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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Corpos sem nome, nomes sem corpos:


Desconhecidos, desaparecidos e a constituição da pessoa

Patrick Arley de Rezende

i
Patrick Arley de Rezende

Corpos sem nome, nomes sem corpos:


Desconhecidos, desaparecidos e a constituição da pessoa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Eduardo Viana Vargas

Belo Horizonte

Outubro de 2012

ii
Corpos sem nome, nomes sem corpos:
Desconhecidos, desaparecidos e a constituição da pessoa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

_________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Viana Vargas (Orientador)

PPGAN/FAFICH/UFMG

_________________________________________

Prof. Dr. Juri Castelfranchi

SOA/FAFICH/UFMG

_________________________________________

Profª. Dra. Karenina Vieira Andrade

PPGAN/FAFICH/UFMG

_________________________________________

Profª. Dra. Ana Solari (Suplente)

PPGAN/FAFICH/UFMG

Belo Horizonte

Outubro de 2012

iii
À Simone e Vivienn, meus melhores motivos para voltar.

iv
Agradecimentos

Gostaria de agradecer primeiramente a Eduardo Vargas, meu orientador, sem o qual não
apenas este trabalho, mas muitos outros antes e depois deste, não seriam possíveis. Pois
foi a partir de nosso encontro, quando eu ainda cursava a graduação em Ciências
Sociais, que a antropologia se revelou como um caminho possível; e mais, o caminho
que escolhi seguir. Sua generosidade, inteligência, perspicácia, sinceridade, paciência e
amizade farão sempre parte da pessoa que me tornei.

Agradeço também a todos os professores do PPGAN e colegas de curso pelo


aprendizado, interesse e diálogo franco, além das sugestões e críticas que enriqueceram
este projeto. À Ana Lúcia Mercês, secretária do curso, pelo apoio incondicional, do
primeiro ao último momento.

Agradeço aos companheiros do Laboratório de Antropologia das Controvérsias


Sociotécnicas (LACS) e do grupo Persona, pelas discussões fecundas que muito
contribuíram na minha formação e na formação deste trabalho.

Agradeço a todos os profissionais do Instituto Médico Legal e da Divisão de Referência


da Pessoa desaparecida, em especial à Vanessa Velloso Dos Santos, Dr. João
Batista Rodrigues Júnior, Dra Cristina Masson e Elenir Ferreira da Cunha. Sem sua
generosidade e parceria, a pesquisa que deu origem a esta dissertação não seria possível.
Aprendi muito com a dedicação, comprometimento e competência de todos os
profissionais destas duas instituições, e sinto-me grato, não apenas como antropólogo
mas também como cidadão, pela oportunidade de conviver com servidores públicos que
fazem, a partir de sua vocação, uma diferença positiva na vida de inúmeras pessoas.

Agradeço aos amigos Daniel, Fernando, Cíntia, José, Levindo, Maurício, Marcílio,
Camila, Flora, Luiz, Cristiane, Denis, Ivan, Áurea, Alencar, Mauro, Brunello, Marçal,
Henrique, Francilins, Luisa, Marcos, Bernardo, Sânzio, Nian, Bel, Brisa, Amilcar,
Pedro, Carol, Elisa, Rodrigo, Pablo e Alexandre.

Agradeço à minha filha Vivienn, minha irmã Paola, e a meu Pai, Paulo, por tudo.

E agradeço à Simone - para quem agradecer por tudo seria muito pouco – pelo amor.

v
“- É isso. Trabalho na minha morte. Um homem verdadeiro tem direitos e
deveres para com a sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
- Sim, já mo disse.
- Conhece o sítio? – E as palavras subentendiam ramificações de sentido,
outras intenções. Mas a voz era imperturbável. Este homem morreria da sua
própria morte, dentro dela.”

(Herberto Helder)

vi
RESUMO

Neste trabalho são analisadas as práticas cientificas, burocráticas e judiciais a partir das
quais alguns cadáveres específicos passam a existir como “desconhecidos” e pessoas
ausentes passam a existir como “desaparecidos”, bem como as implicações colocadas
por essa existência na maneira como tradicionalmente constituímos nossa noção de
pessoa. A partir da descrição de dispositivos sociotécnicos e da exploração entre as
relações de cadeias de referência legal e científica, procuro demonstrar como a morte de
cadáveres desconhecidos acontece em termos processuais que resultam no que chamo
de rés-subjetivação. De maneira análoga, discuto os processos de objetivação técnica e
burocrática da pessoa desaparecida, tanto no que se refere à sua condição moral quanto
a seu corpo físico ausente, a partir de índices fornecidos por familiares. A apropriação,
pelo Estado, de desaparecimentos como “casos de polícia” é fundamental para que
desaparecidos sejam constituídos enquanto tal. Além disso, a partir da análise de casos
judiciais envolvendo cadáveres, discuto como a noção de pessoa pode ser ressignificada
a partir das técnicas jurídicas, de maneira a situar ontologicamente seres cuja existência
impõe desafios a algumas distinções que são caras à cosmologia ocidental, como aquela
entre pessoas e coisas. Assim, cadáveres desconhecidos e pessoas desaparecidas levam
Estado e familiares a deliberadamente refletir, e produzir saberes a respeito de corpos
materiais e subjetividades, bem como sobre as relações possíveis entre ambos, de
maneira que outras versões da pessoas possam emergir.

Palavras Chave: desconhecidos; desaparecidos; noção de pessoa

vii
ABSTRACT

In this work I analyze the scientific, bureaucratic and judicial practices from which
some specific bodies come into existence as "unidentified" and missing persons come
into existence as "disappearing", as the implications posed by this existence in the way
we traditionally constitute our notion of “person”. From the description of the socio-
technical devices and of the relations between chains of scientific and legal references, I
try to demonstrate how the death of unidentified corpses happens in a process that result
in what I call res-subjectification. Similarly, I analyze the processes of technical and
bureaucratic objectification of the disappearing person, both as regards its moral
condition as its physical body from indices provided by families to the police. The
appropriation by the State of disappearances as "police cases" is fundamental for
missing persons come into existence as "disappearing". Moreover, from the analysis of
court cases involving corpses, I discuss how the notion of person can be resignified
from legal techniques in order to situate ontologically beings whose existence poses
challenges to some distinctions that are expensive to Western cosmology, like that
between person and things. Thus, unidentified corpses and disappearing persons take
both State and families to deliberately reflect and produce knowledge about material
bodies and subjectivities, as well as on the possible relationships between them, so that
other versions of persons can emerge.

Keywords: unidentified corpses; disappearing persons; notion of person

viii
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - exemplo de laudo odonto-legal ...................................................................... 38

Figura 2 - "pessoa natural" ............................................................................................. 59

Figura 3 - "desconhecido” .............................................................................................. 60

Figura 4 - "desconhecido" identificado: o fim da morte como fim da pessoa................ 60

Figura 5 - "desconhecido" não identificado: à espera da morte ..................................... 61

Figura 6 - "pessoa natural" ........................................................................................... 107

Figura 7 - "desaparecido" ............................................................................................. 109

Figura 8 - Localizado vivo ........................................................................................... 109

Figura 9 - Localizado morto ........................................................................................ 110

Figura 10 - Ausente ..................................................................................................... 112

Figura 11 - Não localizado .......................................................................................... 112

Figura 12 - Charts para auxílio no cadastro de informações dos familiares de


desaparecidos - categoria "cor da pele" - DRPD .......................................................... 129

Figura 13 - Busca por desconhecidos no programa PCNet .......................................... 134

ix
SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................................... 11

Cap. 1 – Falar de mortos, falar com corpos .................................................................... 19

1.1 - A morte enquanto processo ................................................................................ 26

1.2 - O corpo enquanto índice ..................................................................................... 39

1.3 - A pessoa como princípio .................................................................................... 48

Cap. 2 - Interlúdio: algumas notas sobre escatologia jurídica ........................................ 62

2.1 - O morto entre as pessoas .................................................................................... 74

2.2 - O morto entre as coisas....................................................................................... 88

Cap. 3 – Desaparições .................................................................................................... 94

3.1 - O que é um desaparecido .................................................................................... 97

3.2 - Os desaparecidos e seus porta-vozes ................................................................ 118

3.3 - Os desaparecidos e seus rastros ........................................................................ 126

Considerações finais ..................................................................................................... 137

Referências Bibliográficas ............................................................................................ 142

Anexos .......................................................................................................................... 151

x
Introdução

“Ah, então você é o antropólogo social que vai passar um tempo


aqui com a gente. Seja bem vindo. Mas sua pesquisa é sobre
desconhecidos e desaparecidos? Veja bem, eu não queria te
desanimar, mas acho que a sua pesquisa é um pouco complicada:
porque no caso dos desconhecidos, não tem como você interagir
muito com eles, já que estão mortos. E quanto aos desaparecidos,
suponho que também não estejam lá para falar com você. Se você
conseguir encontrá-los é porque já não estão mais desaparecidos
(risos).”

O comentário de boas vindas feito pelo Dr. José Mauro, diretor do Instituto Médico
Legal, me deixou completamente desconcertado. Não porque se tratasse de uma piada
ruim – de fato, a piada foi muito boa; mas porque explicitou alguns dos desafios
enfrentados durante a elaboração desta pesquisa. Afinal, como era de se esperar de uma
dissertação na área de antropologia social, este trabalho diz respeito, de alguma
maneira, a pessoas. Mas, diferentemente da maior parte das etnografias produzidas no
Brasil1 e no exterior, eu não poderia contar com o tipo de relação que tradicionalmente
se estabelece entre o antropólogo e seus “nativos”. Porque os “nativos” que escolhi
estudar eram em vários sentidos fugidios: quando presentes estavam mortos; e quando
vivos estavam ausentes, ao menos fisicamente. Neste sentido, a apreensão do objeto –
ou dos sujeitos – desta pesquisa dependeu em grande medida de uma escolha a respeito
dos locais adequados para buscá-los. Porque se por um lado uma interação à maneira
antropológica tradicional com cadáveres desconhecidos e pessoas desaparecidas é
simplesmente impossível (na medida em que a própria possibilidade de sua existência
parece operar alguns paradoxos), há, no entanto, formas de interagir diretamente com
essas entidades e apreendê-las: através do estudo das práticas científicas, burocráticas e
judiciais que permitem que “desconhecidos” e “desaparecidos” ganhem meios de
existir; ou em outros termos, sejam constituídos enquanto tais. Foi na tentativa de
compreender em que termos se dá tal existência que desenvolvi esta pesquisa através de

1
Dentre as pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre o tema destacam-se os trabalhos de Letícia Ferreira
(2009, 2011) e Flávia Medeiros (2011, 2012).

11
etnografia no Instituto Médico Legal de Belo Horizonte e na Divisão de Referência da
Pessoa Desaparecida da Polícia Civil de Minas Gerais.

O estímulo inicial para a proposição da presente pesquisa se deu no segundo semestre


de 2006, durante a realização de um ensaio fotográfico no departamento de
Antropologia do Instituto Médico Legal de Belo Horizonte como parte de um trabalho
final para a disciplina de graduação em Ciências Sociais da UFMG intitulada
“Antropologia e Fotografia”. Pretendia discutir algumas relações entre a morte e a
fotografia, baseando-me principalmente nas observações de Elias (2001) e Dubois
(2004) sobre os temas. Tratava-se principalmente de investigar como o processo de
morrer e a fotografia de mortos foram relegados a determinados contextos particulares.
À época não pude desenvolver este projeto como gostaria – já que não são permitidas
fotos de corpos que possam ser reconhecidos visualmente – mas fui apresentado ao
Departamento de Antropologia Legal, que lidava com ossadas e corpos em estado
avançado de decomposição. Segundo relatos de funcionários aqueles corpos, que
chegavam de várias cidades do Estado ao IML da capital, ofereciam pelo menos dois
desafios às autoridades: um primeiro, que diz respeito à indeterminação da causa
mortis; e ainda um outro, relacionado à falta de dados imediatos sobre a identidade civil
do cadáver: alguém morreu (ou foi morto); mas quem?

À primeira vista, esta pergunta simplesmente não pode ser respondida, já que esses
corpos não são encontrados com os documentos pessoais que poderiam auxiliar em sua
identificação. Além disso, muitos dos cadáveres que chegam ao Departamento de
Antropologia encontram-se queimados, decompostos, esqueletizados ou fragmentados.
Tudo de que os funcionários do IML dispõem são índices de uma vida pregressa sobre a
qual nada se sabe. Inicia-se então, por parte dos peritos, a tentativa de identificação a
partir de uma série de intervenções técnicas nos corpos próprias da medicina, da
antropologia e da odontologia forenses. Eventualmente as informações produzidas no
IML não bastam para definir com precisão a identidade civil do cadáver. É preciso que
sejam complementadas com outros tipos de informações, que apenas parentes e/ou
conhecidos poderiam fornecer. No entanto, ao contrário do que ocorre em relação à
maioria dos mortos recém-chegados ao IML, nesses casos não há parentes ou
conhecidos para “reclamar” ou “reconhecer” o defunto; e o motivo disto é óbvio:
enquanto os técnicos do IML fazem seus exames, o que os parentes querem a todo custo
evitar é estarem na posição daqueles que ainda não sabem que há um corpo à espera do

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reconhecimento; isso porque não é exatamente um “corpo” que buscam, mas sim uma
“pessoa”, dada como desaparecida.

Geralmente, aqueles diretamente ligados a pessoas desaparecidas se mobilizam num


conjunto de ações para reencontrá-las. Estas ações incluem a divulgação de dados
(fotos, nome completo, idade, data e região do desaparecimento) sobre os desaparecidos
em diversos meios de comunicação através de entidades representativas agindo em
parcerias com empresas públicas e privadas, bem como o registro do desaparecimento
numa delegacia, que implica na instauração de um inquérito policial. Os dados
fornecidos por familiares são decisivos, tanto para uma eventual localização da pessoa
viva, quanto num eventual processo de identificação do corpo pelo IML. As
informações que estas famílias disponibilizam sobre os desaparecidos são também
índices. Em alguns casos, são índices de uma morte, sobre a qual nada se sabe.

Um trabalho etnográfico sobre cadáveres desconhecidos e pessoas desaparecidas abre a


possibilidade de discussão de uma série de temas clássicos e contemporâneos caros à
antropologia como, por exemplo, a morte, o corpo, o Estado, o Direito, assim como a
noção de pessoa. Este último parece-me um tema particularmente profícuo para
compreender as condições necessárias para que os processos de identificação de
cadáveres e localização de pessoas desaparecidas sejam efetivados. Como observa
Manuela Carneiro da Cunha,

“O estudo das manifestações socialmente padronizadas que cercam


a morte permite, no processo de dissolução da personalidade social,
entender-se, de certo modo ‘pela negativa’ o que precisamente
constitui essa personalidade numa dada sociedade, e que vai sendo
progressiva e lentamente formada ao longo da vida de cada
indivíduo” (Carneiro da Cunha, 1978: 2)

Se a morte, de maneira geral, permite uma reflexão a respeito da categoria de pessoa, a


morte como desconhecido e o desaparecimento parecem-me particularmente adequados
para uma discussão de nossa própria versão de pessoa, na medida em que torna possível
esse entendimento “pela negativa” em vários níveis analíticos. Um primeiro nível diz
respeito à impossibilidade de uma relação de correspondência automática entre a
maneira como articulamos nossa noção de pessoa e os seres ou entidades concretas que
usualmente designamos por pessoas. Steven Lukes aponta para a tautologia dessa
relação em nossa cosmologia, que toma a pessoa como

13
“the concept of a type of entity such that both predicates ascribing
states of consciousness and predicates ascribing corporeal
characteristics (…) are equally applicable to an individual entity of
that type” (1989: 284)

A concepção, corrente entre nós, de que pessoas podem ser tomadas como “casos
particulares” da pessoa – ou inversamente, que a categoria de pessoa possui uma
realidade concreta, além apenas de uma realidade conceitual – pode ser tomada como
um caso daquilo que Alfred North Whitehead chamou de falácia da concretude
deslocada: “o erro de tomar o abstrato pelo concreto” (2006: 71). Para o autor, os
conceitos seriam ferramentas analíticas, ou formas eficazes de se apreender relações
complexas contextualmente colocadas; e a reificação dessas relações, típica de um
pensamento ocidental que se pretende objetivo, não passaria de um equívoco2. A partir
desta correspondência naturalizada entre categoria e entidades concretas, Louis Dumont
definiu de maneira precisa aquela que se tornaria a concepção ocidental moderna de
pessoa: a crença de que “a humanidade é constituída de homens, e cada um desses
homens é concebido como apresentando, a despeito de sua particularidade e fora dela, a
essência da humanidade” (1992: 52). Tim Ingold exprime esta mesma relação de
correspondência em termos de uma fusão ideológica do conceito de indivíduo biológico
com o de sujeito moral. Para o autor, trata-se de

“um paradoxo situado no cerne do pensamento ocidental, que


afirma, com igual segurança, tanto que os seres humanos são
animais quanto que a animalidade é o exato oposto da humanidade.
Um ser humano é um indivíduo pertencente a uma espécie; existir
como ser humano é existir como pessoa. No primeiro sentido, o
conceito de humanidade refere-se a uma categoria biológica (Homo
sapiens); no segundo, aponta para uma condição moral (de pessoa).
O fato de que empregamos a mesma palavra "humano" para ambos
os sentidos reflete a convicção profundamente arraigada de que

2
Talvez o exemplo mais clássico nas ciências sociais dessa reificação de conceitos seja encontrado em
Émile Durkheim, para quem “a regra fundamental (da sociologia) é considerar os fatos sociais como
coisas” (2007:15). Whitehead parece ir na mesma direção de Max Weber e sua teoria dos “tipos ideais”.
Para o autor alemão, essas ferramentas analíticas “permitem-nos ver se, em traços particulares ou em
seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas construções, determinar o grau de
aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse aspecto, a construção é
simplesmente um recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas” (1979:372).

14
todos os indivíduos pertencentes à espécie humana (...) podem ser
pessoas, ou, dito de outra forma, que a condição de pessoa depende
do pertencimento à categoria taxionômica”. (1995:8)

Assim, nossa concepção de “pessoa” se basearia numa relação de sobreposição entre


duas concepções de humanidade, que dizem respeito a domínios ontológicos
supostamente distintos (natureza e cultura). Esta mesma relação de sobreposição estaria
presente, por implicação, em cada pessoa, na articulação um corpo humano e uma
condição moral que lhe corresponda3. Nas sociedades ocidentais, esta relação de
sobreposição é legitimada (e, portanto, reconhecida) pelos diferentes sistemas jurídicos
e garantida por uma série de instituições, através do que Michel Foucault (2005)
chamou de “estatização do biológico”. O ponto a ser destacado é que a existência
jurídica das pessoas – constituída a partir do registro, pelo Estado, de alguns traços
corporais associados a uma personalidade civil reconhecida juridicamente – naturaliza
esta noção de pessoa elaborada a partir da articulação entre atributos materiais e
imateriais. Não por acaso a pessoa é denominada, no ordenamento jurídico brasileiro,
“pessoa natural”. Ainda que se possa distinguir esta categoria de outras comumente
utilizadas para se referir às pessoas, tais como as noções de “indivíduo” ou “cidadão”,
em termos jurídicos, a noção de “pessoa natural” parece englobar as outras como
equivalentes funcionais. Conforme demonstra Luiz Fernando Duarte,

“O discurso jurídico ocidental não distingue os termos, já que sua


disposição universalizante (...) não admite a relatividade cultural da
noção de individuo. Encontra-se assim quase exclusivamente na
teoria jurídica a noção de pessoa, entendida ao mesmo tempo como
o individuo portador de direitos e deveres modernos, e como a
pessoa entranhada em sua rede de relações com outras pessoas e
com as coisas.” (2012: 143)

Mas, se na maior parte das situações cotidianas a equivalência entre um corpo


individual e a pessoa como sujeito parece autoevidente, nos casos envolvendo pessoas
desaparecidas e cadáveres desconhecidos a correspondência entre categoria e entidade
não se coloca de maneira tão clara. Nestas situações, parece haver – por motivos

3
Esta condição moral pode ser expressa em nossa cultura em diferentes termos: alma, espírito, mente,
personalidade, etc. A despeito de seus diversos significados, todos eles têm em comum um efeito
singularizador: o de constituir um espécime humano como uma pessoa individual.

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opostos – o que chamarei aqui de um estado de “suspensão” na condição de pessoa:
neste caso teríamos, por assim dizer, nomes sem corpos de um lado e corpos sem
nomes, de outro. As relações entre corpo, condição humana e existência jurídica são
rearticuladas, de maneira que versões alternativas da pessoa possam emergir para
englobar a existência de seres que não estão bem situados ontologicamente. No primeiro
caso, as famílias e pessoas próximas dos desaparecidos, em suas relações com a polícia,
preservam os aspectos moral – o desaparecido continua atuante em sua rede de relações,
ainda que de maneira diferente – e jurídico das pessoas em questão (incluindo o registro
do desaparecimento e todos os dados necessários à futura localização), mas falta
obviamente o da corporalidade. No segundo, há os aspectos jurídico (o corpo
encontrado é inscrito num inquérito policial) e corporal, mas a “condição moral” está
ausente.

Na perspectiva das pessoas diretamente ligadas aos desaparecidos, se não há um


“corpo”, não há um morto4. Na perspectiva do IML, se há apenas um corpo, ainda não
há um morto, não há alguém morto. Assim, a existência de desaparecidos e de
desconhecidos parece colocar em xeque não apenas a categoria de “pessoa natural”, mas
também algumas de nossas concepções nativas a respeito da vida e da morte. No
primeiro caso, a morte é real apenas enquanto uma possibilidade, que justifica uma série
de práticas por parte de familiares e policiais, mas não justifica a extinção jurídica da
pessoa. No segundo, a morte é uma certeza, mas insuficiente. É preciso que, através de
uma série de procedimentos científicos e burocráticos, seja feita a identificação do
cadáver, para que o morto termine de morrer.

As discussões elaboradas neste trabalho baseiam-se principalmente em duas etnografias,


distintas mas complementares, feitas entre setembro de 2011 e fevereiro de 2012, no
Instituto Médico Legal de Belo Horizonte e na Divisão de Referência da Pessoa
Desaparecida da Polícia Civil de Minas Gerais, locais onde, mais do que bem recebido,
fui acolhido de maneira muito generosa, por todos. Optei por estruturar a dissertação de
maneira que o texto refletisse, na medida do possível, essas experiências etnográficas.
Não há, portanto, como é comum em nossa tradição acadêmica, discussões teóricas e
descrições etnográficas em separado. As discussões teóricas se colocam de maneira

4
E, obviamente, é melhor que não haja, já que o ideal é reencontrar a pessoa viva. No entanto, uma
resposta “negativa” eventualmente pode ser melhor que resposta nenhuma. A “materialidade da prova”
neste caso, não difere de outros processos jurídicos.

16
pertinente, a meu ver, apenas quando em relação direta com a experiência empírica,
como uma forma de tornar essa experiência inteligível, tanto para o pesquisador quanto
para os leitores eventuais. Neste sentido, além de ser um trabalho antropológico sobre
algumas pessoas (mortas ou desaparecidas) esta dissertação é uma tentativa de
contribuição para uma teoria etnográfica da noção de pessoa5 através do estudo de
determinadas práticas socialmente constituídas e localizadas. Procurei estruturar os
capítulos principalmente a partir de casos envolvendo desconhecidos e desaparecidos.
Este recurso metodológico parece-me não apenas uma maneira interessante de explorar
as complexidades presentes nos processos de identificação forense e investigação de
desaparecimentos, mas também se configura como uma tentativa de produção de um
conhecimento antropológico que se coloque como análogo àquele produzido em
contextos judiciais. Por questões éticas, optei por modificar os nomes dos
desconhecidos, desaparecidos e familiares nos casos aqui relatados. Já os nomes dos
profissionais do IML e da Divisão de Desaparecidos foram mantidos, por considerar
que sua participação foi fundamental para a realização desta pesquisa. A escolha dos
casos e situações aqui relatados não obedeceu a um único critério. São todos, assim me
parecem, casos exemplares, no sentido de que é possível aprender algo com eles.

O primeiro capítulo da dissertação se baseia na etnografia feita no IML. Nele, discuto as


práticas cientificas e burocráticas a partir da qual alguns cadáveres específicos passam a
existir como “desconhecidos”. A partir da descrição de dispositivos sociotécnicos e da
exploração entre as relações de cadeias de referência legal e científica, procuro
demonstrar como a morte desses cadáveres acontece em termos processuais que
resultam no que chamo de rés-subjetivação. Em seguida, discuto mais detalhadamente o
trabalho realizado pelos peritos em medicina, antropologia e odontologia forense a
partir dos índices encontrados nos corpos, bem como a eficácia e os limites dos
dispositivos judiciais de identificação. Para finalizar, trato de algumas implicações da
existência de desconhecidos no que se refere à categoria de “pessoa natural”, tal como é
colocada em nosso ordenamento jurídico. Procuro demonstrar como esta categoria é
tanto resultado quanto condição de uma série de aperfeiçoamentos técnicos e
institucionais, e como ela é reformulada quando se trata de cadáveres desconhecidos.

5
Conforme observa Márcio Goldman, “Uma teoria etnográfica procede um pouco a moda do
pensamento selvagem: emprega os elementos muito concretos coletados no trabalho de campo – e por
outros meios – a fim de articulá-los em proposições um pouco mais abstratas, capazes de conferir
inteligibilidade aos acontecimentos e ao mundo” (2006: 28).

17
De maneira análoga, no capítulo três, discuto como pessoas desaparecidas são
constituídas em termos de uma nova versão de pessoa, a partir da rearticulação dos
atributos constitutivos da “pessoa natural”. Procuro demonstrar como o registro dos
desaparecimentos numa delegacia, e sua consequente transformação num “caso de
polícia”, é condição necessária para que “desaparecidos” continuem a existir entre nós,
a despeito de sua ausência física. Além disso, descrevo as práticas nas quais se engajam
familiares e pessoas próximas, que são constituídos como “porta-vozes” legitimados do
ausente. Termino com a descrição dos processos de objetivação técnica e burocrática da
pessoa desaparecida, tanto no que se refere à sua condição moral quanto a seu corpo
físico ausente, a partir dos índices fornecidos por familiares.

O segundo capítulo, inscrito neste trabalho como um “interlúdio”, não trata diretamente
de “desconhecidos” e “desaparecidos”, embora também se pretenda um capítulo
etnográfico. Nele procuro explorar as reconfigurações operadas através das técnicas
jurídicas no estatuto do ser humano após a morte. Para tanto, tomo o Direito como uma
espécie de escatologia nativa no que diz respeito aos mortos para demonstrar, a partir da
análise de casos julgados no tribunal de Justiça de Minas Gerais e que envolvem
cadáveres, como a noção de “pessoa natural” pode ser ressignificada ou subvertida
quando se trata da emergência jurídica de pessoas através de cadáveres de terceiros.
Exploro também a indefinição ontológica relativa aos mortos, no que se refere à
distinção, cara à cosmologia ocidental, entre pessoas e coisas, bem como aos diferentes
graus de pessoalização e reificação que são atribuídos a cadáveres em situações
específicas. Procuro demonstrar como o Direito, apesar de eventuais inconsistências e
contradições, opera segundo alguns princípios ordenadores que dizem respeito tanto a
uma ideia de pessoa quanto a uma de sociedade.

Nas considerações finais, retomo alguns dos pontos discutidos ao longo trabalho, assim
como algumas inquietações relativas à pesquisa. Procuro demonstrar como a redefinição
da noção de “pessoa natural” operada em contextos judiciais a partir de desaparecidos e
desconhecidos diz respeito não apenas a noções nativas abstratas, mas também à
reflexão deliberada e a produção de saberes específicos sobre as relações possíveis entre
corpos e pessoas como sujeitos morais.

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Cap. 1 – Falar de mortos, falar com corpos

“Qualquer discurso sobre o corpo parece ter que enfrentar uma resistência”

(José Gil)

“Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar.”

(João Cabral de Melo Neto)

Era meu segundo dia de campo no Instituto Médico Legal e pela primeira vez
acompanharia, no necrotério, os procedimentos relativos a cadáveres desconhecidos.
Estivera rapidamente no local na véspera, acompanhado do Dr. João Batista, que me
apresentou também outros setores do IML, tais como o Setor de Informática e Análise
Estatística (SIAE), o Serviço de Odontologia Forense e Identificação Humana (SOFIH),
o Departamento de Antropologia e a Assistência Social, junto aos quais eu viria a
desenvolver esta pesquisa. Depois de passar a maior parte da tarde no SOFIH, junto da
Dra. Silvia - uma das peritas odonto-legais que se reversam nos plantões do
departamento – e de Simone – a funcionária responsável por recolher e encaminhar ao
Instituto de Identificação as fichas datiloscópicas dos desconhecidos, além de auxiliar os
peritos em outras tarefas técnicas e burocráticas – me sentia ansioso em relação ao que
se passava no necrotério. Acabara de terminar meu trabalho de campo na Divisão de
Referência da Pessoa Desaparecida (DRPD), onde fui apresentado a uma parte da
equipe do IML numa visita à delegacia organizada pela direção das duas instituições
com o intuito de estreitar relações e aprimorar as buscas de pessoas desaparecidas entre
os cadáveres desconhecidos.

19
O SOFIH havia sido criado há algumas semanas a partir do antigo Departamento de
Odontologia, para tornar esta busca mais eficaz, a começar por uma revisão dos
processos de cerca de trezentos corpos inumados como desconhecidos desde o ano
anterior. Tendo em vista que um desconhecido é um desaparecido em potencial (e vice-
versa), o cruzamento das informações produzidas no IML com aquelas oriundas da
DRPD poderia resultar na identificação da alguns corpos (ou na localização de algumas
pessoas). Familiarizado que estava com os procedimentos da Divisão de Desaparecidos,
passara boa parte daquela tarde falando com as funcionárias do SOFIH a respeito de
pessoas desaparecidas, do trabalho desenvolvido na DRPD e, principalmente, sobre
como utilizar o banco de dados fornecido pela Delegacia (uma planilha no EXCEL com
dados de todos os desaparecidos, a partir da qual é possível realizar pesquisas de acordo
com diversas características, tais como sexo, idade, data do desaparecimento,
particularidades físicas, entre outras). Sentia-me particularmente grato em poder
contribuir de alguma forma com o trabalho daqueles profissionais que me receberam de
maneira generosa, mesmo sem saber exatamente o que eu buscava ali. A este
sentimento de gratidão, somava-se também algum alívio, depois da reação de alguns
funcionários a quem fui apresentado no dia anterior: “O Patrick vai passar um tempo
aqui fazendo a pesquisa para a dissertação dele. Ele também é antropólogo, mas é
antropólogo social”. A conjunção “mas”, somada a “antropólogo social” me causou
surpresa num primeiro momento, já que, até aquele instante, não havia para mim nada
de exótico em ser um antropólogo social, particularmente no ambiente acadêmico ao
qual estou habituado a frequentar. Mas no IML a versão nativa, “não marcada” da
antropologia é a Antropologia Forense, e esta distinção não é superficial. De fato, o
trabalho que me propus a fazer ali era diferente daquele realizado pelos antropólogos
forenses; embora fosse (também) um trabalho a respeito de antropologia forense. Estas
diferenças se tornariam mais claras para mim ao longo do trabalho de campo.

Enquanto conversava no SOFIH com Dr. Silvia, Simone volta da Assistência Social
com fichas relativas aos desconhecidos daquele plantão: “você está com sorte, hein... no
seu primeiro dia já vai pegar um podrão”. Num primeiro momento pensei que o termo
“podrão” (ou “podre”, frequentemente utilizado) fosse alguma espécie de chiste
utilizado pelos funcionários do IML para se referir a determinados corpos, notadamente
aqueles em estado avançado de decomposição. Rapidamente, porém, descobriria que o
termo é mais denotativo que conotativo, e que a partícula aumentativa não faz, nem de

20
longe, jus ao odor que corpos nessas condições exalam. Lembro-me de que meu
primeiro pensamento ao adentrar o necrotério naquela tarde foi o medo de vomitar logo
no início do trabalho de campo; enquanto o segundo foi que não há descrição densa
capaz de descrever a densidade do cheiro de um corpo humano em estado avançado de
putrefação. O máximo que posso dizer a respeito é que se trata de um odor impregnante,
algo que fica, algo diante do qual se respira com todo o corpo, como se todo o corpo
fosse olfato. Pode-se aprender a conviver com esse odor, mas é impossível ignorá-lo.

Antes de descermos ao necrotério Simone providenciou para todos máscaras, toucas e


luvas cirúrgicas descartáveis, além de guarda-pós. Junto das botas de borracha
semelhantes àquelas utilizadas por açougueiros – que ficam guardadas no vestiário
localizado numa sala anexa ao necrotério – estes equipamentos são necessários para
prevenir quaisquer contaminações entre os profissionais que trabalham diretamente com
cadáveres. Após o fim dos trabalhos são descartados em lixeiras próprias, localizadas no
interior do necrotério, com exceção das botas (que nunca vão muito longe, já que ficam
guardadas no vestiário) e do guarda-pó de pano, encaminhado para a lavanderia do IML
para posterior esterilização. Simone pegou também uma câmera fotográfica, uma caneta
e uma prancheta com as fichas para exame odontológico que preparara anteriormente,
contendo o número de entrada (e outras informações, como a procedência) de cada um
dos três corpos desconhecidos a serem periciados naquela tarde.

Existem dois acessos ao necrotério, um deles é diretamente ligado a um dos portões


externos do IML e é através dele que chegam os corpos trazidos pelo rabecão da Polícia.
Também é através deste mesmo acesso que os corpos saem do prédio, sejam aqueles
reconhecidos por familiares ou identificados posteriormente (que são levados por
funerárias); sejam aqueles não identificados ou não reclamados (levados pela própria
Polícia, para sepultamento em covas reservadas nos cemitérios públicos). Um segundo
acesso, “interno”, se dá por uma porta localizada numa pequena sala onde os médicos
legistas e auxiliares de necrópsia preparam seus laudos, a partir de fichas preenchidas
durante os exames nos cadáveres. Esta sala se localiza entre o necrotério e o vestiário
onde calçamos as botas.

A primeira coisa que se vê ao entrar no necrotério por esta porta é o “aquário”, um


pequeno e estreito espaço reservado, revestido com um grande vidro em um dos lados e
uma parede do outro. O vidro torna acessível o conteúdo do “aquário” para aqueles que

21
farão o reconhecimento visual de seus supostos familiares mortos, a partir de uma saleta
anexa. A parede interdita para essas pessoas a visão dos outros espaços que compõem o
necrotério. Quando é feito um reconhecimento, o cadáver é coberto com as roupas com
as quais chegou ao IML, colocado no “aquário” e as luzes da saleta são acessas, de
modo que os familiares possam examinar, do lado “de fora”, se aquela é a pessoa que
procuram. Segundo relato dos funcionários, este dispositivo oferece pelo menos duas
vantagens em relação à antiga forma de reconhecimento, na qual os familiares eram
levados diretamente ao necrotério. Em primeiro lugar possibilita à família relativa
privacidade (em caso de reconhecimento é comum que as pessoas chorem, queiram
fazer orações, etc. Ainda que estejam sempre acompanhadas de pelo menos um policial,
este procedimento é menos “impessoal” do que o anterior, que ocorria na presença de
vários profissionais, além de outros cadáveres. Uma segunda vantagem é a considerável
redução do odor que vem do necrotério.

Há um armário embutido localizado ao lado do “aquário”, onde ficam guardadas as


fichas datiloscópicas, além de outros materiais necessários para recolhimento de
impressões digitais. Ao longo de um dos lados do necrotério estão instaladas 72
câmaras refrigeradas, onde são guardados, por até 30 dias, os cadáveres desconhecidos à
espera de reconhecimento, identificação e sepultamento6, além de amostras de sangue e
tecido para eventuais exames de DNA, em casos autorizados judicialmente. Em frente a
estas câmaras refrigeradas há um espaço para circulação onde os corpos são alocados
(cobertos com as respectivas roupas) em macas individuais, depois de realizadas as
necrópsias, e antes de serem congelados. É neste espaço que se realizam os exames da
arcada dentária e são colhidas as impressões datiloscópicas dos desconhecidos. A outra
parte do necrotério é composta por uma galeria onde estão dispostas mesas próprias
para a realização de exames necroscópicos. Há ainda duas salas isoladas próximas ao
primeiro acesso, uma onde está instalado equipamento de radiografia e uma segunda,
onde em geral os corpos em estado avançado de putrefação são alocados antes da
realização das perícias.

6
No que se refere a cadáveres, o termo “reconhecimento” designa a identificação visual do corpo, feita
por familiares. Segundo (BRITO, ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO), “é preciso diferenciar
reconhecimento e identificação, já que esta última é um procedimento técnico em que se empregam
métodos médico-legais, odontolegais, entropológicos, antropométricos, papiloscópicos, exame
comparativo de DNA, entre outros, com o objetivo de provar a identidade de uma pessoa”. (2011:322)

22
A morte que se vê no IML não é bonita. Num certo sentido, é o simétrico oposto de
nossa concepção geral sobre a “boa morte”7. Todos os cadáveres encaminhados ao
Instituto Médico Legal apresentam indícios de morte em circunstâncias violentas
(assassinato, acidente ou suicídio) ou suspeitas (causas indeterminadas). Para todos
estes corpos, há uma série de procedimentos técnicos e burocráticos, que incluem tanto
exames necroscópicos (externos e internos, além de laboratoriais) que tem por objetivo
principal determinar a causa mortis; quanto a criação de uma série de registros (fichas,
documentos, arquivos, laudos, fotografias) que tem por efeito “construir o morto”
(SANTOS, 2011). Dentre todos os registros produzidos, destaca-se a Declaração de
Óbito, documento com status de ato médico “indispensável para as formalidades legais
do sepultamento.” (BRASIL, 2009:7).

