You are on page 1of 200

AROLDO PLÍNIO GONÇALVES

PROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA


FACULDADE DE DIREITO DA UFMG - JUIZ PRESIDENTE DO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - MG

t é c n ic a p r o c e s s u a l
e
TEORIA DO PROCESSO

A ID E ED ITO RA
BIBLIOTECA DA PuC
I a edição — 1992 MtNAS BcTíM
n.o Z ± Z é | 3
d a t a 1

G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943


Técnica Processual e teoria do processo/
Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro :
Aide Ed., 1992.
220 p.

1. Direito processual civil. I. Título.

CDD-341.45

ISBN: 85-321-0071-6

I BIBLIO TECAS a T p
| i ; 'íj-íf
| RSGsSTRO: ' ^ 3 3 ^ 5
Í0ATA:Jsi„# o$ /99
PUBLICAÇAO N °146 tacetV O : *
Reservados os direitos desfl^èíTfÇãQ^ara jí
AIDE EDITORA E COMÉRCIO DE LIVROS LTDA.
Rua Siqueira Campos 143 — 2° andar — Lojas 22 e 23
Tels.: 235-2440 - 236-5986 - 256-2975 FAX: (021) 237-4585
Copacabana — 22033 — Rio — RJ

Impresso no Brasil
P rin ted in B razil
D
0
0
0
0
0
0
o
sO
3
0
1
O
o
o
o
o
o
o
o
D
O
O
o
o

o
J
3
D
3
O
0
J
3
INTRODUÇÃO

O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo-


de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do
Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e
novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná­
ria.
Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis­
mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se
cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século
XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista
para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a
diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a
visão do processo como estrutura técnica que se põe como
instrumento para o exercício da jurisdição.
Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos
produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos
da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem
um destino comum. Não se passam como as ações e reações
explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias.
Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e
nem sempre vão apenas na direção contrária, 'mas abrem-se em

7
um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos.
Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste sécu lo, o movimen­
to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera­
da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os
professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de
outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris,
no movimento h ip p ie, nos w ood stockes, e em tantas outras ma­
nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos
das revoluções.
O movimento dè renovação do Direito Processual parece
cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de
uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da
forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um
direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos
problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se
torna o elemento menos importante, confrontado com uma or­
dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica
deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não
passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica.
Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental
do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas,
e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan­
te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma
nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se fez urgen­
te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca­
nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que
se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de
finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na

1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti­


tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para
o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processuaL apto
a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o
chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A
Instrumentalidade do Processo" 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa
na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA-
passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11a tese:
"Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente,
cabe transformá-lo'1. Mas não será lembrado que MARX não cha­
mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá­
rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria
será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra
coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma
de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário,
ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula­
dos. GALILEU não foi processado pela força >de qualquer teoria
de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO
VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL,
"foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a
ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da
futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam
eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi
feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem
com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti­
dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar
em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento
de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias.
Os movimentos de renovação deste século, no campo da
cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó­
ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS
vê como uma criação humana enlouquecida19 e que tem sido
motivo de muitas angústias.

MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" inSynthesis - Direito


do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, n - 4187, pp. 46147.

2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro,


Trad. de Brenno Silveira, 3“ ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1969, p. 55.
3 A questão é levantada por MICHEL VIRRALY - La Pensée Juridique, Paris:
Librairie G énérale d e Droit et de Jurisprudence, 1960.

4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua
loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da

9
Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI­
NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se
entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina.
Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro
povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por
haver cedido à sua sedução e faz o seu m ea cu lp a, repudiando-a.
Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos ir­
racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas
adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a
razão.
A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou-
se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostás
adequadas a seus problemas, o fato não poderia ser tributado à
razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos
próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de
permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida
ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse
aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade
que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire­
ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos
sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os
crimes não basta destruir as pedras.
O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um
estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de
amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma

sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua


loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS
CASTOKIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade,
trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um
Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito­
ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado
está na p. 144.

5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A.


Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15,
pp. 36/37.

10
não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND
BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa,
porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí­
nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental
quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais
nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi­
na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios.
Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano
ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco­
nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se
recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele
a detém cativa.7
A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não
resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem­
bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade
reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por
sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. A indignação
que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade
humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o
foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se,
então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador
da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con­
temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita
profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer
ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia
e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições.
O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga­
nização social, será fator de transformação, se assim for construí­
do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O

6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de


Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a ed., 1981.

