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DOI: 10.1590/1413-81232014201.

04662013 125

Recovery: revisão sistemática de um conceito

REVISÃO REVIEW
Recovery: systematic review of a concept

Ivana Oliveira Preto Baccari 1


Rosana Teresa Onocko Campos 1
Sabrina Stefanello 1

Abstract The concept of recovery has been de- Resumo O conceito de recovery tem sido descrito
scribed in papers as a state of psychic, physical and em artigos como um estado de recuperação ou res-
social recuperation of day-to-day functions. The tabelecimento de funções psíquicas, físicas e sociais
scope of this article is to analyze the concepts of the no funcionamento cotidiano. O objetivo do artigo
term in different research methodologies and the é analisar concepções terminológicas em diferentes
paradigmatic evolution of the recovery concept. metodologias investigativas e a evolução paradig-
Systematic bibliographical research was conduct- mática da noção de recovery. Pesquisa bibliográ-
ed in the Pubmed database using the words “re- fica sistemática na base Pubmed com as palavras
covery + schizophrenia” limited to freely available “recovery + schizophrenia”, limitada a dois anos
full papers published in the previous two years. retrospectivos e a artigos completos gratuitos. De-
Nineteen papers were analyzed. The majority of zenove artigos foram analisados. A maioria destes
the papers sought associations between character- busca associações entre dada característica e reco-
istic data and recovery; few papers discussed the very, poucos são aqueles que discutem a sua con-
concept in a way to distinguish it from other words cepção de forma que se distinga de termos comuns
like cure or rehabilitation. Recovery as a state in como “cura” e “reabilitação”. Recovery como um
which people with severe mental illness can feel estado em que o portador de transtorno mental
like the creators of their own itinerary tend to be grave possa sentir-se criador de seus caminhos
found in qualitative studies and in bibliographic tende a estar presente em estudos com metodo-
reviews in which the meaning of recovery is not logia qualitativa e em revisões bibliográficas, em
related to the lack of symptoms and tends to pri- que a medida de recovery deixa de relacionar-se
oritize how participative the life of an individu- à ausência de sintomas e passa a priorizar o quão
al can be despite the disease. Some quantitative participativa pode ser a vida de um indivíduo
studies detect this conceptual difference. In qual- apesar da doença. Alguns estudos quantitativos
itative research there is an increase in the concept vislumbram essa diferença conceitual. Em pesqui-
of recovery and in ways of promoting it. sas qualitativas ocorre expansão na concepção de
1
Faculdade de Ciências Key words Psychiatry models/theories, Rehabili- recovery e nas formas de promovê-lo.
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas. R. tation, Research and methods projects, Interdisci- Palavras-chave Modelos/Teorias de Psiquiatria,
Tessália Vieira de Camargo plinary relations, Social and political issues Reabilitação, Projetos de pesquisa e métodos, Re-
126, Cidade Universitária lações Interdisciplinares, Questões sociais e políti-
Zeferino Vaz. 13083-887
Campinas SP Brasil. cas
ibaccari13@yahoo.com
126
Baccari IOP et al.