Além desses procedimentos-padrão, comum a todos os corpos, há ainda uma série de


protocolos destinados a um tipo especial de cadáver: aquele que dá entrada no IML
como “desconhecido”. Tecnicamente, um cadáver “desconhecido” é aquele que não
pôde “provar” sua identidade civil quando da descoberta de sua morte biológica, ou
seja, foi encontrado sem documentos que ajudassem a identificá-lo ou em estado
avançado de putrefação, quando a identificação visual torna-se muito difícil ou
impossível. Nesses casos, além de determinar a causa mortis, é necessário identificar o
cadáver, ou a pessoa por trás do cadáver. É como se estivéssemos diante de uma
máscara mortuária vazia, sem rosto. A morte biológica é uma certeza, mas uma certeza
insuficiente: Embora seja condição necessária, não basta para que haja a morte da
pessoa8. Neste sentido, a morte biológica é apenas um ponto de partida. É preciso
terminá-la e para tanto é preciso saber quem é aquele morto. Para tentar responder a esta
pergunta os cadáveres desconhecidos são submetido a uma série de procedimentos
técnicos que visam, a partir do cruzamento de indícios extraídos dos corpos com
informações produzidas por banco de dados mantidos e administrados pelo Estado -

7
Como demonstram os trabalhos de Rachel Aisengart Menezes (2004; 2011) & Edlaine de Campos
Gomes (2011), o ideal a respeito do “morrer bem” na contemporaneidade giraria em torno não apenas
de uma morte indolor, mas, acima de tudo de uma morte digna, ou “remetida à humanização do morrer
e ao respeito à autonomia individual” (2011:106). Os casos que chegam ao IML parecem indicar o
oposto: são em sua maioria, mortes violentas; e com exceção dos casos de suicídio, qualquer indício de
autonomia por parte do morto no evento parece simplesmente não se colocar.
8
Embora tendamos a pensar a morte “social” como posterior à morte do organismo biológico, nem
sempre as coisas se dão nesta ordem. Em seu ensaio intitulado “Efeito Físico no Individuo da ideia de
morte sugerida pela coletividade”, Marcel Mauss relata diversos casos onde o inverso parece ocorrer: "A
influência do social sobre o físico conta com uma mediação psíquica evidente; é a própria pessoa que se
destrói, e o ato é inconsciente." (2003:349).

23
assim como informações fornecidas por supostos familiares - determinar sua identidade
civil ou jurídica. Dentre os procedimentos relativos a cadáveres desconhecidos
destacam-se coleta de impressões datiloscópicas, também conhecidas como impressões
digitais; o exame da arcada dentária (realizados pelo SOFIH) e o exame de ossada
(realizado pelo departamento de Antropologia Legal) em casos de encontro de corpos
esqueletizados.

Os três desconhecidos daquela tarde já tinham sido necropsiados quando entramos no


necrotério. Aguardavam no espaço em frente às câmaras frigoríficas, cada um em uma
maca. Eram duas adolescentes e um homem mais velho, aparentando ter entre quarenta
e cinquenta anos. Estavam nus, mas cobertos com as roupas com as quais foram
encontrados. Os corpos das jovens foram encontrados num terreno baldio naquela
manhã com sinais de execução e encaminhados ao IML pela delegacia de polícia mais
próxima do local. Num primeiro contato visual, não percebi nenhum sinal de que
estavam mortas. As duas tinham uma expressão serena. Olhos e bocas semi-abertos.
Apenas quando Simone moveu a primeira maca para perto de uma luminária utilizada
nos exames odontolegais pude ver um buraco próximo à orelha esquerda da jovem,
provavelmente provocado por tiro. Simone conferiu o número das fichas que tinha
trazido da Assistência Social com aqueles nas etiquetas plastificadas amarradas no
dedão do pé direito de cada um dos corpos. Colocou a ficha correspondente ao número
de identificação da primeira jovem em sua prancheta e fez duas fotos, uma primeira da
etiqueta, e outra do rosto da jovem. Então, com um pedaço de metal, forçou a
mandíbula do cadáver para baixo e encaixou um abridor de boca (instrumento de metal
que, encaixado nas gengivas superiores e inferiores, mantém afastada a mandíbula do
maxilar, de maneira a facilitar a visualização de todos os dentes). Fez mais duas fotos,
um close up dos dentes e outro do piercing colorido que a moça tinha na língua. Depois
introduziu um espelho bucal (um pequeno espelho em formato redondo preso a uma
haste de metal com cerca de 20cm de comprimento, bastante utilizado em
procedimentos odontológicos) através do qual Dr. Silvia pôde visualizar toda a
superfície dos dentes e fazer anotações em sua ficha.

A ficha do exame odontolegal9 vem impressa com campos previamente estabelecidos,


que podem ser classificados de acordo com diferentes tipos de informações a respeito

9
Ver anexo 1

24
do cadáver: um primeiro tipo, que chamarei de dados administrativos, diz respeito aos
registros produzidos sobre o corpo desde sua entrada no IML. O número do
desconhecido (o mesmo que consta na etiqueta afixada ao dedão), sexo, cor da pele,
procedência do cadáver (por exemplo, delegacia x ou hospital y), guia de recolhimento
do corpo, breve histórico do corpo, entre outras. Um segundo tipo, que chamarei de
informações técnicas, diz respeito à caracterização da arcada dentária do cadáver,
segundo padronização utilizada internacionalmente pela odontologia. O método divide
a arcada dentária em quatro regiões (ou quadrantes), segundo os arcos (superior e
inferior) e segundo os lados (direito e esquerdo) da boca. A cada região é atribuído um
número (por exemplo: arco superior direito, nº 1; superior esquerdo, nº 2; inferior
direito, nº 4; inferior esquerdo, nº 3). Desta forma a cada um dos trinta e dois dentes (o
modelo baseia-se num indivíduo adulto) é atribuído um número com sua localização em
cada região: assim, o dente incisivo do arco superior direito é o 1.1 e o último molar
(dente ciso) é o 1.8. Esta metodologia permite traçar um “mapa” da arcada dentária a
partir da caracterização de cada um dos dentes, bem como da boca como um todo.
Condições de higiene, presença de manchas, próteses dentárias, desgaste e até a idade
do cadáver podem ser inferidas através deste exame. A perita anota, no campo
correspondente a cada dente, algumas letras que lhe servirão como referência na
elaboração do laudo odontolegal daquele cadáver. Este código, também uma convenção
entre os dentistas, baseia-se na simples abreviação das particularidades passíveis de
serem encontradas num dente: cáries (C), resto radicular (RR), hígido ou saudável (H),
ausência do dente (AX), etc.

Depois de terminados os exames da arcada dentária, Dr. Silvia deixou o necrotério,


levando as fichas a partir das quais prepararia os laudos odontolegais dos três
desconhecidos. Simone permaneceu para colher as impressões digitais dos cadáveres.
Depois de limpar com um solvente a ponta dos dedos da primeira jovem, a perita força
as articulações das falanges de maneira que todos os dedos fiquem esticados. Devido ao
estado da rigidez cadavérica (que acontece algumas horas depois de decorrida a morte)
é possível ouvir as articulações dos dedos estalando. Espalha com um pequeno rolo, por
toda a superfície de uma desempenadeira, a tinta preta com a qual imprimirá, nas fichas
datiloscópicas10, as impressões digitais do cadáver. Simone preenche cinco fichas
impressas em vermelho (no caso de corpos de sexo masculino, são utilizadas fichas

10
Anexo 2

25
impressas em tinta preta) com o número de registro da desaparecida (o mesmo que
consta na etiqueta em seu dedão do pé, no livro de registro de desconhecidos, no laudo
médico-legal da necrópsia e no laudo odonto-legal que Dra. Silvia produzirá, a partir da
ficha preenchida durante o exame de arcada dentária). Três dessas cinco fichas (as que
tiverem melhor impressão) serão encaminhadas ao Instituto de Identificação, onde serão
comparadas com outras digitais existentes nos arquivos. Se a jovem morta tiver feito
Carteira de Identidade no estado de Minas Gerais, provavelmente será identificada.
Segurando com uma mão a primeira ficha sobre um pedaço de madeira e os dedos do
cadáver com a outra, Simone imprime, nos campos correspondentes, as digitais de todos
os dedos. Faz o mesmo com as outras fichas e repete toda a operação com o corpo da
segunda adolescente. No caso do terceiro desconhecido a tarefa exige um procedimento
mais demorado: O homem encontra-se em estado avançado de putrefação (na fase
conhecida como “estado gasoso”, o que indica um tempo de morte de pelo menos uma
semana) e seus dedos já não possuem a consistência necessária para que as fichas sejam
marcadas de maneira adequada, sem borrar. A perita puxa delicadamente a camada
exterior da pele de sua mão, que se desprende sem rasgar, obtendo uma espécie de luva,
feita da pele e com as unhas. Então, calça esta luva cadavérica por sobre a luva cirúrgica
descartável que tem nas mãos e consegue uma boa impressão das digitais do homem nas
fichas. Terminada a operação, retira a luva de pele que é colocada na maca, ao lado do
cadáver. O destino dos três corpos ainda é incerto: se não forem reconhecidos por
familiares ou identificados a partir dos procedimentos técnicos realizados até aqui,
aguardarão algumas semanas na geladeira do IML até serem enterrados como
desconhecidos.

1.1 - A morte enquanto processo

O Instituto Médico Legal de Belo Horizonte figura, em conjunto com o Instituto de


Identificação e o Instituto de Criminalística, entre as instituições técnico-científicas da
Polícia Civil de Minas Gerais. No IML são realizados perícias e exames médicos em
pessoas vivas (casos de lesão corporal, estupro, atentado violento ao pudor, embriaguez
e/ou uso de drogas ilícitas, laudos de erro médico, verificação de sanidade mental entre
outros) e mortas (determinação da causa mortis através de necropsia; exame de arcada

26
dentária, coleta de impressões digitais, exames de ossada e DNA com fins de
identificação). São realizadas diariamente cerca de 50 perícias em vivos e cerca de 20
necrópsias, das quais cerca de três em cadáveres desconhecidos. Pode-se definir
necropsia como “o ato médico que consiste em examinar um cadáver para determinar a
causa e o modo da morte, respondendo quesitos de interesse da justiça por meio de
procedimentos técnico-científicos”. (AVELAR E CASTRO, 2011:175). Segundo o
Código Penal Brasileiro, os quesitos oficiais a se responder são:

1º- Houve a morte? 2º- Qual a causa da morte? 3º- Qual o instrumento ou meio que
produziu a morte? 4º- A morte foi produzida com o emprego de veneno, fogo,
explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel ou de que poderia resultar
perigo comum?

Dentre os quesitos oficiais, os segundo e terceiro são determinantes para a continuação


das investigações em tono da morte de uma pessoa. Embora não caiba ao médico legista
determinar a “causa jurídica” da morte, as informações que conseguiu extrair a partir do
exame do cadáver servirão de subsidio para uma investigação policial. Os médicos
nunca definem num laudo tratar-se aquela morte de um homicídio, suicídio ou acidente.
O que eles podem dizer a respeito é, por exemplo, tratar-se de morte por “traumatismo
torácico causado por instrumento pérfuro-contundente”. Esta informação,
aparentemente uma descrição objetiva demais para esclarecer as circunstâncias em que
ocorreu a morte, deve ser objetiva o bastante para subsidiar um inquérito, para figurar
como fato, em conjunto com outras informações e indícios produzidos pela investigação
policial. Michel Foucault já havia chamado atenção para como as práticas judiciárias
estabelecem uma maneira específica de saber e de relação entre o homem e a verdade:

"O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de


gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição
judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de
autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas
como verdadeiras e de as transmitir" (Foucault, 2002, 78)

É neste registro que os profissionais que lidam diretamente com cadáveres ou ossadas
no IML podem ser caracterizados como peritos: sua atividade não se circunscreve

27
apenas a uma especialidade médica, odontológica ou antropológica, mas diz respeito à
necessidade de produção de um tipo de verdade que possa ser instrumentalizada
juridicamente. Como bem observam COUTO e CORREIA, a medicina legal “é a
disciplina que utiliza a totalidade das ciências médicas para dar repostas às questões
jurídicas” (2001:112). Ao contrário da maior parte dos registros e documentos
produzidos por profissionais de saúde, que têm uma circulação restrita ao local de
trabalho (consultório ou hospital) devido, entre outros fatores, à imposição de sigilo
profissional, os laudos produzidos por peritos do IML tornam-se documentos públicos e
oficiais. Segundo André Lorezon de Oliveira,

“Quando da assistência médica, os documentos médicos originados


em grande parte se prestam a registrar os dados colhidos e os atos
médicos realizados, podendo ser objeto de apreciação de outros
médicos, mas raramente do paciente. Usualmente, se destinam a
registros (...) interessando mais ao paciente sua evolução clínica do
que propriamente aquele documento gerado. Em contrapartida, na
Medicina Legal, as partes envolvidas e as autoridades requisitantes
das perícias sempre se preocuparão com o laudo gerado”.
(2011:125)

Os laudos produzidos no IML são, portanto, incorporados a inquéritos policiais como


documentos oficiais e factuais que descrevem, da maneira mais objetiva possível, um
acontecimento enquanto um fato. Neste sentido, emergem como provas num contexto
distinto daquele circunscrito às técnicas médicas, odontológicas e antropológicas: um
contexto jurídico, no qual as informações produzidas podem ser colocadas numa espécie
de “caixa-preta” (LATOUR, 2004), podem ser tomadas como livre de incertezas ou
controvérsias, tomadas como premissas, dados que subsidiarão futuras decisões
judiciais.

Mas, é preciso lembrar, a forma com que laudos e declarações de óbito são apropriados
num contexto jurídico diz muito pouco a respeito do trabalho de pesquisa e das práticas
desenvolvidas pelos profissionais que os produzem diariamente no IML. Em sua
discussão sobre as diferentes formas de produção de fatos em contextos científicos e

28
legais, Latour aponta a diferença entre o que seria o trabalho de pesquisa do cientista e
sua atuação enquanto um expert em processos judiciais:

“There are also large areas in which scientists cast as experts


appear before judges in order to give evidence about matters within
their area of expertise (the insanity of the defendant, the source of
DNA taken from the scene of the crime, the validity of a patent
application, the risks of a particular product, and so on). But each
of these situations bears the imprint of law rather than that of
science” (2004:80)

Em contrapartida, o trabalho de pesquisa se caracterizaria pela constante produção de


cadeias de referências, através de experimentos e mediações que proporcionam a um
objeto meios de existir, de se tornar um objeto do conhecimento:

“The scientific or research text that emerges straight from the


laboratory deals not so much with a fact that has to be described,
but with a profound transformation, which the word ‘information’
does not really describe. Unless, that is, the term is understood
etymologically, to mean placing within a form, the latter being
understood quite literally or materially, as consisting in a graph,
equation, or table. No in-formation can be produced without a
cascade of these sorts of trans-formations.” (ibid:98-99)

Para os peritos do IML, a produção de fichas datiloscópicas, laudos e declarações de


óbito aparece como o resultado (importante, sem dúvida) de uma longa série de exames,
experimentos, produção de textos, registros e documentos. É simultaneamente um ponto
de chegada (o último dos procedimentos realizados pelo perito em relação ao cadáver) e
um ponto de partida (esses documentos efetivamente devem partir, circular em outros
locais para além do IML, como delegacias de polícia e tribunais, onde desempenharão
um papel decisivo). Se é correto afirmar que para satisfazer as aspirações da Justiça um

29
bom laudo deve ser objetivo, mais do que conclusivo11; cabe considerar também que o
que define a conclusão de um bom documento é mais a relação entre os procedimentos
adotados, a consistência técnica e empiricamente embasada que conseguem demonstrar
quando afirmam algo a respeito daquele corpo específico. Como observa OLIVEIRA,

“o que confere robustez técnica ao laudo é a descrição dos


elementos técnico-periciais encontrados durante a perícia”.
(2011:126)

Esta “robustez técnica” é de fundamental importância, particularmente no que diz


respeito a corpos que dão entrada no IML como desconhecidos. Nestes casos, além de
responder aos chamados “quesitos oficiais”, os peritos devem responder também (ou
criar meios para que se responda) quem é o morto. Corre-se contra o tempo – o tempo
de uma possível família que busca respostas, o tempo da decomposição do cadáver, o
tempo que um corpo pode aguardar por identificação ou reconhecimento antes de ser
inumado como desconhecido. Se é correto dizer, como Medeiros, que o IML “define
quem morreu e como morreu, criando uma verdade sobre quem morreu e como morreu”
(2012:10), é necessário lembrar que esta verdade nunca é criada de forma arbitrária. Ela
só pode ser construída a partir dos cadáveres e com a cooperação dos cadáveres, nunca à
revelia destes. Neste sentido, as mortes definidas, concluídas pelo/no IML são
resultados de um processo técnico e burocrático no qual, através do trabalho dos peritos,
os cadáveres devem ser qualificados a dizer algo a respeito de si mesmos, e a
“convencer”. Como bem observa Isabelle Stengers, a respeito dos dispositivos
experimentais: trata-se da “invenção do poder de conferir às coisas o poder de conferir
ao experimentador o poder de falar em seu nome”. (2002:108)

É através do trabalho de experimentação/manipulação que realizam nos (e com os)


cadáveres, que os peritos (etimologicamente, aquele que conhece por experiência)
tornam-se porta-vozes qualificados daqueles. Mas aquilo que podem dizer - as
perguntas que serão capazes de responder - está condicionado em boa medida àquilo
que os corpos têm a mostrar. Neste sentido, o tempo decorrido entre a morte biológica e
a entrada do corpo no IML determinará como tratar, que procedimentos técnicos

11
Conforme observam Garrocho, Carvalho e Bouchardet, “A resposta aos quesitos deve ser objetiva, e
quando necessitar de algum complemento, este deve ser suscinto. Não devem ser deixados quesitos
sem resposta, podendo ser sim, não, prejudicado, sem elementos para afirmar ou negar” (2011:46)

30
utilizar, quais exames poderão ou não ser realizados e quais perguntas poderão ou não
ser respondidas. Por exemplo, será impossível determinar a causa mortis de um corpo
que chega em estado de esqueletização (ossada) se sua morte foi decorrente de
hemorragia causada por uma facada no abdômen que não tenha deixado marcas em
nenhum osso. Da mesma maneira, os chamados fenômenos transformativos
apresentados pelo corpo, através dos quais é possível estimar o tempo decorrido desde o
momento da morte, determina o percurso que o cadáver percorrerá dentro das
dependências do IML (se será encaminhado ao departamento de Medicina Legal ou
Antropologia Forense), bem como os procedimentos aos quais será submetido: um
exame de ossada tem especificidades distintas daquelas relativas a uma necrópsia. Essas
especificidades, impostas em grande medida pelos próprios corpos, tem por
consequência diferentes maneiras de se constituir a morte e o morto, maneiras que são,
em muitos casos, excludentes. Por exemplo, é possível determinar o sexo de um cadáver
morto há poucas horas apenas examinando visualmente, durante a necrópsia, sinais
morfológicos externos (como a genitália). Esta opção não existe no caso de ossadas,
dada à ausência de tecidos moles. Nestes casos, para a determinação do sexo se impõe a
necessidade da aplicação de outras técnicas, como o exame detalhado dos ossos da bacia
e do crânio. Se num laudo médico legal elaborado a partir de necrópsia realizada num
cadáver é possível dizer simplesmente que o corpo “apresenta genitália externa
feminina”, a “robustez técnica” necessária para fazer a mesma afirmação a respeito de
uma ossada requer que se diga que “a superfície sinfisial mostrou ângulo subpúbico e
incisura isquiáticas abertas”, ou que “a fronte era vertical, a glabela e os arcos
superciliares pouco pronunciados, os rebordos supraorbitários cortantes, as apófises
mastóides pouco desenvolvidas, as cristas de inserções musculares pouco pronunciadas,
a articulação fronto-nasal curva e a mandíbula delgada”. Nos dois casos haverá, no
laudo resultante, uma resposta objetiva a respeito do sexo do cadáver (feminino ou
masculino). Mas esta resposta dependerá, em cada um dos casos, de uma “objetidade”12
que é própria dos corpos, e que requer técnicas específicas de manipulação e
interpretação, a partir das quais os corpos se dão a conhecer. A objetividade que é tão
característica dos laudos e documentos produzidos por médicos, dentistas e
antropólogos forenses seria menos o efeito de um tipo específico de subjetividade (que

12
Traduzo como “objetidade” o que Latour chama de “objectity”: “the ordeal by means of wich a
scientist binds his own fate and that of his speech to the trials undergone by the phenomenon in the
course of an experiment” (2004:107)

31
denotaria uma certa distância em relação ao objeto, ou uma observação imparcial) do
que o resultado de uma intensa interação entre peritos e corpos. Trata-se, principalmente
em relação a corpos desconhecidos, de um processo que, se bem sucedido, objetifica os
saberes dos peritos (qualifica, investe de “robustez técnica” e autoridade seu discurso)
na medida em que ressubjetiva a matéria inerte dos cadáveres, determinando sua
identidade civil. Um processo de rés-subjetivação.

Uma ossada chega ao IML, encaminhada por uma delegacia de uma cidade da região
metropolitana de Belo Horizonte. Junto com o material vem uma Guia de Solicitação de
Perícia Médico-Legal, assinada pelo delegado responsável, além de fotos da ossada no
local onde fora encontrada. Como de praxe, é feito o registro da entrada no setor de
Assistência Social. No livro de entrada, são registradas informações sobre a origem da
ossada (local e breve histórico das circunstâncias em que foi encontrada, além da
delegacia responsável pela investigação), bem como a data e hora de entrada no IML.
Neste livro também é registrado o número com o qual, a partir do momento da entrada,
a ossada passa a ser identificada perante as autoridades policiais (por exemplo: ossada
999/201213). Há, além do livro de entrada para os mortos em geral, um apenas para
desconhecidos e um específico para ossadas. Nestes dois últimos, a maior parte dos
campos é deixada em branco – estes campos são devidamente preenchidos em caso de
identificação positiva.

Assim que terminado o registro, o material, acondicionado num saco plástico de cor
preta (com zíper longitudinal, dos usados para acondicionar cadáveres), é encaminhado
por um policial até o setor de Antropologia Forense, com uma cópia do registro interno
com o número de identificação, além das fotografias. Dentro do saco plástico encontra-
se um esqueleto humano completo, sujo de terra e parcialmente carbonizado, com
alguns resíduos de roupa (parte de uma blusa lilás, com sinais de carbonização), fios de
cabelo castanhos e compridos, além de alguns resíduos de folhas e caules vegetais
ressequidos. Não foi encontrado junto ao corpo nenhum projétil ou indício que sugerisse
assassinato por arma de fogo. Segundo informações oriundas da delegacia que
encaminhou os despojos, a ossada fora encontrada pelo zelador de um clube, depois de
realizar uma queimada numa área de mato. A ausência de tecidos moles indicava que o

13
Assim como os nomes de desconhecidos e familiares, os números de identificação de corpos e
ossadas aqui utilizados são fictícios.

32
corpo já estava em estado de esqueletização antes de sofrer a ação do fogo. Todo o
material é fotografado, antes e depois de retirado do saco plástico. Depois de separados
da peça de pano e dos cabelos, os ossos são limpos, e o crânio é radiografado, de frente
e de perfil, para subsidiar uma eventual reconstituição facial posterior. Depois de limpa,
a ossada é arrumada na mesa do departamento em posição anatômica, para início do
exame.

O exame antropológico de ossadas permite apreender algumas características


morfológicas como espécie (se humana ou não), sexo, fenótipo/cor da pele, idade e
estatura aproximadas. Ainda que apenas estas informações não bastem para uma
identificação do corpo, podem ser decisivas para o estabelecimento de “supostos” entre
pessoas dadas como desaparecidas. Os dados fornecidos por familiares de desaparecidos
às autoridades policiais responsáveis14, quando confrontados com as características
encontradas pelos peritos nos exames morfométricos, de arcada dentária e DNA podem
levar a uma identificação positiva. A ossada em questão apresentava próteses dentárias
e acessórios ortodônticos (bracketts) utilizados em aparelhos fixos, o que sugere que a
pessoa fazia tratamento dentário quando da sua morte. Nestes casos, é comum que a
família tenha em casa radiografias e outros registros da arcada dentária do desaparecido,
que possibilitem a comparação.

A determinação do sexo se dá, em caso de indivíduo adulto, preferencialmente, a partir


dos ossos da pelve. Depois de acoplar e fixar os ossos, os peritos examinam
cuidadosamente a peça por todos os lados. Fazem medidas dos ângulos formados pelos
ossos ilíacos encaixados, além de medidas em regiões específicas de cada osso, com um
paquímetro. Tudo é fotografado e anotado detalhadamente. A ossada apresenta
características tipicamente femininas nesta região: estreitos superior e inferior maiores,
forma aproximadamente circular, ângulo subpubiano menos agudo, osso ilíaco menos
espesso, osso sacro mais achatado e largo. Embora o crânio apresentasse algumas
características masculinas, como por exemplo, a glabela (espaço compreendido entre as
sobrancelhas) proeminente e o a mandíbula em formato retangular, os peritos podem, a
partir do exame da pelve e demais características do crânio, afirmar que se trata de uma
ossada feminina.

14
Ver capítulo 3

33
O crânio é também a região privilegiada para estimativa de fenótipo/cor da pele. São
classificados de acordo com o seguinte padrão: leucoderma (pele branca); faioderma
(cor parda), xantoderma (pele “amarela’) e malanoderma (pele negra). Em países como
o Brasil, onde a população é muito miscigenada, é relativamente difícil encontrar
crânios com características de apenas um tipo. Neste caso, estimou-se que a ossada
pertencia a uma pessoa de cor parda.

A determinação da idade é feita preferencialmente através do exame de arcada dentária.


Em indivíduos jovens e crianças é possível determinar com precisão a idade no
momento da morte, a partir do desenvolvimento dos dentes. Em indivíduos adultos e
idosos (com dentição completa) observa-se principalmente a deterioração óssea
(desgaste) nos dentes. Este método, em conjunto com o estudo da sinostose15 das
suturas cranianas, permite estabelecer uma estimativa de idade num intervalo de
variação entre 10 e 15 anos. Para a ossada em questão, foi estimada uma idade entre 35
e 50 anos. Através da medição dos ossos, estimou-se uma estatura de cerca de 1,70m.

A estimativa do tempo de morte em casos como este é de difícil precisão, pois tratava-se
de um corpo esqueletizado. Além de levar em conta os fenômenos transformativos (em
condições normais, um cadáver inumado demora de dois a três anos para alcançar o
estado de esqueletização completa) era necessário analisar fatores ambientais, já que o
corpo não estava enterrado (e, portanto, sujeito aos efeitos climáticos, que aceleram o
processo de decomposição) e havia sido parcialmente carbonizado. Foi estimado um
tempo de morte entre um ano e um ano e meio. Não foram encontrados no esqueleto
sinais que possibilitassem determinar a causa mortis. Neste laudo os quesitos: “2º- Qual
a causa da morte? 3º- Qual o instrumento ou meio que produziu a morte? 4º- A morte
foi produzida com o emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel ou de que poderia resultar perigo comum?” foram respondidos com
“prejudicado” e “sem elementos”.

15
Segundo BRITO, ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO: “As suturas cranianas são junturas fribosas
que unem a maior parte dos ossos do cranioe que, com o decorrer do tempo, de maneira lenta e
constante, vão se obliterando. Esse processo de obliteração de soldadura das suturas é denominado
sinostose ou craniosisnostose” (2011:360)

34
Uma vez concluído o exame, os peritos responsáveis elaboram um laudo, descrevendo
detalhadamente, por escrito e com fotografias, todos os métodos utilizados e os
resultados encontrados. Ainda que neste caso o laudo não tenha sido conclusivo em
relação à causa mortis, foi possível inferir que se tratava de uma mulher, de cor parda,
com cerca de 1,70m de altura, com cabelos castanhos claros ou loiros, idade entre 35 e
50 anos, falecida há cerca de um ano numa cidade da região metropolitana de Belo
Horizonte e que usava aparelho dentário. A partir dessas informações, os peritos
entraram em contato com a Divisão de Referência da Pessoa Desaparecida (DRPD),
para verificar se alguém com características físicas semelhantes vinha sendo procurado.
Havia dois casos que se aproximavam do perfil elaborado pelos peritos do IML: Maria
da Penha Santos, uma mulher de 37 anos e Jackeline Silva, de 45 anos. A primeira havia
sido vista pela última vez nas imediações do clube onde a ossada fora encontrada, oito
meses antes. A segunda havia saído de casa há cerca de um ano e nunca mais fora vista.
Ambas tingiam os cabelos de loiro, ambas usavam aparelho dentário, ambas tinham
entre 1,60 e 1,70 de altura. Os investigadores da DRPD entraram em contato com as
respectivas famílias solicitando documentação ortodôntica (radiografias, fichas de
exames, moldes em gesso e fotos feitos por dentistas) das desaparecidas. A partir deste
momento as duas mulheres tornaram-se “supostas”, ou seja, havia indícios
suficientemente robustos para corelacionar a ossada encontrada com as duas
desaparecidas16. Trata-se de uma situação delicada, tanto para os investigadores quanto
para as famílias envolvidas. Em primeiro lugar, porque ainda não se pode afirmar com
certeza a identidade da ossada. Além disso, é comum que familiares de pessoas
desaparecidas alimentem esperanças de reencontrar com vida a pessoa ausente, mesmo
depois de passado muito tempo. Dizer à família que “há uma ossada que talvez seja da
sua filha, ou da sua esposa” é dizer simultaneamente que a pessoa que procuram foi
encontrada (uma resposta que encerra a procura), mas foi encontrada morta17.

16
Ainda que o tempo de desaparecimento da primeira mulher não coincidisse com o laudo médico-legal
elaborado no IML, foram levadas em conta, além das características físicas semelhantes, as dificuldades
técnicas para elaborar uma estimativa precisa do tempo de morte da ossada. Pode-se dizer que, ao
menos neste quesito, a “robustez” do laudo não era tão forte quanto a dos índices produzidos na
Divisão de Desaparecidos a ponto de justificar a eliminação da primeira como “suposta”.
17
Há casos em que a esperança dos familiares de pessoas desaparecidas diz mais respeito a ter uma
“resposta” (localização) do que propriamente uma resposta positiva (encontrar a pessoa com vida). Ver
capítulo 3.

35
A Divisão de Desaparecidos envia ao setor de Antropologia Forense do IML, em dois
envelopes padronizados da Polícia Civil - devidamente lacrados e identificados - a
documentação ortodôntica fornecida pelas famílias das duas supostas. Assim como os
demais registros (guias, fichas, fotografias e laudos) produzidos até esta etapa do
processo - assim também como a própria ossada - esta documentação passa a fazer parte
de uma cadeia de custódia18 específica, que estabelece os procedimentos técnicos e
burocráticos a serem adotados pelos peritos e conecta oficialmente os corpos periciados
a todos os registros e documentos produzidos a partir de sua presença no IML. O exame
da arcada dentária da ossada é semelhante àquele realizado com cadáveres
desconhecidos. É produzida uma espécie de “mapa” da boca, com a posição de cada
dente, segundo sua localização nos quadrantes. Além disso são observados: a existência
de cáries e sua localização precisa; ausência de um ou mais dentes, bem como a
presença de restos radiculares (raiz); existência de próteses fixas, removíveis e/ou
aparelho ortodôntico; detalhes de cada restauração, bem como o material utilizado. Mas,
se uma ossada é, até certo ponto, um cadáver com pouco a dizer a respeito de si mesmo
- há “menos” corpo, por assim dizer – no caso do exame de arcada dentária o material
oferece algumas vantagens aos peritos. É mais fácil manipular um crânio e uma
mandíbula do que todo um corpo. A visualização dos dentes não está condicionada ao
espaço da cavidade bucal (aqui o abridor de boca utilizado nos cadáveres seria tão inútil
quanto desnecessário). Além disso, os dentes podem ser fotografados em vários ângulos
diferentes; sem falar na ausência do cheiro que emana de corpos com tecido orgânico
em decomposição. Para fins de comparação são feitas radiografias e fotos, como as
produzidas em vida pelos dentistas das duas mulheres. Como observam BRITO,
ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO, esta nova perícia consiste na “análise
comparativa entre o prontuário clínico odontológico elaborado em vida e os achados
obtidos pelos exames diretos (exame clínico) e indiretos (radiográfico e fotografias) do
cadáver” (2011:386). Concluídas as duas perícias, constatou-se que a ossada era da
primeira suposta. A partir da produção deste laudo, e da declaração de óbito
subsequente, a ossada desconhecida “999/2012” e a desaparecida Maria da Penha
Santos passariam a ser a mesma pessoa. Dois inquéritos se encerravam, um no IML e
outro na DRPD. Restaria ainda um terceiro, o esclarecimento da morte de Maria da

18
Regulamentada pelos artigos 159, 164 a 166, 169 e170 do Código de Processo Penal Brasileiro.

36
Penha a ser conduzido pela delegacia responsável pelo encaminhamento da ossada ao
IML.

Acompanhei na DRPD a apresentação do laudo odonto-legal à família de Maria da


Penha. O ex-marido – agora viúvo – estava acompanhado dos três cunhados, irmãos da
mulher, com as respectivas esposas. Enquanto Dra. Cristina, a delegada responsável
pela Divisão, conversava com a família sobre o desaparecimento de Maria da Penha,
assim como sobre os procedimentos técnicos que levaram à identificação da ossada, um
dos irmãos de Maria da penha, médico, lia cuidadosamente o corpo do laudo, sem
demonstrar nenhuma reação. Os familiares da mulher não pareciam estar seguros em
relação ao resultado da perícia, insistindo na necessidade da realização de um exame
genético comparativo (DNA). Enquanto Dra. Cristina explicava que a identificação
através do exame de arcada dentária é tão segura quanto o exame genético ou
datiloscópico, o irmão que lia o laudo e até aquele momento permanecia em silêncio, se
deteve numa das últimas páginas do documento: são quatro fotos dos arcos dentários,
duas feitas em vida pelo dentista de Maria da Penha e outras duas da ossada, feitas pelos
peritos do IML, colocadas lado a lado. Nas fotos dos arcos inferiores, há uma marcação
colorida que coloca em destaque a prótese dentária (conhecida como ponte) utilizada
por Maria da Penha. O homem interrompe a conversa mostrando o laudo aos outros
familiares e afirma, com a autoridade de um perito: “É gente, não tem dúvida não, é a
Penha mesmo”. O laudo circula entre os familiares, aberto nesta página. Algumas
pessoas choram. Toda a hesitação em aceitar a morte de Maria da Penha de repente
havia se dissipado. Passados alguns minutos, o tema da conversa com a delegada já era
outro: como acompanhar, junto à delegacia responsável, as investigações sobre a morte
da mulher.

37
Figura 1 - exemplo de laudo odonto-legal

Não foi através de uma fotografia do rosto, ou de um sorriso, o que os familiares


reconheceram a mulher, mas através de dentes. Como reconhecer dentes? Em que
medida se pode dizer que os parentes de Maria da Penha estavam familiarizados com
seus dentes? Obviamente, estavam cientes do tratamento dentário que Maria da Penha
fazia, mas dificilmente saberiam com exatidão dizer quantas próteses e obturações
possuía, de que tipo, e em quais dentes. O que se colocou em jogo neste caso, não foi,
portanto, um exercício de memória. Não há muito o que se lembrar a partir de fotos que
nunca tinham visto (as da ossada) e de outras fotos que provavelmente nunca tinha visto
com atenção (as do prontuário odontológico), embora soubessem ser da pessoa que
buscavam. Como se deu, então, a passagem da dúvida para a certeza, da hesitação para
a aceitação do resultado do laudo? Reconhecer, neste caso, é mais do que apenas
conhecer novamente, é conhecer em outros termos, em termos indiciários. É dotar de
significado um traço, uma fotografia, que objetifique a pessoa desaparecida, dê corpo a
sua ausência. O dispositivo acionado no laudo permite comparar e sobrepor imagens

38
que são, em sua gênese, muito distintas uma das outras. Fotografias da boca de uma
pessoa viva e outras, feitas a partir de um crânio, com um intervalo temporal de
aproximadamente dois anos entre elas, tornam-se a mesma imagem no presente, índice
da mesma pessoa. Não é de se estranhar, portanto, a repentina certeza dos familiares.
Mesmo para aqueles leigos, não habituados às particularidades da linguagem técnica
utilizada por médicos e peritos, a comparação torna-se simples, e seu resultado evidente,
manifesto. O corpo, transformado em laudo, convence. No contexto de um laudo, ao
contrário do que se poderia supor, dentes podem ser índices tão bons quanto um rosto,
na medida em que mesmo os rostos, a despeito de sua suposta obviedade, só tornam-se
evidentes quando tornados evidências.