7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da


obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons­
ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

11
processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a
manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con­
flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo
qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o
Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E
esse Direito é o único p o d e r capaz de limitar a atuação do Poder.
Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade
politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre
na Alemanha, o F reirech t de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de
PHILIPP HECK, mas foi~também ela que, a partir de 1933,
inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão
do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e
confiou no senso inato do juiz à con d ition q u 'il so it d e p u re
ra ce et q u ’il s'inspire, non p a s d ’urt in d iv id u alism e désu et,
m a is d e la com m u n au té n a tio n a le, que admitiu que a lei é um
aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un
d ro it non écrit q u i se d ég ag e d e Vâm e du p eu p le a lle m a n d et
q u i est con form e au x n ecessités d e la vie n ation ale, d ro it claire-
m en t reconnu, ou m ieux, sen ti et én ergiquem en t réa lis é p a r le
ju g e a llem a m fí. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí­
dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939,
tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no
sentido de que o juiz vinculasse à lei, ressalvando-se que ele
$’in spire d e 1’esp rit d e la n ou velle p h ilosop h ie et n on p lu s d es
p rín cip es in d iv id u alistes su ran n és du siècle p a s s é ? Essa nova
filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo.
O século XX rompeu com o mito do século passado de que
a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes,

8 Núm ero in au gu ral d e l ’A kadem ie f ü r dentsches Recht, ju i n 1934, p .6,


article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académ ie, intitulé
D er deutsche Richter Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo-
ríe Générale et à la Philosophie d u Droit, 4~ ed., Neuchâtel: D ela ch a u x et
Niestlé, 1967, p. 196.
9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 196.

12
im utáveis, definitivam ente estabelecidas. Ao co n trá rio d e d ep o r
co n tr a o co n h e cim e n to científico, essa postura anseia pelo seu
p ro g re sso , p o r su a co n tín u a com plem entação, e con d u z àquela
palavra d e fé, d e qu e fala BACHELARD, d o cientista que term ina
o se u d ia d e trab alh o dizen d o: "Amanhã sab erei".1®. E nessa
p rofissão d e fé a ciên cia re cu p e ra a sua dim ensão hum ana. T odo
co n h e cim e n to , em q u alquer área, é fruto d e m u itos esforços
co n ju g ad o s, em qu e co n ce ito s e teorias se substituem e se ren o ­
vam , e, n ã o raras vezes, a ren o vação se faz com esteio nas antigas
co n c e p ç õ e s rep u d iad as o u c o m o resposta a elas.
T o d a afirm ação so b re a inutilidade, a im p rop ried ad e ou
im possibilidade d o re e x a m e d e con ceitos só p o d e ser tom ad a
c o m o u m a atitu d e d e ren ú n cia o u com o um a atitu d e autoritária,
o u , ainda, c o m o m an ifestação d e extraordinária pureza, d a qual
u m a d as form as se revela naquela fé inabalável n o d o g m a que
leva as p esso a s a m o rre re m p o r suas verdades. Essa fé é a dos
san to s, m as n ã o d os cientistas, pois, lem brando n ovam en te BA­
CHELARD, "verdades inatas n ão poderiam intervir n a ciência"11.
A lib erd ad e d a investigação científica n ão p o d e ser tolhida, e
m esm o a lei, q u an d o fixa definições e estab elece co n ceito s, não
p o d e ria im p ed ir a a çã o d a d ou trin a jurídica. Poderia, p o r certo ,
te n ta r im p ed ir a su a divulgação, co m o o co rre u co m a censura,
q u an d o legalm en te adm itida, m as a própria h istória d em o n stia
q u e a lib erd ad e d e p en sam en to, m esm o quanclo n ã o e n co n tra
su a co rre la ta garan tia d e com u n icação, e n co n tra o u tro s cam i­
n h o s p ara se exp an d ir.
A a u to n o m ia d o D ireito Processual, com o seu bem d em ar­
ca d o ca m p o d e investigação, co m con ceitos e categ o rias p ró ­
prias, n ã o p o d e ria co n stitu ir razão para se d ispensar u m a revisão
d e seu s p rincipais institutos. A revisita a eles n ã o é m ovida p o r

10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto


Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cutural, 1974,
p. 334.
11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334.

13
diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência
dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE-
RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per­
dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também,
de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não
apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi­
palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",—
expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio
labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar
alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos
diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo,
porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre
será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as
transformações sociais possam se fazer não de modo caótico,
mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade
que a época alcança.
No momento em que uma ciência renuncia a continuar
investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser
submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria,
como competência explicativa da realidade, quando clarificar a
realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel­
mente, a missão social comum de qualquer ciência.
A retomada do exame de alguns dos conceitos já considera­
dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com­
portar certas surpresas. A importância crescente que os institutos
do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não
chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não
obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns
problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli­
genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de
solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam.
Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven­

12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de


Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186.