Introdução Objetivo

O conceito de recovery tem sido descrito em ar- A palavra recovery, para The New Oxford Ameri-
tigos, principalmente internacionais e do campo can Dictionary , significa: 1. a return to a normal
da psiquiatria, como um estado de recuperação state of health, mind or strength; 2. the action or
ou restabelecimento de funções psíquicas, físicas process of regaining possession or control of some-
e sociais no funcionamento cotidiano, que pode thing stolen or lost. In recovery: in the process of
ou não ser temporário1,2. Encontramos raras re- recovering from mental illness, drug addiction, or
ferências ao recovery em artigos nacionais. Por past abuse3 (Retorno ao estado normal de saúde,
outro lado, o conhecimento das características mental ou física; ação. 2. A ação ou processo de
desse processo de restabelecimento seria funda- restabelecer posse ou controle de algo roubado
mental aos gestores e profissionais da saúde, por ou perdido. In recovery: em processo de restabele-
meio do reconhecimento de caminhos que o fa- cimento de doença mental, dependência química
voreceriam ou dificultariam. ou abuso de drogas). Essa definição aponta para
O uso da palavra recovery, nesse sentido, sur- o fato de que o que se discute aqui não se trata
giu na década de 70 e estabeleceu-se internacio- de mera formalidade de tradução terminológi-
nalmente nos anos 80 como novo paradigma na ca, mas de expansão conceitual, não obstante o
Saúde Mental. O termo, cuja tradução perma- dicionário já aponte um processo linguístico de
nece controversa, nasceu a partir de discussões evolução do termo na expressão in recovery: o
de usuários que estabeleceram um conjunto de que era retorno à condição pré-mórbida passa,
características processuais que os faziam sentir com a expressão, a significar um processo de re-
como que retomando os rumos de sua própria cuperação.
vida, após terem sido diagnosticados como por- O que se pretende, portanto, é analisar a uti-
tadores de transtorno mental grave. Esse concei- lização desse conceito expandido dentro do cam-
to ultrapassa as noções de cura e de remissão de po da psiquiatria e da saúde mental e estabelecer
sintomas como objetivos para o tratamento do possíveis relações epistemológicas entre distintas
sofrimento mental e está embasado na recupe- apresentações conceituais e metodologias de pes-
ração da esperança, reaquisição de algo perdido quisa. A dificuldade se dá com o fato de que a
com a doença e melhora na qualidade de vida. expressão idiomática não necessariamente é usa-
Trata-se de um modelo conceitual que leva em da para marcar a diferença conceitual, ou seja,
consideração condições internas e externas para encontramos tanto a palavra isolada como a ex-
sua efetividade. A partir disso, surgem os chama- pressão sendo utilizadas em sentidos que vão do
dos serviços orientados para recovery, em que se mais restrito ao mais amplo na literatura espe-
definem características para o funcionamento de cializada1,2,4-25. Dessa forma, optou-se por não se
serviços com vistas a facilitar que seus usuários realizar tradução, assim como não marcar a ex-
alcançassem recovery1,2. pressão pelo sentido expandido. Até o momento,
Consideram-se três pressupostos à noção de o uso do novo conceito, embora amplo, depende
recovery: 1. pode ocorrer naturalmente, indepen- de definições presentes no corpo do texto para
dentemente de tratamento; 2. pode ocorrer com que não se perca na ambiguidade, já que se tra-
ajuda de intervenção adequada; 3. recupera a di- ta de substantivo que pode ser usado em sentido
mensão de esperança, modificando a percepção vocabular, em artigos ou outros textos quaisquer,
das representações acerca das doenças mentais2. inclusive do campo da psiquiatria.
É de interesse ao campo da Saúde Coletiva o
conceito ampliado de recovery, de forma a apro-
ximá-lo das práticas em Saúde Mental nos servi- Metodologia
ços estabelecidos a partir da Reforma Psiquiátri-
ca brasileira. A abordagem voltada às noções de Realizou-se pesquisa de artigos na base Pubmed
melhora a partir da percepção de pacientes – no usando as palavras recovery e schizophrenia. Li-
lugar da mera avaliação dos parâmetros cujas mitamos a busca a dois anos retrospectivos e a
mudanças a equipe espera – parece fundamental artigos completos gratuitos. Obtiveram-se 22
à efetiva mudança do modelo profissional-cen- artigos, que foram impressos e seus resumos li-
trado de saúde no Brasil. dos4-25. Três artigos foram excluídos por não ter
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relação com a proposta desse artigo: o primeiro Encontrou correlação entre maior habilidade de
por tratar da recuperação pós-cirúrgica de ab- planejar o futuro e melhores resultados funcio-
dome agudo, por tricobezoar em paciente com nais, porém não houve correlação entre a primei-
história familiar de esquizofrenia (Síndrome de ra e a taxa de neurocognição16.
Rapunzel)4. O segundo tratava do efeito do taba- O segundo estudo é inglês e trabalhou com
gismo crônico sobre a modulação do lobo tem- 50 pacientes. Investigou bases neuroanatômicas
poral medial e sobre o volume do hipocampo em da esquizofrenia, procurando analisar regiões
alcoolistas5. O terceiro e último artigo excluído cerebrais responsáveis pela habilidade de plane-
falava sobre a recuperação no exame de poten- jamento, cruzando medidas clínicas de planeja-
cial evocado auditivo em ratos mutantes, com mento e psicopatologia com análises de resso-
reduzida função de neurotransmissores do tipo nância magnética. Usou uma base de dados de
NMDA de glutamato6. Os demais 19 artigos fo- um estudo clínico randomizado com pacientes
ram lidos integralmente e analisados7-25. participantes de terapia cognitiva, na qual não
havia diferenças iniciais quanto a características
sociodemográficas, habilidade de planejamento
Discussão ou morfologia cerebral, categorias depois ajus-
tadas para múltiplas comparações. Os pesqui-
Análise descritiva sadores esperavam que indivíduos com menor
habilidade de planejamento apresentassem re-
Dez dos trabalhos analisados são quantitati- dução de volume e densidade nas regiões fron-
vos7-16 (seis do tipo coorte7-12, dois transversais13,14 to-mediais e cingulares cerebrais. Para mensurar
e dois ensaios clínicos randomizados15,16); qua- tal habilidade, usaram dois parâmetros clínicos
tro trabalhos são revisões bibliográficas17-20 (três de capacidade/possibilidade de planejamento –
não-sistemáticas17-19 e uma sistemática20); três demonstração de inferir consequências de suas
trabalhos são qualitativos21,23; um trabalho usou ações a longo prazo e de fazer planos futuros –,
triangulação de métodos quantitativos e qua- considerando-os comportamentos-chave para a
litativos24; um trabalho é composto por debate habilidade cognitiva e inferindo que inabilidades
de cartas entre especialistas25. Quanto à origem funcionais na doença seriam devidas aos fatores
dos estudos, a maioria são norte-americanos neuroanatômicos destacados. Houve associa-
(nove)10,14,16,17-19,21,23,24, dois são ingleses12,15, dois ção positiva entre as habilidades consideradas e
canadenses22,25, um indiano8, um espanhol7, um maior volume e densidade corticais nas regiões
holandês9 e três foram feitos por meio de associa- ventro-mediais pré-frontais bilateralmente, na
ção entre países11,13,20 (um por Inglaterra e Nova órbito-frontal direita, no córtex cingulado pos-
Zelândia11; outro por EUA e Israel13; o último por terior e no córtex cingulado anterior esquerdo,
vários países europeus20). Apresentaremos a se- sugerindo assim uma chave biocomportamental
guir um resumo geral dos artigos. entre a doença e o curso da disfunção. Os pes-
quisadores atentam, entretanto, para o fato de o
Ensaios Clínicos Randomizados estudo ter sido realizado apenas com pacientes
esquizofrênicos, não havendo comparação com
Os ensaios clínicos randomizados foram am- a população geral, mas entre pacientes que de-
bos realizados com pacientes diagnosticados com monstraram ou não as habilidades supracitadas,
esquizofrenia ou distúrbios esquizoafetivos (DS- consideradas mediadoras de recovery15.
M-IV-TR e DSM-IV, respectivamente), que eram
participantes de terapia cognitiva. Um dado in- Estudos do tipo coorte e transversais
teressante é que, nos dois estudos, a maioria dos
participantes tinha nível universitário, entretan- Vejamos agora os estudos do tipo coorte, que
to poucos deles tinham emprego15,16. O estudo são bastante diversos quanto às associações e/ou
norte-americano acompanhou 49 pacientes por correlações buscadas7-12. Um artigo espanhol dois
um ano e comparou aqueles que utilizavam te- anos prospectivos estudou o prognóstico de 48
rapia cognitiva com aqueles que não receberam pacientes diagnosticados no ingresso com episó-
esse tipo de abordagem terapêutica. Usou como dio psicótico agudo (DSM-IV), com ênfase em
critério para recovery manifestações de planeja- fatores sociodemográficos e clínicos do episódio
mento de atividades futuras expressas em rela- -índice, analisando as mudanças de diagnóstico
cionamentos, correlacionando-as negativamente ocorridas em mais da metade dos participantes.
à disfuncionalidade e à função neurocognitiva. Entretanto, a única variável capaz de predizer
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Baccari IOP et al.

