo e quente.
Fico aguardando até que Rossella, após ter olhado à sua volta, pergun-
ta: “Foi o senhor que pintou este quarto? Está cheio de borrões, como se
quem o pintou estivesse com pressa”. (Eis aqui a associação “quente” ao
sonho; associação que é, por sua vez, um derivado narrativo do pensamen-
to onírico da vigília.). Pergunto-lhe se achou que eu fui pouco profissional
e atrapalhado, especialmente impaciente, ao ter sido “eu” a lhe perguntar
se havia sonhado, a que responde que sim, e acrescenta que está se lem-
brando agora de um outro sonho: encontrava uma pessoa que tinha um
cachorro, com a qual falava do próprio cão labrador e das complicações
que tinha tido ao decidir cuidar dele: a cadelinha tinha sido abandonada,
tinha apanhado, fôra maltratada e, portanto, não confiava mais em nin-
guém, era impossível chegar perto dela. Ela tinha tido muito trabalho para
conseguir trazê-la para casa e fazer com que, aos poucos, pudesse confiar.
Digo-lhe que me lembra a situação do filme “Dança com lobos”, de
todo o tempo e cuidado que o soldado tinha tido para conseguir fazer com
que o lobo, que apareceu perto da sua casa, pudesse ter confiança, até à
cena comovente na qual come a comida que ele lhe oferece, finalmente
Antonino Ferro
sem medo ou desconfiança.
Rossella prossegue dizendo: “E não é preciso nem dizer quem é a
cadelinha abandonada, maltratada, e que aos poucos está aprendendo a con-
fiar”.
Enquanto o primeiro sonho, “extraído”, remete, sim, ao trabalho
onírico e abre em direção a uma retomada da comunicação, o segundo,
“espontâneo”, testemunha também os novos elementos alfa do pensamen-
to onírico de vigília que estão se formando e cuja produção continua nos
derivados que são a minha “associação-interpretação” e a resposta da pa-
ciente.