14
tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces­
sual Civil. Mas prétende deixar uma contribuição sobre a nova
concepção de processo como procedimento realizado em con­
traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente
alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao
novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró­
pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual,
da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten­
de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle­
tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos.
A nova concepção de processo será trabalhada com base na
obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a
síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa­
ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu­
nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de
FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se
relevarem os aspectos mais importantes que j ustificariam a trans­
crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de
página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do
autor citado e do controle de sua autenticidade. O método
escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se
demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a
preferência é por essa última, em coerência com o que se enten­
de ser a função social da ciência.
A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na
obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA-
MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de
página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas
o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa­
mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros
da nova geração.
Não se negará, em nenhum m om ento, o direito fundamen­
tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca
em questão são os problemas da construção jurídica e de sua
fundamentação.

15
As possíveis elu cid açõ es sob re as ainda p resen tes insuficiên­
cias o u co n tra d iç õ e s d o q u ad ro con ceitu ai utilizado p ela d o u tri­
na d o D ireito P ro cessu al Civil para estab elecer as relaçõ es en tre
p ro ce d im e n to e p ro ce sso , que incidem inevitavelm ente em dife­
ren tes m o d o s d e se c o n ce b e r o p rocesso, e qu e se refletem n o
c o n ce ito d e a çã o , e qu e se p rojetam n a finalidade d o p ro cesso ,
p o d e rã o se co n stitu ir em con trib u ição tan to p a ra a C iência d o
D ireito P rocessu al, c o m o p ara o tratam en to d e q u estõ es d e o r ­
d em prática, tã o n ecessária nesse m o m en to em que a nova o r ­
d em c o n s titu c io n a l b rasileira abriu e x te n s o ca m p o d e p o s­
sibilidades d e a lte ra çõ e s n o D ireito P rocessu al, aqui referid o
c o m o sistem a n orm ativo.

16
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
CAPÍTULO I
3
CIÊNCIA E TÉCNICA 3
3
3
3
1.1. A CIÊNCIA
3
A divisão do campo do conhecimento, no curso da História, 3
gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino­
logias para designá-las de acordo com variados critérios referi­
3
dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto 3
da investigação científica.
Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas
3
3
propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar
algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen­ 3
são do tema que se põe como objeto deste estudo. 3
E, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre
3
teóricas e práticas, ou especulativas e práticas.
A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na 3
doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti­ 3
cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam
3
3
13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências
3
3
especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev.
e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, 1° v., pp. 264 e s.

3
3
3
17

3
3
3
3
para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação
3
dos resultados adquiridos por aquelas.
0 Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris-
3 totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego
teXvn, de que derivou a palavra "técnica").
3 Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma­
O ções por que as duas concepções passaram na experiência
O histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o
campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con­
o
cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces­
o sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível.
o Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a
o expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ­
ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se
o produzir alguirík coisa.14
o Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí­
o cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e

o ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas


a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada
o para resultados determinados.
o Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri­
ca, embora a atividade humana -encontre procedimentos para a
o aplicação prática das aquisições do conhecimento.
3 Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se
3 fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi­
da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou
O
como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de
3 outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda
3 ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter­
minada realidade, seja ela natural ou cultural.
O
Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do
3
3
3 14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L .l, in Obras, trad. de Francisco de P.
3 Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977.

3
3
18
3
3
BIBLIOTECA
PUCMINAS/BETIM
termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas
disputas inúteis, no campo do Direito.15
Em uma das cinco acepções registradas por LAIANDE —
quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili­
dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o
termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e
de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera­
lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram
a conclusões concordantes que não resultam de convenções
arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam
comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual­
mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação
definidos".16
A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como
conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam­
bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus
resultados são sujeitos àverificabilidade.
HUISMAN e VERGEZ, com base em LAIANDE , afirmam que
"a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das
relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para
conhecer, para explicar o que é".17
Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo
ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade
desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ­

15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte.
Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o term o Direito
comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto
objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co ­
nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito.

16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et CHtique d e la


Philosophie, Paris: Presses IJniversitaires d e France, 1972 - verbete: Science.

17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia -


Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a
ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42.