mudança de diagnóstico após dois anos foi a pre- sendo os mais prescritos risperidona, olanzapina,
sença de delírio de controle durante o episódio quetiapina e clozapina. Entretanto, havia a priori
psicótico agudo. O diagnóstico inicial de trans- diferenças entre os grupos: pacientes que tiveram
torno esquizofreniforme ou psicose não especi- recovery apresentaram menos sintomas positivos
ficada relacionou-se ao diagnóstico posterior de e negativos diversos, além de menos sintomas
esquizofrenia ou de psicose afetiva, ao passo que gerais; tendiam a não ter iniciado quadro com
diagnóstico inicial de transtorno psicótico breve diagnóstico de esquizofrenia (apenas 8,8% de
ou induzido por substâncias associou-se a melhor pacientes com esquizofrenia apresentaram reco-
prognóstico, uma vez que houve tendência dos very comparado a 27,9% de pacientes com outras
participantes permanecerem com o diagnóstico psicoses não afetivas). Não houve, todavia, para
inicial. Neste estudo, a existência de conhecimen- a taxa de recovery, diferenças significativas com
to sobre a própria doença por parte dos pacientes relação a gênero, qualidade de vida, tempo de
não influenciou o prognóstico (o que, de acordo resposta a sintomas positivos, uso de maconha,
com os autores, vai de encontro à tendência de influência de morar sozinho ou com outros. Não
muitos trabalhos atuais); aponta que a maioria obstante, postergar o tratamento pode prejudicar
dos pacientes acompanhados estavam cientes de as chances de recovery. O estudo conclui que se
sua doença e tiveram boa adesão ao tratamento, a maioria dos pacientes com remissão funcional
talvez pelo fato mesmo de tratar-se de psicose tinha também apresentado remissão de sintomas
aguda, que, por definição, tem curta duração7. e a minoria dos pacientes com remissão de sin-
Uma interessante pesquisa que também ver- tomas tinha apresentado remissão funcional,o
sa sobre o primeiro episódio psicótico e abre funcionamento social torna-se um importante
questionamentos sobre o conceito de recovery parâmetro na pesquisa de resultados do trata-
foi conduzida na Holanda. Analisaram-se as ta- mento de esquizofrenia, sendo, portanto, melhor
xas de recovery nos últimos nove meses de 125 preditor de recovery9.
pacientes com esquizofrenia e outras psicoses Um terceiro estudo do tipo coorte também
não afetivas (diagnóstico pela entrevista SCAN utilizou o primeiro episódio psicótico como
– Avaliação Clínica em Neuropsiquiatria) acom- base, desta vez enfatizando a influência do uso de
panhados por dois anos. Recovery foi definido substâncias psicoativas no primeiro ano de doen­
como remissão sintomática e funcional. Metade ça. Foi realizado na Inglaterra e acompanhou 152
dos pacientes (52,0%) apresentaram remissão de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia ou
sintomas no período; um quarto (26,4%), recu- transtorno esquizofreniforme (DSM-IV) por
peração funcional; um quinto (19,2%), recovery. 14 meses. Os pacientes não participaram de ne-
Todavia, os autores ponderam que os usuários, nhum programa para controle/diminuição do
baseados em sua experiência de esquizofrenia, uso de drogas e ainda assim as taxas de uso caí-
têm desenvolvido o seu próprio conceito de re- ram ao longo da pesquisa – exceto o tabaco, cujo
covery, caracterizado pela reabilitação prática e uso aumentou. O uso de tabaco não foi incluído
descrita por pesquisadores como “um processo nas demais análises. Vários tipos de drogas foram
no qual as pessoas estão aptas a viver, aprender e descritas: álcool, maconha, estimulantes (princi-
participar integralmente em suas comunidades”9, palmente anfetaminas e cocaína), ecstasy, LSD,
além de “viver uma vida completa e produtiva a opióides, barbitúricos e/ou benzodiazepínicos,
despeito de suas inabilidades”9. Acerca disso, a PCP e/ou angel dust. O uso persistente de drogas
experiência de recuperação estaria para além de (pessoas que já usavam e continuaram usando ao
parâmetros clínicos mensuráveis, citando autores longo do estudo) foi associado a mais sintomas
que introduzem a idéia de que pacientes só ex- positivos, sintomas negativos e doença mais ge-
perimentam recovery caso apresentem remissão neralizada, porém o uso passado não se associou
de sintomas e recuperação funcional sem a ne- a nenhuma destas variáveis. Entretanto, pessoas
cessidade de medicação, uma vez que transtor- que afirmaram nunca terem usado drogas apre-
nos depressivos induzidos pelos medicamentos sentaram melhora mais acentuada no teste fun-
acabam tornando-se um obstáculo ao estabeleci- cional de memória espacial. Os autores ponderam
mento de recovery. De fato, de todos os pacientes que muitas podem ser as explicações para a piora
que apresentaram recuperação funcional, 72,7% dos sintomas em usuários crônicos: diminuição
apresentaram critérios para recovery, mas apenas do efeito dos antipsicóticos, as substâncias usa-
36,9% deles tiveram remissão dos sintomas. A das poderiam exacerbar os sintomas positivos,
dose de antipsicóticos prescrita não variou en- menor adesão ao tratamento, maior propensão
tre pacientes que apresentaram ou não recovery, para automedicação em pessoas que apresentam