1.2 - O corpo enquanto índice

Todos os anos, cerca de mil e duzentos corpos dão entrada no IML de Belo Horizonte
como desconhecidos. Deste total, a grande maioria (de 80% a 85%) é reconhecida por
familiares nas 48 horas subsequentes. Nestes casos é comum que as pessoas que se
encaminham ao IML em busca de um cadáver já saibam que o corpo que procuram está
lá; ou seja, já sabem da morte e de pelo menos algumas de suas circunstâncias (quando
ocorreu, se foi assassinato, suicídio, acidente, etc). Para fazer o reconhecimento de um
cadáver, é preciso ser, preferencialmente, um parente direto (pais, filhos, irmãos, ou
cônjuges). Como o próprio termo indica, reconhecer (conhecer novamente) implica que
a pessoa tenha um vínculo social pregresso com o cadáver. Este vínculo deve ser
comprovado através de documentos que contenham foto e impressão digital do morto e
do declarante (aquele que fará o reconhecimento). O processo tem início no setor de
Assistência Social. A partir dos dados fornecidos pelos familiares as assistentes sociais
buscam num computador as fotos dos corpos que chegaram nos últimos dias. Estas
fotos são feitas no necrotério e arquivadas por um funcionário duas vezes ao dia, de
modo que o banco de dados esteja sempre atualizado. São nomeadas com o número de
registro que o desconhecido recebe quando chega. Os funcionários do setor, que
também são responsáveis por todos os registros relativos à entrada e saída de corpos,
acumulam as funções de receber e orientar os familiares. Uma vez reconhecido através
da fotografia mostrada no computador, a assistente social confere, junto aos médicos

39
legistas e auxiliares de necrópsia, se o corpo já foi periciado. Em caso positivo, o
auxiliar de necropsia prepara o cadáver, que é limpo e coberto com suas roupas e
colocado no “aquário” para que o declarante faça o reconhecimento in loco,
acompanhado de um policial. Se confirmada a identidade civil do cadáver, é preenchida
a Declaração de Óbito. As informações a respeito do morto são também registradas no
Livro de Desconhecidos. Cabe ao familiar entrar em contato com uma funerária para
liberação do corpo.

A categoria “desconhecido”, como utilizada no IML, funciona simultaneamente como


um adjetivo, pois caracteriza alguém que não se conhece, um cadáver cuja identidade se
ignora; e um substantivo, na medida em que define este cadáver como um tipo
específico dentro do conjunto de corpos e em relação ao qual serão adotados
determinados procedimentos técnicos e burocráticos. Enquanto termo técnico nativo
relaciona-se, histórica e operacionalmente, com outras categorias utilizadas para
designar despojos humanos. A mais conhecida delas é “indigente”. Embora o termo não
seja mais utilizado pelos Institutos Médico-Legais brasileiros, ainda é comum ouvir,
fora dos IMLs, expressões do tipo “foi enterrado como indigente”. O termo é
obviamente carregado de estigmas. Letícia Ferreira demonstra a partir de sua pesquisa
nos arquivos referentes às décadas de 1940-1950 do Instituto Médico-Legal Afrânio
Peixoto (localizado na cidade do Rio de Janeiro), como a expressão “indigente” era
inscrita em

“um agregado de procedimentos e registros burocráticos que


marca, a um só tempo, corpos pessoais e desigualdades sociais. A
igualdade formal característica de procedimentos burocráticos,
neste caso, presta-se a perpetuar e expor desigualdades diversas
vividas por estes corpos e determinantes tanto da especificidade,
quanto do tom de banalidade inscritos em suas mortes”. (2009:171)

Outra categoria relacionada a cadáveres “desconhecidos” é a de “não reclamados”: o


termo designa corpos que não foram retirados do IML por familiares. Embora a maior
parte dos cadáveres não reclamados seja formada de corpos “desconhecidos”, há casos
em que o cadáver é identificado e a família, por razões diversas, não toma nenhuma
providência a respeito da liberação do corpo e do sepultamento19. Há também o termo

19
Para um estudo de caso a respeito ver: GODOY, MENDES, BORGES e SANTOS (2003)

40
“não-identificado”, utilizado atualmente em alguns IMLs (FERREIRA:2009). Embora
me pareça uma categoria adequada para caracterizar cadáveres cuja identidade se
ignora é preciso lembrar que muitas vezes os corpos são reconhecidos (por familiares),
o que elimina a necessidade de perícias complementares para sua identificação. No IML
de Belo Horizonte há ainda mais uma categoria, que designa um tipo específico de
“desconhecido”: corpos em estado avançado de putrefação ou esqueletizados são
registrados como “ossadas”.

A partir do momento em que entram no IML cadáveres desconhecidos e ossadas passam


a integrar uma cadeia de custódia. Trata-se de um processo que visa manter e
documentar a história cronológica de toda evidência para rastrear a posse e o manuseio
do corpo (bem como de amostras retiradas dele) a partir do preparo dos recipientes
coletores, da coleta, do transporte, do recebimento, do armazenamento e da análise,
portanto, refere-se ao tempo em curso no qual o cadáver está sendo manuseado e inclui
todos os procedimentos adotados, profissionais envolvidos e registros produzidos
(LOPES, GABRIEL E BARETA:2006). Isso implica em primeiro lugar que estes
corpos desconhecidos passam a existir juridicamente. Independente do resultado das
investigações das quais são objeto – ou seja, independente da determinação de sua
causa mortis ou de sua identidade civil – eles recebem uma identificação (numérica, o
que também marca uma diferença em relação à identificação através do nome, que
designa uma identidade civil). Esta identificação garantirá a rastreabilidade do corpo,
mesmo nos casos em que é inumado como desconhecido20. Um segundo ponto a ser
destacado é que, neste processo, os corpos são tomados como evidências judiciais da
própria morte; tornam-se, simultaneamente, corpos que foram vítimas de um provável
delito (assassinato, por exemplo) e o próprio “corpo do delito”, ou seja, a prova material
de um crime, a partir da qual serão produzidas evidências que possam esclarecer as
circunstâncias da morte e a identidade civil. Neste sentido estes corpos tornam-se, em
relação à própria morte, simultaneamente ícones (o corpo sem nome e sem ânima; a
imagem “encarnada” da morte, anônima, mas singular) e índices (são testemunhas da
própria morte; é a partir deles, neles, que se buscará indícios, evidências, provas
materiais que permitam às autoridades apreender as circunstâncias em que a morte
ocorreu, os sinais que permitam identificar a “pessoa” por trás de sua máscara

20
Todos os cemitérios públicos tem por obrigação reservar vagas para esses corpos. As covas de
desconhecidos são devidamente identificadas, de maneira a possibilitar uma eventual exumação.

41
mortuária). Ícones da morte, índices de uma morte, pode-se perceber, nesses corpos, a
diferenciação apontada por Charles Peirce a respeito desses dois tipos de signos:

“O Ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que


representa; simplesmente acontece que suas qualidades se
assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente
para a qual é uma semelhança. (...) O índice está fisicamente
conectado com seu objeto; formam ambos um par orgânico, porém
a mente interpretante nada tem a ver com essa conexão, exceto o
fato de registrá-la depois de ter sido estabelecida”. (PEIRCE,
1977:73)

Se é verdade que a cadeia de custódia demanda a preservação e a integridade do


material periciado (BRITO, ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO:2011) que
será utilizado no contexto judicial como evidência, é certo também que, em se tratando
de cadáveres, a tarefa impõe consideráveis desafios. Afinal, trata-se em grande parte de
matéria orgânica em processo de decomposição. A relação indiciária que carregam (a
conexão física com aquilo que indicam) é análoga àquela presente nas ruínas. Como
observa Phillippe Dubois,

“Se a ruína como vestígio é de fato o traço físico e material do que


esteve ali, nem por isso é uma representação separada (espacial e
objetualmente) de seu referente: ela é o último, mas num outro
estado, que carrega sua marca, os estigmas do trabalho destruidor
do tempo. Na ruína, a distância é apenas temporal” (DUBOIS,
2009:96).

Esta distância temporal deixa suas marcas – os chamados fenômenos transformativos do


cadáver – a partir das quais os peritos podem, na maior parte dos casos, determinar o
tempo decorrido desde a morte; mas também apaga outras marcas, outros sinais
decisivos. A decomposição do corpo é, num certo sentido, sua coisificação, é a
decomposição de sua pessoalidade potencial. O tempo torna um cadáver desconhecido
cada vez mais difícil de conhecer, cada vez menos parecido com uma “pessoa”. Em
estado avançado de putrefação, já não é possível reconhecê-lo visualmente, já não é
possível identificá-lo através de impressões datiloscópicas. Como preservar a
integridade desses corpos-prova, de forma a garantir a rastreabilidade (garantia de

42
idoneidade por parte dos peritos) que os inquéritos exigem? Há, é claro, as câmaras
frigoríficas, mas elas existem em número muito menor do que corpos. O dispêndio
necessário para armazenar e conservar todos eles seria absurdo. É preciso, portanto, que
cadáveres desconhecidos continuem a existir de outra maneira, uma maneira na qual a
integridade e rastreabilidade das evidências permaneçam preservadas, independente do
processo de decomposição ao qual os corpos estão sujeitos. Uma maneira que invista
estes corpos de meios para circular, de continuar presente entre os vivos
indefinidamente, mesmo depois de enterrados. Uma maneira que entrecruze a cadeia de
custódia (legal) e preserve dos corpos apenas o que se necessita saber a seu respeito.
Um outro encadeamento, tecno-científico. Uma cadeia de referências circulantes.

Latour chama de cadeia de referências (2004) ou referência circulante (2001) a “tarefa


prática de abstração” a partir da qual os cientistas podem articular inscrições, e
transformar entidades ou objetos em signos, documentos, arquivos, etc. Este
encadeamento de sucessivas transformações no qual “uma palavra substitui uma coisa,
mas conserva um traço que a define” (2001:86), onde em todas as etapas cada elemento
pertence à matéria por sua origem e à forma por sua destinação, é o que permite que
cadáveres subsistam também na forma de fotografias, fichas, amostras, laudos e
arquivos, na rede formada por IML, delegacias, Institutos de Identificação e
Criminalística, funerárias, cemitérios e familiares. Há algo de surreal nessa
metamorfose onde corpos são abertos, analisados, decompostos, para resurgirem
novamente inteiros em formato de textos, fotos, tabelas, quadros sinópticos. A perda de
matéria se faz concomitantemente a um ganho de saber: os corpos que saem do IML na
forma de laudos tornam-se o lócus de articulação de um corpus de conhecimento. Como
observa Latour,

“A referência não é simplesmente o ato de apontar ou uma maneira


de manter, do lado de fora, alguma garantia material da veracidade
de uma afirmação; é, antes, um jeito de fazer com que algo
permaneça constante ao longo de uma série de transformações. O
conhecimento não reflete um mundo exterior real, ao qual se
assemelha por mimese, mas sim um mundo interior real, cuja
coerência e continuidade ajuda a garantir. Belo movimento este,
aparentemente sacrifica a semelhança apenas para insistir no
mesmo significado” (2001:74-75)

43
O que se mantém ao longo de todo o processo e o que se transforma? O corpo tornado
índice emerge a partir da articulação de dois tipos de referências. Um tipo legal (cadeia
de custódia) e outro científico. O primeiro tipo espera dos corpos que sejam
testemunhas confiáveis, e que forneçam evidências qualificadas: esta amostra é mesmo
daquele corpo, todos os protocolos de segurança foram observados em sua manipulação,
não há possibilidade de adulteração, etc. Idealmente, o resultado de um laudo não deve
ser objeto de controvérsia num contexto judicial, mas sim um fato, a partir do qual
eventuais controvérsias se desdobrarão. Esta qualificação é garantida pelo segundo tipo
de cadeia de referência, na qual os índices apreendidos do corpo ganham realidade em
textos científicos, que trazem em si sua própria verificação - e, portanto, sua
legitimidade – na medida em que demonstram a capacidade de estabelecer corelações
entre corpos (particulares) e um corpus de conhecimento estabilizado. Um laudo nunca
traz afirmações do tipo “este corpo tem 1,60m”. O que se vê nesses documentos é "a
estatura foi estimada em 162,3 centímetros pelo método de Dupertuis e Hadden, em
157,5 centímetros pelo método de Pearson, sendo a média 159,9 centímetros”. Esta
última afirmação diz que o corpo tem cerca de 1,60m, mas faz mais do que isto: ela diz
também (e apenas neste sentido pode ser categórica) que qualquer perito que
eventualmente submeta o mesmo corpo a um exame experimental através dos métodos
citados deverá encontrar os mesmos resultados. E diz ainda que métodos são formas de
interpelar, de eduzir, de fazer as perguntas adequadas, aquelas que um corpo pode
responder. A priori, um método não é melhor do que outro, todos são maneiras válidas
de conhecer (não é preciso escolher entre eles, já que o corpo responde a ambos). Estes
corpos, no papel, ganham nova consistência, adquirem “robustez técnica”. Através da
cadeia de referências passam de matéria inerte a corpos que possuem uma anatomia,
que nunca é arbitrária. Nas práticas cotidianas dos peritos do IML, um corpo é menos
aquilo que a anatomia tem a dizer sobre os corpos do que aquilo que um corpo tem a
dizer sobre a própria anatomia.

Uma vez que todos os procedimentos estejam devidamente registrados, já não há mais a
necessidade de conservar o corpo original. Eventualmente, pode-se voltar ao corpo
(como no caso da ossada de Maria da Penha), para exames complementares, mas o
corpo para o qual se volta não é mais aquele completamente desconhecido (a respeito do
qual nada se sabia); mesmo que ainda não identificado, é um corpo que ganhou meios

44
de sair, circular fora dos limites físicos do IML. Mas antes disso, é preciso que percorra
um itinerário bem definido, que tem início no necrotério.

Depois de receber um número de identificação padronizado, o cadáver desconhecido é


levado numa bandeja até o necrotério para a realização do exame necroscópico que
deverá determinar a causa mortis. É entregue ainda com as roupas para um auxiliar de
necrópsia. Logo ficará completamente despido, com exceção da etiqueta branca que
caracteriza os desconhecidos – cadáveres identificados recebem uma etiqueta verde. O
cadáver é colocado numa mesa de aço com estrutura rebaixada e dreno para escoamento
de líquidos, própria para realização de necrópsia. A mesa possui ainda uma espécie de
torno, para fixação da cabeça e ducha para lavagem do corpo. Depois de retiradas as
vestes, o cadáver é fotografado, a começar pela etiqueta, seguindo-se o rosto, corpo
inteiro, tatuagens e quaisquer sinais particulares e lesões externas. Esta pequena
narrativa visual, feita em poucos segundos, poderia ser descrita nos seguintes termos: “o
cadáver desconhecido que recebeu o nº X (etiqueta), tem este rosto. Além disso, possui
estes sinais particulares”. O procedimento segue uma lógica análoga às formas de
identificação civil a que estamos habituados: numeração (que neste caso funciona
simultaneamente como nomeação) em conjunto com fotografia do rosto e alguma
inscrição corporal que diferencie21. Estas fotos são arquivadas no computador do setor
de Assistência Social, de acordo com data e nº de identificação recebido pelo
desconhecido e poderão ser disponibilizadas a supostos familiares.

Depois de lavado, inicia-se o exame externo. O auxiliar de necrópsia, vestido com


botas, guarda-pó, luvas grossas de borracha, touca, máscara e óculos de segurança é
quem manipula o corpo nu para possibilitar a visualização detalhada pelo médico
legista, que anota detalhadamente as lesões encontradas numa ficha denominada
esquema de lesões22. Esta ficha é utilizada de maneira análoga às fichas do exame
odonto-legal: é preenchida com o número de identificação e contém uma espécie de
mapa anatômico em branco do exterior de um corpo humano (uma representação que se

21
Cabe lembrar que, se no documento de identidade é utilizada impressão datiloscópica, impressa
diretamente do corpo, a fotografia também procede de uma conexão física com seu referente. No caso
de desconhecidos, fotos de tatuagens, piercings e roupas podem ser índices decisivos no momento do
reconhecimento por parte de familiares. Ver capítulo 3.

22
Anexo 3

45
parece, de alguma maneira, com um corpo), dividido em regiões numeradas segundo
legenda. O perito anota e desenha na ficha, na região correspondente, aquilo que
encontra no cadáver. São registradas características das lesões externas, assim como
suas prováveis causas. Terminada esta etapa, tem início o exame interno, ou
endonecroscópico. Com uma faca afiada, o auxiliar de necrópsia abre as cavidades
torácica e abdominal. Com a mesma faca, corta as costelas e retira o externo, de maneira
que todos os órgãos internos (coração, pulmões, e vísceras) fiquem expostos. Seguindo
as orientações do legista, o auxiliar retira da cavidade um ou mais órgãos a serem
examinados. Amostras de sangue e vísceras são recolhidas para eventuais exames
patológicos ou de DNA. Tudo é fotografado e anotado detalhadamente pelo médico
legista, que não toca no cadáver. Depois é realizada a abertura da cabeça: o couro
cabeludo é cortado de orelha a orelha e as partes puxadas na direção da face e da nuca
de forma que o crânio fique exposto. Com um serra, a tampa do crânio é separada de
modo a permitir a visualização do cérebro. Se o legista julgar necessário, o cérebro é
retirado para exames mais detalhados. Terminado o exame o auxiliar de necrópsia
costura o couro cabeludo e a cavidade abdominal com agulha e barbante. O cadáver,
ainda nu, mas coberto com suas roupas é encaminhado à outra ala do necrotério, onde
será realizado o exame de arcada dentária e recolhidas as impressões datiloscópicas.

A partir do que foi observado e registrado no esquema de lesões, o médico legista


prepara o laudo. A ficha, que antes do exame não fazia referência a nenhum corpo (a
não ser aquele genérico, da anatomia), torna-se agora índice de um cadáver específico: o
mapa já não está mais em branco, um território foi percorrido e transposto. As
informações, antes anotadas em código, serão transcritas de forma detalhada no laudo.
O desenho anatômico do esquema de lesões, com suas legendas numeradas, dará lugar a
fotografias. E o laudo digitalizado será disponibilizado no programa PCNet, rede de
informações da Polícia Civil de Minas Gerais, às autoridades interessadas. No mesmo
programa, o perito preencherá o cadastro de desconhecidos com informações sobre
características físicas do cadáver que servirão de referência para confronto com
informações sobre pessoas desaparecidas. A partir da descrição feita por familiares
sobre desaparecidos, o sistema cruza informações com o banco de dados e seleciona
aqueles desconhecidos cuja caracterização feita pelos técnicos do IML mais se
aproxima daquela feita pela família. Uma vez lançadas no sistema PCNet, as
informações do desconhecido poderão ser acessadas de qualquer delegacia no Estado de

46
Minas Gerais. No IML, a manutenção do sistema, bem como o treinamento e suporte
dos peritos é de responsabilidade do SIAE (Setor de Informática e Análise Estatística),
setor que administra a produção e o fluxo de informações da entidade.

Além do reconhecimento feito por familiares, as formas mais eficazes de identificação


são através dos exames datiloscópicos, de arcada dentária e de DNA. Para que os dois
últimos métodos sejam aplicados com sucesso é necessário que investigações
preliminares consigam indicar pelo menos um suposto para o corpo desconhecido. No
Brasil, não há centros oficiais que arquivem e cataloguem fichas odontológicas ou
material biológico para obtenção de perfil genético23. Deste modo, o destino da maior
parte dos laudos odontolegais e das amostras de tecido a partir das quais é recolhido
material genético é aguardar, em arquivos do IML ou do Instituto de Criminalística, os
desdobramentos do trabalho de investigação policial.

Embora não haja hierarquia entre os métodos de identificação – pode-se dizer que o
método mais apropriado é sempre aquele mais apropriado a cada corpo – o mais
utilizado é a identificação datiloscópica. Além da rapidez e do baixo custo, se
comparado aos exames odontolegais e de DNA, este método tem a vantagem de contar
com o banco de dados produzido e administrado pelo Instituto de Identificação. Mas,
por maiores que sejam as vantagens do método datiloscópico ele também está sujeito a
limitações: no Brasil, os institutos de identificação são de responsabilidade de cada
Estado24. Não há um banco de dados nacional de fichas datiloscópicas, que possam ser
acessadas de qualquer lugar do território. Assim, se uma pessoa natural de outro Estado
vier a falecer em Minas Gerais e for encontrada sem documentos, as chances de
identificação tornam-se drasticamente reduzidas.

A subutilização do material produzido pelos técnicos do IML evidencia alguns limites


burocráticos impostos aos processos de identificação: para que sejam bons índices, as
evidências produzidas a partir destas técnicas dependem de produção e arquivamento
anterior de índices semelhantes, que possibilitem a comparação - o que é relativamente

23
No dia 28/05/2012, a Presidente Dilma Rouseff sancionou a lei 12.654, que determina a criação de
Bancos de dados de DNA de pessoas condenadas por crimes hediondos. A medida, que acompanha
tendência adotada em mais de trinta países, deve facilitar a identificação de criminosos reincidentes.
Por enquanto, não há previsão de criação de um banco de dados semelhante para a população em
geral. Lei disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm
24
Em 2009 foi sancionada Medida Provisória que estabelece a criação de um único nº de identificação
civil para todos os documentos e em todo o território nacional, medida que ainda não foi colocada em
prática. Lei disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015.htm

47
raro, particularmente no que se refere ao DNA. Casos de identificação bem sucedidos a
partir da impressão datiloscópica ou do confronto entre exame de arcada dentária e
prontuários odontológicos fornecidos por familiares demonstram a particularidade desta
cadeia de referências: a relação metonímica entre corpo e índice – na qual as partes
devem indicar um todo (quem) – não é, a despeito de produzir “provas”, significante.
Não há nada de evidente, a priori, nas evidências de identidade civil produzidas pelo
trabalho dos peritos. Ainda que idealmente o conjunto de traços que elegemos para
identificação deva suscitar um efeito mimético - uma correspondência que chegue
próximo à redundância, como nos documentos de identidade (Peirano, 2009), os índices
de cadáveres e ossadas desconhecidos só podem dizer algo sobre um corpo, ou sobre
uma pessoa, quando não estão apenas lá, onde a pessoa é somente corpo.

1.3 - A pessoa como princípio

Era minha última semana de campo no IML. Depois de terminados os exames de arcada
dentária dos quatro desconhecidos daquela tarde, Dra. Adriana voltou ao SOFIH para
preparar os laudos. Como de costume, fiquei no necrotério com Simone para recolher as
fichas datiloscópicas dos corpos. Eram três homens e uma mulher, proporção
condizente com a média dos índices de morte violenta apresentados no Brasil, segundo
levantamento do IBGE25 no último ano. Os corpos enfileirados em suas respectivas
macas apresentavam marcas de tiros, facadas e outros ferimentos. Um dos homens
morrera em decorrência de atropelamento. A mulher, jovem, já estava falecida há
alguns dias e exalava um cheiro mais forte que os outros três - já era possível observar
algumas larvas no corpo. Antes de dar início aos procedimentos, Simone permaneceu
alguns segundos em silêncio, fitando os corpos. Depois se dirigiu a mim:

“É, a gente não vale nada mesmo, né? Pode ser homem, mulher, feio ou bonito, novo ou
velho, rico ou pobre, todos nós vamos terminar assim, do mesmo jeito... virando comida
de vermes”. Eu concordei, fazendo um sinal com a cabeça. Depois respondi que “talvez
a gente valha alguma coisa, afinal, o trabalho que vocês fazem aqui, não existe nada
parecido em relação a outras espécies, quero dizer, essa preocupação em identificar,

25
Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2010/defaulttab.shtm

48
hoje em dia até existem cemitérios para animais de estimação, mas se você encontra
uma carcaça de animal na estrada não é o mesmo tratamento que se dá a um corpo
humano...” Ela acrescentou: “é, a gente cuida dos mortos”.

Este pequeno diálogo foi uma dos raros momentos em que conversamos sobre a morte a
partir de uma abordagem “filosófica”. No dia a dia do IML a morte está sempre
presente, mas é geralmente tratada como um problema de ordem técnica, independente
de crenças religiosas e angústias existenciais dos funcionários. Não que essas angústias
e crenças não existam ou não produzam seus efeitos: como demonstram Barros e Silva
(2004), profissionais que lidam diretamente com corpos, como médicos legistas e
auxiliares de necrópsia, costumam criar algumas estratégias de defesa, como por
exemplo, evitar fixar a fisionomia do cadáver, “ver a fratura do crânio mais do que ver
como é que é a face” (2004:325). Essas estratégias não implicam, no entanto, num
tratamento impessoal. Esses corpos desconhecidos são carregados, abertos, costurados,
manipulados, não como corpos quaisquer, mas com o respeito que geralmente
devotamos a cadáveres humanos. Ao contrário do que esperava encontrar antes do
início do trabalho, não presenciei em momento algum piadas ou comentários
desrespeitosos a respeito dos cadáveres. Além disso, a maneira como os corpos são
alocados após as necrópsias (cobertos, com exceção do rosto, com suas roupas), fornece
indícios de que tais estratégias de defesa não anulam, ainda que eventualmente busquem
evitar, a concepção operante de que há, nesses corpos, algo além (ou aquém) de apenas
carnes, ossos e sangue. A aparente objetividade nos procedimentos relativos a
cadáveres, condizente com os protocolos técnicos que orientam todo o trabalho dos
peritos, não implica, como se poderia supor, numa racionalização exacerbada que
reduza esses corpos a organismos biológicos inertes. Ao contrário, pode-se perceber
estes protocolos como um conjunto, tão objetivo quanto possível, de formas de
resubjetivação, ou rés-subjetivação. Tomo aqui o termo “subjetivação” no sentido de
Viveiros de Castro, a saber, “a determinação de sua relação social com aquele que
conhece (...). Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para
saber” (2002:360). Trata-se de investir, de dotar estes corpos do máximo de
pessoalidade possível, na medida em que os eventuais índices ao quais se pode ligá-los
dizem respeito também a pessoalidades. Partindo-se dos corpos, e a eles voltando, o que
se busca saber é o “quem”; o que se busca é a “pessoa”. A partir da morte biológica –
uma evidência incontornável – busca-se um sexo, uma cor de pele, uma idade, um rosto,

49
uma impressão digital, um DNA, uma identidade... e uma vida, para pôr fim; volta-se à
morte, desta vez não como ponto de partida, mas como o fim da “pessoa”, que deve
acompanhar a decomposição do cadáver.

Mas qual é afinal a diferença entre um cadáver (humano) e uma carcaça (de qualquer
outro animal)? No diálogo relatado acima, Simone enfatizava um dos aspectos mais
comuns quando se fala, entre nós, a respeito da morte: o fato de que todos (sabemos
que) vamos morrer, mais cedo ou mais tarde, independente de sexo, idade, raça, crença
ou classe social. Esta apreensão da morte como um evento que num certo sentido
iguala, indiferente às diferenças produzidas em vida - teremos todos o mesmo fim,
seremos todos cadáveres (carne dada aos vermes, na etimologia popular), diz respeito
apenas à nossa morte enquanto espécimes, à morte biológica que reafirma o papel de
“grande integrador” (Viveiros de Castro, 2002:382) que o corpo desempenha em nossa
cosmologia. Através do corpo, estaríamos ligados a outros animais e principalmente a
toda espécie humana; e assim como o “resto dos viventes”, morreríamos. Mas é preciso
ressaltar que a morte, ainda que universal para todas as espécies, impõe algumas
particularidades quando se trata dos Homo Sapiens: Não por acaso,

“Antes de qualquer outro procedimento, a principal preocupação de


um antropólogo forense, ao se deparar com um corpo, vestígios
esqueléticos ou outro material qualquer que se assemelhe a tecido
ósseo, é classificá-lo como humanos, não humanos ou matéria
inorgânica” (BRITO, ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e
ARGOLLO, 2011:327)

É a determinação dos restos mortais como “humanos”, que determinará sua


permanência ou não no IML, bem como sua inscrição na cadeia de referências para
determinação de uma identidade civil. O adjetivo “humano” substancializa, nesses
casos, os restos mortais, qualificando uma carcaça (a respeito da qual nada se sabe) a se
tornar um “cadáver desconhecido” (o qual deve-se conhecer). Impõe, portanto, uma
exigência de “cuidado com os mortos” que é, em essência, exclusivista: identificar um
corpo é separá-lo de todos os outros, é determinar a ligação entre um espécime e uma
condição humana em particular. Abre-se assim a possibilidade para a morte tal como a
re-conhecemos: um tipo de diferenciação irreversível, a extinção física de uma pessoa.

50
A morte humana, ao menos de uma perspectiva jurídica, nunca pode ser “impessoal”26.
Se, como observa Viveiros de Castro, “para nós, a espécie humana e a condição humana
coincidem necessariamente em extensão” (2002:382), a morte biológica deve
corresponder à morte da “pessoa” como um todo.

Num ensaio publicado em 192627 Marcel Mauss (2003) já havia chamado a atenção
para a morte como um evento “total”, que transcende seu aspecto exclusivamente
biológico. Um cadáver desconhecido pode ser entendido como um “desencontro”, ou
como a descontinuidade da correspondência entre essas duas supostas “naturezas”: em
termos práticos, implica que alguém está “atrasado” para a própria morte. Em termos
jurídicos, implica que uma personalidade civil que deveria ser extinta continua
existindo. Em termos judiciais, implica na possibilidade de possíveis delitos, sejam eles
passados (como um assassinato) ou futuros (fraudes). E em termos antropológicos, esses
desconhecidos podem ser vistos como os “mortos sem lar nem lugar”, de que nos fala
Van Gennep, em seu “Ritos de Passagem”: aqueles “para os quais não foram executados
os ritos fúnebres (...) ou que não receberam nome” e que, portanto, não podem “jamais
penetrar no mundo dos mortos” (2011:138). O trabalho realizado pelos peritos pode ser
tomado, a partir desta perspectiva, como um conjunto de ritos fúnebres técnicos e
burocráticos que permitem a “passagem” desses mortos para fora do mundo dos vivos.
Identificar, dar “nome” a esses corpos, é terminar mortes até então incompletas, é
“matar o morto” (SANTOS:2012).

Esta tarefa só pode ser bem sucedida em nossos dias devido ao investimento acumulado
há mais de um século no aprimoramento das técnicas de identificação. Desde sua
emergência em meados do Sec. XIX, os métodos judiciais de identificação buscaram

26
Mesmo em situações em que parece haver banalização ou massificação da morte, como em conflitos
armados ou desastres de grandes proporções, há um esforço, por parte de entidades como INTERPOL e
Cruz Vermelha, no sentido de localizar pessoas desaparecidas e identificar restos mortais. Para maiores
detalhes ver: “Disaster Victim Identification Guide (disponível em
https://www.interpol.int/public/disastervictim/guide/default.asp) e “PESSOAS DESAPARECIDAS,
ANÁLISE DE DNA E IDENTIFICAÇÃO DE RESTOS MORTAIS - Um guia para as melhores práticas em
conflitos armados e outras situações de violência armada” (disponível em
http://www.icrc.org/por/assets/files/other/icrc_007_4010.pdf)
27
“Efeito Físico no Individuo da idéia de morte sugerida pela coletividade”. Em outro ensaio clássico,
datado de 1934 (“As Técnicas do Corpo”), Mauss amplia a noção de técnica para além das relações com
(e usos de) determinados objetos, inscrevendo-a nos corpos. Ainda que não especifique neste ensaio
técnicas corporais relativas à morte, é possível supor, a partir da leitura dos dois textos, que para o
autor, o corpo seria não apenas o primeiro “meio técnico” do homem, mas também o último. Robert
Hertz, num ensaio pioneiro publicado em 1907, já apontava que “even for the biologist death is not a
simple and obvious fact; it is a problem to be scientifically investigated” (1960:197)

51
com afinco estabelecer maneiras confiáveis de conhecer pessoas a partir de seus corpos.
Em seu livro Da Técnica Médico-legal na Investigação Forense, Arnaldo Amado
Ferreira define bem a lógica que vem orientando esses esforços desde então:

“Fixar o nexo de identidade entre o nome (personalidade jurídica) e


o homem (pessoa física). Este nexo de identidade há de ser estável,
inalterável, permanente, derivado dos caracteres físicos do homem
e que reúna todas essas condições. Tem-se de procurar, para cada
homem, não um nome civil, mas um nome inapagável, natural, um
nome antropológico” (1962:4)

Nome “antropológico” que permita conhecer e designar da maneira a mais totalizante


possível um determinado espécime humano (Anthropo + logos). Esta procura por um
“nome natural”, escrito a partir de invariantes morfológicos e inscrito permanentemente
na personalidade jurídica cria, entre outros efeitos, uma tauto-lógica em relação à
“pessoa”: espécie humana e condição humana devem, ao menos perante o Estado,
coincidir. Para cada corpo humano, uma personalidade civil que lhe corresponda. O
conhecimento e legitimação jurídicos da sobreposição da segunda sobre o primeiro
naturaliza a pessoa, institui a pessoa como “natural”. A “natureza” humana, onde quer
que se localize (seja no corpo ou no espírito), torna-se acessível o suficiente para ser
controlada pelo Estado. A fórmula é eficaz (ao menos idealmente), e sua lógica se
inscreve naquilo que Foucault denomina

“a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada


de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de
estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que
conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico”
(Foucault, 2005, p. 286)

Mas para que se tornasse viável de uma perspectiva burocrático-administrativa, foi


preciso antes que os termos desta estatização fossem re-significados, que as expectativas
sobre o que um corpo tem a dizer sobre a pessoa fossem realocadas. Depois de décadas
de tentativas frustradas, percebeu-se que, para apreender pessoas a partir dos corpos, era
preciso inscrever o corpo num processo de purificação, esvaziá-lo de quaisquer
conteúdos morais, toná-lo “neutro”, transformá-lo em corpo “puro”, passível de

52
decomposição e análise. O corpo transformou-se numa ponte que separa (ao mesmo
tempo em que conecta) o geral e o particular; uma passagem da “pessoa” como um
princípio (todos somos “pessoas naturais”, pois para cada pessoa há um corpo) para a
“pessoa” como um fim (é possível identificar esta pessoa uma vez que se conheça seu
corpo).

A primeira tentativa pretensamente científica de identificação judicial surgiu no início


do Sec. XIX com o físico vienense Franz-Joseph Gall (1758-1828). Chamada de
frenologia (do grego: phrēn, "mente"; e logos, "lógica ou estudo") ou “cranioscopia”, a
nova técnica prometia identificar, através do formato do crânio, traços de personalidade
e comportamento criminosos. A premissa básica era que o cérebro era o órgão da
mente; e que determinados caracteres mentais degenerados deixariam marcas físicas que
determinariam o formato do crânio. Tratava-se, acima de tudo, de criar maneiras de
apreender uma suposta realidade interior oculta na mente através de uma suposta
realidade exterior acessível pelo exame dos traços físicos do crânio. Como observam
Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello,

“O corpo que se torna legível como um mapa permitiria uma


descoberta de sentido: o reconhecimento de paixões homicidas, de
forças subrreptícias, desenhadas até nos ossos” (2006:344)

Embora a maior parte dos experimentos fosse feita em cadáveres de criminosos, ou seja,
em corpos nos quais deveria haver, necessariamente, algum traço distintivo de
criminalidade; o método logo se mostrou inconsistente de um ponto de vista empírico.
Mas sua promessa não foi prontamente abandonada: no final do Sec. XIX surge na
Europa uma nova ciência, chamada de “antropologia criminal”. Impactada, como todas
as ciências da época, pelo evolucionismo, baseava-se num paralelismo entre organismos
e povos ditos “primitivos” e comportamentos também considerados “primitivos” para a
sociedade da época. Seu mais conhecido expoente, Cesare Lombroso (1835-1909)
,define assim a “descoberta” de uma relação de causalidade entre corpos degenerados e
comportamentos imorais:

"In 1870 I was carrying on for several months researches in the


prisons and asylums of Pavia upon cadavers and living persons, in
order to determine upon substantial differences between the insane
and criminals, without succeeding very well. At last I found in the

53
skull of a brigand a very long series of atavistic anomalies, above
all an enormous middle occipital fossa and a hypertrophy of the
vermis analogous to those that are found in inferior vertebrates. At
the sight of these strange anomalies the problem of the nature and
of the origin of the criminal seemed to me resolved; the
characteristics of primitive men and of inferior animals must be
reproduced in our times. Many facts seemed to confirm this
hypothesis, above all the psychology of the criminal; the frequency
of tattooing and of professional slang; the passions as much more
fleeting as they are more violent, above all that of vengeance; the
lack of foresight which resembles courage and courage which
alternates with cowardice, and idleness which alternates with the
passion for play and activity." (1911:14, grifo meu)

Tratava-se, portanto, para Lombroso, de encontrar entre o conjunto de pessoas


“naturais” os criminosos “naturais”; aqueles que por um azar do destino nasceram
“inferiores” e não tinham escolha senão comportar-se de maneira “selvagem” em um
meio ambiente “civilizado”. As anomalias comportamentais teriam correspondentes
físicos28 e seria possível prever as primeiras ao se apreender as últimas. Cor da pele,
cabelos e fisionomia tornar-se-iam indícios de tendências criminosas ou da loucura.
Como na frenologia de Gall, a “ciência” de Lombroso baseava-se numa moralização do
corpo: o que esses corpos degenerados teriam a dizer sobre si mesmos para os olhos
treinados de um especialista era mais do que apenas uma identidade, era antes de tudo
uma confissão29.