19
to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ­
zi-lo.
Quando se diz que a ciência é uma procura, uma investiga­
ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma­
ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando
entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que
possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é,
antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade
científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por
muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz
de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em­
bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar
surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o
teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi­
na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no­
ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene­
tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela,
por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de
relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e
o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na
medida em que novos conhecimentos são produzidos.
A ciência, considerada já não como atividade, mas como con­
junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco­
bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação.
Assim, as duas acepções do termo, como atividade que
produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun­
damentados, se complementam.
Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de
conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini­
ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSK1

"Toda ciência é a procura da unidade em seme­


lhanças ocultas".18

18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal,

20
"A Ciência é um processo de criação de novos
conceitos que unificam a nossa compreensão do
mundo".19

A atividade essencial da ciência é essa procura das seme­


lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, dò que
se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida­
de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é
classicamente definido como uma unidade mental pela qual se
representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên­
cia exerce a sua atividade criadora.
É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade
científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um
processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva­
mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir­
ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à
universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei­
ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as
antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade
que admite, e requer, processos de correções sobre todo co­
nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação
seguida da decomposição.
Os processos e métodos utilizados na atividade científica
são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti­
dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e
suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a
história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na
história da humanidade.20

Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1979, p. 19.
19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil
Ribeiro da Silva, BeLo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida­
de de São Paulo, 1977, p. 114.

20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não uni saber


infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens

21
*
1.2. A TÉCNICA
A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE,
que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e
como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um
objeto, é por ele definida com dois sentidos:

"Conjunto de procedim entos bem definidos


e transmissíveis destinados a produzir certos re­
sultados julgados úteis"

imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se


na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a
forima mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro
saber "pelas nojas da necessidade lógica e da validade universal". O verda­
deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes
mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por
isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples
opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí-
vel, o mundo das idéias que são modeLos dos conceitos e da realidade
empírica. A ele, Platão julga possível ascender, com o mostra pela teoria da
anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rem emo-
ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena.
Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio
Correia, 8- ed., Coimbra: Armênio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre­
tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja
"doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU-
FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da
Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve:
"...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma
parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância
daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con­
trário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que
é..., ou seja, àquilo que sempre se com porta invariavelmente em relação a
si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socrátieos -
Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do
Prof. José Cavalcante de Souza, 2~ ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978,
pp. 163/169. Em relação à alétheia, a doxa era opinião sem fundamento,
pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme,
a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi­
gação do método adequado para a busca de Alétheia, iniciada, no Ociden­
te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias.
"Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz
particularmente dos métodos organizados que se
fundam sobre um conhecim ento científico cor­
respondente"21.

A noção geral da técnica é de conjunto de meios adequados


para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos
idôneos para a realização de finalidades.
É bastante difundida a concepção de que a adequação dos
meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na
própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá­
cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em
EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge­
nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por
isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não
científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o
seu destino.22
Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque,
depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão
recentes estudos de MAX WEBER sobre os processos de raciona­
lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há
técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos
mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a
consecução de finalidades desejadas.
Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência"
significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou
ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se
inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no
sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen­

21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulciire cit., verbete: Technique (subst.).

22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion a l Estúdio d e l Derecho -


Vigesim uquinta E dicion Revisada, México: EditorialP orrua S.A 1975 p
317.

23
tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser
aceita.
É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje
incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em
ABBAGNANO.23
Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um
fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul­
tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto
de conhecimentos, organizado e ordenado.

1.3. RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA

A concepção de que a ciência revela as relações entre os


fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção
de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên­
cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MAYNEZ
— supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber
aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de
eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é
teoricamente correlato.
Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons­
trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre
podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos

23 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev.


por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio .. .et al., 2_ ed., São
Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica.

24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os


procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para
a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas
seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o
arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de
enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que,
prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se

24
bastante significativos p ara d em on strar um postulado que é qua­
se intuitivo, q u a n d o se reflete so b re os p rocessos culturais e os
resu ltad o s d eles d erivad os: o d e qu e "historicam ente a prática
p reced e a teoria, a técn ica p reced e à ciência".
O p ro c e s s o d e racio n alização da técnica iria levá-la a p o s­
sibilitar q u e a ciên cia se torn asse, realm ente, um "saber aplica­
do". Ao alca n ça r essa etap a, a ciên cia engendra novas técnicas e a
té cn ica , ra c io n a liz a d a , p e rm ite ta n to o c re s cim e n to d o c o ­
n h ecim en to cien tífico c o m o a m elh or aplicação d a ciência, co n ­
form e finalidades previam en te concebidas.
A p artir d esse p o n to d e confluência, é possível se fazer um a
ciên cia da técn ica e é tam bém possível se o b ter tan to o ap rim o ra­
m e n to d e antigas c o m o a p ro d u çã o d e novas técnicas pela aplica­
ç ã o d o co n h e cim e n to fo rn ecid o p ela ciência.
E n tretan to , d eve s e r ressaltad o que essa possibilidade é
ap en as o q u e se d isse : u m a possibilidade.
MAX W EBER ,25 a q u em se deve um a sistem atizada investiga­
ç ã o d os p ro ce sso s d a cre sce n te racionalização d a civilização o ci­
dental, d e m o n stro u c o m o essa tendência n ão é suficiente p ara
afastar as form as irracion ais em vários de seus dom ínios, d en tre
eles o d o D ireito.26

multiplicar em dimensão insuspeitada. »