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pior quadro clínico, ou mesmo maior tendência do futuro e habilidade posterior para persistir. A
destas a buscarem drogas na tentativa de terem fraca relação entre experiências de discriminação
atenuados seus sintomas12. e esperança sugerem que, apesar da experiência, a
A diferença de gênero na esquizofrenia forma como a pessoa internaliza o estigma é que
(SADS – Listagem de Transtornos Afetivos e Es- influencia sua esperança no futuro14.
quizofrenia – e/ou entrevista Schizophrenia State Nessa linha de pensamento, um estudo trans-
Inventory) e em outros transtornos psicóticos foi versal realizado em parceria entre EUA e Israel
analisada em uma pesquisa longitudinal norte-a- testou pathways (modelos racionais de causa-
mericana, em que 97 pacientes foram recrutados lidade) entre formas de internalizar estigmas e
durante um episódio agudo de doença e acompa- recovery em 102 pacientes com esquizofrenia ou
nhados por vinte anos em seis momentos distin- transtornos esquizoafetivos (DSM-IV), procu-
tos. Menores taxas de atividade psicótica foram rando efeitos da terapia cognitiva comportamen-
encontradas em mulheres ao longo do curso da tal ou reabilitação vocacional. Classificaram-se
doença, além de melhora da atividade psicótica as formas de enfrentamento em seis tipos, sendo
somente em mulheres. Também as taxas de re- que “ignorar” e “resignar-se” eram considerados
covery foram significativamente maiores em dois formas negativas de o paciente lidar com a do-
dos seis tempos do estudo nesse gênero. 61% das ença, a primeira pela escolha de não se pensar
mulheres haviam passado por algum período nos agentes estressores, e a segunda por ser um
de recovery ao longo do trabalho contra apenas indício de que a pessoa acredita que nada pode
41% dos homens, sendo que após dois anos do ser feito. O modelo inicial de “linhas de ação”
recrutamento não havia diferença de gênero na que levariam a pessoa ao recovery ou à recaída
atividade psicótica, que passou a ser significativa foi refeito após a análise estatística. As análises
em favor das mulheres a partir do quarto a quin- não sustentaram a hipótese de que internalizar
to ano do episódio agudo. Em geral, os homens o estigma permeia o autoconhecimento sobre a
apresentaram atividade psicótica oscilante em doença mental, sobre a esperança e a autoesti-
contraste com a tendência ao declínio nas mu- ma. Entretanto, houve evidência de que esquiva
lheres, sem que houvesse diferenças na pré-mor- como forma de enfrentamento relaciona-se a
bidade entre eles. Há uma alusão à defesa por isolamento social. Afirmam os autores que “espe-
outros pesquisadores de que o estrógeno funcio- rança e autoestima aparentemente estão relacio-
naria como antipsicótico natural, entretanto essa nadas a esses fatores”. A despeito disso, os autores
hipótese foi refutada pelos autores, pois as taxas concluem que as formas estudadas de internali-
de psicose não se alteraram em mulheres pós- zação do estigma correlacionam-se ao recovery13.
menopausa10. Privação socioeconômica foi associada à ne-
Correlações entre aspectos de esperança, ex- cessidade de maior tempo de internação em um
pectativa no futuro e representações como estig- estudo que acompanhou por dois anos 660 pa-
ma, sintomas clínicos, ansiedade e preferências de cientes a partir de uma internação índex na Nova
enfrentamento foram pesquisadas em 143 pesso- Zelândia. O estudo foi realizado em parceria com
as com esquizofrenia ou transtorno esquizoafeti- a Inglaterra e colheu informações adicionais
vo (SCID-IV – Manual de Diagnóstico Estatístico durante a admissão de 291 dos participantes.
IV) em um estudo transversal norte-americano. Usou-se como critério de seleção o endereço de
Esperança no futuro foi correlacionada a menor pacientes que residiam na área considerada mais
alienação, tendência a não ignorar estressores, pobre de Auckland, no distrito cuja população é
menor desconforto emocional e menos sintomas em geral composta por indígenas e minorias ét-
negativos. Maior compreensão de suas formas de nicas. Esse grupo de pacientes foi comparado ao
representação correlacionou-se a menor incor- das demais internações durante os dois anos do
poração do estereótipo de doente mental, menos estudo. Contabilizou-se o número de dias que es-
sintomas negativos, menos fobia social e menor ses pacientes permaneceram internados nos dois
tendência a ignorar estressores (enfrentamento anos seguintes. Hospitalizações mais extensas fo-
do tipo fuga). Menor esperança não se relacio- ram associadas à maior privação socioeconômica
nou a idade, sexo, educação ou diagnóstico; por e à etnia, ao estado conjugal solteiro e ao diag-
outro lado, sintomas positivos foram pouco re- nóstico primário (esquizofrenia e transtornos de
lacionados aos níveis de esperança. Sobre isso, humor). 250 pacientes (38%) tiveram uma ou
sugerem os autores que a experiência da aluci- mais hospitalizações outras no período. Os re-
nação e ilusão, já que provoca uma disrupção sultados continuaram significativos ajustando-se
temporal, tem efeito limitado sobre a expectativa os fatores de confusão “etnia” e “diagnóstico pri-
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Baccari IOP et al.