Com Stefano, um jovem e bem-dotado advogado, um leve atraso de


minha parte em responder ao interfone e em abrir o portãozinho que dá
acesso ao meu consultório leva a uma sessão muito intensa, na qual Stefano
“descobre” os afetos de profunda ternura e preocupação que, quando era
pequeno, sentia pelo seu pai: os mesmos que sentiu no breve, mas signifi-
cativo, intervalo entre o seu tocar a campainha e o meu abrir a porta. Fala-
mos, no final da sessão, da capacidade de Stefano de se vincular muito às
pessoas, mesmo em breve tempo, como está acontecendo ali comigo. Uma
imagem final é aquela da utilidade de um guindaste no prédio onde está o
meu consultório, e de como pelo menos um elevador seria útil caso alguém
“tivesse uma perna quebrada ou a necessidade de uma cadeira de rodas”.
Mesmo sendo um clima emocional bom, com Stefano emocionado e
descobrindo sentimentos de afeto que sente em relação a mim, a imagem
que se forma em minha mente, em relação à “cadeira de rodas”, é aquela de
Tony Perkins no filme Psycho. Naturalmente só posso manter comigo essa
imagem porque não tenho nenhum gancho narrativo, ainda que seja um
personagem que já surgiu em outras sessões.
Antes da sessão do dia seguinte me pergunto o que fazer com Stefano,
em relação à mudança “lira-euro” e se arredondo o câmbio a meu favor,
visto que já faz um certo tempo que não faço aumento de honorários.
Na sessão seguinte, Stefano inicia dizendo que dormiu muito pouco,
tendo ficado acordado até tarde: teve que atender, como advogado
criminalista, o jovem que tinha, justamente naquele dia, matado uma pros-
tituta negra por questões de dinheiro; acrescenta que o juiz havia permitido
que voltasse para casa, não havendo nem o risco da fuga nem o de poluição
das provas: era uma pessoa normal, casada há três anos, com um filho, e
que tinha agido em um estado de “embriaguêz patológica”. Stefano alon-
ga-se muito no relato deste “caso” que o deixou pensativo, pelo medo de
que, mais do que machucar alguém, ele pudesse machucar a si mesmo pela
culpa, talvez envolvendo também seus familiares. Imediata é, para mim, a
ligação com a minha rêverie do dia anterior relativa à cena da cadeira de
rodas do filme.
Nesse meio tempo, Stefano acrescenta que, “quando era pequeno, ti-
nha quebrado o braço da professora”, e que uma “análise profunda” do
caso lhe parecia inevitável.
Eu pergunto a mim mesmo como avançar. Não posso com certeza di-
zer-lhe: “O senhor está me falando de uma parte de si mesmo que...”. Isto
corresponderia àquelas interpretações que Guignard (1999) chamou de
interpretations-buchon, cujo efeito é aquele de saturar o sentido e impedir
outros desenvolvimentos narrativos.
Decido então enfrentar o problema “pelas bordas” e digo: “Estou me
lembrando do livro de Perec, A vida: instruções de uso, no qual, em um
condomínio, moram muitas pessoas diferentes e que, no fundo, somente
em dois dias nós estamos passando do mundo dos afetos mais tenros e
intensos àquele de quem perde a cabeça e mata”.
Stefano responde dizendo que conhece “o livro”. Eu continuo dizendo
que é verdade aquilo que nós dizíamos algum tempo atrás, de que a alma
humana é uma harpa com “n” cordas.
“Sim, e não como aquela dos romanos”, responde, “que tinha somente
duas ou três cordas; a propósito, como se chamava?”. “Lira”, respondo e,
nesse ponto, sinto-me autorizado a prosseguir: “Entre as cordas podemos
encontrar a do afeto e a da ternura em relação a mim, como aconteceu
Antonino Ferro
ontem, mas também a que soa dizendo ‘filho da puta, eu mato você por
tudo aquilo que você me custa’ ” e sentado na “cadeira de rodas, podemos
fazer subir no guindaste Tony Perkins com sua ira”.
“Eu pensava que me conhecia”, diz após um breve silêncio, “mas nun-
ca teria imaginado estas coisas de mim; mas é bom acrescentar também
estas ruas à nossa cidade” (retomando uma metáfora nossa).
Esta última situação clínica permite refletir a respeito de todo o arco
das possibilidades em relação à forma pela qual as mentes do analista e do
paciente podem entrar em contato com o “pensamento onírico de vigília”
do campo: há uma cisão que tende a se recompor. De um lado e de outro
temos os “derivados narrativos” do analista e paciente, e do outro também
a rêverie do analista (que testemunha um contato sem mediações com o
pensamento onírico) e que tem que encontrar um tecido narrativo para po-
der ser traduzida em palavras e compartilhada. O equivalente da rêverie do
analista poderia ser uma rêverie do paciente (“não sei por que, mas surgiu
na minha mente a imagem de...”) ou, em casos mais raros, a projeção ao
externo de um fotograma do pensamento onírico de vigília, através da for-
mação de um flash visual (“Vejo na parede em frente...”) que testemunha-
ria um adequado funcionamento da função alfa e, ao mesmo tempo, uma
falha da capacidade da contenção das imagens (seria como um primeiro
degrau em relação às possíveis transformações em alucinose). A capacida-
de narrativa de ambas as mentes encontra uma forma sem cesuras de inte-
grar “narrativamente” a cisão, como no belíssimo exemplo de Neri (2000)
do jogo do “berço de barbante”, que merece ser descrito por extenso:

Na situação analítica, os diversos elementos sobre os quais opera o


pensamento (pensamentos, emoções, fantasias) correspondem a um
“Campo” comum. Como conseqüência disso, a transformação refere-
se contemporaneamente a todos os elementos: quando um se modifi-
ca, modifica-se todo o conjunto. Uma imagem que dá conta da
globalidade da transformação com a qual opera o pensamento de gru-
po é aquela do “berço de barbante”.
A brincadeira do “berço de barbante” é praticada com um barbante
de aproximadamente cinqüenta centímetros cujas pontas foram amar-
radas. O primeiro jogador entrelaça o barbante entre os dedos das
duas mãos, compondo uma primeira figuração. O segundo jogador
(geralmente se joga com dois jogadores, mas podem ser também mais
de dois) utiliza o mesmo barbante, recuperando-o do anterior e, se-
gundo a maneira como ele faz isso, trará modificação à figuração que
lhe é passada.