25 MAX WEBER - Bssais su r la Théorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A


Sociologia do Direito (Recbtssoziologie) que constituiu um capítulo da
Wirtscbaft u n d Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa­
radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber
havia confiado a um de seus aLunos, com o relata JULIEN FREUND, a quem
se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em
Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte
deste rodapé.

26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo


das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a
técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio­
nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura-
bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e
arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito
religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente

25
o
3
3 De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando
3 os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a
3 consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser
O explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên­
cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira­
3 mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da
3 realidade que se fez objeto de sua investigação.
3
3
3
3
O
3
D
O
com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo
O direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração,
O porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula
o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que
Q não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por
WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a
O justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu­
3 nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais
racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir­
3 racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material,
oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional
O quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o
3 sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do.
Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou
3 a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (nâo importando
sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3- O direito formal
O irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre

3 uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se â revelação


do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei
3 preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo­
rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation d u droit
3 selon M ax Weber, in Form es d e Racionalité en-Droit, Archives d e Phílóso-
phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92.
3
3
3 26
3
3
CAPÍTULO II

CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA

2.1. RELAÇÃO ENTRE CLÊNCLAJURÍDICA E TÉCNICA


JURÍDICA

O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a


- sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação
1 deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen­
te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo
de construção.
No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e
os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo
passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência
de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma,
s lhe correspondia.
Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô­
neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a
Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si
mesma.
u Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre
coerências e contradições, puseram em pauta as questões das
relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o '

27
direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na
verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi­
vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase
do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de
uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse
processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu
para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito
manifestado na experiência, do direito positivo, com existência
no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o
estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle­
xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a
própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga­
nização e de solução de seus conflitos.

2.2. OS CAMPOS DA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO

O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que


a doutrina ainda separa por critérios diferentes.27 mas nos qua­
dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada
saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos
objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma
geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões

27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit., 2~ v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria
delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p. 18 e s., GUSTAV RADBRUCH -
Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armê­
nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p .185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN,
FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion a l Derecho,
8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUIS RECASÉNS SICHES -
Tratado G eneral d e Filosofia D el Derecho, Quinta Edicion, México: Edito­
rial Porrua, S.A., 1975, p .l6 0 e s. Sem pretender esgotar os quadros do
saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda,
outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a
Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente
tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTONIO HERNANDEZ G IL-Meto­
dologia d e la Ciência d el Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352.

28
3
3
internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda­
3
mentos; aí, Sociologia Jurídica se preocupou com as relações 3
entre os fatos sociais e a normatividade; a Ciência do Direito 3
restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna
3
manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico
que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios 3
não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas 3
possibilidades se voltam também para o passado, pela História 3
do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo­
3
3
cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por
RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica,
que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co­ 3
nhecimento jurídico.29
O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de
3
fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza 3
a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência 3
Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades
3
que se põem para o trato da técnica processual.
3
3
2.3. DOGMÁTICAJURÍDICA E
3
3
TEORIA GERAL DO DIREITO

A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o 3


fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali­
3
zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em
síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do 3
3
3
3
28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p. 185.

29 Cf. PIERRE CATAIA - L Hnformatique et la m cionalíté d u Droit, in Archives a


d e Philosophie d u Droit, Tome 2 3 - Form es de Racionalité en Droit, Paris:
Sirey, 1978, pp. 295/321. 3
30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 3
1976, pp. 16/17.
3
3
29 3
3
3
direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica
e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em
geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e
amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi­
to, no século passado, como mostra RADBRUCH32.
Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do
Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por
objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi­
cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria
Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de
AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada
noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los
com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou
outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen­
to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as
semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos
gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste­
mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade —
desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem

31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de


Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p. 185.

32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189-

33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968,
pp.88191, p. 130.
34 Cf. JOHN AUSTIN -Lectures on Jurispm dence, London: R. Campbell, 1885.
Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do
Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria
Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p .121 e s; W.
FRIEDMAN - Tbéotie Générale d u Droit, Paris: Librairie G énérale d e D roit
et d e Jurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên­
cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano,
Rio de Janeiro: Forense, 1966; p. 109 e s.; ALBERT BRIMO - Les G rands
Courants d e La Philosophie d u Droit et de UÉtat, Paris: Ed. A Pedone, 3 a
ed., 1978, p. 276 e s.