mário”, mas a associação não se manteve quando to social, oferece três modalidades de atenção a
se ajustaram outros fatores como idade, gênero, portadores crônicos de esquizofrenia: suporte a
estado conjugal e residência urbana. As informa- usuários de drogas, a pessoas idosas, além de um
ções adicionais colhidas de uma amostra dos pa- programa bifásico interdisciplinar. Este se carac-
cientes na entrada não divergiram das do resto da teriza por uma fase de tratamento intensivo com
coorte. As informações iniciais apontaram 48% ênfase em comportamento, sintoma e habilidades
de comorbidades psiquiátricas, 91% tinham sin- interpessoais, seguida de outra com atividades de
tomas variados de distanciamento da realidade lazer e relacionamentos. Destaca-se o esforço no
ou importantes disfunções, 14% tinham história sentido de esclarecer os pacientes sobre os riscos
de agressão ou excitabilidade, 11% tinham pro- de não adesão a medicamentos e sobre possíveis
blemas com abuso de drogas, 5% tinham várias impactos do uso de medicações. Descreve-se que
doenças físicas, 26% tinham suporte social tênue tem conseguido o mérito de, apesar da gravidade
e 68% foram admitidos involuntariamente, sen- dos casos com que trabalha, os pacientes trata-
do a não adesão a medicamentos considerado o dos conseguirem atingir bom nível de recovery e
principal motivo da internação. Os autores apon- permanecer na comunidade. De fato, narram-se
tam que embora não tenha havido associação en- quatro casos bastante complexos que apresenta-
tre a extensão das internações e o nível socioe- ram melhora significativa21.
conômico após ajustamento para comorbidade, Um estudo procura caracterizar e definir o
cronicidade e funcionamento empobrecido, esta processo de recovery, considerado o cerne das
associação poderia existir indiretamente11. políticas atuais de Saúde Mental canadenses. De-
O último estudo de coorte foi realizado em fende que a noção atual de recovery é confusa e
Bombaim-Índia e recrutou 200 pacientes esqui- a palavra abarca muitos significados, a depender
zofrênicos (DSM-IV) para acompanhamento do contexto. Além disso, é freqüentemente con-
por dez anos. Passada uma década, 122 pacientes fundido com cura, reabilitação e reajustamento,
foram incluídos no estudo final, após tratamento conceito que não se sustenta na literatura, pois
e acompanhamento, sendo que 107 dos pacientes o recovery é um caminho de aprofundamento
estavam vivendo na comunidade com suas famí- pessoal que os indivíduos podem seguir e englo-
lias (87,7%); 61 apresentaram recovery (30,5%); ba trabalho, sentimentos e planos para o futuro.
40 não apresentaram recovery (20%); 43 pacien- Depende de condições externas, mas fundamen-
tes viviam de forma independente (72,9%); 24 talmente de fatores internos: autoconhecimento
buscavam por emprego (40%). Consideraram- da doença, transformação do senso de si próprio,
se pobres esses resultados de tratamento a lon- reconciliação com a sociedade e desenvolvimen-
go prazo. Recovery foi considerado heterogêneo, to de relações interpessoais e que, portanto, para
já que pacientes ditos recuperados continuavam definição de recovery faz-se necessária a inclusão
vivendo com sintomas, sofrimento e disfunção8. das perspectivas dos pacientes, familiares, cuida-
dores para melhor refinamento terminológico,
Estudos qualitativos pois essas pessoas quase sempre têm real per-
cepção dos progressos do indivíduo em relação
Três trabalhos qualitativos foram analisa- à doença, já que conhecem seus recursos e seu
dos21,23: um estudo de caso norte-americano21 e potencial. Aponta-se que a literatura tem contri-
duas amplas pesquisas que sistematizaram cate- buído ao conceito de recovery com quatro tipos
gorias diretamente relacionadas ao processo de principais de estudo: 1) longitudinais; 2) biográ-
recovery22,23. O primeiro descreveu o sucesso de ficos e narrativos; 3) qualitativos; 4) estudos de
um programa de tratamento contínuo que visa modelos de recovery para planejamento de ser-
à promoção de recovery, analisando desfechos de viços de saúde. Com o intuito de construir uma
quatro pacientes com esquizofrenia paranóide grounded theory sobre recovery, recrutaram-se
em uma clínica de Saúde Mental de Nova Iorque. pacientes representativos de quatro tipos de do-
O programa segue um curriculum CDT (Conti- enças (esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar,
nuing Day Treatment), uma série de propostas transtorno de ansiedade, personalidade border-
para promover práticas clínicas com intervenção line), seus familiares e cuidadores, num total de
terapêutica individualizada voltada a pacien- 108 participantes. O tamanho da amostra não
tes esquizofrênicos que não apresentaram boa se baseou em representatividade, mas na quan-
evolução anterior quando em serviços de saúde tidade necessária para saturação empírica. Rea-
convencionais. Tem tido resultados diminuindo lizaram-se dois grupos focais com amostra dos
hospitalizações e preservando o funcionamen- participantes para validação dos resultados. En-
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tretanto, os resultados e conclusões da pesquisa mações foram levantadas: relacionamentos cola-
não foram citados no artigo, que se restringiu à borativos são críticos para decisões médicas, ne-
elucidação metodológica22. cessidade de seguimento com o mesmo médico –
O terceiro e último estudo qualitativo tam- que deve ser flexível e ter habilidade para resolver
bém discute a concepção do recovery, citando al- problemas criativamente – e, finalmente, perce-
guns tipos: social (envolvendo o setor financeiro, beu-se que um forte senso de esperança pode se
independência residencial e baixo isolamento so- desenvolver no paciente a partir de atitudes po-
cial); completo (ausência de sintomas psicóticos sitivas do médico. A fase quantitativa teve como
e retorno ao funcionamento pré-morbidade); base a pesquisa quali e associou grande satisfação
conquista de bem-estar e vida satisfatória. É um com medicamentos à diminuição dos sintomas e
estudo exploratório norte-americano realizado melhor qualidade de vida e recovery24.
com 177 membros de um plano de saúde priva-
do. Por meio de entrevistas em profundidade, pa- Revisões Bibliográficas
cientes descrevem os fatores que os influenciam A revisão sistemática trata sobre a qualidade
positivamente no sentido de alcançar recovery. O do cuidado institucional a pacientes com história
bom relacionamento com o médico mostrou-se longa de problemas mentais. Parte de sua discus-
um dos principais estímulos para a experiência são é destinada à questão do recovery, incluindo
interna da mudança por parte do paciente. Os breve descrição de um Guidelines para Serviços
principais resultados encontrados com o intuito Orientados ao Recovery, da Associação America-
de desvendar-se o que os médicos podem fazer na de Psiquiatria20. Duas das revisões não siste-
para ajudar o paciente a alcançar recovery foram: máticas se destinam à análise e discussão da atual
ter conhecimento da história do paciente; refinar concepção de recovery, incluido a descrição do
a escuta e manter discussão para tomar decisões desenvolvimento histórico do termo17,19.
compartilhadas; apresentar liderança, mas aliada Uma das revisões não sistemáticas também
aos interesses dos pacientes; cultivar aproxima- analisa o conhecimento em uma perspectiva
ção e paciência, pois isso afeta percepção e avalia- neurológica: diminuição de volume cerebral, di-
ção dos pacientes. Por fim, discutem-se riscos de minuição da concentração de determinados neu-
falar-se abertamente de recovery aos pacientes, no rotransmissores, fatores genéticos, diminuição
sentido de que poderia haver um excesso de ex- dos danos neurológicos por meio de antipsicóti-
pectativa e de exigência, ultrapassando o poten- cos. Recupera a noção de tipos independentes de
cial de um indivíduo em particular. Conclui-se recovery possíveis (no nível das funções biológi-
que, quando o médico ultrapassa esse limite, ele cas, da psicose, da função cognitiva, da capacida-
pode perder o paciente, mas isso não provocará de funcional, da qualidade de vida e de auto-im-
exacerbação da doença23. plicação), uma vez que domínios de prioridades
possam ser estabelecidas para tratamento, dada
Estudo com triangulação de métodos a heterogeneidade de necessidades de diferentes
Um único trabalho realizou triangulação de indivíduos esquizofrênicos18. O artigo de revisão
métodos qualitativos e quantitativos. 177 indiví- sistemática retoma muitas dessas questões, com
duos com esquizofrenia, transtorno esquizoafeti- ênfase em evidências dos tipos de serviço que de-
vo, psicose de humor ou transtorno bipolar par- veriam ser prestados em uma instituição “ideal”,
ticiparam de um estudo norte-americano em que baseada na vida em comunidade: flexibilidade,
realizaram entrevistas em profundidade. Infor- privacidade, engajamento e relações terapêuticas
mações qualitativas também foram colhidas dos positivas20. Terapia cognitivo-comportamental
serviços de saúde. Os resultados dessa primeira e orientação vocacional são as intervenções não
fase indicam que o paciente se sente confortável médicas mais citadas20, o que coincide com os
com médicos que são acessíveis e têm disponibi- achados de nossa revisão.
lidade – inclusive aceitando ligações telefônicas –,
que “olham nos olhos”, que percebem e respeitam Opinião de especialista
o distanciamento ou proximidade que determi- Finalmente, encontramos dentre os arti-
nado paciente prefere na inter-relação, que ofe- gos uma curiosa publicação de debate de cartas
recem boa escuta e acreditam no que o paciente entre especialistas, que consiste em um peque-
diz, que mantêm com o paciente uma relação de no texto em que um pesquisador escreve sobre
amizade, despertando confiança (observa-se que, a discrepân­cia do uso do jargão recovery entre
muitas vezes, um atendimento padrão pode ser familiares, pacientes e médicos. Defende que
percebido como um não cuidar). Outras infor- pacientes usam pouco essa terminologia, assim
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Baccari IOP et al.