28
“the retreating forehead, exaggeration of the frontal sinus and the superciliary arches, the open
internasal suture, anomalous teeth, asymmetries of the face, and above all the middle occipital fossa
among males, the fusion of the atlas and the anomalies of the occipital opening." (Ibdi.1911:17)
29
O programa de Lombroso estabelecia inclusive medidas preventivas em relação aos “criminosos
natos”. Em sua concepção determinista, mesmo aqueles que não tivessem cometido crimes deveriam
ser mantidos afastados das pessoas “normais”, desde a infância: “When in the elementary schools a
child is found who has the known marks of the born criminal, he must first of all be separated from the
others and given a special training with the object of strengthening the inhibitory centers, always
underdeveloped with this class, and of subduing or diverting the criminal tendencies by supplying them
with a new outlet, while preventing the pupil from acquiring dangerous arts” (Ibdi. 1911:160)

54
Embora Lombroso tenha adquirido relativo sucesso30 em congressos e publicações
diversas, não demorou para que sua “antropologia criminal” fosse desqualificada por
outros autores devido à falta de consistência empírica. Mas o problema relativo à
identificação de pessoas continuava, particularmente em relação a desconhecidos que
povoavam cada vez mais as grandes cidades e sobre os quais não se tinha controle
algum. COURTINE e VIGARELLO definem esses homens como:

“vagabundos, mendigos das ferrovias, andarilhos, aqueles que uma


mobilidade nova na sociedade industrial torna mais difíceis de
enquadrar, são também julgados os mais suspeitos: inquietantes
pela sua possibilidade de mudar sem cessar de ganha-pão e lugar,
objeto de suspeita por sua possibilidade de repetir crimes em
regiões afastadas” (2006:348)

Para atender a demanda por identificação dessas figuras suspeitas foi necessário que as
autoridades encarregadas do problema operassem uma dupla reorientação, de método e
de conteúdo: em primeiro lugar, eleger, nos corpos, os invariantes morfológicos capazes
de simultaneamente singularizar uma pessoa e generalizar aquilo que se entende por
(ou aqueles que serão tomados como) pessoas, o que nem Gall nem Lombroso
conseguiram ou pretenderam fazer. Uma vez transformados em registros, esses
invariantes deveriam se prestar à classificação e possibilitar comparações. Esta base
comparativa deveria ser a mais ampla possível, e para isso foi preciso, em primeiro
lugar, estender a noção de humanidade – pelo menos aquela noção que diz respeito à
uma única espécie biológica humana – a todos os homens. Ao abandonar a aposta nas
raças degeneradas ou primitivas, qualquer espécime humano poderia ser tomado como
um caso particular de uma mesma espécie. A identificação passaria a depender de um
duplo movimento: para singularizar era necessário generalizar, ou seja, para distinguir
uma pessoa das demais era preciso antes que todas fossem apreendidas nos mesmos
termos. Para identificar homens anônimos, era necessário que os registros dos corpos
fossem destituídos dos conteúdos morais apriorísticos que caracterizaram as primeiras
tentativas de reconhecimento. Ao invés de buscar no conjunto de traços supostamente
repulsivos e primitivos o comportamento criminoso oculto, buscar nos detalhes de
traços superficiais das pessoas comuns aquilo que mesmo um criminoso não poderia

30
No Brasil, seu seguidor mais conhecido foi o médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906). Para o
Impacto de suas teorias nas ciências forenses brasileiras ver SCHWARCZ (1993) e CORRÊA (1982)

55
apagar ou esconder. Provar o comportamento ilegal seria, a partir de então, um
problema a posteriori (na comparação do suspeito apreendido com os registros dos
arquivos policiais). A pergunta que os corpos deveriam responder é “quem” antes do “o
que”.

O novo sistema, criado pelo chefe do Serviço de Identidade Judiciária da Polícia de


Paris, Alphonse Bertillon, conjugava antropometria (medidas precisas de partes
específicas do corpo, como nariz, orelhas, olhos, queixos, altura, envergadura dos
braços) e fotografia (além das partes citadas acima, fotos da face e do perfil, ainda
utilizadas pela polícia). Tão impessoais (no sentido moral) quanto individuais (no
sentido físico), as fichas criadas por Bertillon mostraram-se decisivas numa série de
casos31, mas falharam pela complexidade do sistema, que exigia grandes arquivos e
demandavam muito tempo para a localização.

Não que a chamada bertilhonagem estivesse destituída de todo conteúdo moral (é


sintomático que o sistema se destinasse exclusivamente a identificar criminosos). O
ponto a ser destacado é que este conteúdo moral vinha sendo deslocado do corpo – ou
do registro que se deveria fazer de corpos específicos – para a espécie; ou seja, se os
corpos haviam se tornado suficientemente parecidos para serem comparados nos
mesmos termos e de maneira que qualquer espécime humano poderia ser tomado como
um equivalente dos demais, o corolário lógico desta equivalência é que a própria noção
moral de humanidade deveria ser igualmente estendida a todos os espécimes. Louis
Dumont definiu de maneira brilhante aquela que se tornaria a concepção ocidental
moderna de pessoa, a crença de que “a humanidade é constituída de homens, e cada um
desses homens é concebido como apresentando, a despeito de sua particularidade e fora
dela, a essência da humanidade” (1992:52). Esta concepção, que teve sua gênese na
Europa em fins do século XVIII, concomitantemente a uma série de transformações
econômicas e políticas viria a ser popularizada pelas Nações Unidas em 1948, com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como observa Edmund Leach, a
Declaração “garante que não só todo individuo é membro de uma única espécie animal,
homo sapiens, mas também que este fato biológico traz com ele implicações morais”
(2002:55).

31
Ver COURTINE E VIGARELLO (2006)

56
Um sistema com os mesmos princípios, porém mais simples de um ponto de vista
administrativo, seria introduzido na última década do Sec. XIX: A identificação
datiloscópica. Segundo BRITO, ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO
(2011:323), o sistema contempla todos os requisitos técnicos e biológicos necessários
para identificação inequívoca:

 Requisitos Biológicos:

o Unicidade = individualidade: apenas um individuo pode tê-los.


o Imutabilidade: Os caracteres não mudam com o passar do tempo.
o Perenidade: os caracteres tem a capacidade de resistir à ação do tempo.

 Requisitos Técnicos:

o Praticabilidade: o método é simples, de fácil obtenção, registro e baixo


custo.
o Classificabilidade: possibilidade de classificação para rapidez na
localização em arquivos.

Implantado no Brasil em 1903 para fins de identificação criminal, o método


datiloscópico instituído na Argentina por Juan Vucetich foi adotado como método de
identificação civil em 1934, a partir dos esforços de Afrânio Peixoto (discípulo de Nina
Rodrigues) e de Leonídio Ribeiro, médico e diretor-fundador do Instituto de
Identificação do Rio de Janeiro (CORRÊA:1982). Desde então, são catalogadas e
arquivadas impressões digitais de todos os homens e mulheres que em algum momento
de suas vidas tenham confeccionado Carteira de Identidade (principal documento de
identificação utilizado no Brasil). A universalização da identificação datiloscópica
contribuiu decisivamente para consolidar no Brasil o projeto de “estatização do
biológico” e a consequente “naturalização” da “pessoa” para além de um contexto
exclusivamente criminal, a ponto de Leonídio Ribeiro poder afirmar sobre o sucesso do
sistema que

“A Identidade é um fato e não uma convenção; torna-se, pois,


necessário fixar meio inequívoco e único de prová-la, legalmente,
para facilitar a prática de atos civis dos indivíduos, na vida jurídica,
isto é, nas relações familiares, sucessórias, contratuais, políticas, no

57
exercício de todos os direitos e obrigações pessoais que se baseiam
na certeza da identidade individual” (RIBEIRO apud BRITO,
ARAÚJO, MOREIRA, CORREIA e ARGOLLO, 2011:322).

Um fato, sem dúvida; mas que depende, como demonstrado anteriormente, de muitas
convenções técnicas, jurídicas e burocráticas para ser estabelecido. A “pessoa natural”
assim concebida em termos de uma suposta indissociabilidade entre corpo e
personalidade civil torna-se também factual, ou como aponta Mauss, “um fato
fundamental do direito” (2003:385). Resulta, portanto, da articulação específica de três
atributos: uma relação de sobreposição de uma suposta condição humana (que tem seu
equivalente funcional jurídico expresso em termos de personalidade civil) sobre um
corpo humano específico; mais a existência jurídica que reconhece e legitima esta
sobreposição através dos métodos de identificação civil. O Direito, portanto,
desempenha papel fundamental na maneira como concebemos nossa noção de “pessoa”:
ainda que num plano lógico, condição humana e corpo humano possam ser tratados
como diferentes concepções de humanidade, cada qual circunscrita a um domínio
ontológico específico (a velha dicotomia entre cultura e natureza), a legitimação da
relação de sobreposição entre condição humana e corpo humano, operada através de
técnicas jurídicas e judiciárias, tem por efeito constituir pessoas como se, num plano
fenomenológico, as duas versões de humanidade fossem “naturalmente” indissociáveis.
O termo “natural”, utilizado pelo Direito para caracterizar nossa noção de “pessoa”,
pode ser tomado neste contexto não apenas como um adjetivo referente aos corpos
daqueles seres aos quais atribuímos status de pessoas; mas também como referente a
uma relação entre corpos e condição moral que é constituída como “natural”, como
dada. Como bem observa Luiz Fernando Dias Duarte,

“todo ato humano é culturalmente “construído” e determinado, mas


nem por isso deixa de ser eficaz e “real”. Muito pelo contrário, sua
“naturalização” simbólica lhe adjudica a mais veraz das
materialidades.” (2003:179)

A partir desta concepção, não é difícil entender porque, em nossa legislação, “a


existência da pessoa natural termina com a morte”32: a dissolução de um dos atributos

32
Artigo 6º do Código Civil Brasileiro

58
(corpo biológico ou personalidade civil, nos casos de morte cerebral) torna impossível a
continuidade da relação de sobreposição. Opera-se a partir daí a extinção da existência
jurídica (através da Declaração de Óbito).

Figura 2 - "pessoa natural"

Mas como lidar com casos em que esta suposta indissociabilidade é rompida? É o que
acontece, por exemplo, em relação a cadáveres desconhecidos. Conforme colocado
anteriormente, o termo “desconhecido”, como utilizado em relação a cadáveres,
funciona simultaneamente como um adjetivo (para caracterizar alguém cuja identidade
civil se ignora) e um substantivo (define um corpo como um tipo específico dentro do
conjunto de corpos). Esta definição se faz a partir de uma redefinição da relação entre
os atributos constitutivos da “pessoa natural”. Há, nestes casos, um duplo desafio para
as autoridades: o primeiro diz respeito à indefinição em relação à condição humana ou
personalidade civil correspondente ao corpo. A segunda diz respeito à morte, fato que
por si só justificaria a extinção da “pessoa”. Nestes casos a morte biológica, embora seja
uma certeza, não basta. Para que cadáveres desconhecidos terminem de morrer é preciso
identificá-los. E até lá, é preciso que continuem a existir, apesar de mortos. Desta forma,
o desconhecido é constituído como uma versão duplamente negativa da “pessoa”, que
rearticula os atributos constitutivos da “pessoa natural” de maneira a reconhecer não
apenas a extinção da relação de sobreposição entre condição humana e corpo humano
(que caracteriza o óbito), mas também legitimar uma nova existência, ainda que
idealmente apenas provisória, para um organismo humano destituído de vida e de
qualquer grau de pessoalidade. O cadáver desconhecido passa a existir juridicamente
(em termos criminais e não mais civis) assim que inscrito como evidência num inquérito
policial:

59
Figura 3 - "desconhecido”

Há dois destinos possíveis para um cadáver desconhecido. Em casos de identificação ou


reconhecimento (determinação da identidade civil) é feita a Declaração de Óbito que
extingue oficialmente a personalidade civil e o corpo é encaminhado à família para
inumação ou cremação. Por se tratar de um cadáver, é impossível o reestabelecimento
da antiga relação de sobreposição entre condição e corpo humanos, que caracteriza a
“pessoa natural”. Mas a identificação torna possível “matar o morto”, ou terminar a
morte da pessoa que corresponde ao cadáver desconhecido. Em caso de mortes
suspeitas ou decorrentes de crimes o inquérito policial prossegue, utilizando-se das
evidências produzidas pelos peritos:

Figura 4 - "desconhecido" identificado: o fim da morte como fim da pessoa.

Nos casos em que permanece sem identificação, o corpo segue armazenado no


necrotério por até trinta dias, antes de ser enterrado como desconhecido ou ser doado a
alguma escola de medicina, para fins de ensino e pesquisa. Mas o desafio às autoridades
prossegue: há uma personalidade civil que deveria se extinguir junto com o cadáver,
mas que continua existindo. Em relação ao corpo, é possível dizer que nunca deixa por

60
completo o IML: mesmo depois de inumado, os índices produzidos na cadeia de
referências da qual passa a fazer parte possibilitam que continue presente entre os vivos,
a espera de um fim.

Figura 5 - "desconhecido" não identificado: à espera da morte

61
Cap. 2 - Interlúdio: algumas notas sobre escatologia jurídica

“Todo mundo aqui é gente. Isso não é desculpa, mas presunção.”

(Karl Krauss)

“Quem duvida da sabedoria das velhas leis?”

(Kafka)

À primeira vista, uma correlação entre morte e “pessoa” que passa por uma discussão
do Direito pode parecer estranha, já que nas sociedades ocidentais o conjunto de
representações coletivas relativas ao destino post mortem do homem é geralmente
circunscrito às discussões teológicas, portanto ao domínio das crenças religiosas e com
ênfase sobre o destino das almas ou espíritos humanos após a morte. Mas é preciso
lembrar, a partir de Mauss, que morte deve ser entendida a partir das relações entre as
várias instâncias da vida humana: “Trata-se de um gênero de fatos (...) em que a
natureza social reencontra muito diretamente a natureza biológica do homem.”
(2003:364). Um dos desdobramentos possíveis a se pensar a partir da articulação destas
“naturezas” é que não são apenas os processos técnicos de constituição das pessoas, mas
também os de dissolução, que se estruturam numa corporalidade.

Assim, a opção por uma análise do tratamento jurídico dispensado aos mortos para uma
discussão a respeito de como articulamos nossa noção de “pessoa” justifica-se
duplamente: em primeiro lugar porque, como demonstrado no capítulo anterior, a
existência jurídica das pessoas - que legitima uma relação particular entre um corpo
humano supostamente “natural” e uma condição moral que supostamente separa nossa
espécie de todas as demais - é um dos fundamentos da categoria de “pessoa” entre nós;
além disso, o tratamento jurídico dispensado aos restos mortais humanos – que
estabelece no momento da morte diferentes direitos e deveres para familiares - pode ser
tomado como um conjunto de práticas mortuárias que coloca em articulação e redefine
em boa medida nossas concepções sobre vida, morte, e o que conta - ou não – como
pessoa. Se o termo escatologia em sua acepção original indica um saber sobre o último,
sobre aquilo que resta, penso ser possível tomá-lo num sentido não metafísico, como

62
fundamento de uma discussão sobre a maneira como lidamos com aquilo que resta de
físico das pessoas após a morte: os cadáveres.

Manuela Carneiro da Cunha (1978, 2009) já havia apontado algumas diferenças entre as
orientações escatológicas adotadas entre os Krahô e outras sociedades para as quais a
distinção entre vivos e mortos não assume a forma de uma oposição. Nestas sociedades,
encontraríamos geralmente algum tipo de continuidade dos consanguíneos, seja na
existência de algum culto aos ancestrais, seja através da instituição da herança. Nestes
casos, segundo a autora,

“a vida depois da morte pode funcionar como um sistema de


recompensas que sustenta normas morais na medida em que julga
condutas; pode, também, de forma mais simples, garantir a
continuidade ou a hierarquia das linhagens, ou a relação entre
grupos sociais e seus território, etc” (2009:75)

Na sociedade krahô, segundo a autora, a morte seria tomada como uma ruptura radical
e, portanto, não estaria diretamente relacionada à reprodução da sociedade. Assim, a
escatologia nessa sociedade não dependeria de consenso ou legitimação pública, mas
“seria um lugar privilegiado para a criatividade socialmente encorajada e não
constrangida por especificações precisas” (Ibdi). Ao contrário, nas sociedades que
postulam algum tipo de continuidade entre vivos e mortos, seja espiritual e/ou material,
haveria um controle social mais rigoroso em torno das concepções escatológicas.
Parece-me que, sob diversos aspectos, nossa sociedade pode ser enquadrada neste
último tipo. Embora nossa Constituição reserve um espaço privilegiado para a
existência de diferentes concepções escatológicas, através da garantia de liberdade de
crença religiosa, ela exige por outro lado a observância de uma série de rígidos
procedimentos a respeito dos cadáveres, que deverão ser seguidos, independente das
diferentes crenças ou religiões dos familiares e dos mortos33. Não cabe aqui um exame
de nossas diferentes concepções religiosas a respeito dos destinos possíveis para os
espíritos dos mortos. Ainda que estas concepções estejam presentes e orientem em

33
Não se trata aqui de domínios absolutamente separados. Por exemplo, a influência da moral cristã em
nosso Direito já foi apontada por diversos autores. Para uma crítica dessa influência ver: MARÇAL,
Antônio Cota: Posfácio: pessoa e identidade pessoal, in: STANCIOLI, Brunello: Renúncia ao exercício de
Direitos da Personalidade, Belo Horizonte: Del Rey, 2010

63
alguma medida a maior parte de nossas práticas mortuárias, a liberdade religiosa é
sempre uma liberdade sob condição, subordinada às regulamentações específicas sobre
o tratamento jurídico do cadáver34.

O corpo humano ocupa uma posição ambígua enquanto objeto dos saberes e práticas
jurídicas ocidentais. Pode, por um lado, ser dissociado da pessoa, tomado como um
organismo físico, objeto de estudo das ciências forenses (ênfase na humanidade como
espécie); simultaneamente, no entanto, é entendido como dimensão sensível da pessoa
enquanto ser moral, dotada de autoconsciência e intencionalidade, um instrumento sem
o qual essa mesma condição moral não poderia efetivar-se no mundo. A noção de
“pessoa natural”, tal como operacionalizada no Direito brasileiro, pressupõe
simultaneamente uma separação e uma indissociabilidade entre corpo e personalidade
civil, legitimando o que Marilyn Strathern define como “the symbolism that equates the
person with the individual body” (2005:116). Em tese35, os chamados direitos da
personalidade36 garantiriam, pelo Estado brasileiro, o exercício dos Direitos
Fundamentais do Homem que são, em sua gênese, supranacionais. Segundo Maria de
Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Mendes, os direitos da personalidade

“são aqueles que tem por objeto os diversos aspectos da pessoa


humana, caracterizando-a em sua individualidade e servindo de
base para o exercício de uma vida digna. São direitos da
personalidade a vida, a intimidade, a integridade física, a
integridade psíquica, o nome, a honra, a imagem, os dados
genéticos e todos os seus demais aspectos que projetam a sua
personalidade no mundo” (SÁ e MENDES, 2011:49)

Os direitos de personalidade seriam, portanto, constitutivos da “pessoa” em sua versão


jurídica nativa, ao regular tudo o que diz respeito à dignidade e integridade das pessoas,
além da constituição da personalidade civil. Esta, por sua vez, pode ser definida como o
“conjunto de faculdades e de direitos em estado de potencialidade, que dão ao ser
humano a aptidão para ter obrigações” (LIMA, 1961:149). A partir de termos como

34
Por exemplo, admite-se o consumo da ayahuasca, planta que produz efeitos alucinógenos, num
contexto religioso, mas não há a menor possibilidade de se aceitar uma religião cujos ritos funerários
possam ser enquadrados no crime de vilipêndio de cadáver.
35
Para uma discussão detalhada sobre a relação entre Direitos Fundamentais e Direitos de
Personalidade, ver: Stancioli (2010, Cap.1)
36
Código Civil Brasileiro, Cap.II, artigos 11º a 21º

64
direitos, deveres, faculdades e aptidão é possível tomar a personalidade civil como o
equivalente funcional jurídico de nossa condição moral. Mas há também, dentre os
Direitos de Personalidade, aqueles que dizem respeito ao corpo, mais especificamente à
sua inviolabilidade. O Artigo 13 declara que:

“Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do


próprio corpo, quando importar diminuição permanente da
integridade física, ou contrariar os bons costumes”. (BRASIL.
Código Civil, 2002, Art..13)

O artigo em questão reforça uma concepção do corpo como suporte material da pessoa,
sem o qual esta não poderia “projetar sua personalidade no mundo”, ou seja,
desenvolver suas aptidões ou ser investida de capacidade jurídica. Destaca-se
novamente a lógica na qual uma condição moral tem primazia sobre um corpo físico.
Nesta lógica, qualquer intervenção voluntária que atentasse contra a própria integridade
física seria igualmente um atentado moral, como se um corpo voluntariamente
deficiente implicasse na impossibilidade de pleno desenvolvimento das potencialidades
morais da pessoa. Da mesma maneira, assumir determinadas condutas moralmente
inadequadas – um “uso” inadequado do corpo - ainda que não consideradas ilegais,
bastaria para caracterizar juridicamente uma pessoa como “incapaz” ou “relativamente
incapaz”. É sintomático que nossa Constituição iguale os “ébrios habituais, os viciados
em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” 37 nesta
última categoria.

Igualmente curioso o fato de que, a despeito dos pronomes possessivos que


normalmente utilizamos para nos referir ao corpo, este não é considerado pelo Direito
como propriedade, ao menos não nos sentidos que orientam nossas relações com outros
bens patrimoniais, assim como nossa relação com terceiros a partir destas relações. A
“pessoa natural”, que segundo a definição de João Franzen Lima “é todo e qualquer ser
humano que nasce da natureza” (1961:148-149), deve ser protegida moral e
materialmente, inclusive de si mesma38. A tautologia da definição é óbvia, mas me
parece possível toma-la menos como um vício de linguagem (um argumento que repita
a mesma ideia ou que pretenda explicar-se por si mesmo) do que em seu sentido

37
BRASIL. Código Civil, 2002, Art. 4º, II
38
De acordo com o Art.11º do Código Civil, “os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.(grifo meu)

65
proposicional; ou seja, a afirmação de determinados princípios como verdadeiros,
independente de sua derivação. No que diz respeito ao corpo humano, a proposição
garante sua integridade física como premissa moral, ao interditar sua apropriação num
regime jurídico de propriedade. Na prática, nossa suposta autonomia garantida por lei
permite que façamos muitas coisas enquanto corpos, mas interdita uma série de atos
com e nos corpos. Por exemplo, à primeira vista, o artigo 14 do Código Civil, parece ir à
direção contrária ao artigo anterior quando afirma que:

“É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição


gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da
morte.” (BRASIL. Código Civil, 2002, Art..14)

Nota-se que esta suposta exceção, na prática, não chega a contradizer o artigo 13º em
seus princípios ordenadores. Oficializada em vida como uma ação legitimamente
reconhecida, a doação do corpo, parcial ou integralmente, é a doação do próprio
cadáver, e neste sentido não pode caracterizar dano ou prejuízo de qualquer espécie à
pessoa em questão, já que em termos lógicos trata-se de dispor de algo que não se
possui, ou de que se abre mão no exato momento da perda. Além disso deve-se atentar
para o fato de que a disposição do corpo deve ser gratuita - como no caso de
transplantes de órgãos e técnicas de reprodução assistida que envolvem a chamada
barriga de aluguel, a “doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial” 39. Por fim, a
doação deve ser motivada por motivos nobres, científicos ou altruísticos, que não
contrariem os “bons costumes”. Neste caso, assim como em outros nos quais a pessoa
morta estabelece explicitamente em testamento ou diretamente a familiares e pessoas
próximas seu desejo (ainda em vida) de que sejam cumpridas determinadas disposições
após sua morte, é como se sua personalidade civil, mesmo dissociada do corpo, ainda
fosse capaz de agir através de terceiros. Um último ato, antes de sair definitivamente de
cena.

Poder-se-ia supor que a extinção da personalidade civil ou do aspecto moral da pessoa a


partir da morte anulasse as restrições jurídicas relativas à disposição e uso do corpo
humano. Afinal, como demonstrado no capítulo anterior, a morte opera uma
desarticulação na relação entre corpo e condição humana que constitui a “pessoa
natural” e extingue a personalidade civil e capacidade jurídica. Em que medida,

39
BRASIL, Resolução do Conselho Federal de Medicina, Nº 1.358, 1992.

66
portanto, um cadáver poderia ser sujeito dos (ou estar sujeitado aos) mesmos direitos e
deveres de que goza a pessoa quando viva? A questão é controversa e o Direito admite
para ela várias respostas, que dependem em boa medida da maneira como se articula
uma oposição anterior àquela existente entre espécie e condição humana: a oposição
entre pessoas e coisas. Segundo Ciméa Barbato Bevilaqua,

“O privilégio analítico costumeiramente conferido às modalidades


de construção da pessoa, (...) tende a reafirmar implicitamente o
fundamento por excelência dos sistemas jurídicos ocidentais: uma
fronteira naturalizada e, portanto, assumida como não
problemática, entre pessoas e coisas.” (2010:7)

Ainda que nossa concepção de “pessoa” e “coisa” dependa (ao menos idealmente) de
uma separação ontológica, ambas as categorias são interdependentes. A distinção é cara
ao Direito, porque pressupõe uma sociedade de pessoas com deveres entre si e direitos
sobre coisas. Como observa Márcio Goldman, “Status e Contrato são efetivamente
outros nomes para o que se costuma designar por sociedade e indivíduo” (1999:14).
Esta fronteira naturalizada não é objeto de problematização na maior parte das práticas
jurídicas cotidianas, nas quais - ao menos para fins contratuais - pessoas e coisas estão
suficientemente separadas em seus respectivos nichos ontológicos. Mas torna-se
decisiva (e, portanto, sujeita a uma decisão) em determinados casos em que os limites
entre pessoas e coisas não se apresentam muito claramente, particularmente os que
dizem respeito às mudanças introduzidas pelo desenvolvimento de novas
biotecnologias40 e aqueles relativos à morte. Embora a definição jurídica estipule que “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” e que “a existência da
41
pessoa natural termina com a morte” , nenhum desses dois domínios é autoevidente.
Em alguns casos, se faz necessária uma (re) definição - tanto no sentido de estabelecer
limites quanto de fixá-los - de tais fronteiras, o que se dá, justamente no âmbito das
práticas jurídicas, que foram historicamente investidas, entre nós, de uma posição de
legitimadoras (na medida em que legisladoras) da mesma separação ontológica da qual
dependem. Para manter a morte sob controle, ou seja, circunscrever cada morte
individual no conjunto de princípios cosmológicos que regula a existência dos vivos, os

40
Para um exemplo de controvérsia jurídica envolvendo a pesquisa com células tronco embrionárias ver:
CESARINO (2007).
41
Respectivamente, artigos 2º e 6º do Código Civil Brasileiro

67
Estados nacionais modernos criaram e vêm aperfeiçoando suas legislações funerárias,
que se pautam, cada vez mais, pela racionalização, laicização e higienização da morte.
Para tanto, como observa Louis-Vincent Thomas,

“La sociedad no prévio solo uma normativa, a menudo compleja, a


veces minuciosa; también concibió instituiciones-edificios:
morgues (...), cámaras funerárias, institutos médico-legales (...), los
crematórios (...) y por último lós cementérios.” (1993:80).

Como procurei mostrar no capítulo anterior que trata do Instituto Médico Legal de Belo
Horizonte, essas instituições exercem papéis decisivos nos destinos dos mortos e
daqueles a eles conectados e a atuação de todas elas é regulamentada por lei. Porém,
como se sabe, a Lei admite várias interpretações por parte de seus operadores. Ainda
que a legislação brasileira estabeleça proteção jurídica aos cadáveres através de leis
específicas, os termos em que se dá (ou não) esta proteção dependem da apreensão de
contextos relacionais particulares, que são analisados e julgados tendo como referência
não apenas a Constituição e os Códigos Civil e Penal, mas também o conjunto mais ou
menos estabilizado de decisões anteriores tomadas em casos semelhantes. A
jurisprudência desempenha, portanto, um papel fundamental em controvérsias jurídicas
envolvendo cadáveres, na medida em que auxilia os julgadores a situar ontologicamente
o morto de acordo com critérios de decisão estabelecidos anteriormente pelas próprias
técnicas jurídicas. Latour já havia apontado o caráter autorreferenciado das técnicas de
produção de verdade em contextos judiciais:

“The rule contains no knowledge or information about the


particular facts, except in the most superficial sense; (…) Minor
referential chains (A is an instance of B) are subordinated to what,
from the point of view of the law, is the only true kind of chain: A
is an instance of B as it is defined by article C.” (2004:104)

Cabe notar que, de maneira geral, controvérsias judiciais envolvendo cadáveres não
costumam ter como objeto de disputa a existência (ou não) do morto. Esta é tomada
como um fato42, em torno do qual alguma questão polêmica se coloca. Ainda que de

42
É interessante que não haja em nossa legislação nenhuma definição conceitual de “cadáver”, assim
como não há de “pessoa”. Ao Conselho Nacional de Medicina é atribuída a prerrogativa de definir os

68
alguma maneira essas controvérsias tenham como objeto o defunto, é entre os vivos, e
mais especificamente, entre diferentes formas de apreender e se relacionar com o corpo
morto, que se dá a maior parte das disputas. Um mesmo ato pode ser criminalizado ou
endossado pela lei segundo a ênfase na subjetividade residual ou na materialidade
corporal dos mortos. A decisão numa ou outra direção dependerá da análise de cada
caso em particular, tendo como referência, além do posicionamento das partes em
disputa perante a Lei, casos anteriores que são instrumentalizados nos tribunais como
exemplares. Por exemplo, sabe-se que violar cadáver é crime previsto pelo Código
Penal43, com pena de reclusão entre um e três anos. Em determinados contextos, no
entanto, como em casos de retirada de órgãos para transplantes, ou aqueles em que se
faz necessário exame necroscópico para determinar as causas e circunstâncias em que se
deu a morte, a prática pode ser endossada, ou até exigida por lei. Assim, a apropriação
do cadáver como “pessoa” ou “coisa” é sempre circunstancial. Lúcio Antônio Chamon
Júnior parece ir na mesma direção de Latour ao afirmar que:

“sempre caso a caso é que podemos argumentar se uma infração de


dever também implicou em uma violação de direito e vice-versa;
antes, são estas questões incapazes de serem resolvidas no nível de
uma Teoria do Direito que não se pretenda como ocupante do locus
argumentativo dos afetados”. (2006:114)

Ainda que estas categorias sejam tomadas como um a priori, e, portanto, como
referência para uma aplicação de leis que se supõem apenas adequadas à realidade, sua
estabilização acontece a partir das práticas jurídicas, sendo simultaneamente, tanto um
efeito das decisões judiciais quanto causa destas. Em outras palavras, “pessoa” e
pessoas – assim como “coisa” e coisas – são criadas e estabilizadas umas a partir e
através das outras, numa relação que é ao mesmo tempo de interdependência e de
contradição. Roy Wagner explorou esta tensão dialética entre convenção e invenção.
Segundo o autor,

critérios que serão adotados por profissionais de saúde para definir o momento da morte; assim como
suas causas. Há, em ambos os casos, a preocupação em afastar eventuais incertezas em relação a um
evento (morte), mas a explicação se dá, via de regra, a partir de uma inversão: a entidade resultante
deste evento (cadáver) parece ser tomada como premissa definidora do evento que se pretende
elucidar. Explica-se a morte e suas circunstâncias através do cadáver; para tanto, este deve ser tomado
como um dado, um ponto de partida.
43
Código Penal Brasileiro, Artigo 211.

69
“O cerne de todo e qualquer conjunto de convenções culturais é
uma simples distinção quanto a que tipo de contextos – os não
convencionalizados ou os da própria convenção – serão
deliberadamente articulados no curso da ação humana e que tipo de
contextos serão contrainventados como ‘motivação’ sob a máscara
convencional do ‘dado’ ou do ‘inato’. (2010:95)

Poder-se-ia dizer, das controvérsias envolvendo cadáveres, que os processos decisórios


envolvem simultaneamente um recurso aos fundamentos (legais) como forma de exercer
o poder de fundações (legítimas). Através de uma série de práticas e técnicas já
convencionalizadas, o Direito personaliza e objetifica uma variedade de seres que não
estão (ainda) bem situados ontologicamente em determinado contexto relacional, de
forma a integrá-los de uma maneira convencional na coletividade e só pode fazê-lo em
termos de (novas) pessoas e coisas, porque “pessoa” e “coisa” são as categorias
contrastantes constituídas como dadas que contam nesses casos. Mas, para que
funcionem de forma adequada, essas categorias devem ser também resignificadas no
processo, para que possam englobar as novas diferenciações.

Um bom exemplo desse trabalho jurídico de redefinição contextual de pessoas e coisas


pode ser encontrado na mudança de critérios operatórios para estabelecer o momento da
morte humana, de um anterior, chamado clássico ou tradicional, para o chamado critério
de morte cerebral. A questão suscita controvérsias há décadas44, e a mudança só foi
incorporada oficialmente à legislação brasileira em 199745. O critério operatório
clássico, que define a morte humana como a parada irreversível do funcionamento do
coração e das funções respiratórias, passou a colocar os médicos numa delicada posição
em relação à retirada de órgãos para transplantes quando avanços técnicos tornaram esse
tipo de intervenção possível. Pois, se como postula o Código Civil, a existência da
pessoa termina com a morte, e a morte, segundo esse critério, ocorre no momento em
que o coração para de bater, abrir um corpo humano vivo – ao menos do ponto de vista
biológico - e retirar-lhe os órgãos, ainda que com a intenção de salvar vidas de terceiros,
seria algo diferente de assassinato?

44
Para uma revisão das posições conflitantes a respeito do critério de morte cerebral ver:
(SCHUMACHER, 2009)
45
BRASIL. Resolução 1480 do Conselho Nacional de Medicina, 1997

70
O problema se coloca desde os anos de 1950. A necessidade da criação de novos
critérios operatórios alternativos para determinação da morte veio como resultado de
uma série de mudanças tecnológicas e culturais, que permitiram, por um lado, um
grande aumento na expectativa de vida das pessoas a partir da melhoria das técnicas
terapêuticas – incluindo o transplante de órgãos - acompanhado por uma atitude geral de
afastamento e recalque em relação à morte. Como bem observa Norbert Elias (2001),
em nossas sociedades contemporâneas, a atitude geral em relação à morte é a de um
afastamento cada vez maior e mais asséptico dos moribundos e dos mortos para os
bastidores da vida social. Segundo Elias, “nunca antes as pessoas morreram tão
silenciosa e higienicamente como hoje, e nunca em condições tão propícias à solidão
(2001:98)”. Já não se morre em casa, já não se velam os corpos em casa. À medida que
a expectativa de vida aumenta em nossas sociedades, a morte é relegada a um corpo
técnico profissional cada vez mais especializado, composto de profissionais de saúde,
agentes funerários e outros. Phillipe Ariès parece concordar com Elias, quando afirma
que

“A partir do fim do séc. XIX, tínhamos a impressão de que um


deslize sentimental fazia passar a iniciativa [da morte] do
moribundo à sua família – uma família na qual tinha então toda a
confiança. Hoje, a iniciativa passou da família, tão alienada quanto
o moribundo, ao médico e à equipe hospitalar. São eles os donos da
morte, de seu momento e também de suas circunstâncias”
(2003:86)

Seria preciso acrescentar que, se os saberes médicos são aqueles aos quais investimos a
incumbência de lidar diretamente com a morte, determinando entre outras coisas
quando a vida de uma pessoa termina, seus critérios precisam ser ratificados
juridicamente46. Do ponto de vista médico, o critério “clássico” é tão válido
tecnicamente quanto o da morte cerebral, e continua em uso. A gênese da legitimação

46
No Brasil, a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e
partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, determina em seu artigo 3º que
compete ao Conselho Federal de Medicina definir os critérios para diagnóstico de morte encefálica.

71
deste último, a partir da década de 198047 foi motivada justamente pelos
constrangimentos jurídicos que o primeiro suscitava.