30
jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun­
to .»
Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a
Dogmática Jurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto
de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro
da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou
o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu i
como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de umu
ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37

J 2.4. A TÉCNICAJURÍDICA
c■
JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri­
nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda
década do século XX, considera que o estudo da ciência do
Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e
que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da
grande revolução do pensamento jurídico.38
A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados
realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência
do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma
técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e

35 Cf. PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science d u Droit, L uxem bourg:


Office des Im prim és d e L ’État, 1960, p.73

36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria G eneral d el D erecho - Trad. p o r e l Dr. Jo se


Safra Valverde, M adrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE
PESCATORE - Introduction à la Science d u Droit., L uxem bourg: Office des
Im prim és d e L'État, 1960, pp.74/75.
37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado,
Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5~ ed., p. 17.

38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science d u Droit et R om antism e - Les Conflits


des conceptions ju rid iq u es en France d e 1 8 8 0 à 1’heure actuelle, Paris:
Librairie d e R ecueil Sirey, 1928, pp.268/269-

31
passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos
intelectuais da construção jurídica.39
A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS-
QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito
transforma em regras claras e práticas as diretivas da política
jurídica"40.
Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica
Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já
percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da
jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos
conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de
ramos do Direito positivo.
É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa
técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos:
interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon­
dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei­
tos jurídicos41.
Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental

39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY,


que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria
que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos
da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo
m étodo da libre recherhe scientifique, poderão encontrar soluções para os
problemas da,elaboração, buscando os critérios da integração, que serão
utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY -Science et Techni-
q u e en D roit Ptivé Positif 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à
técnica de elaboração teórica e lógica, com preendendo o estudo das fon­
tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN
DABIN, na clássica obra La Technique d e 1'élaboration d u droit p o sitif -
Bruxelles: B ruylant et Paris: Sirey, 1935.

40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 163-


41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU
PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste­
mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta,
citando BUCKHARDT, M ethode u n d System com o. "Construire, c'est alors
ra m en er les élem ents cam ctéristiques d u cas concret a u x notions abstrai-
tes incluses d a n s la règle ou dans 1‘institution ju tid iqu e", op. cit., p .170.

32
Q a Q Q C j Q O Q Q Q O Q U Q Q O Q Q Q Q O Q Q O O a Q Q Q Q Q Q Q U C
teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação
da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí­
ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este
parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da
interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de
ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua
independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava
sem explicação, ou, antes, explicado como une a ffa ir e d esp rati-
cien s, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre
casos concretos ou a dar solução para os~conflitos sociais, sub­
metidos à decisão do Poder.
Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos
constituíam o sav oir fa ir e daqueles que elaboram e praticam o
Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis
— a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d ’au tres m ots, la
p r a tiq u e ju d ic ia ir e et ad m in istrativ e42.
Sua descrição dessa atividade é significativa para demons­
trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao
caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica
resplandescia:

"Considérée com m e pratique du droit, la techni-


q u e ju rid iq u e con siste à appliqu er•le droit, à l ’exé-
cuter, à le m ettre en oeuvre. C’est l ’ h a b ilitép ra tiq u e
d u m agistrat, d e l ’av ocat, du n otaire, d u fon ction -
n aire... C esp raticien s n ’o n tp a s la m êm e liberté qu e
ceu x q u i fo n t Office d e législateu r et leu r a rt se d is­
tin gu e sen siblem en t d e 1’art d e la législation . P ou r
lesp raticien s, ils'a g it av an t tou t d e sa isir la réa lité
d es fa it s et d es situ ation s concrètes, d e m an ier les
règles d e d roit av ec in telligen ce et d e fa ir e em p loi
ju d ic ieu x du p ou v oir d iscrétion n aire qu i leu r est

42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47.

33
laissé. Leur a rt est la p ru d en ce ju rid iq u e, la iu ris
p ru d en tia au sens etym ologiqu e du term e"43.

E muito compreensível que, em decorrência dos resultados


do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as­
sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica,
sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos
competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo-
lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican­
do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas,
elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan­
do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob
o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma,
o procedimento de aplicação não fosse mais do que une a ffa ir e
d es praticien sf44.
A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o
Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara­
va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan-
dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na
Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor­
mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com
seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria
Geral do Processo45.

43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48.