como familiares, que tendem a evitá-la e substi- sintomas importantes, funcionamento adequa-
tuí-la por “sinô­nimos”, devendo ser autorizados e do, ausência de empobrecimento social significa-
incentivados como forma de expandir seus con- tivo, ausência de reinternação;
ceitos pessoais de superação da doença. Como vi- 5. Conceito heterogêneo8, já que pacientes di-
mos, a própria evolução do conceito de recovery tos recuperados continuavam vivendo com sin-
atribuiu-lhe um significado complexo, embora tomas, sofrimento e disfunção8;
carente de consenso25. 6. Recuperação da doença, medida por me-
nor tempo de hospitalização11.
Síntese do uso terminológico De forma geral, observa-se o uso de esca-
las7-10,12, e, portanto, de critérios – tal como nos
Pôde-se estabelecer a maneira como o termo estudos clínicos randomizados15,16 –, concomi-
foi utilizado nos diversos artigos estudados. Nos tante a pequenas descrições de aspectos gerais
ensaios clínicos, são estabelecidos critérios para considerados indicadores de recovery7,8,10-12. Ape-
recovery, que seriam: sar disso, o uso de escalas acaba por englobar
1. Manifestações de planejamento de ativida- maior número de critérios simultaneamente,
des futuras expressas em relacionamentos, asso- de forma a expandir sua caracterização. Em um
ciando-as negativamente à disfuncionalidade e dos artigos, pondera-se que os pacientes, base-
tentando associa-las à menor função neurocog- ados em sua experiência de esquizofrenia, têm
nitiva (associação esta não significativa)16; desenvolvido o seu próprio conceito de recovery,
2. Demonstração de capacidade de inferir caracterizado pela reabilitação prática e descrita
conseqüências de suas ações a longo prazo e de por pesquisadores como “um processo no qual as
fazer planos futuros15,16, por meio da análise de pessoas estão aptas a viver, aprender e participar
regiões cerebrais responsáveis pela habilidade de integralmente em suas comunidades”9, além de
planejamento15, ou por resultados obtidos com “viver uma vida completa e produtiva a despeito
Terapia Cognitivo-Comportamental16. Assim, de suas inabilidades”9. Distingue-se tanto a ex-
ob­ser­va-se uma relação entre o conceito de reco- pressão in recovery, caracterizada por uma expe-
very e o de foresight nesses estudos, de forma que riência subjetiva pessoal, em oposição a from re-
considera-se foresight um sinal de recovery15,16. covery, definição clínica proposta pelo Remission
São usadas escalas para medir resultados funcio- Working Group, quanto recovery de cura, apesar
nais e neurocognição em um dos artigos16 e para de considerar in recovery no estudo apenas os pa-
foresight em ambos15,16, mas não para recovery, cientes com remissão sintomatológica completa,
entendido como a completa recuperação funcio- com ou sem uso de medicamentos9. Todavia, re-
nal em decorrência de medidas de foresight15,16. fere existência de pacientes cujos sintomas não
Nos estudos do tipo coorte7-12, aparece reco- lhes incomode, estando em uma espécie de “pa-
very como: raíso do recovery”9. A prevalência destes pacientes
1. Recuperação rápida após episódio psicóti- mostrou-se em consonância com a de sintoma-
co agudo7; tologia psicótica na população geral9. Um artigo
2. Remissão sintomática e funcional8,9, envol- sugere o desenvolvimento futuro de modelos de
vendo no mínimo duas dimensões, uma dimen- recovery baseados em vários níveis, incluindo o
são clínica e outra social8; socioeconômico11.
3. Melhora em teste funcional10,12 (SWM, Em estudos transversais13,14, aparece recovery
Spatial Working Memory12; Harrow Functioning como:
Interview10); 1.Mudanças não lineares em domínios semi
4. Melhor score em testes ou conjuntos de testes -independentes, medidas objetivamente a partir
considerados preditores de recovery7-10 (DUP/TTR/ de sintomas, frequência de sociabilização e em-
PANSS/GSDS/WHOQoL-Bref9; SADS10, Struc­tured prego ou experiência interna e subjetivação, me-
Follow-up Questionnaire, SFQ7; Clinical Global Im- didas como percepção de qualidade de vida e de
pression Scale8,10; LKP10; Strauss-Carpenter scale10; propósito na vida13.
Behavior Rating Scale of the Psychiatric Assessment 2. Esperança no futuro, associada estatistica-
Interview10;Comprehensive Psychopathological Rat- mente à menor alienação, à menor tendência a
ing Scale, CPRS/Scales for the Assessment of Posi- ignorar estressores e ao menor desconforto emo-
tive and Negative Symptoms/Social Function Scale/ cional/sintomas negativos14. Em ambos são usa-
Schedule for the Assessment of Insight/Abnormal In- dos conjuntos de escalas: The Positive and Nega-
voluntary Movements Scale/National Adult Reading tive Syndrome Scale, PANSS13,14; Scale for Assessing
Test Revised12), testes que abrangem a ausência de Unawareness of Mental Disorder, SUMD13; Inter-
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nalized Stigma of Mental Illness Scale, ISMIS13,14; um trajeto com condições para interação pessoal,
Beck Hopelessness Scale, BHS13,14; Rosenberg Self ambiental e organizacional comuns a diferentes