Convém ressaltar alguns pontos do critério de morte cerebral: pode ser declarada
quando do fim das funções que integram todo o cérebro, cessando sua atividade; ou
quando da destruição do neo-cortex, do qual resulta um estado vegetativo. (Schumacher,
2009). Neste último caso, a pessoa continua a respirar sem ajuda de aparelhos, e pode
ser alimentada através de sonda. Em ambos os casos, é possível manter o corpo vivo, do
ponto de vista biológico, com auxílio de tecnologia. O que este novo critério coloca em
questão é uma definição de morte que não diz respeito a uma desintegração do
organismo como um todo, mas à desintegração da pessoa; ou seja, a morte como a perda
irreversível daquilo que constituiria a existência moral, um dos aspectos fundamentais
da noção de “pessoa”. Cabe notar que, para que tal critério seja bem sucedido, é preciso
operar provisoriamente um duplo movimento, de personificação do corpo e
objetificação dos aspectos morais da pessoa: em primeiro lugar, a “condição” humana
deve ser modificada, encarnada no organismo biológico humano; redefine-se o corpo
(ou uma parte específica, o tronco cerebral) como o locus da consciência moral; e
redefini-se a consciência moral como uma espécie de órgão que já não funciona, para,
logo em seguida, fazer o caminho inverso, restaurando a dicotomia: o corpo sem órgão
“moral” pode ser objetificado, tornado coisa, aberto, manipulado; seus órgãos podem
ser retirados sem maiores problemas éticos e legais, porque não se trata mais de pessoa.
A subjetividade moral transforma-se em materialidade e a materialidade de um órgão
em subjetividade pura. Ao contrário do que ocorria segundo o critério clássico, nesses
casos a morte da pessoa é anterior – e condição necessária – à morte do corpo. Viveiros
de Castro já havia chamado atenção para esta inversão na relação corpo/condição moral:

“A prova a contrário da função singularizadora do espírito em


nossa cosmologia está em que, quando se quer universalizá-lo, não
há outro recurso (...) senão o de identificá-lo à estrutura e

47
A Comissão do presidente dos Estados Unidos propôs, em 1980, um novo critério operatório chamado
“Determinação Uniforme do ato da morte”, posteriormente adotado por outros países, inclusive o
Brasil: “um indivíduo está morto quando sofreu uma parada das funções circulatórias e respiratórias, ou
uma parada irreversível de todas as funções do cérebro em seu todo, incluindo o pendulo cerebral. A
determinação da morte deve ser feita seguindo critérios médicos reconhecidos”. O documento na
íntegra está disponível em http://www.law.upenn.edu/bll/archives/ulc/fnact99/1980s/udda80.htm

72
funcionamento do cérebro. O espírito só pode ser universal
(natural) se for corpo” (2003:382)

Cabe ressaltar que o critério operacional da morte cerebral convive, em nossa


legislação, com o critério clássico. De fato, sua aplicabilidade deve restringir-se, assim
como outras decisões jurídicas que envolvam esse tipo de controvérsia, a contextos
específicos - neste caso, aos pacientes que atendam aos requisitos técnicos para a
doação de órgãos, ou a indivíduos anencéfalos. Seu princípio ordenador é
perigosamente utilitarista. Como observa Denis Franco Silva, sobre os anencéfalos:

“Estes indivíduos, inegavelmente, são pessoas humanas, muito


embora privados de forma congênita do córtex cerebral. É certo
que a privação das funções superiores do cérebro não os exclui de
forma absoluta da comunidade moral. Mas é certo, também, que
poucos admitem a aplicação de esforços terapêuticos nestes
indivíduos, tendo em vista sua inviabilidade para uma vida que não
meramente biológica. (2004:29)

Se estendido à totalidade da população, o Direito teria que responder a questões éticas


embaraçosas, tais como: o que fazer em relação a pessoas com graves deficiências
mentais? Elas têm o direito de viver? A rearticulação da categoria de “pessoa” tal como
operacionalizada no caso de indivíduos com morte cerebral e anencéfalos não autoriza a
responder esta questão com uma negativa. Às pessoas portadoras de necessidades
especiais são garantidos os mesmos diretitos da personalidade de que gozam aqueles
considerados plenamente capazes, dentre os quais os direitos à vida, à dignidade e
integridade física e moral. Embora o critério utilitarista pareça contradizer esses
direitos, é preciso lembrar que sua adoção é sempre circunstancial.

Embora as controvérsias acerca do critério de morte cerebral tendam a restringir-se a


um nível de debate puramente técnico/operacional (o critério anterior tornara-se
obsoleto, dado as condições de realização de transplantes de órgãos, etc) ela suscita
questões que vão além da determinação do quando se dá a morte de uma pessoa. Como
uma resposta técnica a problemas legais que envolvem a morte, redefine a morte; e ao
fazê-lo, acaba por redefinir, em contextos específicos, a própria categoria de “pessoa”.

73
Num plano conceitual, sintático, ainda é possível definir a pessoa através da articulação
entre uma existência moral sobreposta a uma corporalidade, cuja existência é
reconhecida juridicamente. Num plano prático, ou semântico, as decisões jurídicas
operam resignificações no conteúdo dessas categorias: a consciência pode ser
materializada, os corpos subjetivados, e as decisões jurídicas sobre o que conta ou não
como pessoa passam a depender elas mesmas cada vez mais daquilo que áreas de
conhecimento exteriores ao Direito tem a dizer, como por exemplo as ciências médicas
e biológicas, religiões, organizações civis, etc.

2.1 - O morto entre as pessoas

Por variadas que sejam as concepções e especulações em torno do pós-morte em nossa


sociedade, é possível identificar uma uniformidade em nossa cosmologia a respeito do
que se passa, quando do falecimento de uma pessoa, na relação entre corpo e espírito.
Em termos apenas descritivos, pode-se dizer que para a maior parte das religiões a
morte é um evento que tem por consequência a separação irreversível entre corpo e
alma (THOMAS, 1993:259). Um corpo inanimado é um corpo sem alma, um corpo
destinado à desintegração, a “voltar ao pó”. Mas esse percurso do cadáver rumo ao
desaparecimento não se dá com indiferença. Mesmo os que não professamos nenhuma
religião, ou aqueles para quem o corpo material não passa de um invólucro temporário
para um espírito que voltará a reencarnar, demonstram determinados cuidados em
relação ao cadáver humano que normalmente não dispensamos a outras espécies
animais. É como se, ao menos por algum tempo, os ecos da conexão desfeita entre
corpo e alma continuassem a ressoar e justificassem um sentimento, se não de devoção,
ao menos de respeito em relação ao defunto, ou aquilo que resta, no defunto, de sua
pessoalidade pregressa. Este sentimento não é necessariamente de ordem religiosa,
como demonstra Jean Ziegler:

“Os mortos continuam a agir para além da morte. Os cadáveres se


dissolvem, mas as obras que eles criaram, as instituições que
animaram, as ideias que lançaram ao mundo, os afetos que
suscitaram continuam a agir e a fermentar. Quando o corpo volta ao

74
nada, a consciência segue um destino social entre os vivos.”
(1977:277)

Em termos jurídicos, a extinção da personalidade civil através da confecção do atestado


de óbito pode ser tomada como o reconhecimento oficial da separação entre corpo e
espírito, ou corpo e condição humana. Mas seria possível encontrar também no Direito
algum tipo de reconhecimento análogo àquele amplamente difundido em nossa cultura a
respeito da continuidade das pessoas após a morte? Ou, ao contrário, em termos
jurídicos a morte seria simplesmente o fim, implicando na extinção completa da
pessoalidade do cadáver? A resposta a esta última pergunta é não. Ainda que nosso
Código Civil determine que a “existência da pessoa natural termina com a morte”,
alguns dos direitos da personalidade continuam válidos mesmo após o falecimento,
como se protegessem, uma suposta continuidade da personalidade do morto. Dentre os
direitos que continuam após a morte estão os artigos 12º e 20º, e seus respectivos
parágrafos únicos:

“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da


personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para


requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou
qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.”
(BRASIL. Código Civil, 2002, Art..12)

“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da


justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos,
a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a
utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se
destinarem a fins comerciais.

75
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou ausente, são partes
legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou
descendentes.” (BRASIL. Código Civil, 2002, Art..20)

Os dois artigos acima citados explicitam ao menos dois aparentes paradoxos em relação
aos princípios gerais que fundamentam a constituição jurídica da “pessoa” entre nós.
Em primeiro lugar, atribuem direitos que são supostamente subjetivos (honra,
respeitabilidade, dignidade e integridade) a seres supostamente desprovidos de qualquer
subjetividade. Em segundo lugar autoriza terceiros a agir pelo morto, legitimados por
direitos que, a priori, seriam intransmissíveis. As duas questões são objeto de longa
controvérsia entre comentadores e juristas48 e não cabe aqui uma extensa revisão desta
discussão. Mais do que uma discussão doutrinária, a aproximação escatológica que
desenvolvo neste capítulo pretende se ater a determinados efeitos práticos da adoção,
por parte do Direito, de determinados princípios heurísticos; ou seja, aquilo que se
permite autorizar ou não em relação aos mortos, e os consequentes desdobramentos
dessas ações entre os vivos. A despeito de sua “disposição universalizante”
(DUARTE:2012), o Direito parece conseguir anular – ou ao menos contornar –
eventuais inconsistências que se poderia esperar emergir de contradições explicitas na
Lei, ao se apropriar de situações especificas sempre a partir de determinadas relações
pré-determinadas com princípios implícitos. A jurisprudência pode ser tomada neste
sentido como produtora de “universais sob condição”, ao fazer da correlação entre leis e
casos particulares que caracteriza qualquer decisão judicial uma relação teleológica.
Roy Wagner já havia chamado a atenção para a existência de paradoxos capazes de se
“auto-anular”,

“quando usam os próprios traços de autocontradição para


demonstrar que existe uma lógica ulterior onde geralmente se
considera haver uma realidade empírica – para dar mais sentido aos
sentidos do que eles dariam a si mesmos.” (2011: 938)

Neste sentido, a despeito de eventuais contradições textuais encontradas na Lei, me


parece possível seguir a posição de Manuela Carneiro da Cunha, para quem

48
Para uma revisão da discussão jurídica em torno dos direitos de personalidade do morto ver
(SILVA:2004), (BERTONCELO & PEREIRA:2009) E (FREIRE DE SÁ & NAVES:2011)

76
"a consistência da escatologia (...) deve ser procurada num nível
subjacente à informação, evidenciando-se princípios que regulem o
surgimento (...) de novas versões. Veremos que esta escolha nos
leva a descobrir na escatologia não apenas o reflexo da sociedade
que a originou, mas também e principalmente uma reflexão sobre
ela." (1978:113)

Não basta, portanto, dizer simplesmente que nossa legislação autoriza uma apropriação
do cadáver como pessoa, ou autoriza a familiares do morto exercer alguns de seus
direitos da personalidade. Mais do que isso, cabe perguntar a partir de quais princípios e
em que situações específicas o Direito admite que “os mortos continuam a agir para
além da morte”, ou em que casos os cadáveres podem figurar como agentes numa
relação jurídica que pressupõe intersubjetividade. Para responder a essas perguntas,
convém analisar alguns casos que se apresentam juridicamente como violação dos
direitos dos mortos, ou como infração de deveres que se refiram à figura do morto.

Nosso Código Penal, na sessão intitulada “Título V – Dos Crimes Contra o Sentimento
Religioso e Contra o Respeito aos Mortos” estabelece, em seu Capítulo II, quatro tipos
distintos de infração relativas a cadáveres. São elas:

 Impedimento ou perturbação de cerimônia funerária

Art. 209. - Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária:

Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada


de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

 Violação de sepultura

Art. 210. - Violar ou profanar sepultura ou urna funerária:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

 Destruição, subtração ou ocultação de cadáver

Art. 211. - Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

77
 Vilipêndio a cadáver

Art. 212. - Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (BRASIL.


Código Penal, 2012, Art..209-212)

Note-se que o título do capítulo em questão é “crimes contra o respeito aos mortos”, e
não “crimes contra os mortos”. Não por acaso, estes crimes figuram no Código Penal na
mesma sessão daqueles “contra o sentimento religioso”. Neste caso, o que se busca
proteger é um bem imaterial; um sentimento de sacralização do cadáver que pode ser
associado com alguns direitos subjetivos e igualmente genéricos, tais como honra ou
dignidade. Assim como acontece em relação aos direitos da personalidade, toma-se este
sentimento de respeito como esperado e de certa forma inato; e o comportamento dele
decorrente deve ser reconhecido como igualmente respeitoso. Mas os crimes deste tipo
são sempre ações que envolvem a materialidade de um cadáver específico, constituindo
casos particulares em que os atributos constitutivos da “pessoa” podem ser
rearticulados, favorecendo novos arranjos. Obviamente, não se trata aqui de naturalizar,
de maneira ingênua, a forma como o Direito constitui determinados princípios como
naturais ou dados. O próprio reconhecimento legal de atos contra a pessoa e contra o
respeito aos mortos pressupõe a existência desses atos; e sua criminalização é, de certa
maneira uma forma, pela negativa, de incorporar ao sistema comportamentos ou fatos
que contrariam, no plano da prática, algumas das premissas conceituais nas quais se
baseia o sistema jurídico49. Neste sentido, penso ser possível uma apropriação com a
abordagem que Edmund Leach faz da mitologia Kachin como um modelo que
“representa uma versão ideal da estrutura social” (1996:328). De maneira análoga,
pode-se tomar o Direito como a expressão de um “sistema de ideias”, mais do que
apenas um sistema de regras.

A título de exemplificação, discutirei alguns casos, ocorridos no Estado de Minas


Gerais, que foram enquadrados entre os chamados “crimes contra o respeito aos
mortos”. Os casos estão disponíveis para consulta pública no site do Tribunal de Justiça

49
Como observa o Desembargador Dárcio Lopardi Mendes nos autos do processo 1.0313.06.186004-
2/001 : “O Direito Penal é considerado a ultima ratio, ou seja, somente se tipificam condutas que, por
sua relevância para a sociedade, devem ser punidas de forma mais severa, impondo-se ao agente
restrição de direitos. Assim, somente aquelas condutas em relação às quais o Direito Civil não basta para
regular, serão previstas como crimes ou contravenções.” (Minas Gerais. Tribunal de Justiça, 2007)

78
de Minas Gerais50, na sessão intitulada “Pesquisa por Jurisprudência”; e são
esclarecedores de alguns efeitos ontológicos da apropriação e rearticulação, pelas
técnicas jurídicas, de relações onde cadáveres figuram como mediadores entre os vivos.

Comecemos pelo julgamento, ocorrido em 2007, de um pedido de indenização por


danos morais contra a Prefeitura da cidade de Ipatinga, movido pelos pais de um garoto
morto dois anos antes. Os pais alegam que no momento da saída do cortejo que levaria
o filho ao cemitério, foram surpreendidos por policiais militares e agentes da Prefeitura,
que cercaram o veículo que transportava o corpo do falecido, para autuar em flagrante
seu motorista, sob o argumento de que aquela funerária não poderia atuar no Município.
Segundo relato de testemunhas, os funcionários da prefeitura ameaçaram impedir a
realização do enterro, que só ocorreu com mais de quarenta minutos de atraso em
relação ao horário inicialmente previsto. De fato, a funerária escolhida pelos pais para
proceder aos preparativos do funeral e do sepultamento localizava-se numa cidade
vizinha e, portanto, não tinha licença da Prefeitura de Ipatinga para prestar serviços
nesta cidade. No entanto, a despeito dos motivos alegados pela administração
municipal, o relator deferiu o pedido de indenização por danos morais aos pais do
falecido, com base no artigo 209 do Código Penal (impedir ou perturbar enterro ou
cerimônia funerária). O relator entendeu que a prefeitura, ainda que tenha direito de
fiscalizar os serviços por ela regulados, agiu de maneira abusiva ao colocar os pais em
situação de constrangimento por motivos que lhes eram alheios (não lhes cabia saber se
a funerária estava ou não autorizada a atuar na cidade), estabelecendo uma relação
hierárquica entre os direitos dos pais e os da prefeitura:

“Quando em confronto o direito à realização digna de funeral e o


dever de fiscalizar a atuação de empresas funerárias, deverá a
Administração Pública, mensurando a relevância do direito de
sepultar um ente querido, evitar a interrupção ou a perturbação da
cerimônia, sob pena de ofender direito do cidadão.” (Minas Gerais.
Tribunal de Justiça, 2007)

Ainda segundo o relator, o dano moral se caracterizaria, neste caso, pelo

50
http://www.tjmg.jus.br/

79
“desrespeito e descaso do administrador público em relação ao
sofrimento dos autores, pois, em momento de singular dor, foram
surpreendidos com a perturbação dos trâmites funerários relativos a
seu filho, deixando-lhes angustiados e inseguros em relação à
possibilidade de sepultar dignamente o ente querido, e, ainda,
paralisando o cortejo para autuar o motorista da funerária, em pleno
transporte do corpo. (...) Em casos que tais, o julgador deve buscar
decidir a controvérsia sem se descuidar do ideal de justiça,
impedindo que o poder subjugue o cidadão comum, ou seja,
garantindo os direitos deste a viver com dignidade e liberdade, sem
permitir que Poder Público lesione seus direitos impunemente.”
(Minas Gerais. Tribunal de Justiça, 2007)

Note-se que em momento algum o relator faz qualquer referência aos direitos da
personalidade do morto. O ponto decisivo neste caso foi a articulação entre a infração
de um dever - prevista no artigo art. 209 do Código Penal Brasileiro - e a violação de
um direito - dos pais, vivos, que no entendimento do relator foram lesados em sua
dignidade. Ainda que o cadáver não apareça nos autos do processo como sujeito de
direitos, mas apenas como um objeto passivo (sujeitado à ação de terceiros) tal
articulação só se torna possível na medida em que a relação consanguínea (biológica)
entre os pais e o filho morto é entendida como uma relação genealógica (moral)
naturalizada. Como observa Bevilaqua, a respeito de um caso semelhante:

"O parente vê acolhido seu pedido de indenização ao ser


constituído e reconhecido em sua ‘interioridade’ moral, que se
define, na circunstância em questão, a partir da ‘materialidade’ do
parente morto, absorvida como parte de sua própria substância
moral — na expressão jurídica, de seu ‘patrimônio subjetivo’”.
(2010:11)

Neste caso, um “ideal de justiça” – a garantia dos direitos da personalidade que definem
os pais como pessoas – se concretiza a partir dos restos mortais do filho, que exercem o
papel de mediação que torna possível uma relação específica, na qual tanto os pais
quanto a funerária e a prefeitura são constituídos juridicamente como agentes capazes –

80
e, portanto, passiveis de responsabilização - de expressar sua autonomia no mundo. A
articulação usual entre corpo e condição moral constitutiva da “pessoa” é subvertida no
que diz respeito ao cadáver, mas tal subversão parece ser mitigada e legitimada por
tratar-se de um vínculo de parentesco.

Este parece ser um arranjo amplamente endossado pela jurisprudência quando se trata
do indenizar por danos morais familiares de pessoas mortas que se sentem lesados em
seu “patrimônio subjetivo” a partir de alguma ação que envolva o defunto. Mas nem
sempre se chega a este resultado pelos mesmos meios. Se no caso analisado
anteriormente a decisão do relator se apoiou numa dissociação entre a condição moral e
corpo do morto e na posterior rearticulação desse corpo com a condição moral de
terceiros (os pais), há situações em que o deferimento da indenização pleiteada pela
família supõe uma continuidade entre a condição moral do morto e de seus parentes. É o
caso do acórdão 0030059/2012, no qual os filhos de uma senhora falecida em 2007
pedem reparação financeira por danos morais a um banco que incluiu o nome da morta
nos cadastros restritivos de crédito (SPC e SERASA) por supostos débitos ocorridos
após seu falecimento. O relator concede a indenização por entender que a ação do banco
implica num “vilipêndio à honra e memória” da morta, e fundamenta sua decisão a
partir dos direitos da personalidade:

"Para a caracterização do dano moral, é indispensável a ocorrência


de ofensa a algum dos direitos da personalidade do indivíduo.
Esses direitos são aqueles inerentes à pessoa humana e
caracterizam-se por serem intransmissíveis, irrenunciáveis e não
sofrerem limitação voluntária, salvo restritas exceções legais (art.
11, CC/2002). A título de exemplificação, são direitos da
personalidade aqueles referentes à imagem, ao nome, à honra
objetiva ou subjetiva, à integridade física e psicológica.

A nosso aviso, a imagem e o bom nome da pessoa não se encerram


com o óbito, pelo que a inscrição indevida do nome de pessoa
falecida, em cadastros restritivos de crédito, configura ofensa a
direito da personalidade de terceiros, em virtude de laço de afeto ou
proximidade do grau de parentesco”. (Minas Gerais. Tribunal de
Justiça, 2012)

81
Mais uma vez a relação de parentesco parece justificar a associação entre a condição
moral de um familiar e o morto. Mas aqui não há qualquer referência ao cadáver
propriamente dito, e sim a direitos subjetivos - a “honra” e o “bom nome” – de que
gozaria a falecida. Nesta versão, independente da desintegração física, uma suposta
“integridade psicológica” se manteria após a morte, sendo automaticamente transferida
para os filhos. Se a decisão, no caso anterior, se baseou na moralização de uma relação
biológica, neste caso trata-se da naturalização de um vínculo moral ou afetivo. Em
ambas as situações, a interioridade dos familiares parece emergir juridicamente a partir
da associação com o morto.

Situações semelhantes são observadas quando se trata de ações que caracterizam crime
de violação de sepultura (art. 210 do Código Penal Brasileiro). Por exemplo, na
apelação cível nº 1.0699.07.071912-4/002, na comarca de Ubá, o relator responsável
condena a prefeitura a indenizar por danos morais os familiares de um cadáver que teve
a sepultura violada seis meses após a inumação pelos funcionários do cemitério
municipal para que fosse alocado na mesma cova um outro corpo. O cadáver em
questão fora retirado de sua urna funerária original e sepultado novamente no mesmo
local, mas desta vez sem caixão, para que, segundo relatos de funcionários do cemitério,
os dois corpos coubessem na mesma sepultura. Apesar de ressaltar que o cemitério
infringiu uma lei municipal que determina que "o prazo mínimo entre duas inumações
na mesma sepultura é de quatro anos" o dano moral aos familiares é justificado por se
tratar de violação de "reflexos de direitos da personalidade do morto51” e o valor da
indenização devida pela prefeitura é inclusive aumentado em relação à decisão em
primeira instância, dada às características do crime. Merece destaque a indignação do
relator em face ao ocorrido, o qual em determinado momento tenta se colocar sob a
perspectiva dos familiares, evidenciando o sentimento de devoção a cadáveres humanos,
anteriormente discutido:

"Houve violação da sepultura e - é de pasmar - a urna na qual se


encontrava o corpo (...) foi abandonada ao lado do jazigo. E mais, o
absurdo é tão grande que o corpo foi reintroduzido na gaveta do
jazigo fora da urna, tendo sido comprimido para que lá fosse
colocada outra urna de pessoa estranha. A situação é quase

51
Neste caso, o termo “reflexo” indica simultaneamente uma continuidade residual da subjetividade do
morto e a possibilidade de exercício de seus direitos subjetivos por um familiar.

82
inacreditável (...). Afinal, quem não se sentiria ofendido, se fosse
visitar o túmulo de seu irmão e, lá chegando, encontrasse o caixão
literalmente arrombado? Qual o sentimento de um cidadão que, ao
indagar sobre o ocorrido, junto aos funcionários do cemitério, é
surpreendido com a resposta de que o corpo de seu irmão foi
retirado da urna e, literalmente, comprimido dentro da sepultura,
para que lá coubesse urna de terceira e estranha pessoa?

Na verdade, a espécie envolve situação de dano moral gravíssimo,


a exigir reparação mais acentuada do que a quantia fixada na
sentença. Considerando que a indenização tem efeito pedagógico,
servindo de exemplo para que o Município de Ubá, daqui por
diante, se acautele na forma como administra seus cemitérios, e
dedique um mínimo de respeito aos mortos." (Minas Gerais.
Tribunal de Justiça, 2002)

A indignação do magistrado, assim como a qualificação da pena imposta à prefeitura


como “pedagógica” demonstra o caráter eminentemente geral e imaterial dos crimes
“contra o respeito aos mortos”. Ainda que se apresentem em contextos judiciais como
casos particulares, o bem que se busca tutelar é coletivo: “mortos”, e não apenas um
morto específico. Neste sentido, são crimes que dizem respeito à infração de um dever
(moral), mais do que à violação de direitos individuais. Se em casos nos quais os
direitos da personalidade são acionados para justificar a decisão dos julgadores pode
haver algum tipo de compensação material que favoreça aqueles ofendidos, há outros,
no entanto, onde a referência isolada aos crimes contra o respeito aos mortos acaba por
favorecer o criminoso. É por exemplo o que ocorre no julgamento da apelação criminal
de nº 1200442, publicada em julho deste ano na comarca de Belo Horizonte. Trata-se
originalmente de uma condenação pelo assassinato de uma senhora, cometido por sua
própria filha com a ajuda do companheiro. Segundo os autos do processo, a mulher foi
agredida e esganada pelo casal. Já desacordada, os autores atearam álcool e fogo no
corpo da vítima, quando ainda estava viva, o que levou finalmente à ocorrência do
óbito. A apelação por parte da defesa dos condenados se deu no sentido de uma redução
de pena por homicídio qualificado e ocultação de cadáver (art. 211), com agravantes
previstos no art. 61 do código penal que estipula circunstâncias que agravam a pena,
dentre as quais o crime ser cometido “contra ascendente, descendente, irmão ou

83
cônjuge”52. A decisão do relator neste caso é interessante. Embora tenha indeferido o
pedido de redução de pena com base nos agravantes para o crime de homicídio, retirou
da pena o agravante que se referia ao crime de ocultação de cadáver, por entender que

"a vítima do art. 211 do CP não é a pessoa que encarnava o cadáver


antes de se fulminar a vida, mas sim a coletividade que exige o
respeito aos mortos. Para a incidência da referida agravante (...) é
necessário que o crime seja praticado contra pessoa viva." (Minas
Gerais. Tribunal de Justiça, 2012)

Ainda que esta decisão tenha um efeito prático contrário à do caso relatado
anteriormente (no anterior, um aumento da indenização a ser paga pela prefeitura; neste,
uma redução da pena dos condenados) ambos operam segundo o mesmo princípio, a
saber, o de que o “respeito aos mortos” se refere à “coletividade que o exige” e não a
pessoas individuais. Nestes casos, a injúria a um corpo particular parece constituir uma
ofensa ao próprio “corpo social”.

Resta ainda o crime de vilipêndio a cadáver, previsto no artigo 211. De maneira


genérica o termo sinaliza, por parte de terceiro, um ato que possa ser reconhecido e
caracterizado como de desprezo ou afronta em relação aos restos mortais de alguém. O
ex-ministro do Supremo Tribunal federal, Nelson Hungria, define assim o delito:

“Vilipêndio é o ultraje, o ludíbrio aviltante, o desdém injurioso. É o


ato de aviltar, de ultrajar. Tanto pode consistir em atos, como em
palavras e escritos. Constituirão vilipêndio, entre outros fatos, os
seguintes: tirar as vestes do cadáver, escarrar sobre ele, cortar
algum membro com o fim de escárnio, atos de necrofilia (caso que
é muito de duvidar da integridade mental do agente), derramar
líquidos imundos sobre as cinzas, ou dispersá-la acintosamente.”
(1955:84)

Cabe notar que o enquadramento de uma ação neste tipo penal depende de uma
avaliação, por parte dos julgadores, a respeito da finalidade pretendida pelo agente sobre
o qual recai a suspeita, mais do que um julgamento sobre o ato propriamente dito. Por
52
Código Penal, art. 61, II, e.

84
exemplo, em caso de realização de necrópsia, é necessário que se retire as roupas do
cadáver e este ato não caracteriza vilipêndio. O mesmo ocorre quando da preparação do
corpo para os ritos fúnebres, feita por profissionais de funerárias. Assim como o crime
de ocultação de cadáver, o vilipêndio caracteriza-se juridicamente como uma ação
conscientemente orientada; ou seja, reconhece o criminoso como pessoa dotada de uma
dimensão subjetiva e capacidade de agir (materialmente) de forma intencional. A
caracterização da relação entre aquele que comete o ato e o cadáver como abjeta é que
constitui, a um só tempo, o criminoso como pessoa e o morto como objeto. Não por
acaso suspeita-se da integridade mental (e consequentemente da capacidade jurídica) do
agente em casos de necrofilia: como englobar numa concepção de pessoa que pressupõe
a existência de uma autonomia circunscrita à esfera moral, a opção por agir de forma
completamente oposta à moralidade?

Por exemplo, o acórdão 2825743/2002 trata do recurso da defesa de um assassino


confesso no sentido da absolvição do crime de vilipêndio de cadáver. Consta nos autos
que o acusado, com animus necandi - expressão latina que significa intenção de matar -
assassinou uma garota de apenas nove anos de idade através de estrangulamento, “a fim
de assegurar a execução de outro crime, tendo, logo após, vilipendiado o cadáver da
vítima e ocultando-o”. Ainda que autor dos crimes tenha confessado que praticou sexo
vaginal e anal com o cadáver da menina, o advogado de defesa argumenta que "não há
que se falar em vilipêndio, vez que o corpo foi encontrado dias após sua morte, já em
estado de putrefação, período este que as evidências mostradas poderiam ter sido
causadas por um animal qualquer”. A negação do recurso por parte do relator se baseia
em duas linhas argumentativas distintas: uma primeira, técnica, na qual cita o laudo
médico legal que comprova, através de evidências, a prática dos delitos citados; e ainda
uma outra linha, argumentativa, que tenta reconstruir de maneira teleológica a cadeia de
acontecimentos, afim de caracterizar o ato do homicídio como um meio necessário de
que fez uso o acusado para atingir seu objetivo de praticar necrofilia:

“A par de não ser possível saber qual era a real intenção do ora
acusado, há possibilidade de o homicídio ter sido praticado para
assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de
outro crime, qual seja, vilipendiar o cadáver da vítima por meio da
prática de atos sexuais, e esta seria a finalidade última do agente.”
(Minas Gerais. Tribunal de Justiça, 2002)

85
Num caso aparentemente semelhante (acórdão 0917430/2012) o relator julga o recurso
da defesa de um condenado pelos crimes de estupro, homicídio, vilipêndio e ocultação
do cadáver de uma jovem. Segundo consta nos autos, "o réu, mediante violência,
manteve conjunção carnal com a vítima, para tanto agredindo-a, estrangulando-a, até
que ficasse desacordada e com ela mantivesse conjunção carnal. Após a penetração
vaginal, a vítima teria recobrado a consciência quando então o réu, com animus
necandi, estrangulou-a e lhe desferiu murros, produzindo-lhe a morte”. Ainda segundo a
denúncia,

“o réu matou a vítima apenas porque ela o teria agredido na


tentativa de evitar o estupro. E, após, o cadáver teria sido deixado
no local pelo réu que, indo até sua residência, apoderou-se de um
canivete e voltou ao terreno baldio onde cortou as mãos da vítima,
pelo pulso, jogando-as no mato próximo a residência do réu, não
sem antes jogar o corpo em um barranco, com o intuito de ocultá-
lo". (Minas Gerais. Tribunal de Justiça, 2012)

Em sua defesa, o acusado alega que cortou as mão da vítima temendo ter restos de sua
pele nas unhas da jovem, o que poderia lhe incriminar. O relator aceita o pedido da
defesa para a anulação da pena por vilipêndio, entendendo que “o recorrente cortou as
mãos da vítima para evitar uma incriminação, temendo haver vestígios de sua pele nas
unhas dela. É de se decotar da pronúncia o delito de vilipêndio de cadáver, haja vista
que o seu ânimo naquele momento não era o de profanar, mas de ocultar outro crime”
(Ibdi: 2012)

Por mais distintos que sejam os casos aqui relatados, tanto no que diz respeito à sua
fundamentação jurídica quanto no que diz respeito às decisões tomadas pelos
magistrados, todos parecem operar segundo a os mesmos princípios ordenadores: em
primeiro lugar, um certo ideal de “pessoa”: a “pessoa natural”, tomada como um
indivíduo autônomo constituído a partir da sobreposição de duas “naturezas” humanas
ontologicamente separadas, mas interdependentes (uma condição moral e um corpo
biológico). Admite-se que em casos que envolvam cadáveres esta sobreposição possa
ser subvertida ou relativizada; de maneira a reforçar, em diversas escalas, um segundo
principio, que diz respeito a um ideal de “sociedade”: seja através da oposição entre as
categorias de “pessoa” e “coisa”, evidenciada na emergência de terceiros enquanto

86
pessoas a partir da materialidade dos cadáveres (neste caso, tanto familiares quanto
criminosos ocupam o polo “sujeito” da relação que toma o cadáver como objeto); seja
através da oposição das categorias “indivíduo” e “sociedade”53, evidenciada nos crimes
cuja vítima é a “coletividade” ofendida pela ação individual do criminoso; seja através
da manipulação de genealogias para sancionar determinadas relações de continuidade
entre vivos e mortos que seriam determinantes para a reprodução social, evidenciadas
na transmissão dos direitos da personalidade dos mortos para seus familiares. A este
respeito, Manuela Carneiro da Cunha observa que

“o poder das genealogias, parece-nos, reside na capacidade que é


atribuída à ‘origem’ para a identificação de um indivíduo. O que
pretenderia responder uma genealogia é ‘de onde venho?’, que,
segundo Freud, precederia e suscitaria o ‘quem sou?’”(1988:140)

A correlação entre genealogia e identidade é determinante em contextos judiciais que


envolvem cadáveres. Note-se que em todos os casos narrados até agora a inserção do
morto no mundo dos vivos, ou em outros termos, o reconhecimento da capacidade do
morto em “continuar a agir” em determinadas relações sociais pressupõe a existência da
identificação civil do cadáver. Nas práticas jurídicas, apenas um morto conhecido
(identificado e individualizado) pode ser tomado como pessoa - ou como mediador da
relação entre pessoas. É o que evidencia o acórdão nº 8164310/2008, que decide pela
indenização por dano moral a uma viúva cujo corpo do marido recém-falecido foi
equivocadamente classificado como “desconhecido” pelo IML. Consta nos autos que

“a submissão da viúva ao reconhecimento do corpo do seu jovem


esposo, bem como aos burocráticos e tumultuados procedimentos
(...) agravaram ainda mais a dor, própria da perda de um ente
familiar, pois, geraram outros constrangimentos psíquicos à
Requerente, que teve que vivenciar os sentimentos de ter o corpo
do falecido tido, equivocadamente, como desconhecido pelo
referido Instituto de Medicina Legal. (Minas Gerais. Tribunal de
Justiça, 2008)

53
Márcio Goldman já havia apontado que “o individualismo em geral corresponde muito mais a uma
‘noção de sociedade’ que a uma ‘noção de pessoa’, derivando antes de uma ‘etnosociologia’ que de
uma ‘etnopsicologia’ ou mesmo de uma ‘etnofilosofia.’” (1999:18)

87
Os sentimentos a que se refere a decisão do relator são decorrentes de uma ofensa aos
“valores íntimos e anímicos” da viúva. Neste caso, a dor pela perda do marido parece
ser agravada pelo risco de des-subjetivação do morto, ou seja, a transformação de sua
morte num evento impessoal, indeterminado; que transformaria alguém com quem se
importa e por quem se sofre em um ninguém. A estes corpos desconhecidos é
interditada a participação social no mundo das pessoas. Resta-lhes apenas um outro
nicho ontológico: aquele das coisas.

2.2 - O morto entre as coisas

Como demonstrado anteriormente, o Direito reconhece a possibilidade de participação


do cadáver em relações intersubjetivas, seja através dos direitos da personalidade, seja
através da tipificação de crimes contra o respeito aos mortos. Em ambos os casos,
pressupõe-se o reconhecimento de algum tipo de relação genealógica entre vivos e
mortos. No entanto, em situações nas quais não se pode determinar os vínculos
consanguíneos ou afetivos entre o cadáver e terceiros; ou ainda, quando estes vínculos,
mesmo sendo comprovados se mostram inoperantes, abre-se a possibilidade da
apropriação jurídica do cadáver como objeto de direito, ou seja, como coisa. Edgar
Morin já havia apontado para a impessoalidade acerca da morte de desconhecidos.
Segundo o autor,

“a dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do


morto tiver sido presente e reconhecida: quanto mais o morto for
chegado, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é, ‘único’,
mais a dor é violenta; não há nenhuma ou há poucas perturbações
por ocasião da morte do ser anônimo.” (1988:31)

Não há, como acontece na constituição do cadáver como sujeito de direitos, leis
específicas que regulem sua existência enquanto objeto. Esta existência emerge apenas
indiretamente, por implicação das exceções previstas em lei para situações especiais,
notadamente aquelas relativas à disposição do corpo ou de partes dele, referindo-se,
portanto, aos usos e destinações autorizadas de cadáveres. É, por exemplo, o caso do
artigo 14 do Código Civil, que torna

88
“válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita
do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.”
(BRASIL. Código Civil, 2002, Art..14)

Conforme discutido no início deste capítulo, este artigo reafirma simultaneamente uma
concepção de pessoa autônoma e a interdição de uma inclusão do corpo – ainda que
morto – num regime jurídico patrimonial, posto que a doação deve ser gratuita e
motivada por finalidades científicas (pesquisa) ou altruística (transplantes). Nota-se,
portanto, que o artigo 14 diz respeito aos direitos da personalidade da pessoa, e não a
um direito de propriedade sobre o corpo.

Mas há, em nossa legislação, ao menos uma exceção a esta regra: trata-se da Lei Federal
8.501/1992, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado junto às
autoridades públicas, para fins de ensino e pesquisa. A lei determina que:

“O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo


de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para
fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.” (BRASIL. Lei
Federal 8.501, Art..2º)

Há, neste caso, uma inversão radical em relação à lógica que fundamenta o artigo 14:
aqui se constitui o cadáver, ou mais precisamente, um tipo especifico de cadáver, como
coisa. Se no artigo 14 do Código Civil Brasileiro admite-se o exercício da autonomia da
pessoa para além da própria morte, a lei 8.501 prescinde completamente de qualquer
expressão de vontade por parte do morto em relação ao destino que se dará a seu corpo.
Diferentemente do que acontece com cadáveres identificados, cuja destinação usual é o
enterro ou a cremação, o “não reclamado” pode ser doado, como se54 fosse um bem de
propriedade do Estado, que se lhe abre mão com a finalidade de subsidiar ensino ou
pesquisa.

