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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS. 2141993, pp. 59-74 Modos de vida Novos percursos e novos conceitos Isabel Guerra* Resumo: A re-emergéncia do tema modos de vida recuperando um conceito tradicio- nal na sociologia urbana (¢ nao sé) estd longe de colocar os mesmos problemas do conceito inicial de Wirth. A sua abrangéncia, e os guestionamentos que encerra so, em si, 0 maior factor de indefinigio desta nogdo que se torou um "leitmotiv” sem conteiido preciso. No entanto, este conceito, ainda hoje confuso, permite interrogar ‘5 pressupostos mais essenciais da teoria socioldgica. A proposta das andlises dos "modos de vida" ao trazer a superficie as velhas questdes da teoria sociolé; retende reconciliar, pelo menos, trés niveis analiticos ainda pouco articulados: sistema e os actores, a Histéria ¢ 0 quotidiano, e 0 objectivo ¢ 0 subjectivo na percepgao do real. Mas, a utilizago deste quadro de referéncias exige, ainda, a exploracao de novas dimensées de andlise outrora secundarizadas pela sociologia. A idemtificagao da triologia tradicional da sociologia: “priticas”, “estruturas” e “rep sentagées” acrescentam-se novas dimensdes como 0 "imagindrio social”, dimensfio prospectiva e de ruptura com o real. Este novo percurso vai exigir a elaboragao (ou re-eleboragéo) de novos conceitos, a maioria "transversais”, que se situam na eneru- zilhada de diversas ciéncias — o conceito de identidade e de projecto, por exemplo. 1. Modos de vida : uma nogao sem contetido preciso A re-emergéncia do tema modos de vida, se recupera um conceito tradicional na sociologia urbana (e nao s6') esta longe de colocar os mesmos problemas do conceito inicial de Wirth. Asua abrangéncia ¢ os questionamentos que encerra sao, em si, o maior factor de indefinigaio desta nogio. "A partir da interrogacdo sobre os modos de vida podemos "encontrar" toda a sociologia (ou quase), sem contar com uma boa parte da antropologia e da psicologia social (e talvez mesmo da demografia ou da geografia humana)"*, Questionando os fundamentos da sociologia, 0 conceito de modos de vida tomnou-se um “leitmotiv” sem contetido preciso. "0 "modo de vida" é, em larga medida, uma nocdo trivial que banaliza todo o pensamento, mesmo o mais rigoroso, jé que ndo exige nenhuma clarificagao" (Juan, 1991, p. 13). Na tentativa de encontrar definigdes mais precisas, utiliza-se hoje os conceitos de "modo de * — Docente do Departamento de Sociologia do ISCTE, investigadora no CIES e no CET 60 Isabel Guerra vida", “estilos de vida", géneros de vida/genres de vie" atribuindo-Lhes contetidos, por vezes, de referéncias contraditérias. Diga-se de passagem, que este nao ¢ um fendmeno novo em sociologia. Como lembra Lacascade (1981) 0 conceito de “modos de vida” tal como outros conceitos socioldgicos (0 de classes por exemplo), pode ser suporte, quer de um discurso ideolégico, quer de um discutso cientifico, necessitando de uma definigdo clara e sem ambiguidades. Para Juan (1991) 0 uso do conceito “modos de vida” para qualquer pesquisa empirica confronta-se desde logo com dois obstaculos que é util distinguir sobre 0 plano analitico: um obstéculo légico ¢ um obsticulo socioldgico. O primeiro diz respeito a classificacdo das praticas; unificam-se os conjuntos de priticas pelos individuos ou unificam-se os individuos por um conjunto de praticas? O obstaculo socioldgico remete para a relag’o entre as priticas ¢ a posigae social: os niveis de recursos criando oportunidades de certas praticas sociais geram estatutos sociais que sao portadores de ldgicas culturais especificadas potencialmente classificadas como “légicas de classe”? 