44 Tal concepção não foi superada, com o demonstra, ilustrativamente, K.
STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La
Ju stice en France, M utations d e l'appareil Ju d icia ire et Lutte d e Classes",
a vec la collaboration d e GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e
justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceei
p a rc e q u ’il traite d u fo n ctio n n em en t de l ’appareiljudiciaire, qu i est u n e
question tetre à teire et n o n p a s d e questions qu i intéressent la philosophie
d u droit (justice, droit objectif, intérêt général, sujet d e droit, responsabi-
lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Archives d e Philosophie d u Droit, Tome 2 3
■Form es d e Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.43V 433.

45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA., ADA PELLEGRINI GRINOVER


e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual.

34
Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí­
dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de
meios idôneos para o trato do Direito.
O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos
juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio
sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica
e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi­
dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma
de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re­
presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga­
nizada pelo Direito.
A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas
técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba­
lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são
recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula­
dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade,
unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá­
vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um
critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social
regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con­
junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi­
cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti­
cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla­
dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e
em construção criadora46.
Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen­
te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a

- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991-


46 Çf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a
técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS
MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion a l Derecho, Oc-
tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Penot, 1975, pp. 149/167, sobre a
elaboração do conceito, v. RAJFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé:
Librería y Editorial Castellví S.A , 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op.
cit., p. 188 e s.

35
aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a
oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da
aplicação do Direito47.

2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA

2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO


Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e,
conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis
para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia­
da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são
visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões,
referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora
se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des­
pertaram polêmicas.
Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se
encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de
que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio
silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso
concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48.

47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA


MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de
vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica­
do.^..) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na
condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito
processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi­
leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces­
sual: quarta série - São Pauto: Saraiva, 1989, p. 12. Sobre a dignidade da
dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS­
TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os
práticos, e Redenti, que punha com o questão de primeira ordem a neces­
sidade de que o Direito se fizesse concreto: Ma p rim a d i tutto bisogna chc
il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge, Cf. JOSÉ OLYMPIO
DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4~ ed., 2~ tiragem, Rio de
Janeiro: Forense, 1989, pp.7118.
48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse

36
É compreensível que, na falta de uma construção científica
mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação"
estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o
pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para
explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao
silogismo.
As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito
fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento
mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a
complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do
juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável,
a questão axiológica que permeia todo o direito49.
O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de
misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse
verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová­
vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque
era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis­
mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer
as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria

dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que


defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais
princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN epi Théories relatives
a u raisonnem ent ju diciaire, surtoüt en droit continental, depuis le Code
Napoléon ju sq u 'à nos jo u rs, primeira parte de sua obra M éthode d u
Droit-Logique Jurídique-N ouve/le Rhêtoríque, Paris: Dalloz, 1979,
pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por CLAUDE DU
PASQUIER, que, no capítulo destinado à L’application d n Droit, estuda os
mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri-
diques multiples; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato
à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer un e
règle, c ’est transposer s u r u n ca sp a rtia d ier et concret la décision incluse
dan s la règle abstraite" ..."Cette application comporte d o n c u n p a ssa ge de
l'abstrait au concret, d u g en era l auparticulier, b ref u n e déduction, Son
instrum ent est le syllogisme" in op. cit., p. 126.

49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses


argumentos, com o as de COÍNG, em Gnm dzüge d er Rechtsphilosophie,
sobre as "situações-tipos".

37
ü ü O U Ü Ü U U O O G O Ü ü O O O D O D O Ü ü O O O ü Ü U U J U ü U t

possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos


dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso
concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não
há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo
menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o
modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o
termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo;,
o teimo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa
menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o
termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas
premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível
encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas
não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em
estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi­
das. «
É claro que não se nega que o "argumento", no sentido
estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em
premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci­
são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica)
conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto
para se inferir a sentença.
De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas
pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente
em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço
dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do
Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na
lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a
formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou
na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria
aparecer como algo aterrador.
A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para
ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser
relegada a permanecer à margem de uma ciência qiie se propôs
a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma­

38
na, e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da
razão.
Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que
a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa­
mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que
fala ORTEGA Y GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito.
Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá­
vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas,
que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento,
da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica­
ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência.

2.5.2. UM INSTRUMENTO PARA UMRACIOCÍNIO


A lógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência
experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a
Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que
foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que
é a busca do conhecimento.
ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a
Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando
o critério temporal como metodologia da exposição, para pene­
trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso­
res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão,
e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos,
pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela
lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja
construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís­

50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís


Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a


seguir.

52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente em 1662 La


Logique ou ia r t d e Penser, mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE
ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal.