No capítulo anterior, argumentei que a termo “desconhecido”, quando utilizado em


relação a restos mortais funciona simultaneamente como adjetivo e substantivo. O
mesmo pode ser aplicado em relação aos “não reclamados”. Se o Art. 2º supracitado
parece apenas caracterizar uma ação de terceiros (ou a falta dela) em relação ao cadáver

54
O Capítulo III do Código Civil, que trata dos “Bens Públicos”, não inclui nesta categoria nenhum tipo de
cadáver.

89
- “não reclamado junto às autoridades públicas” – o artigo seguinte define como um tipo
os corpos passíveis de doação:

“Será destinado para estudo, na forma do artigo anterior, o cadáver:

I -- sem qualquer documentação;

II -- identificado, sobre o qual inexistem informações relativas a


endereços de parentes ou responsáveis legais.” (BRASIL. Lei
Federal 8.501, Art..3º)

Poder-se-ia acrescentar a esta lista os casos de cadáveres identificados cujos familiares


optam por não tomar providências necessárias a respeito da liberação do corpo e do
sepultamento. De qualquer forma, o que parece justificar a definição é a indeterminação
dos laços sociais que a pessoa em questão mantinha quando viva; e a partir dos quais
poder-se-ia considerá-la como sujeito. Note-se que a identificação positiva do cadáver –
que implica no reconhecimento de algum vínculo consanguíneo – não basta para
caracterizar uma relação genealógica. Se os direitos da personalidade são, de acordo
com os princípios jurídicos, constitutivos da pessoa, a ausência de identificação – e,
portanto, a impossibilidade de singularização – parece constituir, por exclusão, esse tipo
de cadáver como coisa.

Mas dizer que o cadáver não reclamado é “coisa” não implica que sua disposição se
enquadre no mesmo tipo de relações usualmente estabelecidas com os bens
patrimoniais, móveis ou imóveis. É preciso atentar para as semelhanças com um dos
fundamentos do Art. 14, que diz respeito à materialidade dos corpos: assim como
acontece nos casos de disposição voluntária, o Estado pode dispor dos ou doar os
corpos, mas nunca vendê-los. A finalidade da doação (ensino e pesquisa) deve atender a
uma suposto interesse da coletividade, e não à obtenção de quaisquer vantagens
materiais ou imateriais. Neste sentido, ainda que o não reclamado seja legitimado como
coisa, não pode ser considerado mercadoria, já que a lei 8.501 interdita expressamente
sua introdução no fluxo das trocas econômicas. Se a mercadoria, usualmente avaliada
em função de seu valor de troca, pode ser considerada em termos legais a “coisa” por
excelência - na medida em que supõe a existência de uma “pessoa” com plenos direitos
de propriedade e capacidade de contrato; a proibição do comercio de cadáveres parece

90
indicar que sua disposição pelo Direito se baseia num gradiente de reificação, que não
chega a atingir o pólo “mercadoria”.

Assim, o cadáver pode ser constituído como coisa, mas de um tipo jurídico especial: res
extra commercium, ou coisa fora do comércio, cujo valor patrimonial é avaliado em
termos de um valor de uso e não de troca. Por exemplo, na página institucional55 de um
projeto para recrutar doadores voluntários de corpos, desenvolvido pela Universidade
Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) lê-se que:

“Ser um doador para a Disciplina de Anatomia do Departamento de


Ciências Básicas da Saúde da UFCSPA vai contribuir para o
aprendizado de anatomia de todos os estudantes dos cursos da área
da saúde. A doação pode não trazer benefícios imediatos ao doador,
mas o benefício maior será para as futuras gerações, que contarão
com profissionais mais qualificados. A decisão de doar deve levar
em consideração o benefício futuro desta doação.”

De maneira análoga, é a partir da suposta utilidade56 do cadáver como material


necessário ao ensino ou pesquisa que se autoriza sua disposição. Por implicação, ao
contrário do que ocorre com as mercadorias passíveis de comercialização, a circulação
do cadáver não é livre, sendo circunscrita a contextos bastante específicos. Afinal, o ato
de doação por parte do Estado implica no recebimento e apropriação do corpo por parte
de um terceiro. No entanto, não é qualquer pessoa (neste caso, sempre jurídica) que
pode exercer direitos de propriedade sobre restos mortais, mas somente os
estabelecimentos educacionais nos quais exista uma correlação entre a atividade
desenvolvida e a necessidade de conhecimentos minuciosos acerca do corpo humano.
Como observa SILVA,

“No caso do cadáver não identificado ou identificado e não


reclamado, existe verdadeira inversão com relação à legitimidade
para a ocupação. De fato, a regra geral é que os sujeitos de direito
sejam capazes e legítimos para adquirir originariamente a
propriedade através do ato de ocupação. Contudo, quando se trata

55
Disponível para consulta em: http://www.ufcspa.edu.br/index.php/institucional/campanhas-
institucionais/236
56
Para uma revisão das controvérsias sobre ensino e pesquisa com utilização de cadáveres humanos ver
ABRAHÃO (2012)

91
de cadáver na presente situação, é estabelecida uma falta de
legitimidade genérica (...). Nestes casos, o direito de propriedade se
revela como submetido a um particular vínculo de destinação (...),
que tem suas faculdades ou poderes condicionados pelo fim a que
se propõe” (2004:100)

Tanto a gradação da reificação do cadáver, que o constitui como coisa fora do comércio;
quanto o condicionamento do direito de propriedade sobre ele exercido a determinados
usos parecem decorrer do reconhecimento da possibilidade de uma eventual
identificação do defunto. Conforme discutido no capítulo anterior, o IML produz e
mantém uma série de documentos e evidências materiais relativos aos mortos que
podem resultar num reconhecimento ou identificação, mesmo após a desintegração ou a
disposição do corpo. A própria lei que regula a doação de cadáveres prevê esta
possibilidade que, se concretizada, reverteria a apropriação de não reclamados como
coisa, rés-subjetivando o corpo e reconstituindo o morto como um sujeito de direitos. O
artigo 4º da lei 8.501 determina que:

“Para fins de reconhecimento, a autoridade ou instituição


responsável manterá, sobre o falecido:

a) os dados relativos às características gerais;

b) a identificação;

c) as fotos do corpo;

d) a ficha datiloscópica;

e) o resultado da necropsia, se efetuada; e

f) outros dados e documentos julgados pertinentes.” (BRASIL.


Lei Federal 8.501, Art..4º)

Mais uma vez nestes casos parece operar, ainda que como potencialidade, um princípio
de continuidade genealógica entre o morto e os vivos. Mas, até quando, no tempo,
poderia ser estendido este princípio? Em outros termos, qual o intervalo de tempo
necessário até que qualquer traço de pessoalidade que se possa atribuir a um cadáver
desapareça completamente, concretizando, portanto, sua apropriação como coisa de

92
maneira irreversível? Como acontece em relação a outras controvérsias envolvendo
cadáveres, o problema admite várias soluções possíveis. Poder-se-ia responder a questão
de forma descritiva, afirmando que os restos mortais perdem por completo seus traços
de pessoalidade quando já não há sobreviventes que possam requerer o reconhecimento
por parte do Estado de qualquer relação biológica e/ou afetiva com o morto. Como é
impossível estabelecer a priori em que momento isso acontece, pode-se inferir apenas, a
partir dos direitos de personalidade, uma tentativa de englobamento das situações
possíveis, através do estabelecimento daqueles que podem reivindicar, em nome dos
mortos, a observância de certos direitos. O Art. 12 estabelece, em seu Parágrafo Único,
que:

“Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida


prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente
em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” (BRASIL. Código
Civil, 2002, Art..12)

No caso de múmias ou despojos arqueológicos muito antigos, a distância temporal é tão


grande que o problema da pessoalidade do cadáver simplesmente não se coloca - ao
menos de uma perspectiva jurídica - podendo inclusive ser o corpo ou o que resta dele
inscrito num regime de comercialidade plena típico das mercadorias. Nestes casos, os
despojos passam a figurar entre os bens móveis de determinada instituição, podendo ser
doados ou até vendidos a terceiros (SILVA, 2004).

93
Cap. 3 – Desaparições

“Oh, pedaço de mim


Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.”

(Chico Buarque)

“A incerteza- é mais Cruel que a Morte –


A Morte – por mais ampla –
É a Morte só, não há como aumentá-la –
Incerteza – não cansa –

Mas morre - e volta à vida novamente –


E morre – e outra vez nasce –
Um Aniquilamento – arraigado
À Imortalidade”

(Emily Dickinson)

O rapaz da recepção pede que eu aguarde numa saleta lateral até as 14:00h,
quando a Divisão de Desaparecidos retomará os atendimentos. É o horário em
que eu havia marcado com Elenir, a analista de comunicação responsável pelo
Núcleo de Comunicação Social da delegacia, para minha primeira visita.
Enquanto espero na sala com outras pessoas, algumas sozinhas, outras em
grupo - que tentavam conversar entre si, apesar do volume altíssimo da TV que
transmitia o jornal local - me chama a atenção um senhor com cerca de
cinquenta anos, visivelmente impaciente. Sento-me a seu lado e inicio uma
conversa sobre a reportagem no jornal, mas ele não demonstra interesse
algum. Alguns minutos depois, me pergunta se eu sabia quando a delegacia de
desaparecidos voltaria a atender. Repito sem muita convicção o que me
informaram quando cheguei, e ele me conta, emocionado, que veio de uma

94
cidade a algumas horas de viagem da capital, para registrar o desaparecimento
do filho de quinze anos. Pergunto se era a primeira vez que o garoto
desaparecia e o pai tenta, como organizasse uma narrativa – para mim, para si
mesmo e provavelmente para a polícia - falar sobre o filho, as pessoas com
quem o filho vinha se relacionando nos últimos tempos, além de suas suspeitas
sobre um eventual paradeiro do rapaz. Somos autorizados a subir até o
segundo andar. Uma senhora muito simpática passa por nós às pressas e me
pergunta se sou o “antropólogo”. Respondo que sim, Elenir se apresenta e me
pede para aguardar um pouco - parece muito ocupada. Respondo que sim
novamente, ela entra na sala da delegada, e o senhor que subira comigo é
encaminhado por outra funcionária a uma sala onde registrará o
desaparecimento do filho. Fico surpreso com as instalações: Um corredor com
cinco salas de cada lado. Pelas informações que havia levantado sobre o
trabalho da delegacia, o grande número de desaparecimentos e o grande
percentual de casos solucionados, imaginava uma infra-estrutura maior. Elenir
entra e sai de algumas salas, fala com a delegada, com investigadores, se
desculpa novamente por ainda não poder me atender, orienta pessoas que
chegam para registrar novos desaparecimentos. Enquanto aguardo no
corredor, escuto uma senhora, a algumas cadeiras de distância, falar com dois
policiais. Não era sua primeira vez ali, vinha acrescentar ao processo do filho,
desaparecido há cerca de sete meses, novas informações que talvez ajudassem
a solucionar o caso. Trata-se de um telefonema anônimo que recebera na noite
anterior, uma voz masculina que lhe disse onde encontraria os ossos do rapaz:
algum lugar numa região de mata num bairro da periferia de Belo Horizonte. O
autor do telefonema havia lhe dado referências relativamente precisas, uma
construção em ruínas, próxima a um curso d’água. Lá se encerraria sua busca. A
mulher pede aos investigadores que organizem uma diligência ao local. Explica,
numa espécie de torpor, que já não nutre esperanças de reencontrar o filho
com vida, já que este era usuário de crack, tinha dívidas com traficantes do
bairro onde moravam e vinha sendo ameaçado de morte antes de desaparecer.
Mas, ela diz, “eu preciso ter certeza, preciso ter uma resposta, é impossível
continuar vivendo nesse desespero, vivendo sem saber!”. Ela acrescenta que

95
caso haja mesmo uma ossada no local, a identificação não seria difícil, pelas
radiografias odontológicas do filho entregues por ela ao IML alguns meses
antes. Neste momento, Elenir consegue um tempo para me atender. Era o
início da minha pesquisa de campo na Divisão de Referência da Pessoa
Desaparecida.

O desparecimento de pessoas é um fenômeno mundial, que impõe desafios diversos


às autoridades, familiares e amigos. Estima-se que mais de 200 mil pessoas
desapareçam por ano no Brasil – cerca de 40 mil são crianças e adolescentes. Deste
total, de 15 a 20% não retornam para seus lares57. A constituição Brasileira considera
desaparecida uma pessoa “cujo paradeiro se desconhece e que não esteja na condição
de sujeito passivo de infração penal”58, ou seja, que não esteja foragida da Justiça. O
desdobramento lógico da definição é que desaparecer não constitui, ao menos em
tese, um crime: O “direito fundamental de ir e vir” pressupõe o direito de ir, apenas.
Na prática, não é tão simples: boa parte dos desaparecimentos pode estar relacionada
a (seja motivada por ou conseqüência de) atos criminosos dos tipos os mais diversos:
seqüestro, tráfico de pessoas, violência doméstica, abuso sexual, homicídio, etc. A
gênese da legislação brasileira pertinente ao fenômeno do desaparecimento de
pessoas se deu justamente num contexto de ampliação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA)59 e das leis sobre Proteção à Pessoa. Portanto, ainda que não
constitua crime, o desaparecimento é considerado pelo Estado Brasileiro como uma
condição de risco em potencial, particularmente para aqueles considerados frágeis
e/ou incapazes (total ou relativamente) perante a lei: idosos, crianças, adolescentes e
pessoas com deficiência mental. No entanto, a definição legal, por mais ampla que
seja, tem o inconveniente de não vincular explicitamente os desaparecimentos à
possibilidade de crimes contra a pessoa. Mais do que apenas uma questão de

57
Fonte: Divisão de Referência da Pessoa Desaparecida – Polícia Civil de Minas Gerais
58
BRASIL, Resolução nº 7.010 de 1º de novembro de 2007, artigo 2º.
59
Lei Federal nº 11.259, de 30 de dezembro de 2005, que acrescenta dispositivo à lei nº8.069 de 13 de
julho de 1990 –ECA: Determina que a busca ao desaparecimento de criança e adolescente deverá
ocorrer imediatamente após a notícia do fato; Lei Estadual nº15.432, de 03 de janeiro de 2005: Institui o
Sistema de Comunicação e Cadastro de Pessoas Desaparecidas (www.desaparecidos.mg.gov.br);
Resolução nº 7.010 de 1º de novembro de 2007: Dispõe sobre a Divisão de Referência da Pessoa
Desaparecida (DRPD)e cria a Delegacia Especializada em Localização da criança e do Adolescente
Desaparecidos (DELCAD), posteriormente integrada à DRPD.

96
formalidade, essa dissociação tem seus efeitos nas políticas públicas relativas à
segurança, bem como nas tentativas de localização.60

3.1 - O que é um desaparecido

O título desta seção pode, à primeira vista, parecer estranho num trabalho
antropológico. Por que não “quem são os desaparecidos”? Esta é, obviamente, uma
questão pertinente, e tentarei respondê-la, de alguma maneira. No entanto, é preciso
destacar que “desaparecidos” é, antes de tudo, uma abstração, feita a posteriori para
tentar entender e lidar com o fenômeno do desaparecimento de pessoas. A priori,
pessoas desaparecidas não formam grupos de interesse, tais como sindicatos, partidos,
ou organizações não governamentais. Ao longo desta pesquisa, as dezenas de pessoas
localizadas com quem tive contato não se referem a si mesmas em momento algum
como “desaparecidas” ou “ex-desaparecidas”. O que elas dizem é “eu saí de casa”, “eu
fugi”, “eu fui morar com fulano”, “eu estava com cicrano”; e “por causa disso ou
daquilo”... todas têm suas justificativas para o afastamento - questão que discutirei
adiante. O ponto a ser destacado é que o epíteto “desaparecido” é sempre algo atribuído
por outrem, uma forma de qualificar, e também de tornar objetiva uma nova condição
muito particular: a de continuar a ser sem estar, a presença de uma ausência, com a qual
aqueles que ficam tem de lidar. Neste sentido, “desaparecidos” é uma “categoria nativa”
para algumas pessoas. E é essa categoria nativa que tomarei como categoria analítica ao
longo deste capítulo. Isso porque, se desaparecer (estar desaparecido) é condição
necessária para ser um “desaparecido”, não é, no entanto, condição suficiente. É preciso
ainda - ponto decisivo - ser procurado, e sob condições bastante específicas. A
proposição, embora pareça tautológica, é mais ontológica: o conjunto de práticas nas
quais familiares e amigos do ausente se envolvem para localizá-lo tem por efeito
modificar sua existência - independente de seu consentimento - tornando-o um
“desaparecido”. Dentre esse conjunto de ações, destaca-se o registro do
desaparecimento numa delegacia de polícia.

60
Por exemplo, a quebra automática de sigilo telefônico, prevista pelo Código Penal para certos delitos,
não se aplica a pessoas desaparecidas. Apenas em situações específicas, como por exemplo, casos nos
quais os indícios levantados pelas investigações policiais apontem para crimes de sequestro ou tráfico
de pessoas, a quebra do sigilo telefônico pode ser autorizada por um magistrado,.

97
No início desta pesquisa, consegui, através de indicações, contato com algumas famílias
que desconhecem o paradeiro de um ou alguns de seus membros. Nem todas
comunicaram às autoridades o desaparecimento. É o caso de Henriqueta, uma senhora
de 85 anos, que nunca registrou a ausência do filho:

“Francamente, eu não sei se estou errada: tem mãe que paga um


investigador, gasta o maior dinheiro para encontrar os filhos... eu
não! Às vezes vão à televisão e pedem para procurar os filhos... eu
não. Não vou mandar procurar porque o João sabe onde eu moro, é
aqui onde ele foi criado, com a maior dificuldade.”

Por maiores que sejam a mágoa e a angústia de Henriqueta, e por mais que queira rever
o filho, na prática, João não está sendo procurado. Não há cartazes com seu rosto e
nome afixados em locais públicos; não há buscas em hospitais, abrigos ou IML; não há
uma investigação, seja policial ou particular, em curso. Fora do restrito círculo de
familiares e amigos ninguém sabe que João está ausente. Oficialmente, João não é um
“desaparecido”, e isso pode fazer toda a indiferença: se por desventura vir a ser um
corpo desconhecido no Instituto Médico Legal de outro Estado brasileiro, as chances de
ser identificado são mínimas. Para fins metodológicos, portanto, acrescentarei à
definição legal um novo atributo: considerarei como desaparecidas aquelas pessoas não
foragidas cujo paradeiro é desconhecido pela família e a ausência é conhecida pelas
autoridades.

A opção por uma pesquisa etnográfica numa delegacia especializada na busca de


desaparecidos não se deu, portanto, por acaso. Se, como proponho, o desaparecido é
alguém que está sendo procurado, se faz necessário acompanhar em que termos se dá
essa busca, bem como os efeitos dela decorrentes. Ainda que não se limite às
investigações conduzidas pela polícia61, não seria exagero dizer que a atuação do
Estado, através de várias instituições, passa a desempenhar um papel central na vida dos
familiares, tanto no que diz respeito às investigações propriamente ditas, quanto à

61
Há no Brasil - assim como em vários outros países - organizações que se dedicam à busca e divulgação
de informações sobre pessoas desaparecidas, como por exemplo a Rede Nacional de Identificação e
Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), que reúne órgãos governamentais e
organizações não governamentais que lidam com desaparecimentos. Essas iniciativas não acontecem à
revelia, mas em cooperação com a investigação policial.

98
orientação e apoio psicológico, mesmo depois de uma eventual localização do ausente62.
Além disso, a intervenção estatal produz também seus efeitos na vida dos próprios
desaparecidos, ao modificar sua existência jurídica e legitimar novas formas de
representação.

Em Minas Gerais, a competência para apuração do desaparecimento de pessoas é da


Polícia Civil mineira através da Divisão de Referência da Pessoa Desaparecida (DRPD),
unidade policial subordinada à Divisão de Proteção à Pessoa, pertencente ao
Departamento de Investigações de Homicídios e de Proteção à Pessoa, localizada em
Belo Horizonte. A DRPD registra, desde sua criação, em 2005, quase 12.000
ocorrências de desaparecimentos em todo Estado de Minas Gerais, com cerca de 78%
de casos solucionados63. Os casos ocorridos na capital são investigados diretamente pela
equipe da DRPD, que também presta apoio logístico às delegacias de outras localidades
no Estado. Além disso, a Divisão conta também com um serviço telefônico gratuito, que
funciona 24h/dia, através do qual é possível registrar novos desaparecimentos, bem
como fornecer novas informações que possam auxiliar nas investigações em andamento.
Embora o registro do desaparecimento possa ser feito por telefone ou em qualquer
delegacia, a Divisão de Referência de Pessoas Desaparecidas é uma parada obrigatória
no caminho dos familiares que buscam seus entes, já que é na DRPD que os cartazes de
busca com a foto do ausente e telefone para comunicação de eventuais informações são
impressos, mediante autorização por escrito de um familiar.

A delegada responsável pela Divisão de Referência de Pessoas Desaparecidas desde sua


criação é a Dra. Cristina Coelli Mason, que coordena diretamente o trabalho de
profissionais de diversas áreas, como escrivães, atendentes, inspetores, investigadores,
psicólogos e assistentes sociais. Além da infra-estrutura comum às demais delegacias,
como cartório e inspetoria, a DRPD conta com um Núcleo de Comunicação Social
(NUCOM), cuja responsável é Elenir, meu primeiro contato na Divisão e uma de

62
Segundo a a Constituição Federal, artigo 226, parágrafos 3º e 4º: “A família, base da sociedade, tem
especial proteção do Estado. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.” (BRASIL. Constituição Federal, 1988; grifo meu)
63
As estatísticas incluem pessoas localizadas com ou sem vida, o que a primeira vista pode parecer
estranho. Esta opção se justifica, a meu ver, menos pelo fato de os localizados mortos constituírem uma
minoria (menos de 10%) do que a morte ser, conforme as circunstâncias, uma “solução”. Para dados
mais detalhados ver anexo 4

99
minhas parceiras mais atuantes ao longo desta pesquisa. Segundo Elenir, O NUCOM foi
criado na DRPD em decorrência da necessidade de se adotar uma postura diferenciada
no relacionamento com a imprensa, com os órgãos públicos e com a sociedade de uma
maneira geral,

“uma vez que estamos lidando com o fenômeno do


desaparecimento de pessoas, cada qual com sua motivação, o que
nos leva a crer na importância de resguardá-los e respeitá-los nos
seus direitos como pessoa humana, na sua dignidade”.

O processo de busca e localização da pessoa desaparecida e a divulgação de seus dados


e imagens demanda procedimentos próprios. Mais do que a divulgação com vista à
exposição do fato ao público, ao aumento de audiência dos veículos de comunicação ou
ao fortalecimento da imagem institucional da delegacia, o NUCOM da DRPD busca a
prevenção ao desaparecimento, desenvolvendo ações educativas e o respeito às pessoas
envolvidas. Além disto, estrutura e coordena uma rede de parcerias com entidades
públicas e privadas; ONGs; escolas das redes Estadual e Municipal de Ensino; grandes
empresas nos ramos de telecomunicação e varejista; entidades patronais;
concessionárias de água e eletricidade; aeroportos, rodoviárias e consulados; além das
policias Federal, Civil, Militar, Bombeiros e a Guarda Municipal de Belo Horizonte.
Além do Núcleo de Comunicação, a Divisão conta com um Núcleo de Psicologia e
Serviço Social (NUPSS), composto por assistentes sociais e psicólogos. O NUPSS é um
espaço de acolhida e acompanhamento psicossocial às famílias de pessoas
desaparecidas, proporcionando uma escuta no momento em que é feito o registro do seu
desaparecimento, enquanto esse perdurar, e também, após a localização, já que o retorno
do ausente ao convívio familiar nem sempre se dá de maneira automática ou sem
conflitos. É preciso, nos casos de afastamento voluntário, diagnosticar as motivações
para o desaparecimento, e, através de acompanhamento psicológico mediar uma
reaproximação. No NUPSS são realizados, além dos atendimentos/acompanhamentos
psicológicos, contatos com a rede de proteção e promoção à criança e adolescente, com
hospitais, abrigos, albergues, abordagem de rua, Instituto Médico Legal, visitas
domiciliares, hospitalares e institucionais, além de encaminhamentos e
acompanhamento a diversos serviços de atendimento, seja para algum benefício
assistencial, cursos profissionalizantes, ao mercado de trabalho, para desintoxicação ou
a órgãos de proteção ou de cumprimento de medidas sócio-educativas.

100
A partir desses acompanhamentos, o Núcleo vem sistematizando informações e
desenvolvendo estatísticas sobre o fenômeno do desaparecimento de pessoas no Estado
de Minas Gerais. Ainda que cada caso seja único, é possível, através de métodos
estatísticos, traçar um “perfil” dos desaparecidos. Variáveis como faixa etária, sexo,
região em que o desaparecimento ocorreu, bem como as motivações auto-declaradas dos
que são localizados tornam-se ferramentas úteis na tentativa de apreender o fenômeno
do desaparecimento em sua complexidade, além de fornecer subsídios para o
desenvolvimento de ações preventivas, tais como palestras em escolas ou campanhas
midiáticas.

Segundo levantamentos do NUPSS, a grande maioria (de 75 a 80% dos casos) dos
desaparecimentos ocorre voluntariamente. O termo “voluntário” é ambíguo, na medida
em que não torna explicitas as motivações para o afastamento. Na prática, excetuando
os casos em que o ausente foi expulso de casa ou seqüestrado, quaisquer
desaparecimentos podem ser considerados “voluntários”, mesmo aqueles envolvendo
pessoas com deficiência mental ou que se encontrem em situações de risco, como
violência doméstica ou abuso sexual. A categoria se mantém igualmente ambígua
quando se trata da análise dos retornos. Dizer que um desaparecido retornou
voluntariamente ao convívio familiar sugere uma decisão tomada sem a intervenção
e/ou mediação dos profissionais da DRPD, o que é relativamente raro. Desde o contato
telefônico dos investigadores diretamente com o desaparecido ou com pessoas com
quem ainda mantém relações; até mesmo a veiculação de cartazes com seu nome e
imagem, podem influenciar de maneira decisiva na sua volta ao lar. Embora o NUPSS
tenha priorizado desde sua criação o acompanhamento de crianças e adolescentes (com
suas respectivas famílias), desde o ano de 2010 passou a atender também pessoas com
idade acima de 18 anos.

Em Minas Gerais, a maior incidência do fenômeno recai sobre o indivíduo adulto, do


sexo masculino, com motivação voluntária64. Os conflitos intra-familiares estão
presente na grande maioria dos desaparecimentos, particularmente entre crianças e
adolescentes. Entre os últimos, a busca de “aventura e/ou liberdade” aparece como uma
das maiores motivações. Tem sido observado, no entanto, o aumento do número de

64
Fonte: NUPSS/DRPD/DHPP/PCMG

101
adolescentes localizados que justificam seu afastamento pelo envolvimento com
práticas criminosas, particularmente o tráfico de entorpecentes.

Chego para meu terceiro dia de campo. Dois policiais militares aguardam, no
corredor, ao lado de um jovem. Tratava-se do filho do senhor com quem eu
havia conversado na recepção, antes de minha primeira visita à delegacia. Os
PMs contam que abordaram Pedro enquanto realizavam uma ronda nas
proximidades da Pedreira Prado Lopes, uma das maiores favelas de Belo
Horizonte, e que, embora não portasse documentos, seu nome constava no
Cadastro de Pessoas Desaparecidas. A equipe da delegacia já entrara em
contato com o pai, que estava a caminho. No início Pedro não fala muito,
apenas diz que estava sendo ameaçado no bairro onde morava com os pais,
numa cidade a poucas horas de viagem da capital. Carlos, o pai do garoto entra
na delegacia emocionado por rever o filho com vida e em segurança. Depois de
um longo abraço, o senhor se volta para agradecer aos policiais – e a mim
também, como fizesse parte da equipe. No entanto, a localização do filho não
colocará fim à angústia da família. A justificativa de Pedro para seu
desaparecimento é confusa: diz que, depois de ter sido hospitalizado por abuso
de anabolizantes, denunciou à polícia o traficante de quem comprara a
substância, o que lhe rendeu inimizades e ameaças de morte em sua cidade.
Segundo o rapaz, o mesmo grupo deu-lhe a opção de trabalhar para o tráfico,
entregando armas e drogas ilícitas em cidades da região metropolitana da
capital, já que, por ser menor de idade (e perante a lei, relativamente incapaz)
não ficaria detido por muito tempo em caso de prisão. Segundo seu relato,
aceitou a proposta a contra gosto, e se mudou para a Pedreira Prado Lopes
para morar e trabalhar junto com pessoas ligadas ao tráfico. Pedro informa aos
policiais os nomes dos traficantes com quem trabalha, onde moram, os
horários de entrega, etc. Não parece ter problemas em ser um ‘x9’ (gíria que
significa delator). Os policiais checam as informações fornecidas pelo rapaz.
Parecem verídicas. Dada a situação de risco em que se encontra, Pedro é
encaminhado com a família para o Programa de Proteção a Testemunhas. Sai

102
abraçado com o pai, que aperta minha mão antes de ir embora. Senti-me grato
naquele momento, como se tivéssemos estabelecido alguma cumplicidade. Era
a primeira localização que eu presenciava desde o início do trabalho de campo -
justamente a do filho do senhor Carlos. Entráramos juntos pela primeira vez na
delegacia de desaparecidos e para mim era como se um ciclo se encerrasse. Por
mais aliviado que estivesse, Carlos sabia que os problemas com o filho não
acabariam ali. Para protegê-lo, teria que recomeçar a vida com a família em
outra cidade, o que não é simples. Desejei-lhes boa sorte, certo de que não
voltaria a vê-los...

Dez dias depois, ao chegar à delegacia, encontro Carlos, desta vez junto à
esposa, aguardando atendimento. Pergunto o que aconteceu e ele me conta
que o filho fugira novamente, do hotel onde estavam temporariamente
alocados pelo Programa de Proteção a Testemunhas. Levara consigo as
economias da família, R$1200,00. Carlos não parece tão angustiado como da
primeira vez. Explica, com um misto de revolta e desesperança, que o filho
sempre teve todo tipo de apoio, mas que, por mais que tentassem conversar
com Pedro, seu comportamento desde o retorno à família era evasivo e
contraditório. Descobrira na semana anterior que Pedro não frequentava as
aulas havia meses, embora saísse de casa diariamente no início da manhã,
como fosse para a escola. Num descuido da mãe salgadeira que preparava
encomendas, o rapaz roubou-lhe a bolsa com documentos e dinheiro e
escondeu a chave do carro, para que os pais não pudessem sair em seu
encalço.

“eu não sei mais o que eu faço, se fosse maior de idade a gente desistia, mas
como é menor, como ele só tem 15 anos... a gente tem que vir aqui de novo e
comunicar, né... até porque, se não a gente é responsabilizado se acontece
alguma coisa... eu tenho certeza que ele voltou lá para aqueles amigos dele,
para vender aquelas coisas... mas o que a gente pode fazer, não pode amarrar
dentro de casa, né... ele deve ter os motivos dele, mas a gente que é pai, a
gente não entende...”

103
Pedro certamente tem suas motivações, como todos os que se afastam
“voluntariamente”. Adoto o termo “motivação” - também utilizado pelos profissionais
do NUPSS – ao invés de “causa”, para falar dos desaparecimentos voluntários porque,
como as percebo, as justificativas oferecidas por aqueles que foram encontrados com
vida não oferecem exatamente uma “explicação” para o fenômeno. Dizem respeito a
pragmatismos; e neste sentido não há motivos melhores ou piores, mais justos ou
injustos, graves ou fúteis. Há apenas motivações que se bastam, afetos que motivam-a-
ação de sair e se afastar, temporária ou definitivamente. Ser abusada pelo pai pode ser
um motivo tão “bom” quanto brigar com a irmã por uma chapinha de cabelo, no sentido
de que ambos tornam-se motivos suficientes em determinadas dinâmicas relacionais.
Tratar estas justificativas como “causas” do desaparecimento nos colocaria na incômoda
posição de ter que explicar por que nem todas as vítimas de violência sexual ou nem
todas as irmãs que discutem entre si afastam-se de casa. Poder-se-ia ir além, inverter a
proposição e tentar encontrar as “causas” pelas quais os que não desaparecemos
retornamos a nossas vidas diariamente. Há alguns meses eu responderia uma questão
desse tipo de maneira quase automática, dizendo que amo minha esposa e filha. Mas,
depois de acompanhar mais de uma centena de registros de desaparecimento e outras
dezenas de localizações, não ousaria dizer que falta amor nas relações entre os que
desaparecem e suas famílias.

Uma aproximação antropológica sobre as motivações para desaparecimentos


voluntários poderia se dar a partir do conceito batesoniano de cismogênese. Cismo
(cisma, separação) + gênese (emergência, criação) é um conceito interessante, que pode
ser aplicado a qualquer tipo de inter-relação, desde um par de indivíduos, até famílias ou
culturas distintas. Bateson define cismogênese como “um processo de diferenciação nas
normas de comportamento individual resultante da interação cumulativa dos
indivíduos” (BATESON, 2008:219). Não se trata para o autor de colocar a
desagregação como uma espécie de doença, anomia (como em Durkheim) ou disnomia
(como em Radcliffe-Brown), em oposição à continuidade. Para Bateson, integridade e
ruptura não são polos opostos a priori, mas aspectos de qualquer processo relacional
cumulativo; ou seja, as reações recíprocas de indivíduos em relação transformam-se e
transformam, por conseguinte, a própria relação. Bateson propõe duas espécies distintas,
mas complementares (ao menos no caso Iatmul, que analisa no Naven) de cismogênese

104
a partir de dois padrões relacionais: a primeira, cismogênese complementar, se daria por
exemplo entre dois comportamentos distintos culturalmente esperados: se um indivíduo
ou grupo A é assertivo, espera-se que outro indivíduo ou grupo B seja submisso. É
provável que ao comportamento submisso de B, A reaja com mais asserção, e
consequentemente B reaja com ainda mais submissão, e assim por diante. Pode haver,
por outro lado, um padrão de relação em que um indivíduo ou grupo A se comporte com
bazófia e o outro grupo ou indivíduo responda da mesma maneira. A tendência é que se
crie uma relação cada vez mais competitiva entre ambos, que modifique a relação
original. A esta tendência Bateson chama cismogênese simétrica. Essas transformações
podem ter por efeito uma diferenciação cada vez maior, que num caso extremo,
colocaria fim à relação; Bateson observa que “a cismogênese é impossível a não ser que
as circunstâncias sociais sejam tais que os indivíduos concernidos se vejam mantidos
juntos por alguma forma de interesse comum, dependência mútua, ou status social”
(BATESON, 2008:224). Parece ser exatamente este o contexto nos quais emergem
desaparecimentos voluntários motivados por conflitos intra-familiares. Não tive
oportunidade de acompanhar etnograficamente o desenrolar desses conflitos (que se
iniciam, antes do desaparecimento). A análise que esboço aqui se faz apenas a partir de
conversas com psicólogos e assistentes sociais do NUPSS, que me relataram casos em
que padrões simétricos ou complementares parecem ter resultado na fuga de um dos
familiares. Pais muito disciplinadores e filhos indisciplinados, ou irmãos que competem
entre si poderiam ser exemplos de cismogênese num contexto familiar. Na falta de uma
generalização mais satisfatória, poder-se-ia dizer, com Tolstói, que “cada família infeliz
é infeliz à sua maneira” (2011:9).

Esta discussão refere-se apenas aos “voluntários”, obviamente. Há aqueles que, sem
intenção alguma de se afastar, são levados contra a vontade, vítimas de crimes como
subtração de incapaz, seqüestro e cárcere privado, roubo na modalidade de seqüestro
relâmpago, extorsão mediante seqüestro, homicídio seguido de ocultação de cadáver e
tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e trabalho escravo. Nestes casos, é
possível falar em “causas”. Em todos os casos, porém, para que um ausente seja
localizado através da mediação da DRPD, é preciso que ele se torne, com a intervenção
e autorização da família, um “desaparecido”.

105
Para que uma pessoa passe a existir como “desaparecida” é necessário que pelo menos
um “representante” da família registre sua ausência numa delegacia, através do Registro
de Evento de Defesa Social, conhecido como REDS. Trata-se do atual modelo de
lavratura de ocorrência policial implantado em 2006 de forma padronizada e integrada
com a Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar65. As informações contidas no
REDS são disponibilizadas para todas as autoridades policiais do Estado. No campo
“Envolvido 2” do REDS, são registradas informações de diversos tipos sobre o ausente:
dados legais, como nome, filiação, número de documentos de identificação, como
Carteira de Identidade e CPF; características físicas, como sexo, altura, peso, cor da pele
e dos olhos, presença de traços físicos singulares (cicatrizes, tatuagens, deficiências);
além de informações sobre hábitos, relacionamentos familiares, amorosos, profissionais,
rede de amizades, mudanças de comportamento ou eventos recentes que possam ajudar
a elucidar o desaparecimento. Trata-se de traçar um perfil – o mais completo possível -
da pessoa, tanto no que se refere a sua existência jurídica (se possui ou já possuiu
problemas com a Justiça, por exemplo), quanto em relação a características físicas e
traços de personalidade. A partir do momento em que o preenchimento do REDS é
concluído e as informações nele contida passam a figurar no sistema de informações da
polícia, se inicia uma mudança na existência jurídica do ausente: ele passa a ser,
oficialmente um “desaparecido”. Mas, o que isso implica na prática?