Esteem Schedule (RSES)13; Ways of Coping Ques- pessoas com problema de saúde mental. Tratam
tionnaire13,14, WCQ; Multidimensional Anxiety do conceito e abrangência deste conhecimen-
Questionnaire, MAQ14. to; da inclusão de familiares, pacientes e cuida-
Em estudos qualitativos21,23, ocorre recovery dores para redefinição terminológica21,23 (em
com presença de: consonância com estratégias avaliativas de 4ª
1. O essencial para viver, trabalhar, aprender geração)26; da discussão com literatura: os tipos
e participar na comunidade, sendo possível o uso principais de estudo em que se daria a discussão
de medicamentos; distingue-se o conceito do de são longitudinais, biográficos e narrativos, quali-
cura; há possibilidade de mudanças; e é considera- tativos e/ou estudos de modelos de recovery para
do caminho não linear e processo contínuo21; planejamento de serviços de saúde22. É relevante
2. Um processo mais ou menos linear, em que o intuito de um dos estudos em construir uma
se sucedem determinados passos, a saber, a) expe- grounded theory sobre recovery, descrito como
riência da esquizofrenia e sua “descida ao inferno”, um processo dinâmico e não linear adotado pelo
b) aparecimento de alguma esperança, c) processo indivíduo para recuperar o senso de si mesmo
de introspecção, d) desenvolvimento de espírito e equilibrar demandas internas e externas com
de luta, e) descoberta de mecanismos de bem-es- vistas a mudar seu percurso social e recuperar a
tar, f) capacidade de manejo de forças internas e sensação de bem-estar em todos os níveis psicos-
externas, g) percepção de “luz no fim do túnel”22. sociais23 e de outro estudo em definir o processo
Dependeria de pelo menos quatro condições: co- de forma linear22.
nhecimento sobre a doença, transformação da au- O estudo quanti-quali24 faz parte do STARS
topercepção, reconciliação com o sistema e desen- Study (Study of Transitions and Recovery Stra-
volvimento de relações interpessoais22. O conceito tegies). Em sua fase qualitativa, retoma o artigo
é amplamente discutido, de forma a distinguí-lo supracitado23 sobre relação médico-paciente,
paradigmaticamente de possíveis sinônimos e em- estabelecendo algo como um guia de boas prá-
preende-se comparação do processo entre grupos ticas médicas, baseado na cogestão de projeto
de pacientes com transtornos esquizofrênicos, afe- terapêutico entre médico e paciente. Sua fase
tivos, ansiosos e de personalidade borderline22.A quantitativa teve como base a pesquisa quali e
noção de recovery é considerada paradigmática do associou grande satisfação com medicamentos à
sistema de saúde canadense22. diminuição dos sintomas e melhor qualidade de
3. Novas possibilidades de crescimento pes- vida e recovery. Utiliza também escalas de Reco-
soal (há subdivisão em tipos: social,envolvendo very: Personal Confidence & Hope e Goal & Success
setor financeiro, independência residencial e Orientation24.
baixo isolamento social; completo, com ausên- Na carta de especialista25, conceitua-se reco-
cia de sintomas psicóticos e retorno ao funcio- very como: a base da transformação dos serviços
namento pré-morbidade, prevendo conquista de Saúde Mental norte-americanos, resultando
de bem-estar e vida satisfatória23). Enfatiza-se em décadas de pesquisa, ativismo e mudança
a relação médico-paciente, identificando o que na reabilitação psiquiátrica. Trata-se de espécie
médicos podem fazer para ajudar o paciente a de carta-resposta canadense ao editor da revista
alcançar recovery: ter conhecimento da história Psychiatric Services. Retoma as discussões clássi-
do paciente; refinar a escuta e manter discussão cas de Anthony nos anos 90, definindo essa como
para tomar decisões compartilhadas; apresentar a década do recovery. Argumenta que em estudos
liderança, mas aliada aos interesses dos pacientes; canadenses, os pacientes não usam o termo reco-
cultivar aproximação e paciência, pois isso afeta very para descrever suas experiências, mas sinô-
percepção e avaliação dos pacientes23. Conside- nimos e que os serviços de Saúde Mental preci-
ram-se riscos de falar-se abertamente de recovery sam entender melhor os princípios de recovery,
aos pacientes, no sentido de que poderia haver aprender a trabalhar com a estratégia de recovery
um excesso de expectativa e de exigência23. Esse e a “empoderar” seus pacientes25.
artigo qualitativo23 faz parte de um amplo estudo Também a revisão bibliográfica sistemática20
chamadoSTARS Study (Study of Transitions and trata Recovery como conceito, com ênfase em
Recovery Strategies)23,24, assim como o que envol- um modelo de Recovery, que permita incorpo-
ve triangulação de métodos24, descrito adiante. ração de aspectos da promoção em saúde: rela-
Ainda nos estudos qualitativos, percebe-se a ções não-coercivas entre serviços de Saúde e seus
concepção de recovery como novo paradigma21,23: usuários; empowerment; autonomia e incentivo à
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Baccari IOP et al.