2. Novas dimens6es e novas articulagées A proposta das anilises dos “modos de vida” ao trazer a superficie as velhas questdes da teoria sociolégica pretende reconciliar, pelo menos, trés niveis anali- ticos até ai pouco articulados: o sistema e os actores, 4 Histéria € o quotidiano, o objectivo e 0 subjectivo na percepgdo do real. 2.1, A "descoincidéncia articulada” entre o actor e o sistema Uma das principais tenses da sociologia, particularmente presente no confronto entre a sociologia espacial (ecoldgica e “estrutural”) c a sociologia da cidade (de cariz “culturalista”), 6 a que opée as capacidades individuais aos determinismos iais. Os autores desenvolvem os scus modelos tedricos ¢ empiticos, quer valorizando as praticas e racionalidades individuais, quer valorizando 0 “peso das estruturas” na determinagio das condigées individuais e nos “habitus” que elas produzem. A anilise desta articulagéo complexa entre o sistema e os actores da lugar a um dos mais interessantes debates no dominio da ciéncia social e que se situa no coragdo de diversas disciplinas sociais. Nos ultimos anos, em sociologia, o debate retoma Parsons e é desenvolvido por socidlogos de renome como Crozier (1977), Boudon (1979, 1982, 1984, 1989), Mendras (1983), Touraine (1984), entre outros. Comoescreve Mendras*: "depois de um periodo em que es sociélogos viveram fascinados pelas tendéncias pesadas que atravessaram o planeta, vem um perfodo em que eles se interessam mais pelas diversidades, pelas forcas discretas presentes Modos de vida 61 em cada segmento da sociedade. Sem se atrever a defender que ndo hd sociologia sendo dos actores individuais, esforcamo-nos para demonstrar que hé maior liberdade nas rodas da engrenagem e que o resultado das forcas globais é segmentario e, por vezes, contrdria d expectativa". Afastando-se de uma sociologia das “estruturas”, estes autores situam a sociologia no estudo dos processos de “interacgao” ¢ de “interpenetragdo” entre os "sistemas pessoais" e os “sistemas sociais”. Crozier justifica 0 seu objecto no livro — L’acteur et le systtme — dando conta de uma no continuidade entre actor ¢ 0 sistema: “Este ensaio é, antes de mais, uma reflexdo sobre as relagdes entre o actor ¢ o sistema. E, com efcito, em toro da existéncia destes dois pdlos opostos que se estrutura 0 raciocinio que fazemos. O actor nio existe fora do sistema que lhe define a liberdade e a racionalidade que pode usar na sua accdo. Mas 0 sistema nao existe sendo pelo actor, 0 tinico ente que Ihe pode dar vida ¢ mudar-lhe o sentido. E na justaposigio destas duas Idgicas que nascem os constrangimentos da ac¢ao organizada que o nosso trabalho péc em evidéncia"*, Boudon Sretoma as mesmas interrogag6es quando escreve que a atengao socioldgica "propde-se analisar as relagées complexas entre a estrutura dos sistemas de interaccdo definidos pelas instituigdes sociais e as expectativas, Sentimentos e accdes dos agentes". Do mesmo modo A. Touraine defende a reconciliagdo do sistema com os actores:”... Este livro (Le retour de l’acteur) cré que é posstvel, e necessério, definir um outro tipo de andlise, no centro da qual se coloca a ideia de ac¢do social... essencial é que a separacdo crescente do actor e do sistema qseja substituida pela sua interdependéncia, gracas a ideia de sistema de ac¢ao". © Desde hd muito que Touraine insistia no estudo dos "sistemas de accdo histérica",o que implicava "que em lugar de colocar a Sociedade na historia, é preciso colocar a histéria na Sociedade e chamar-lhe historicidade". As “estruturas" que organizam os sistemas ¢ os “modos de acgao colectiva” nao sao dados "naturais” que aparecem espontaneamente e cuja existéncia iria por si como resultado automatic de uma dinamica qualquer. Também nao so 0 fruto da soma linear das decisGes individuais. As “estruturas” sio sempre “provisorias e contingentes”, fruto das solugdes encontradas pelos actores gragas a recursos € capacidades especiticas ¢ historicamente datadas. Esta articulagao entre sistema c actor é bem enunciada por Curie (1989): "Se os homens fazem a historia é a partir daquilo que a historia fez deles, mesmo se é conyeniente ndo esquecer que, segundo J. P. Sartre, séo os homens e ndo as condi¢ées anteriores de vida que sao os autores da historia". Asestruturas e as formas de acco colectiva (mais ou menos formalizadas/ins- titucionalizadas) séo “artefactos humanos", estruturacao de um "minimo de orga- nizacdo dos campos de ac¢do social" ’. Isto significa que o sistema é 0 resultado de “efeitos de agregacao” ou de “efeitos de sistema” (Crozier, 1977) cuja légica de funcionamento nao provém directamente da racionalidade/intencionalidade dos actores individuais.

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