A maneira como concebemos nossa noção de “pessoa” baseia-se na articulação de três


atributos relativamente independentes: uma concepção de humanidade enquanto espécie
biológica; outra humanidade, tomada como condição moral; e o reconhecimento
jurídico da sobreposição da segunda sobre a primeira. Como observa Ingold,

“Um traço marcante da tradição ocidental é a tendência a pensar


em dicotomias paralelas, de modo que a oposição entre
animalidade e humanidade é posta ao lado das que se estabelecem
entre natureza e cultura, corpo e espírito, emoção e razão, instinto e
arte e assim por diante [...] O problema está no fato de que a
herança do pensamento dualista invade até mesmo nossa concepção
de ser humano, ao nos fornecer o vocabulário com o qual
expressamos. Segundo essa concepção, somos criaturas

65
Fonte: NUCOM/DRPD/DHPP/PCMG

106
constitucionalmente divididas, com uma parte imersa na condição
física da animalidade e o outra na condição moral da humanidade.
Em qual destas partes, poderíamos perguntar, reside a natureza
humana?” (INGOLD, 1995:7)

Assim, ainda que nossa concepção de “pessoa” se baseie em uma separação ontológica
entre dois tipos distintos de humanidade, ambas as categorias são interdependentes. O
Direito usa o termo “pessoa natural” para designar indivíduos da espécie Homo sapiens
dotados de personalidade civil e capacidade jurídica, entendendo por “capacidade
jurídica” o reconhecimento, pelo Estado, da capacidade que esses espécimes têm de
exercer sua autonomia ou personalidade civil na esfera pública. Idealmente, portanto,
essas concepções distintas de humanidade nunca estariam separadas, já que “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” e que “a existência da
pessoa natural termina com a morte”66. O desaparecimento de pessoas coloca em xeque
a “naturalidade” desta sobreposição, já que, até que se prove o contrário, não há uma
morte que justifique a extinção da “pessoa”. A priori, a personalidade civil se mantém
intacta, apesar da ausência de um corpo - não um corpo qualquer, mas um específico -
conhecido em alguma medida pelas autoridades e legitimado por estas a exercê-la. A
possibilidade de pessoas existirem sem corpos, em nossa cosmologia, costuma ser
admitida apenas na esfera das crenças religiosas. Nesse registro, a questão não se coloca
como um desafio a ser enfrentado pelo Estado, já que, até onde se sabe almas não
assinam contratos.

Figura 6 - "pessoa natural"

66
Respectivamente, artigos 2º e 6º do Código Civil Brasileiro

107
O que fazer então a respeito dos ausentes? É preciso localizá-los, obviamente, dada a
possibilidade de se encontrarem em situação de risco. Além disso, o sofrimento causado
a familiares e amigos pelo desaparecimento não pode ser ignorado. O registro do
desaparecimento através do REDS abre a possibilidade para a localização do ausente em
qualquer cidade do Estado de Minas Gerais, mas faz mais do que isto: também constitui
uma nova versão da “pessoa”, traz à existência um “desaparecido”. Utilizo aqui o termo
constituir como um correlato do que Annemarie Mol vem denominando enact:

“It is possible to say that in practices objetcs are enacted. This


suggests that activities take place – but leaves the actors vague. It
also suggests that in act, and only then and there, something is –
being enacted.”(MOL, 2002:33)

O termo “enact” é de complicada tradução para a língua portuguesa, sendo difícil cobrir
todas as acepções que a palavra suscita na língua original. Está relacionado à
“performance”, mas indica, ao mesmo tempo, algo estabelecido por uma decisão legal,
como “ordenar” ou “decretar”. A opção pelo termo “constituir” me parece adequada já
que a palavra pode designar simultaneamente um atributo (ser a essência, a base de
algo) e uma ação (estabelecer, compor, formar). No caso de “desaparecidos”, enfatizar o
caráter imperativo do termo me parece fundamental. Dizer que uma pessoa é constituída
enquanto “desaparecido” é dizer que passa a existir, a partir de um conjunto de práticas,
de uma maneira diferente daquela que existia até então. Esta nova realidade será
indissociável das práticas que a constituem. O “desaparecido” só existe a partir das (e
nas) relações que se estabelecem entre familiares e amigos, DRPD e Estado. É ele quem
coloca em relação todos esses agentes, é ele quem faz com que esses agentes se
associem, ajam em conjunto, e é justamente no conjunto dessas ações que sua existência
pode emergir. Poder-se-ia representar de maneira sintética as diferenças entre a
constituição da “pessoa natural” e dos “desaparecidos” da seguinte maneira:

108
Figura 7 - "desaparecido"

Antes, apenas “pessoa natural”, constituída a partir de uma articulação específica (uma
relação de sobreposição legitimada pelo Estado) entre uma suposta condição moral e
uma espécie biológica, o “desaparecido” é constituído como uma outra versão da
“pessoa”: Trata-se de uma rearticulação entre os mesmos atributos constituintes da
“pessoa natural”, que pode ser definida como a suspensão legitimada da relação original
de sobreposição e sua substituição por uma relação em que um dos elementos (corpo)
está ausente. No entanto, a nova articulação não anula a anterior, mas a engloba,
simultaneamente como um princípio (o que era o ausente antes do desaparecimento, o
que somos todos) e como um fim a ser buscado (localizar o ausente com vida e restituir
sua condição original de “pessoa”). Se, como afirmei acima, uma pessoa só pode ser
desaparecida na medida em que é procurada, segue-se que existir enquanto tal é existir
para deixar de ser, para vir a ser outro. Mas, se a localização com vida é o
desdobramento ideal, ele não é o único possível:

 Localizado vivo:

Figura 8 - Localizado vivo - restituição da "pessoa natural"

109
 Localizado morto

Figura 9 - Localizado morto - extinção da "pessoa natural"

Nos casos em que o “desaparecido” é localizado sem vida, a restituição da relação de


sobreposição que caracteriza a “pessoa natural” se dá na forma de uma “negativa”, já
que “a existência da pessoa natural termina com a morte”67. Restitui-se apenas
idealmente a “pessoa”, para extingui-la; e para extingui-la se faz necessária a
restituição. O reconhecimento jurídico de ambos se dá através da emissão da declaração
de óbito. Durante o trabalho de campo pude acompanhar uma minoria de casos que
terminaram em óbito. Em alguns, a mediação dos familiares foi decisiva, reconhecendo
a pessoa desaparecida entre os corpos que adentraram o IML como desconhecidos,
através das fotos anexadas aos laudos que são disponibilizados através da rede PCNet.
Noutros casos, as investigações conduzidas pelos policias da Divisão de Desaparecidos
acabam por levar a um cadáver. Nestes, a investigação de desaparecimento se encerra, e
um novo inquérito é aberto e conduzido pela Delegacia de Homicídios, que funciona no
mesmo prédio da DRPD.

Leila, uma adolescente de 17 anos, de comportamento exemplar, desapareceu


na manhã de terça-feira. Foi vista pela última vez por algumas colegas de sala,
minutos antes do início das aulas, após descer do ônibus. As colegas relataram
aos policiais que havia um rapaz bonito e bem vestido na companhia da moça.
Pensando se tratar de um ‘ficante’ ou namorado, não comentaram o fato com
ninguém na escola, mesmo quando a ausência da jovem foi percebida por um
dos professores. “ela não era de faltar, nem quando estava doente, nunca
matava aula”. Como não voltou para casa no início da tarde, como era de
67
Artigo 6º do Código Civil Brasileiro

110
costume, os pais tentaram contato telefônico inúmeras vezes, sem sucesso.
Apesar da apreensão, esperaram até a manhã de quarta-feira para procurar
ajuda na DRPD. Três horas depois, os investigadores retornavam à delegacia
com Leonardo, o assassino de Leila, um jovem que trabalhava no posto de
gasolina em frente ao ponto de ônibus onde a moça desembarcava
diariamente. Através de imagens de uma câmera de segurança localizada num
armazém próximo ao posto, os investigadores conseguiram imagens do
momento em que Leonardo abordou Leila com uma faca. Abraçado à moça
como fossem íntimos, levou-a até uma construção anexa ao escritório do posto
de gasolina, onde a manteve cativa até as dez horas da noite. Neste horário,
Leonardo retornou ao local, e após abusar sexualmente de Leila, assassinou a
jovem de forma violenta, com uma chave de fenda. Por volta de meia noite
atirou seu corpo num terreno baldio ao lado do posto de gasolina. Através das
imagens da câmera e de conversas com pessoas que vivem e trabalham nas
imediações do local onde Leila havia sido vista pela última vez, os
investigadores identificaram o assassino. Leonardo foi preso em casa, dormindo
ao lado dos pertences da jovem.

O clima na delegacia era extremamente tenso. Havia, por um lado, grande


frustração, a sensação de ‘ter chegado tarde demais’; afinal, Leila havia sido
mantida viva em cativeiro por cerca de quinze horas. Provavelmente seria
localizada com vida, se seus pais não tivessem esperado 24 horas para registrar
o desaparecimento. Obviamente, dizer isso aos pais, naquele momento, seria
tão inútil quanto desnecessário. Mas era patente no semblante dos
investigadores a frustração diante de uma morte que poderia ter sido evitada.
Nas várias ocasiões em que acompanhei entrevistas concedidas pela Dra.
Cristina a veículos de comunicação, a delegada fez questão de ressaltar que o
registro do desaparecimento deve ser imediato. Ainda que muitos
‘desaparecidos’ retornem voluntariamente nas primeiras 48 horas, em casos
como o de Leila um registro tardio pode significar a diferença entre e a
localização com vida ou com morte. Apesar da frustração, havia também entre
os policiais certa euforia, uma sensação de ‘dever cumprido’, pela investigação

111
bem sucedida e pela captura do assassino. Percebi essa sensação inúmeras
vezes, todas em que alguém era localizado com vida; mas neste caso
especificamente, era como se a empolgação com uma investigação de
assassinato bem sucedida (com a prisão do assassino) fosse quase tão intensa
quanto a frustração decorrente de uma investigação de desaparecimento que
terminara mal (com a localização de um cadáver)”.

 Sem registro do desaparecimento (ausente)

Figura 10 - Ausente - não constituído enquanto "desaparecido"

Como no caso de João (filho de Dona Henriqueta) citado no início do capítulo, não
considerarei como “desaparecido” aquela pessoa cuja ausência não foi reportada às
autoridades policiais. Em casos nos quais o registro do desaparecimento não é feito, o
paradeiro desconhecido se restringe no máximo a um “problema de família”, sem as
transformações ontológicas decorrentes do encontro entre Direito, Polícia e familiares
que caracterizam a constituição do “desaparecido” como uma outra versão da “pessoa”.

 Não localizado

Figura 11 - Não localizado - estabilização enquanto "desaparecido"

Há ainda os casos não solucionados. Aqui o tempo exerce, de maneira perversa, um


papel decisivo: o de tornar cada vez mais difícil a localização. Na contramão do que um

112
“desaparecido” deveria ser – um ente apenas provisório, um “deixar de ser” - o tempo
estabiliza sua existência enquanto “desaparecido”, torna esta existência cada vez mais
real, faz com que sua ausência ganhe em densidade. Para as famílias envolvidas, trata-se
da completa impossibilidade do luto. Porque um “desaparecido” é, nas práticas nas
quais familiares, polícia e Estado se envolvem, alguém tornado incapaz de morrer.
Ainda que o Código Civil Brasileiro trate dos direitos de herança em relação aos bens
de pessoas dadas como “desaparecidas” 68, esta me parece ser uma preocupação menor
por parte dos familiares, ao menos aqueles com quem tive contato ao longo da pesquisa.
O que vi e ouvi destas pessoas pode ser descrito como um misto de torpor e desespero,
diante do qual a morte pode inclusive aparecer como uma solução:

“Eu queria é ter alguma notícia dele, qualquer uma, eu até preferia saber que
ele está morto do que viver desse jeito, sabe? Toda vez que eu deito eu fico me
perguntando ‘será que ele tem uma cama para dormir’? toda vez que eu como
eu fico pensando se ele tem o que comer, o que vestir (...) é muito sofrimento,
acaba que a gente não vive também, porque a pessoa continua, né... não tem um
momento que a gente não lembre dele, no dia de natal, aniversário então... faz
três anos que a gente não tem notícia” (Marta, que voltou à Delegacia no
aniversário de desaparecimento do irmão, para pedir uma nova divulgação da
foto nas faturas de energia elétrica)

“Meu pai, coitado, morreu ano passado, e até o fim ele acreditava que o
Adriano ia voltar, ficava sentado lá fora esperando... a gente nunca mudou
daquela casa, porque ele tinha medo do meu irmão voltar e não achar mais a
gente... até hoje o quarto dele está lá, do mesmo jeito de quando ele sumiu, está
lá com as coisas dele todas...” (Walter, cujo irmão desapareceu há oito anos,
ainda volta à Delegacia em busca de eventuais notícias)

Há uma grande diferença, no que diz respeito à perspectiva dos familiares, entre casos
solucionados (inclusive os que terminam com a morte do “desaparecido”) e aqueles que
permanecem em aberto. Os primeiros, em geral, terminam num período relativamente
curto de tempo (alguns meses no máximo). É possível dizer que o tempo decorrido entre
o desaparecimento e a localização é proporcional à realidade da existência de uma

68
Código Civil Brasileiro, Cap. III (os familiares podem requerer a sucessão definitiva dos bens após treze
anos decorridos da ausência)

113
pessoa enquanto “desaparecido”: quanto maior o tempo, mais “desaparecido”. Tornar-
se um “desaparecido” é ser constituído numa trajetória, é ter uma historicidade própria.
Este processo pode ser entendido a partir do que Bruno Latour chamou de “ontologias
de geometria variável”. Trata-se de tomar essa constituição “como um gradiente que
varia a estabilidade das entidades continuamente do acontecimento até a essência”
(2005:85). O “desaparecido” é trazido à existência no momento do registro da
ocorrência policial. Idealmente, quanto menos durar esta existência, quanto menos
historicidade ela tiver, melhor. Mas pode ser que ela dure, que esta nova “pessoa”
perpetue, que os familiares (em conjunto com a polícia) se vejam na incômoda posição
de fazer com que ela continue a existir, dotá-la de meios, neste incômodo
“aniquilamento arraigado à imortalidade”, como bem colocou Emily Dickinson.
Conviver com “desaparecidos” é, num certo sentido, o simétrico oposto do luto. Não há
o que ser “superado”, porque nestes casos, a perda não se completa. E ainda assim não
há a possibilidade de “perdê-los de vista”. Como disse Marta em relação ao irmão: “a
pessoa continua”. No caso de Leila, citado anteriormente, a localização aconteceu
apenas um dia depois do desaparecimento. Leila não existiu como uma “desaparecida”
por tempo suficiente para que seus familiares tivessem que se engajar nessa nova
realidade. Coube à família lidar com a perda trágica de um ente querido. Por maiores
que sejam a dor e revolta dos familiares, a morte, em casos como este, ainda é uma
“resposta”. Poder-se-ia dizer, parafraseando um famoso antropólogo, que “qualquer que
seja a resposta, esta possui uma virtude própria em relação à ausência de resposta”.

Mas, para além da angústia e sofrimento dos familiares, casos de desaparecimento não
solucionados também nos colocam (e ao Estado) os seguintes problemas: e se aquele
tornado “desaparecido” ainda estiver vivo? E se seu afastamento foi voluntário - como
acontece na maior parte dos casos - ele não continuaria a existir (ao menos segundo sua
própria perspectiva) exatamente como antes? Se sim, passaria a ter múltiplas
existências?

Não me parece ser este o caso. Seria mais apropriado dizer, quando se fala de um
“desaparecido” que ele passa a ter uma “existência múltipla”. Uma existência que
coloca em suspensão a “pessoa” que costumava ser sem, no entanto, anulá-la por
completo. Um “desaparecido” é ainda, mas apenas potencialmente, uma “pessoa
natural”. A intervenção do Estado, para além do trabalho de investigação policial, cria
simultaneamente novos meios de objetificar a realidade material do “desaparecido”

114
(através de documentos relativos à investigação e dos cartazes com seu nome e imagem,
o “desaparecido” passa a estar “presente” em vários locais e ao mesmo tempo) e limita
drasticamente seu direito de exercício da personalidade civil, ou sua capacidade
jurídica: ao tornar-se oficialmente uma pessoa desaparecida, o ausente fica impedido de
tirar documentos, estabelecer contratos ou quaisquer negócios jurídicos; deixa de ser,
perante a lei, um “agente capaz”69. Esta mudança de status não se justifica apenas como
prevenção de crimes tais como extorsão mediante seqüestro ou fraude. Trata-se, ao
mesmo tempo, de proteger a pessoa (desaparecida) e resguardar a possibilidade de
restauração da “pessoa” (categoria) em sua antiga versão. Esta última será restaurada
caso a primeira seja localizada. Até lá, ficará em suspensão.

O efeito desta suspensão não deve ser subestimado. Trata-se, como observa Bevilaqua,
de “reconhecer o direito como um poderoso operador ontológico que efetivamente
constrói o mundo ao qual suas disposições se referem” (2010:29). Presenciei alguns
casos de pessoas dadas como desaparecidas que compareceram a contragosto à DRPD
para regularizar sua situação: Maiores de 18 anos, haviam se ausentado da família
voluntariamente. Foram impedidas de tirar segunda via de documentos, ou
encaminhadas por agentes de trânsito, que, ao conferir seus documentos em blitz,
encontraram seus nomes no cadastro de desaparecidos. Em alguns desses casos, não era
intenção do ausente sair definitivamente do convívio com a família: “apenas” não
informara seu paradeiro. Em outros, porém, a situação de conflito intra-familiar era tal
que as pessoas não desejavam manter nenhum tipo de contato. Mas eram, de certa
maneira, obrigadas a re-aparecer, para evitar maiores constrangimentos perante a
Justiça. Mesmos nos casos envolvendo pessoas maiores de idade, há uma tentativa de
reconciliação mediada pelo NUPSS, que nem sempre se mostra eficaz:

Uma jovem entra chorando, na companhia de dois policiais militares, que,


durante uma batida na crackolândia, identificaram o nome de Kathleen no
registro de desaparecidos. Usa um top e mini saia pretos, dois anéis em cada
dedo das mãos, um chinelo velho, e um arco nos cabelos sujos e despenteados.
Bastante transtornada, ela pede para que a deixem voltar, reclama que os PMs

69
Segundo o Art. 104. Do Código Civil Brasileiro, “A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.”

115
lhe tomaram o cachimbo e o isqueiro - segundo ela seus únicos bens - e que sua
mãe não devia tê-la registrado como desaparecida:

“pergunta para minha mãe onde é que eu estou! Ela sabe, ela vai te falar: na
Avenida Antônio Carlos fumando crack!”

Kathleen tem vinte e um anos de idade e, portanto, segundo o Código Civil


brasileiro, tem o “direito de ir e vir”. Embora não exista suporte legal para
mantê-la detida, já que desaparecer não é um crime, é preciso que ela assine
uma declaração na qual deixe claro que não quer voltar ao convívio da família.
Em outras situações envolvendo adultos, geralmente a auto-declaração basta
para que a pessoa deixe de ser procurada pela polícia. Nesses casos, a Divisão
de Desaparecidos entra em contado com a família do ausente e comunica sua
opção. Porém, devido à situação precária em que Kathleen se encontra, os
investigadores tentam uma abordagem diferente: a policial Paula, que conhece
Kathleen há alguns anos, antes desta se envolver com crack e deixar a casa da
mãe para viver nas ruas, tenta convencê-la a aceitar ajuda das autoridades para
lidar com o vício. Kathleen sabe que não podem obrigá-la a voltar para casa,
mas sabe também que não podem impedir que sua mãe continue mantendo
seu nome no cadastro de pessoas desaparecidas. Os investigadores entram em
contato com a mãe por telefone e explicam a situação, na presença da jovem.
Toda a conversa é através do “viva voz”, e Kathleen escuta, do outro lado da
linha, as súplicas desesperadas da mãe para que volte. Após alguns minutos, a
moça interrompe os investigadores e se dirige à mãe. É sua vez de suplicar, aos
prantos:

“Pelo amor de Deus, me deixa em paz! Pára de me procurar, pára de tentar me


encontrar! Você sabe que eu não vou voltar pra casa! Eu sou maior de idade, eu
escolho o que eu quero fazer da minha vida, você tem que respeitar! (...) Essa é
a vida que eu escolhi, eu gosto de morar na rua, eu gosto de fumar crack, eu
quero fumar crack até morrer!!!”

Kathleen se mantém irredutível. Depois de alguns minutos tentando acalmar


mãe e filha, os policiais encerram a ligação. A policial Paula insiste que só

116
liberará a jovem se esta consentir em conversar com uma das psicólogas do
NUPSS. A moça volta a chorar, cobre o rosto com os braços num gesto infantil,
pede que a deixem ir, mas por fim, cede à condição imposta pela policial. Cerca
de meia hora depois, Kathleen reaparece, ao lado de um policial, para acertar
os detalhes de sua liberação. Assim que autorizada a sair, ela dispara pelo
corredor, não como alguém que se liberta de, mas como alguém que se liberta
para.

Situações como estas evidenciam outro efeito do registro de desaparecimento, desta vez
relativo aos familiares do ausente: há uma “condição humana” sem um corpo que lhe
corresponda. Se esta condição não pode ser simplesmente extinta a partir da ausência
física, tampouco pode continuar a existir sem que esteja ligada de alguma forma a uma
realidade material, a alguma fisicalidade. Se, como dito anteriormente, o ato do registro
institui a desarticulação da relação de sobreposição que caracteriza a “pessoa natural”,
através da limitação das possibilidades do direito de exercício de personalidade civil
pelo ausente, por outro delega, ao menos em parte, o exercício desse direito a um
familiar, constituindo-o como um porta-voz legítimo do (ainda que não legitimado pelo)
“desaparecido”70. Há, no REDS, um campo (Envolvido 1) que se preenche com os
dados legais (nome, filiação, endereço, n º de documentos, etc) do familiar que registra
a ocorrência. Este mesmo familiar será autorizado a autorizar71 a divulgação de dados e
imagens do desaparecido “na imprensa escrita, falada, televisiva, pela internet, através
de cartazes, em embalagens, nas dependências do comércio e da indústria, em
repartições públicas da administração direta e indireta, em veículos de comunicação e
quaisquer outros meios que possam contribuir para sua localização”72.

70
Em situações envolvendo crianças, adolescentes e deficientes mentais, essa representação é anterior,
e os responsáveis legais têm o dever de registrar o desaparecimento, sob risco de serem enquadrados
no crime de abandono de incapaz.
71
Esta autorização baseia-se no Artigo 20 do Código Civil Brasileiro que dispõe, entre outras coisas,
sobre a proteção da “imagem de uma pessoa”. Em seu parágrafo único afirma que: “em se tratando de
morto ou ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou
descendentes.” (BRASIL, Código Civil, Art.20, 2002)
72
Autorização para divulgação de dados e imagens - DRPD

117
3.2 - Os desaparecidos e seus porta-vozes

Os familiares desempenham um papel decisivo na constituição e na estabilização da


existência de um “desaparecido”: o papel de porta-vozes. Porque o que os familiares
fazem, antes de buscar informações em hospitais, abrigos e IML, antes de autorizar a
divulgação de fotos e

informações, é ir até a delegacia e falar. Falar sobre o ausente, falar em nome do


ausente, de maneira tal que o seu problema (a localização do ausente), a pergunta para
qual buscam uma resposta (onde?) passe a ser também uma pergunta para a polícia, um
“problema de polícia”. Para tanto, é preciso que consigam, através de uma narrativa
minimamente coerente, relacionar a pessoa cujo paradeiro desconhecem (quem) a outras
conjunções: o “quê” dizer sobre “quando”, “como” e “por que”.

O registro de desaparecimento numa delegacia de polícia pode ser comparado a uma


consulta médica em busca de um diagnóstico. Em ambas, há pelo menos uma pessoa em
busca de resposta falando sobre seu problema para outra pessoa, que supostamente será
capaz de resolvê-lo. Em ambas, aquele que busca a resposta deve ser capaz de responder
a algumas perguntas, de maneira que sua narrativa sobre o problema contribua para a
formação de uma outra narrativa, que não seja exatamente a sua mas que lhe diga
respeito diretamente. Em ambas, o desconforto para falar de determinados assuntos
deve ser contornado. Em ambas, há sempre uma grande dose de incerteza. Em ambas,
habilidades são colocadas em jogo, tanto por parte dos que buscam uma solução, quanto
por parte daqueles que supostamente podem fornecê-la, para transformar confissões
escolhidas a dedo em indícios que tornem a narrativa final inteligível. Em ambas, para
que o problema seja solucionado, é preciso antes defini-lo, objetificá-lo. Em ambas, esta
objetificação é menos uma questão de conhecer do que de manipular. Em ambas, o
resultado deste encontro é a transformação do problema num caso. Segundo Charles
Rosenberg,

“Diagnosis is central to the definition and management of the


social phenomenon that we call disease. It constitutes an
indispensable point of articulation between the general and the

118
particular, between agreed-upon knowledge and its application. (..).
Diagnosis labels, defines, and predicts and, in doing so, helps
constitute and legitimate that reality that it discerns” (2002:240)

Poder-se-ia dizer o mesmo em relação ao registro de desaparecimento. Trata-se, no fim


das contas, de legitimar e constituir uma nova realidade, a da pessoa ausente enquanto
“desaparecido”. Trata-se de adequar a narrativa dos familiares a uma série de protocolos
pré-estabelecidos de maneira tal que o caso resultante possa ser manipulado e
instrumentalizado nos trâmites técnicos e burocráticos que concernem ao trabalho
policial. Trata-se simultaneamente de fazer com que o desaparecimento torne-se um
“caso de polícia” (mais um dentre tantos outros casos de desaparecimento), sem que
deixe de ser também um caso “em particular” (que diz respeito a este ausente, a esta
família, etc). Ser um caso “em particular” aqui significa que ao constituir-se enquanto
“desaparecido” o ausente constitui-se sempre como um tipo de “desaparecido”. Esta
tipologia é condicionada em grande medida pela narrativa dos familiares, pela
quantidade e qualidade das informações que trazem a respeito do ausente, de seus
hábitos, seus relacionamentos amorosos, profissionais, familiares, etc. Estas
informações podem ser comparadas aos sintomas descritos por um paciente diante do
médico: em si mesmos, não dizem muita coisa sobre o paciente. Mas, no contexto da
narrativa que médicos e pacientes elaboram em conjunto, podem (ou não) ser decisivas.
Se um paciente entra no consultório médico reclamando de dores de cabeça, por
exemplo, isso não diz muito sobre o que ele tem (além de estar incomodado o bastante
para ir a um médico). Obviamente o médico não sabe muito sobre o paciente, nem sobre
a dor que o incomoda. Mas pode saber mais, e em outros termos. Se o paciente disser
algo do tipo “é como se meu cérebro estivesse latejando” o clínico provavelmente fará
perguntas como “há quanto tempo?”, “onde exatamente dói?”, “com que frequência”,
“qual a intensidade da dor?”, “há casos semelhantes na família?”, etc. Dependendo das
respostas fornecidas pelo paciente, pode ser que o médico julgue necessário fazer alguns
exames. Pode ser que esses exames apontem para a necessidade de outros, mais
elaborados. Pode ser que no fim das contas o paciente precise apenas de algumas
aspirinas, mas pode ser também que ele tenha câncer. A dor de cabeça deste paciente
pode ser inúmeras coisas diferentes em contextos diferentes. É preciso que médico e
paciente, em conjunto, consigam transformá-la num problema adequado. Objetificá-la
através de um diagnóstico, transformar este paciente num caso específico (de câncer,

119
por exemplo) não diz mais respeito apenas ao que ele tem, mas ao que ele é. Como
observa Phillipe Pignarre,

“Entra-se no consultório com um estatuto social particular,


sai-se dele redefinido: pertence-se a seguir, por um tempo
limitado ou ilimitado, a uma nova categoria” (1999: 111)

Da maneira análoga a este paciente imaginário, quando um familiar entra na DRPD para
registrar um desaparecimento, ele busca uma resposta a um problema: localizar
determinada pessoa. Ele quer a ajuda da polícia, e sabe que precisa ajudar a polícia a
ajudá-lo. Ele sabe que, para tanto, terá de dizer algo a respeito do ausente,
eventualmente confessar algo a respeito do ausente ou de si mesmo que, em outras
situações, seria inconfessável73. Assim como o ausente, o familiar tem suas motivações,
e fala, a partir - e às vezes apesar - delas. Eventualmente, ele pode querer não dizer, ou
dizer apenas aquilo que lhe convém; eventualmente ele pode tentar mentir a respeito de
uma ou de várias situações. Mas, assim como os médicos, os policiais também fazem
perguntas. E são bons nisso. Eles desconfiam, questionam, exploram incoerências e
contradições, retomam pontos que não ficaram suficientemente claros; desconstroem,
manipulam a narrativa que o familiar pretende contar (a que pretende que conste nos
autos), para elaborar outra a partir desta, uma que seja coerente com a resposta que
podem dar. Isto porque antes de saber por que aquela pessoa em particular desapareceu,
os policiais sabem que as situações a partir das quais pessoas desaparecem são
inúmeras.

Um senhor com cerca de 50 anos entra para registrar o desaparecimento do


filho, do qual não tinha notícias desde o dia anterior. Jonas, (o pai) conta que
César (o filho) é um rapaz estudioso e tranquilo. Fora visto pela última vez
numa praça perto de casa na tarde de domingo. Teria entrado num carro
vermelho dizendo a amigos que iria a uma festa e até aquele momento sequer
telefonara. Enquanto a funcionária responsável por preencher o REDS anota os
dados dos documentos de César, uma investigadora faz as perguntas de praxe,
se o pai conhece os amigos do filho, se o filho tem o hábito de sair muito, se
tem namorada, se é usuário de drogas, etc... Jonas insiste que o filho é “um

73
Ironicamente nestes casos, confessar algo sobre outrem significa num certo sentido acusar-se a si
mesmo, já que aquele que registra o desaparecimento envolve-se no evento de maneira ”oficial”.

120
rapaz tranquilo, um bom filho”. Insiste tanto que a investigadora busca seu
nome nos registros policiais. O jovem de 17 anos já havia sido apreendido três
vezes, por porte ilegal de armas, drogas e tráfico de entorpecentes.

“seu filho tem três passagens pela polícia, como é que o senhor me fala que ele
é um rapaz tranquilo? Ele não é um rapaz tranquilo, tráfico e porte ilegal de
arma e o senhor vem aqui e pinta uma imagem dele como se ele fosse um
coroinha? Se o senhor está me dizendo que ele é um coroinha, nós vamos
procurá-lo lá na igreja. Agora, eu duvido que ele esteja na igreja rezando. (...) O
senhor tem que entender que a gente precisa traçar um raciocínio para
começar a investigação. A gente traça uma linha de raciocínio a partir das
informações que o familiar traz sobre o desaparecido. Então, se você me diz que
seu filho é um rapaz que não dá problemas e eu descubro que ele tem três
passagens, isso muda tudo, o senhor está entendendo? É outra linha de
raciocínio, outra investigação que nós vamos fazer para encontrar o filho do
senhor (...). O senhor quer encontrar seu filho, não quer? Então eu preciso que o
senhor me fale a verdade...”

Jonas retruca:

“Desculpa, mas eu estou falando a verdade, ele é tranquilo, é um rapaz muito


inocente. Isso que consta dele aí não tem nada a ver, foi uma bobagem por
causa de uns amigos com quem ele andava. Achei que isso não tinha
importância, que não precisava falar..”’

Ao perceber a insistência do pai, a investigadora deixa a sala. Jonas se vira na


minha direção e tenta se justificar para aqueles que continuam presentes –
bem como para si mesmo:

“As pessoas acham que a gente se ilude com os filhos, mas a gente não se ilude
não. Meu filho é inocente, ele faz essas besteiras dele por inocência, sempre se
envolve com as pessoas erradas por ingenuidade e acaba sobrando para ele.”

Permaneci calado, assim como as outras pessoas na sala. Não porque


discordasse de Jonas. Não me pareceu que estivesse “mentindo” ou “omitindo”

121
deliberadamente alguma informação que julgasse relevante. Jonas não me
pareceu mal intencionado, e tampouco ingênuo. Por mais que eu acredite que
pais e filhos possam iludir-se uns com os outros, o que me parecia estar em
jogo naquele momento não era saber se César era um “bom filho” ou um
“criminoso”. Porque, afinal de contas, uma coisa não exclui a outra. Pode-se
perfeitamente ser um filho atencioso ou pai dedicado e, ao mesmo tempo,
estar envolvido em atividades ilegais. Quando a investigadora lhe pediu que
“falasse a verdade” e o pai respondeu que “achei que isso não tinha
importância, que não precisava falar”, ambos estavam, a meu ver, fazendo
diferentes apostas a respeito daquilo que importa na constituição de César
enquanto um “desaparecido”. Para o pai, obviamente, o que importava era que
o filho saíra num carro e ainda não retornara. Talvez estivesse sendo vítima de
um sequestro ou tivesse sofrido um acidente. Para a investigadora, saber que o
rapaz esteve envolvido em atividades ilegais “muda tudo”. O jovem poderia ter
se envolvido numa encrenca da qual não soube sair e talvez corresse risco de
morte. Se fosse este o caso, fazer a mesma “aposta” que o pai implicaria na
perda de um tempo precioso, numa investigação infrutífera ou com um
resultado indesejado.

Para constituir alguém como “desaparecido” é preciso que os policiais consigam, junto
com a família do ausente, elaborar um perfil desta pessoa e de seu problema, saber se a
ausência é voluntária ou não, se foi motivada pelo desejo de sair de alguma situação ou
de sair para outra; enfim, objetificar um caso. O momento do registro pode ser
entendido como um evento que opera segundo uma lógica de objetivação da “condição
humana” do ausente; objetificação que traz consigo efeitos tanto ontológicos quanto
metodológicos. Há, tanto no discurso dos familiares quanto no perfil resultante do
encontro com os funcionários da delegacia algo de “categórico e decisivo”
(FOUCAULT, 1996:7). Trata-se simultaneamente de tentar responder quem é aquela
pessoa que não está lá a partir de algumas informações que serão tomadas como índice e
trata-se de responder a esta pergunta em termos de categorizações que poderão ser
instrumentalizadas, servir de referência ao trabalho de investigação policial. De acordo
com as informações trazidas por familiares, um relacionamento amoroso, um quadro
depressivo ou o consumo de determinadas substâncias ilegais podem tornar-se um

122
atributo essencial na constituição daquele “desaparecido” em particular. Ainda que
todos os casos possam ser descritos simplesmente como “desaparecimentos”, na prática
trata-se de “este parece ser um caso de homicídio”, ou “este parece ser um caso de rapto
consensual”, ou “este parece ser um caso de suicidio”, etc. Cada um desses tipos sugere
uma linha investigativa distinta. Para que a delegacia possa fornecer uma resposta
adequada a cada caso é preciso, portanto, transformar a narrativa dos familiares num
problema “adequado”, ou seja, transformar um desaparecimento num caso que possa ser
bem investigado e solucionado.

Rute senta-se nervosa diante da atendente. Entrega, junto com a carteira de


identidade da filha, uma carta deixada sobre a mesa da cozinha, na qual Renata
reafirma seu amor pela mãe, agradece por todo o carinho e explica que não
pode mais continuar vivendo a seu lado. Rute parece ter certeza do paradeiro
da filha: “é aquele namorado dela, eu nunca gostei desse rapaz, acho que mexe
com drogas... você sabe como é a cabeça de adolescente, são irresponsáveis,
tem a cabeça vazia, eu sei que ela está com ele, na casa da mãe dele, a família
dele está acobertando essa situação”. Paula, uma das investigadoras que mais
trabalha com casos de adolescentes, pergunta à mãe se ela tem o telefone do
namorado da filha, ou da mãe do namorado. Rute informa o número e a
investigadora liga. A mãe do rapaz atende. Paula identifica-se como policial,
explica que a mãe da garota está na delegacia registrando seu desaparecimento
e que gostaria de conversar com Renata, saber suas motivações, ouvir sua
versão da história. Paula enfatiza que não está ali para julgar, mas para mediar
a situação, que não se trata simplesmente de aceitar a versão da mãe. Rute
parece mais inquieta. A mãe do namorado promete conversar com a jovem e
convencê-la a ligar para a delegacia para falar com a investigadora. Alguns
minutos depois Renata liga e conta uma outra história para a policial: vivera a
maior parte da vida com o pai, e morava com Rute há apenas dois meses. Há
cerca de um mês, a mãe levara o namorado, traficante de drogas, para viver
com as duas. Algumas semanas depois, o namorado de Rute tentou abusar da
jovem, que resistiu e foi agredida. Rute e Renata denunciaram o homem, que
foi detido pela polícia; mas passou a mandar recados, de dentro da prisão,
dizendo que mandaria matar mãe e filha. Renata estava com muito medo, e foi

123
para a casa dos pais do namorado temendo pela própria vida. Quando
confrontada pela investigadora, Rute tentou minimizar o ocorrido, sem muito
sucesso. Acabou por confirmar a versão da jovem. Disse que se sentia culpada,
que mudaria com a filha para outro bairro, que jamais deixaria que algo lhe
acontecesse. A investigadora pede o telefone do pai de Renata e explica-lhe a
situação. Sugere que a filha volte a morar em sua casa, e que este peça, através
da mediação do Conselho Tutelar, a guarda definitiva da garota. Rute chora,
mas não se opõe à sugestão da policial.