melhora nos níveis de independência, utilizando impossível ao recovery perfeitamente esperado ao


técnica Delphi20. Tal modelo seria originário de longo do último século.
narrativas de experiências de pacientes e “Servi- Dessa forma, a medida de recovery deixa de
ços Orientados para Recovery” e das discussões de relacionar-se à ausência de sintomas e passa a
Anthony27, que define A deeply personal, unique priorizar o quão participativa pode ser a vida de
process of changing one’s attitudes, values, feelings, um indivíduo na comunidade não obstante a do-
goals, skills and roles. It is a way of living a satis- ença. Assim, o termo também passa a englobar
fying, hopeful and contributing life even with the maior número de pessoas, pois muitos que não
limitations caused by illness20 (grifo nosso). apresentam remissão completa sintomatológica,
Ainda, este modelo abarca domínios (co- ou mesmo que apresentam períodos de piora,
nhecimento sobre a doença e sobre tratamentos podem estar in recovery, ou seja, têm plena cons-
disponíveis; empowerment; satisfação e qualidade ciência do que podem ser, apesar de. Alguns es-
de vida) e sinais (trabalho; estudo; participação tudos quantitativos vislumbraram essa diferença
em atividades; lazer; boas relações familiares; conceitual, quando relacionam recovery a fatores
independência; controle sobre seu tratamen- socioeconômicos, embora não a contemplem em
to, medicamentos e vida financeira; vida social; profundidade9,11.
participação na comunidade; direito a voto)20. Percebemos que a condição de recovery se tor-
Da mesma forma, nas revisões não sistemáticas, na mais viável na medida em que deixa de ser de-
aparece Recovery como conceito e processo (“es- finitiva e absoluta, ou seja, seus critérios passam a
tar in recovery”)17-19. A remissão do transtorno ser permeáveis por condições subjetivas mais am-
é necessária, mas não suficiente, pois a medida plas e também mais ímpares. Em pesquisa multi-
de recovery deixa de relacionar-se à ausência de cêntrica brasileira recente27, realizada no campo
sintomas e passa a priorizar o quão participativa da Saúde Coletiva, estudou-se a diferença da con-
pode ser a vida de um indivíduo na comunidade cepção de recovery – traduzido como “restabele-
não obstante a doença17-19. cimento” – entre as perspectivas de psiquiatras e
de usuários, concluindo que existem pontos tanto
de divergência quanto de convergência em suas
Conclusão percepções, sendo perfeitamente possível a cria-
ção de contextos em que ambas experiências pos-
Analisando os artigos originais7-16,21,25, percebe- sam servir para esclarecimentos mútuos28. Se, por
mos que a maioria dos trabalhos tem o intuito um lado, a pesquisa qualitativa mostra-se mais
de procurar associações entre dada caracterís- apropriada para discussões conceituais mais pro-
tica e recovery, mas poucos9,11 são aqueles que fundas – tais como nas pesquisas da fenomenolo-
discutem a sua concepção propriamente dita de gia descritiva ou nas da hermenêutica29 –, por ou-
forma que esta se distinga de termos comuns tro, as distintas acepções do termo em pesquisas
como “cura” e “reabilitação”. A percepção de re- quantitativas parecem espelhar a incorporação
covery como um novo paradigma, que dependa gradual dessa perspectiva. Verifica-se problemá-
fundamentalmente de uma condição subjetiva, tica semelhante quanto ao uso recente do termo
em que o portador de transtorno mental grave empoderamento30. É perfeitamente compreensível
possa sentir-se criador de seus caminhos, tende a que uma palavra seja usada em sua língua original
estar mais presente em estudos com metodologia de forma habitual, sem que se expresse a necessi-
qualitativa21,23. Discussões sobre essa abordagem dade de defini-la. O fato de artigos cujo propósito
aparecem também nas revisões bibliográficas17-20, eram outros que não o de estudar sua evolução
cujo conteúdo recupera a literatura com vistas a histórica terem tido o cuidado de fazer pondera-
expandir o termo para além da visão da medicina ções e estabelecer-lhe critérios, ainda que parciais,
clássica e referem-se sobretudo a esquizofrênicos, são indícios de que a noção de recovery está em
cuja perspectiva passou da recuperação quase atual evolução.
135

Ciência & Saúde Coletiva, 20(1):125-136, 2015


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