A partir do que foi dito, deriva um conjunto de reflexões a respeito das


associações livres. Estas não seriam assim tão livres como poderia parecer
num primeiro momento. No meu dialeto, portanto, considero as associa-
ções livres do paciente como derivados narrativos de seu pensamento
onírico de vigília, com diferentes gradientes de transformações e camufla-
gem dos mesmos.
Uma jovem e bem dotada analista faz uma interpretação complexa a
uma paciente. Esta “responde” à interpretação dizendo que, na noite ante-
rior, havia pensado em ir a uma pizzaria com os amigos; estes, ao contrário,
haviam insistido para ir a um restaurante de luxo onde, inclusive, serviam
porções que a assustavam; depois tinha ficado desorientada na hora de pa-
gar a conta. Na mesma sessão, em outro momento, a analista recolhe, antes
resumindo aquilo que a paciente havia dito, depois colhendo a emoção
dominante na comunicação e, finalmente, propondo-a na transferência. A
paciente “responde” falando a respeito de um tio que havia chorado ao
voltar para casa após um longo período de ausência. Em outro momento da
sessão, a paciente diz que sente que o namorado só a considera quando ele
“a vê e lhe telefona”. Estes breves trechos de sessão permitem sublinhar o
fato de que é somente o paciente – quando pode ser ouvido – que nos fala
continuamente como devemos falar com ele para alcançá-lo. No primeiro
caso, quando a paciente, após a interpretação do analista – e não foi por
acaso que eu chamei isto de “resposta” – fala de como a sua expectativa de
um alimento simples, compartilhado com os amigos (a pizza), tinha sido
frustrada e de como tinha sentido a interpretação “excessiva” e por demais
complexa, ficando atrapalhada. A interpretação não foi, neste caso, um fa-
Antonino Ferro
tor de crescimento ou de transformação.
No segundo caso, ao contrário, a “resposta” à interpretação exprime o
sentimento de encontrar-se novamente em casa, sendo compreendida e
ouvida. O terceiro exemplo nos fala o que, por enquanto, deve “passar”
através da interpretação, “o ser visto e o ser alcançado”.
Para concluir, creio que o trabalho no cotidiano, através das transfor-
mações narrativas (Corrao, 1991) que pela sua própria natureza são instá-
veis e reversíveis, permite não somente expandir os conteúdos pensáveis
(desenvolvimento de conteúdo), mas enriquece os próprios instrumentos
do pensar (desenvolvimento de continente) e permite também a progressi-
va evolução das microtransformações do aqui e agora em transformações
estáveis e irreversíveis do mundo interno (transformações dos objetos in-
ternos) e na re-escrita da História (romance familiar)

O autor, inspirando-se nos conceitos sobre o funcionamento mental postula-


dos por Bion, considera as associações livres como um “derivado narrativo” do
pensamento onírico de vigília e as rêveries como um acesso direto às imagens
deste pensamento onírico. O material clínico é utilizado para colocar em evidên-
cia como tais “derivados narrativos” podem ser utilizados pelo analista como si-
nalizações que continuamente o paciente fornece sobre o próprio funcionamento
mental no interior do campo analítico, sinalizações que permitem ao analista
modular sua atividade interpretativa de forma que esta seja fator de transforma-
ção, e não de perseguição.

Free Association and the Oneiric Thought of Vigil


The author, inspired by the concepts on mental functioning postulated by
Bion, considers the free associations as a “narrative derivative” of the paradoxical
sleep thought in vigil and the reveries as a direct access to the images of this
paradoxical sleep thought. The clinical material is used to evidence how such
“narrative derivatives” can be used by the analyst as signals, which are continuously
provided by the patient, about his own mental functioning in the inside of the
analytical field; signals that allow the analyst modulating his interpretative activity
in order to make it a factor of transformation instead of a persecution one.
Asociaciones Libres y Pensamiento Onirico de Vigilia
El autor, inspirándose en los conceptos sobre el funcionamiento mental pos-
tulados por Bion, considera las asociaciones libres como un “derivado narrativo”
del pensamiento onírico de vigilia y las reveries como un acceso directo a las
imágenes de este pensamiento onírico.El material clínico se utiliza para colocar
en evidencia cómo tales “derivados narrativos” pueden ser utilizados por el ana-
lista como señalizaciones que continuamente el paciente da sobre el propio funci-
onamiento mental en el interior del campo analítico, señalizaciones que permiten
al analista modular su actividad interpretativa de forma que esta sea factor de
transformación y no de persecución.

Pensamento onírico; Sonho; Associação livre; Interpretação; Revêrie.

Oneiric thought; Dream; Free associaiton; Interpretation; Revêrie.

Pensamiento onirico; Sueño; Asociación libre; Interpretación; Revêrie.

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