O que poderia ser um caso de “fuga com namorado” tornara-se outro caso,
envolvendo tentativa de estupro, agressão, ameaças de morte e conflitos de
guarda. A constituição de Renata enquanto desaparecida deixa de ser, como a
mãe gostaria, condicionada a “irresponsabilidades de adolescente”, para se
inscrever numa situação de risco, que contará com a mediação de outras
instâncias estatais, como o Conselho Tutelar.

Eventualmente, o familiar investido na incômoda posição de porta-voz terá que dizer


pelo ausente coisas que este último jamais diria sobre si mesmo: Um pai não pode dizer
que suspeita que a filha foi assassinada por um de seus amantes sem dizer ao mesmo
tempo que a filha tem vários amantes. Uma mãe não pode dizer que o filho vinha
recebendo ameaças de morte por parte de traficantes sem dizer ao mesmo tempo que o
filho é usuário de drogas e tem dívidas com o tráfico. É preciso ressaltar que não se
trata, para os investigadores, de fazer julgamentos morais em torno dessas histórias e
estabelecer prioridades a partir de tais julgamentos. Pelo que pude perceber do trabalho
dos profissionais da DRPD, todos os casos são prioritários; todos começam a ser
investigados no momento do registro. A prioridade é sempre conseguir localizar o
ausente vivo e em segurança. Como me disse Dra. Cristina, em uma de nossas várias
conversas: “A Desaparecidos trabalha com a expectativa de vida; quem trabalha com a
certeza da morte é a Homicídios”.

Uma vez traçado o perfil do desaparecimento, a polícia pode dar início ao trabalho
investigativo, que envolve uma série de ações, tais como:
 Pesquisas realizadas nos Bancos de Dados disponíveis no Estado e em nível
nacional;

124
 Consultas junto ao TRE;

 Consultas em agências bancárias e seguradoras;

 Buscas em pertences do desaparecido;

 Buscas junto ao IML em casos de suspeita do seu homicídio;

 Levantamentos junto aos familiares, amigos mais próximos, locais de trabalho e


lazer do desaparecido;

 Pesquisas em redes sociais na internet;

 Levantamento de equipamentos de filmagem existente no trajeto percorrido pelo


desaparecido;

 Refazer o trajeto do desaparecido, buscando elementos que contribuam para a


construção de um possível cenário, seja ele criminoso ou não;

 O uso de interceptação telefônica, nos casos autorizados pela Justiça Pública;

 Divulgação de imagem e informações junto aos membros da rede de parceiros;

 Pesquisas nos abrigos, hospitais e postos de saúde;

O trabalho de porta-voz dos familiares continua mesmo após o registro do


desaparecimento. A “condição humana” objetificada em termos de caso se contrapõe à
frágil materialidade dos cartazes espalhados pela cidade. Podemos encontrar
“desaparecidos” em contas de água e eletricidade, nos ônibus, em repartições públicas
ou em jornais de grande circulação. Podemos encontrar “desaparecidos” em todos os
lugares, porque, a priori, eles não se encontram em nenhum lugar. Para as famílias,
resta seguir buscando, resta o envolvimento cada vez mais intenso em novas práticas,
como divulgação de fotos, busca de informações sobre desconhecidos em hospitais
(inclusive os psiquiátricos), postos médicos, UPAs, prontos-socorros, abrigos e IML74.

74
Este procedimento é solicitado pela delegacia, porque, independente da investigação em curso, o
familiar tem mais condições de reconhecer o desaparecido caso este tenha sido vítima de
atropelamento, homicídio ou latrocínio, eventos que podem alterar significativamente suas
características físicas.

125
Sua atuação enquanto porta-voz será decisiva para que o “desaparecido” continue a
existir enquanto tal – até que seja finalmente localizado.

3.3 - Os desaparecidos e seus rastros

No tópico anterior discuti a elaboração do perfil do desaparecido a partir da


objetificação de sua “condição humana”. No contexto do registro de desaparecimento,
informações trazidas por familiares sobre comportamentos, hábitos e relacionamentos
do ausente são tomados como índice da “pessoa”, de maneira tal que a constituição de
uma pessoa enquanto “desaparecido” possa emergir como um caso passível de ser
administrado e solucionado pelos investigadores. No entanto, ainda que essas
informações sejam fundamentais para que “desaparecidos” sejam trazidos à existência,
elas não suficientes. É preciso que o familiar forneça ainda outro corpus de informação,
um que diga respeito à materialidade do ausente, a seu corpo. Se o exercício dos direitos
de personalidade civil do ausente são em parte transferidos para a família, tornada porta-
voz, é preciso, no entanto, que o “desaparecido” ainda tenha um corpo, ainda tenha
aquele corpo que é o seu. Não fosse assim, familiares (porta-vozes) de “desaparecidos”
tornar-se-iam corpos com duas “condições humanas” a eles sobrepostas. É preciso,
portanto, manter de alguma forma a conexão entre “condição humana” e “corpo” do
ausente, para que, em caso de localização, a versão original da “pessoa” possa ser
restituída. É neste sentido que, embora colocada em suspensão, a “pessoa natural” não
pode ser anulada na constituição dos “desaparecidos”. Ela se mantém como o grande
referente em torno do qual serão articulados os índices fornecidos por familiares. Utilizo
o termo “índice” em conformidade com o que Ginzburg denominou “paradigma
indiciário”. Este seria definido pela “capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”
(2009:152).

No caso, a “realidade complexa” a que se busca remontar é a “pessoa natural”. Trata-se,


neste sentido, de chegar aos mesmos resultados que se busca no IML, quando da
tentativa de identificação de corpos desconhecidos. O que muda aqui é de onde se parte
nesta busca. Assim como no IML, o corpo do ausente será tomado como índice, mas ao
contrário do IML, trata-se de um corpo ausente, um corpo ao qual não se tem acesso, a
126
não ser a partir de outros índices. Estes índices são igualmente fornecidos à polícia
pelos familiares e podem ser divididos de acordo com a ausência ou presença de
materialidade. Para familiares e polícia, trata-se de ter, quando do momento do registro,
algo a dizer e algo a mostrar sobre esses corpos ausentes.

Entre os índices falados estão inclusas informações sobre sexo, idade, altura, peso, tipo
e cor dos cabelos, cor da pele, dos olhos, além de sinais particulares como cicatrizes,
tatuagens, marcas de nascença, deficiências físicas (como por exemplo, uma
amputação), arcada dentária, entre outros. À primeira vista, descrever alguém a partir da
caracterização de seus traços físicos pode parecer uma tarefa simples. Basta
acompanhar, no entanto, alguns registros de desaparecimentos para perceber que esses
traços, aparentemente muito objetivos, não são autoevidentes, e que estão sujeitos como
outros índices a uma série de interpretações – bem como à eventual ausência de
interpretações. Para a maior parte das pessoas, descrever alguém ou alguma coisa
apenas a partir de lembranças não é tarefa fácil. Descrever então com a riqueza de
detalhes e a precisão que o protocolo policial exige, menos ainda. Por exemplo, uma
mãe com cerca de 1,50m de altura dirá que seu filho é “alto”, se ele tiver 1,60m ou
1,70m. Mas para a polícia, dizer apenas “alto” não basta, porque essa diferença de dez
centímetros pode significar uma redução considerável (talvez dezenas, num universo de
centenas de supostos com outras características físicas semelhantes) de casos a
examinar, de corpos a comparar. Mas aqueles que chegam à delegacia para registrar um
desaparecimento provavelmente nunca tiveram que responder sobre a estatura de seu
familiar com esta precisão. O mesmo se dá em relação à cor dos olhos, dos cabelos e de
outras características físicas. Durante o trabalho de campo foi comum ouvir familiares
hesitando quando solicitados a elaborar uma descrição física do ausente, através de
afirmações como: “não me lembro se os olhos são pretos ou castanhos”; ou “o cabelo
dela é castanho, mas ela tinge. Da última vez ela tingiu de uma cor que eu não sei bem,
meio loiro, meio ruivo... mas acho que estava mais para loiro escuro”; ou “o cabelo dela
é bem encaracolado, crespo mesmo, mas ela alisa, faz escova... mas eu não sei se no dia
ela tinha feito escova”; ou “eu não lembro as roupas que ela usava, não sei, acho que
usava jeans e camiseta, mas não lembro a cor”; ou “ele tem tatuagem sim, mas eu não
lembro o que é, não sei se é um pássaro ou uma rosa... talvez seja um dragão”; ou “ele
tem uma cicatriz de queimadura enorme no braço, mas não lembro se é no esquerdo ou
no direito”.

127
Assim como acontece em relação às narrativas dos familiares sobre a personalidade e
hábitos do ausente, a polícia tem que transformar essas informações muitas vezes
imprecisas em algo a partir do qual seja possível trabalhar. Para tanto, é preciso que as
perguntas tornem-se elas mesmas mais precisas para o familiar. Uma maneira eficaz de
fazê-lo é colocar em jogo outros índices, estabelecer bases comparativas, a partir das
quais o familiar poderá comparar aquilo que traz na memória sobre a materialidade do
ausente, com outras materialidades que ele possa ver. Por exemplo, se uma mãe com
estatura de 1,50m diz que seu filho é “alto” pede-se a ela que fique de pé ao lado de uma
ou mais pessoas presentes (ao longo do trabalho de campo, me prestei a ser comparado
assim algumas vezes) e diga qual daquelas pessoas tem uma altura mais próxima a de
seu filho. Neste caso, sua própria estatura, posta em relação com a de terceiros, servirá
para a formação de um parâmetro mais confiável. Ela dirá “acho que é mais ou menos
da altura deste moço, porque eu lembro de ‘bater’ mais ou menos no ombro dele”. O
“moço” em questão dirá que mede 1,84m e a partir destas informações, é possível supor
uma altura aproximada de 1,80 para aquele “desaparecido”. Trata-se, na medida do
possível, de traduzir aquilo que familiares trazem na memória, de transformar índices a
dizer em índices a mostrar, o que torna a operação de descrição do ausente mais
precisa, tanto para os próprios parentes quanto para a polícia. Para facilitar esta
tradução, a delegacia faz uso de uma apostila75 (apresentada aos familiares no momento
do registro) contendo diversas fotos e desenhos de pessoas, que representem a maior
diversidade possível em cada uma das características físicas que contam como
diacríticos capazes de diferenciar uma pessoa das demais. Por exemplo, no que diz
respeito à cor da pele (uma questão que admite respostas as mais variadas), os parentes
do ausente tem que escolher e apontar uma das diversas fotos de pessoas com diferentes
tons de pele. A resposta para a pergunta “qual é a cor de pele do seu irmão?” torna-se
“ele é pardo, mais ou menos como essa pessoa aqui na foto”. Poder-se-ia argumentar
que esta tradução não acrescenta muita diferença à tarefa de descrição, ou ao menos que
não acrescenta uma diferença objetiva, já que, o fato de o familiar estar vendo a
“mesma” foto que o funcionário responsável pelo registro do desaparecimento está
vendo não eliminaria o caráter subjetivo da operação; ao contrário, acrescentaria a
necessidade de articulação entre pelo menos duas interpretações diferentes sobre
“aquilo que é a cor parda”. O ponto a ser destacado é que a tradução entre dizer e

75
Ver anexo 5: “Charts para auxílio no cadastro de informações dos familiares de desaparecidos na
pesquisa de desconhecidos do PCnet”

128
mostrar se faz em termos bastante específicos, já que as fotos e desenhos estão
organizados na apostila de maneira tal que se refiram sempre a alguma categorização
previamente estabelecida pela polícia. A apostila opera, portanto , assim como os
demais protocolos relativos à subjetividade do ausente, um efeito objetificador. Apontar
o dedo em direção a uma foto e não em direção a outra significa responder “pardo” ao
invés de “negro” ou “branco”, por exemplo. Assim, fotos e imagens de pessoas que a
priori não tem conexão alguma com o ausente também tornam-se índices, passam a
significar algo, a certificar algo, a contribuir para que na constituição do “desaparecido”
haja também um corpo, com determinada cor, peso, altura, etc.

Figura 12 - Charts para auxílio no cadastro de informações dos familiares de desaparecidos - categoria "cor da
pele" - DRPD

Poder-se-ia argumentar: “mas a família não leva uma foto do ausente, que será usada
nos cartazes? Por que então usar outras, ao invés desta?”. A foto (ou fotos) levada por
familiares será usada, obviamente. Constitui, com eventuais inscrições produzidas por
exames médicos e odontológicos (radiografias, tomografias e moldes ortodônticos) os
índices a mostrar. Mas esta foto de família nem sempre é um bom índice, ou nem
sempre é um índice bom o suficiente. Ao contrário daquelas produzidas por técnicos da
polícia, não foi feita com o intuito de identificar alguém. Uma foto do ausente em preto
e branco não ajuda o familiar a dizer em qual categoria de cor de pele o ausente poderia
ser enquadrado, por exemplo. Também não garante informações precisas sobre sua
129
altura, peso, ou mesmo sobre eventuais sinais particulares. Da mesma maneira, uma
foto feita há alguns anos pode enganar, pode dizer sobre o ausente coisas que não
deveriam ser ditas quando se trata de localizá-lo. Se os familiares trazem à delegacia
uma fotografia de um homem careca feita quando ele ainda ostentava um belo topete
(esta pode ser a única foto que possuem), esta foto certamente não será um bom
referencial para localizá-lo. Um cartaz de “desaparecido” que contenha uma fotografia
de alguém que não se pareça com o ausente tal como ele se parece hoje não terá muita
utilidade.

Os usos de fotografias na constituição de “desaparecidos” evidenciam dois aspectos


relativos ao índice fotográfico apontados por Phillippe Dubois (2009): em primeiro
lugar, ainda que como todos os índices, a fotografia mantenha com seu referente uma
conexão física (pois trata-se sempre de uma inscrição provocada pela reflexão da luz na
pessoa fotografada e inscrita numa superfície sensível) que ateste a existência deste
referente num momento e num lugar determinados, isso não significa que ela signifique
algo a priori: não se deve “confundir essa afirmação de existência com uma explicação
de sentido” (DUBOIS, 2009:83). Por mais variados que possam ser os significados
desta ou daquela foto para a família, por mais variados que possam ser os momentos
que esta foto evoca, o que ela passará a designar, ao fazer parte da constituição daquele
“desaparecido” em particular é “assim é esta pessoa”. A foto escolhida para compor o
cartaz poderá ser ou não a mesma utilizada em outros documentos do ausente. Mas será
sempre uma fotografia de identidade judiciária, que atesta esta nova forma de existir que
é ser um “desaparecido”. A fotografia neste contexto torna-se tão objetiva quanto outros
invariantes morfológicos: espécie de “impressão digital” que não mudará, a foto
“congela” - não mais um momento no passado ao qual poderia remeter inicialmente,
mas o que virá a partir de agora: a impossibilidade de decomposição da “pessoa”. Os
“desaparecidos” tem uma cara, e somente uma: não estão mais sujeitos à ação do tempo
porque existem num outro regime de temporalidade, aquele da distância e da memória.
Para os familiares pode haver outras fotos, mas esta imagem escolhida será, num certo
sentido, a última: até que o ausente retorne, este será o seu rosto, é com este rosto que
conviverão, será esta a imagem que procurarão. Esta foto será simultaneamente índice e
ícone:

“A partir do momento em que a imagem-índice pretende se


inscrever a longo prazo, se fixar pela memória, isto é, a partir do

130
momento em que a imagem pretende ultrapassar seu referente,
eternizá-lo, congelá-lo na representação, portanto substituir, como
traço detido, sua ausência inelutável, então esta imagem perde parte
do que constituía sua pureza indicial, perde sua conexão temporal.
O índice torna-se parcialmente autônomo. Abre-se para a
iconização, isto é, para a morte.” (DUBOIS, 2009:121)

Esta fixação pela memória remete a um segundo aspecto apontado por Dubois a respeito
da fotografia enquanto índice: ainda que só exista a partir de um contato físico com seu
referente, ela marca um distanciamento espacial e temporal em relação ao que foi
fotografado. Se sua produção está condicionada a uma presença sendo inscrita, o que
vemos em qualquer foto é necessariamente um “duplo” desta presença, algo ou alguém
que não está mais ali, mas que ainda assim continua a estar, num certo sentido. “Na
fotografia, o encontro (com o real) sempre parece iminente, mas a distância sempre se
revela exorbitante. Jamais se incorpora. (...) A fotografia é a aparição de uma ausência”
(DUBOIS, 2009:248). É inevitável ao olhar um cartaz com o retrato de um
“desaparecido” não ceder à tentação de tornar aquela imagem familiar: não vemos essas
fotos com o intuito de gravá-las em nossas mentes para uma eventual comparação
posterior com pessoas no meio da multidão, mas sim como se pudéssemos re-conhecer
aquela pessoa em questão, como se talvez já a tivéssemos conhecido. Há algo de
fantasmático nessas imagens, nesse “movimento rumo ao contato” (DUBOIS,
2009:247) que essas imagens nos convidam a fazer. É mais fácil não vê-las, porque é
difícil não nos envolvermos quando olhamos para elas. É sintomático que boa parte das
ligações recebidas pelo serviço 0800 que a DRPD disponibiliza venha de pessoas que
desejam falar com a CEMIG (concessionária de energia elétrica em Minas Gerais e
parceira da delegacia na divulgação de imagens e informações de pessoas
desaparecidas) a respeito de suas contas de luz76. Conforme Elenir (a analista de
comunicação responsável pelo Núcleo de Comunicação Social da delegacia) me disse
numa de nossas conversas:

“É impressionante como as pessoas não enxergam as fotos de desaparecidos. Parece que


não querem enxergar. Tem duas fotos na conta de luz, com o telefone da delegacia
embaixo, as pessoas conseguem ver apenas o telefone sem associar com os

76
Anexo 6

131
desaparecidos (...). Acho que as pessoas não querem se envolver; só se envolvem
quando são obrigadas a isso, quando um parente desaparece”.

A despeito do desejo de algumas pessoas em não se envolver, há inúmeros casos de


localização a partir do reconhecimento de “desparecidos” em cartazes e fotos veiculadas
em jornais, faturas de água e eletricidade, folhetos publicitários e outros meios
oferecidos por parceiros da DRPD. Desde casos de desaparecimentos voluntários em
que o ausente decide retornar ao convívio da família depois de ver um cartaz com sua
foto em algum local público até aqueles em que o “desaparecido” é reconhecido por
terceiros que informam à polícia sobre seu paradeiro. Um dos mais pitorescos a mim
relatados foi o de um adolescente “devolvido” à família pelo traficante com quem
trabalhava depois que este viu sua foto no Jornal do Ônibus. Segundo o jovem, seu
“patrão” temeu ser tomado por sequestrador e ordenou que voltasse para a casa da
família.

Há, finalmente, os casos de desaparecimento que são solucionados a partir do encontro


entre os índices produzidos na delegacia e aqueles no IML a partir dos corpos que dão
entrada no IML como “desconhecidos”. No primeiro capítulo deste trabalho descrevi o
processo a partir do qual cadáveres são transformados em laudos odontológicos e
antropológicos, amostras de DNA, fichas datiloscópicas e fotografias em termos de
referência circulante. É este processo que permite aos corpos desconhecidos continuar a
existir, mesmo depois de enterrados e decompostos. É esse mesmo processo que faz
com que esses corpos possam eventualmente ser reconhecidos numa tela de computador
numa sala da Divisão de Desaparecidos. Quando os índices produzidos no IML e na
DRPD se encontram, quando dizem respeito ao mesmo referente, “desaparecidos” e
“corpos desconhecidos” voltam, por um breve momento, a se tornar a mesma pessoa, a
se tornar “pessoa natural”. Um breve momento sim, que faz toda a diferença:

Depois de terminado o registro, um dos policiais acompanha as duas senhoras


até a sala dos investigadores. Elas vieram por Wellington, de quem não tinham
noticias há uma semana. O jovem de 15 anos estava envolvido numa série de
atividades criminosas, como tráfico de entorpecentes e assassinatos. Há cerca
de quinze dias havia matado um policial militar. Com medo de alguma
retaliação, mudara-se para a residência da avó, num bairro distante. Depois de
seu desaparecimento, alguns de amigos de Wellington disseram à família que o

132
rapaz estava morto. Em casos nos quais há suspeita de assassinato, é de praxe
que os investigadores tentem, junto com a família, localizar o desaparecido
através dos laudos sobre “desconhecidos” produzidos pelo IML, que são
disponibilizados para consulta na rede PCNet. Nestas situações, localizar o
“desaparecido” e reconhecer o “desconhecido” tornam-se operações
equivalentes. A avó, Dona Teresa não tinha dúvidas sobre o que acontecera ao
neto:

“tenho certeza que ele foi morto, os búzios me disseram. E me disseram


também que foi aquele policial ‘fulano’, que mora perto do supermercado.”

Mary, filha de Dona Tereza e mãe de Wellington ainda nutria esperanças de


que o filho estivesse vivo. Dona Tereza tentava desencorajá-la e ampará-la ao
mesmo tempo. Depois de nos acomodarmos nas cadeiras e sofás em frente a
um dos computadores – eu havia pedido às duas senhoras, bem como ao
policial, para acompanhar a tentativa de reconhecimento – o investigador
acessou o programa. No menu “pesquisa”, escolheu “desaparecidos”, e
“cruzamento de dados com pessoas desconhecidas”. Após escolher “pesquisa
avançada”, uma nova tela de busca foi aberta. Nesta tela é possível listar todas
as características físicas do “desaparecido”, além de sinais particulares como
tatuagens ou cicatrizes, que possam auxiliar em seu reconhecimento.

133
Figura 13 - Busca por desconhecidos no programa PCNet

Uma vez preenchidos os campos de pesquisa, o sistema cruza informações com


o banco de dados e seleciona aqueles “desconhecidos” cuja caracterização feita
pelos técnicos do IML mais se aproxima daquela feita pela família. Os supostos
são mostrados de acordo com o “grau de compatibilidade”. No caso da
pesquisa feita pela mãe e avó de Wellington, três desconhecidos apresentavam
compatibilidade maior que 96%. O investigador clica no primeiro suposto e
acessa as fotos anexadas ao laudo. A disposição dessas fotos segue uma lógica
que facilita o eventual reconhecimento pelos familiares: A primeira é sempre
um retrato frontal do rosto. A despeito de eventuais ferimentos ou
deformidades apresentados pelo cadáver, esta primeira foto geralmente se
parece com outras que a família geralmente possui do “desaparecido”, como
aquelas anexadas em documentos. Em seguida, fotos das roupas com as quais
o corpo foi encontrado, sinais particulares, tatuagens, cicatrizes, enfim, indícios
que possam acrescentar significado à primeira fotografia. A foto é de um rapaz
de cor parda, que parece ter, como Wellington, cerca de quinze anos. Embora o
cadáver se pareça fisicamente com Wellington, as duas senhoras não tem
dúvidas a respeito: “esse não é ele, não é o meu filho”. O investigador mostra
outras fotos, das tatuagens do morto, que ratificam o parecer inicial e bastam
para descartar este primeiro suposto.

134
Quando o investigador acessa as fotografias do segundo suposto, Dona Tereza
afirma sem pestanejar: “é ele!”. Mary não tem tanta certeza. Compara a foto
que trouxe à delegacia, na qual o filho aparece sorrindo, com aquela mostrada
na tela do computador. Eu e o investigador também comparamos. Parece
mesmo se tratar de Wellington. Como é comum em cadáveres encontrados
poucas horas após o falecimento, o suposto está com olhos e boca
semiabertos. Tem uma “expressão”, que não é exatamente a mesma daquelas
com as quais se costuma posar para retratos e que definitivamente não é a
mesma da foto que a mãe tem nas mãos – a foto que ilustra o cartaz de
Wellington como um “desaparecido”. A despeito dessas diferenças, o nariz e o
arco das sobrancelhas do jovem na tela do computador são de um rosto muito
parecido com aquele da fotografia que a mãe segura. Diante do impasse, o
investigador mostra outras fotos: uma camisa de time de futebol, uma
bermuda estampada vermelha e branca, uma cueca lilás com elástico branco,
um par de sandálias havaianas. Dona Tereza reconhece as roupas como sendo
do neto: “essa bermuda é dele mesmo, e essa cueca é do irmão, que ele usava
sem pedir emprestado, eu vivia falando para ele não pegar as coisas do irmão”.
Mar’ ainda está em dúvida. Como Wellington morava com a avó há cerca de
duas semanas e antes disso passava a maior parte do tempo na rua, a mãe não
sabe dizer se aquelas roupas pertenciam mesmo ao filho. Poderia no máximo
dizer que se parecem com as roupas que o filho costumava usar. A terceira foto
mostra a região do peitoral do cadáver, com um pequena cicatriz clara ao lado
do mamilo esquerdo. Neste momento, Mary começa a chorar copiosamente: “É
ele sim, é meu filho, eu conheço essa cicatriz, essa cicatriz ele fez no tombo de
bicicleta, a bicicleta que eu dei para ele no aniversário de dez anos!” Dona
Tereza e o investigador consolam a mãe, enquanto vou até a cozinha buscar-lhe
um copo d’água. Ela se acalma depois de alguns minutos e consegue falar sobre
Wellington:

“Ele sempre foi problemático, sempre me deu muito trabalho, parece que
gostava de se meter com coisas erradas.” A avó concorda e acrescenta: “Agora
eu quero é justiça, tenho certeza que foi aquele policial quem matou meu neto.

135
Meu neto nunca foi santo, a gente sabe das coisas que ele fazia, sabe que ele
era um diabo, mas justiça tem que ser para todo mundo né... meu neto teve a
dele, esse policial que matou ele tem que ter também”.

O investigador comunica por telefone ao IML o reconhecimento de Wellington


e explica às senhoras os trâmites burocráticos para liberação do corpo. À
delegacia responsável pelo encaminhamento do cadáver ao instituto Médico
Legal caberá a investigação pelo assassinato do jovem. As duas agradecem ao
investigador antes de ir embora. Sua busca pelo parente “desaparecido” havia
terminado. Agora se engajariam em outra busca, desta vez por justiça.

136
Considerações finais

“Não tinha mais medo, porque também a morte desaparecera de


sua frente. Em lugar dela via luz. ‘Então é isso!’, exclamou de
repente em voz alta. ‘Que alegria!’

Foi tudo isso obra de um instante, e a significação desse instante


não se modificou mais. Para os que o cercavam, porém, a sua
agonia ainda durou duas horas. Seu peito estertorava, o corpo,
esquelético, estremecia. Pouco a pouco os estertores e tremores
foram raleando.

- Acabou! – disse alguém perto dele.

Ele ouviu a palavra e repetiu-a na alma. ‘Acabou a morte. A morte


já não mais existe!’, ainda pensou. Aspirou profundamente, deteve-
se a meio, inteiriçou-se e morreu.”

(Liev Tolstoi)

“As ideias hegemônicas, assim, não estão mais sujeitas a prova ou


refutação do que os paradigmas kuhnianos, pois em ambos os
casos, adentrar o discurso equivale a substituir a questão de se as
coisas funcionam de uma determinada maneira pela questão
de como elas funcionam desse modo”

(Roy Wagner)

Antes de iniciar o trabalho de campo nos quais essa dissertação se baseia, uma de
minhas hipóteses era de que um dos efeitos do fenômeno de desaparecimento de
pessoas e da morte anônima seria o de tornar de certa forma “insustentável” a noção de
“pessoa natural” operante em nossa cosmologia; ou ao menos a maneira como
tradicionalmente articulamos essa noção com os seres a quem tradicionalmente
atribuiríamos o status de pessoas. O principal problema analítico decorrente desta
hipótese se colocaria mais ou menos nos seguintes termos: “se cadáveres desconhecidos
e pessoas desaparecidas não podem ser ‘pessoa’ tal como concebemos esta noção, o que
então eles podem ser?” Minha expectativa - ou talvez fosse mais apropriado dizer:
minha esperança - para responder a este problema de forma adequada era que, no

137
trabalho de campo, encontrasse outras formulações da categoria de “pessoa” que fossem
análogas àquelas desenvolvidas por autores como Roy Wagner (2001; 2011), Marilyn
Strathern (2006) e Alfred Gell (1998) a partir de seus trabalhos na melanésia; o que
tornaria possível “importar” categorias analíticas como “pessoa fractal”, “divíduo” ou
“pessoa distribuída” para tornar inteligível a forma como “desconhecidos” e
“desaparecidos” ganham meios de existir entre nós.

A expectativa de responder ao problema nesses termos foi frustrada logo no início do


trabalho de campo na Divisão de Referência da Pessoa Desaparecida, e posteriormente
no Instituto Médico Legal. Não porque a intuição inicial de uma inadequação entre a
noção de “pessoa natural” e “desconhecidos” e “desaparecidos” não se confirmasse. De
fato, uma correspondência automática (ou natural) entre “pessoa” e “pessoas” não é
possível nesses casos, já que a relação de sobreposição entre os atributos que constituem
a categoria não se verifica concretamente na ausência de uma personalidade civil ou de
um corpo físico. No entanto, como tentei demonstrar ao longo deste trabalho, isso não
implica na completa impossibilidade de uma correspondência. Para minha surpresa, o
que encontrei ao longo do trabalho de campo foi mesmo a noção de “pessoa natural”,
funcionando em casos onde eu supunha ser impossível que funcionasse. Mas o que isso
significa, exatamente?

Em primeiro lugar, foi preciso reformular o problema de “se” a noção de “pessoa


natural” é adequada para situar ontologicamente cadáveres desconhecidos e pessoas
desaparecidas, para o problema de “como” ela pode ser adequada pelos agentes que
lidam diretamente com o problema para solucionar casos de não identificação e
desaparecimentos. Esta reformulação implicou numa abordagem da noção, não apenas
com uma espécie de categoria nativa implícita - que de certa forma poderia ser
objetivada pelo antropólogo a partir do estudo de determinadas práticas 77; mas, como
coloca Manuela Carneiro da Cunha (1978), como uma “reflexão” que a sociedade faz a
respeito de si mesma. Esta abordagem sugere que a relação entre a noção de “pessoa
natural” e os “desconhecidos” e “desaparecidos” não é necessariamente de
“correspondência”, mas que se dá a partir de uma redefinição da relação entre os
77
- Esta parece ser a posição de Meyer Fortes a respeito dos Tallensi. Fortes afirma que “the ideas, the
beliefs, the linguistic usages, the dogmas and so forth – in short what the ethnographer represents as a
conceptual scheme – are accessible to discovery primarily by reason of their realization in the customary
or institutionalized activities of people. (…) the ideas and beliefs relating to such abstract notions as that
of the person (…) where more commonly exhibited in action and utterance than being formulated in
explicit terms.” (1973:284)

138
atributos constitutivos da categoria e aqueles geralmente encontrados em espécimes
humanos vivos e fisicamente presentes, a quem percebemos como pessoas. A “pessoa
natural” não seria constituída, portanto, apenas pela presença dos atributos “condição
humana” e “espécie humana”, mas por uma relação específica (de sobreposição) entre
esses atributos, legitimada juridicamente. De maneira análoga, “desconhecidos” e
“desaparecidos” não seriam definidos apenas pela ausência de um desses atributos em
seres reais, mas pela relação entre esta ausência e a relação de sobreposição conceitual
anteriormente colocada como dada ou “natural”. Durante o trabalho de campo no IML e
na DRPD, percebi a noção de “pessoa natural” como o grande referente em torno do
qual se organizam as práticas que permitem identificar “desconhecidos” e localizar
“desaparecidos”, a partir da constituição desses seres como versões alternativas da
“pessoa”.

Assim, cadáveres desconhecidos e pessoas desaparecidas levam Estado e familiares a


deliberadamente refletir, teorizar e produzir saberes a respeito de corpos e condições
humanos, bem como sobre as relações possíveis entre eles, como se a relação de
sobreposição pudesse sempre ser restituída; seja para terminar a morte de uns (no casos
dos “desconhecidos”, é preciso extinguir a personalidade civil correspondente ao
cadáver), seja para dar continuidade à vida de outros (no caso dos “desaparecidos”,
busca-se o encontro com vida e retorno ao convívio da família). No entanto, este retorno
(ideal) à “pessoa natural” nem sempre se efetiva na prática: há casos em que
“desconhecidos” permanecem sem traços de pessoalidade, o que legitima sua
apropriação pelo Estado como “coisa” (ainda que fora do comércio); e há casos em que
“desaparecidos” permanecem desaparecidos, o que estabiliza sua existência como um
“ser” sem “estar”, a presença de uma ausência, que povoa de angústia e incerteza o
cotidiano de familiares e amigos. Ainda assim, a manutenção potencial da
correspondência corpo/condição moral é fundamental para que cadáveres sejam
identificados e pessoas ausentes tenham seu paradeiro determinado.

No primeiro capítulo, defini as mortes concluídas pelo/no IML como resultado de um


processo técnico e burocrático no qual, através do trabalho realizado por peritos, os
cadáveres são qualificados a dizer algo a respeito de si mesmos, e a “convencer”.
Através da articulação entre cadeias de referência judiciais (cadeia de custódia) e
científica (referência circulante), que resulta na produção de laudos e outras evidências,
os corpos são investidos de um corpus de conhecimento que tem por finalidade rés-

139
subjetivar o defunto. Trata-se, através de técnicas próprias à medicina, antropologia e
odontologia forenses, de dotar estes corpos do máximo de pessoalidade possível, na
medida em que os eventuais índices ao quais se poderá vinculá-los dizem respeito
também a pessoalidades. Partindo-se dos corpos, e a eles voltando, o que se busca saber
é o “quem”; o que se busca é a “pessoa”. A partir da morte biológica – uma evidência
incontornável – busca-se um sexo, uma cor de pele, uma idade, um rosto, uma
impressão digital, um DNA, uma identidade civil... e uma vida, para pôr fim; volta-se à
morte, desta vez não como ponto de partida, mas como o fim da “pessoa”, que deve
acompanhar a decomposição do cadáver.

De maneira análoga, pessoas cujo paradeiro se desconhece são constituídas enquanto


“desaparecidos”, a partir das relações estabelecidas entre familiares e policiais. Os
índices fornecidos por familiares e objetificados pela polícia em termos de casos
particulares, passíveis de serem instrumentalizados e solucionados, faz com que
“desaparecidos” tenham tanto uma condição moral - da qual os parentes tornam-se
porta-vozes legítimos – quanto um corpo, que se torna presente em cartazes e em
bancos de dados mantidos e administrados pelo Estado, de maneira a permitir um
eventual reconhecimento por terceiros e a consequente localização com vida, além da
comparação com os dados produzidos no IML.

Além desses casos específicos, há aqueles em que as técnicas jurídicas constituem


cadáveres ora como pessoas, ora como coisas; de acordo com a apropriação de relações
entre vivos e mortos segundo uma tradição autorreferenciada, de maneira a reafirmar as
relações ideais entre uma determinada noção de “pessoa” e outra de “sociedade”, que
lhe corresponda. Admite-se eventualmente a relativização da “pessoa natural” para
reafirmar relações de oposição ontológica caras ao pensamento ocidental, como aquelas
entre “pessoas” e “coisas”, “indivíduo” e “sociedade”; bem como para sancionar
determinadas relações de continuidade espiritual e/ou material entre vivos e mortos, que
seriam determinantes para a reprodução da vida social.

Em todos estes casos a morte se faz presente, direta ou indiretamente, colocando


pessoas e coisas em relação e produzindo a si mesma enquanto diferenciação: seja a
morte real dos “desconhecidos”, seja a morte potencial dos “desaparecidos”, seja a
morte filosófica ou material, seja como ponto de partida ou como ponto de chegada.
Ciente de que talvez não tenha conseguido responder a todas as perguntas suscitadas ao

140
longo deste trabalho, termino com a bela – e enigmática – definição de Deleuze, para
quem

“a morte é antes de tudo a forma derradeira do problemático, a


fonte dos problemas e das questões, a marca de sua permanência
acima de toda resposta, o Onde e o Quando? que designa este
(não)-ser em que toda afirmação se alimenta.” (2009:114)

141
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150
Anexos

Anexo 1 – Ficha de Exame Odonto-legal

151
Anexo 2 – Ficha de para recolhimento de impressão datiloscópica

152
Anexo 3 – Esquema de Lesões (A)

153
Anexo 3 – Esquema de Lesões (B)

154
Anexo 3 – Esquema de Lesões (C)

155
Anexo 3 – Esquema de Lesões (D)

156
Anexo 4 – Total de pessoas desaparecidas e localizadas em Minas Gerais até
outubro/2011

157
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (A)

158
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (B)

159
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (C)

160
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (D)

161
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (E)

162
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (F)

163
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (G)

164
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (H)

165
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (I)

166
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (J)

167
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (K)

168
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (L)

169
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (M)

170
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (N)

171
5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (O)

172
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (P)

173
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (Q)

174
Anexo 5 – Chart para auxílio na pesquisa de desconhecidos pela informação dos
familiares (R)

175
Anexo 6 – Fatura de energia elétrica com foto de desaparecidos

176

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