39
tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen­
der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó­
lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que,
"agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga
para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno­
minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando
as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até
a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica.
A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal
contemporânea, mas máis do que o nome, é conveniente esclare­
cer alguns dos pontos por ela estabelecidos.
1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência
normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de
recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces­
so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para
construir o método da livre associação, pode passar por movi­
mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição,
que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do
raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não
alcançadas por critérios objetivos de descrição.
2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma
espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu­
sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis
para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor­
reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe­
lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan­

53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus­


sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309.
54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.
55 Sobre esse sistema de lógica que se dá com o objeto presidir "as leis formais
do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito -
Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8- ed., p. 297 e s.
56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. -
São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21.

40
do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati-
zada57."
3- A lógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou
falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples
enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas,
mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas
sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e
apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de
sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente,
também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên­
cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o
que é evidente em um campo do conhecimento póde não o ser
em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas
diferentes.
4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica
apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se
falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em
sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da
dedução. As verdades da lógica são formais, porque referidas não
ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu­
mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu­
sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e
falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida­
de", e pela forma de relações entre proposições que são premis­
sas e proposições que são conclusões.
5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos
termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se

57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.

58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia­


do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade,
em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As
dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em
KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares co r­
respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica
da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
U O O U U O U Ü O O G O O U O O O U O Ü Ü Ü U O Ü O O Ü Ü Ü U J Ü U Í

desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos,


no argumento59.
6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma
premissa (uma proposição que será usada como base para se
inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo­
sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do
juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado).
7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela-

Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985,


pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar
às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou
singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que
refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica:
"Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações
que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise
descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi­
mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier,
3 " ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan­
do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que
afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a
unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém
em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a
totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de
Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240;
no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad.
do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987,
pp. 169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é
individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do
su m m u m gen u s? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ­
TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se con ce­
ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica,
geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na
Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina-
lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito.

59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito


e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento.
E aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio-
nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das
funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT BLAN-
CHÉ, op. cit. pp.310/311.

42
ciónada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma
premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola­
da, porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu­
são60.
8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma
estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões.
O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o
argum ento indutivo pretende oferecer apenas uma pro­
babilidade da afirmação da conclusão61.
9. A dedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção
de objetos que possuem algumas características específicas co­
muns. O que é necessário na identificação dos objetos para
integrá-los a uma classe é que compartilhem de características,
qualidades, determinações específicas. Assim como o problema
da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co­
nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão
entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes
vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão.

<50 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., p. 23-

61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39-


62 ROBERT BLANCHÉ mostra com o a aflição de FREGE, que é considerado o
criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL, seu grande divulga­
dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De
falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um
puro pensamento, não reconhecido com o verdadeiro, não pode ser uma
premissa. É só quando eu reconheci com o verdadeiro um pensamento que
ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser
empregadas com o premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO-
CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., p p.307/308. "A
lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer­
sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência
particular". (RUSSELL, Vim portante philosophique d e la logique, Re v. d e
métaph., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309. E
sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo
inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao
mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que
dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos.
Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis-
10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta,
segundo determinadas características de que compartilham, mas
pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife­
rentes, quando uma característica é tomada como totalidade
dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na
sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia d^s
classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o
indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63.
A preocupação com o levantamento desses dez tópicos,
escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu
desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos
adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o
implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que
convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem
a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em
que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que
legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser
como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen­
samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente
a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência,
e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum
benefício para seu desenvolvimento.

m o lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti­


tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da
lógica. Cf. op. cit., pp.309/310.

63 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias
classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente
diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que
permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma
variedade de outras classes.
64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a lógica
tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no
pensamento", p.256.

44
CAPÍTULO III

CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL


E TÉCNICA PROCESSUAL

3.1. A CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO

Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio­


nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva­
mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró­
prio sistema.
O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena­
mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das
garantias constitucionais, importa na superação do critério de
aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na
sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga­
dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo
"Fenômeno Magnaud”65. Esse critério é substituído por uma

65 Le p h én o m èn e M agnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi­


ção do M éthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, analisou
os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que
presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château-
Ttiierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram com o le b o n ju g e
üüUUUOuGOõGüOOOOüOOOOüüOOOOuüOUJüOi
, técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não-
subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem-
bros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma
I segurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de
inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam
|diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos
predicados.
A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins
do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso
interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus
deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de
racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que
sobre ele se desenvolvia.
A ciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência,
sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnir-
cas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que
organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direi­
to pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição.
Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organi­
zam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifesta­
ção, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de
atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus
conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre
semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, de­
senvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no
mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão
da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e
organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra­

Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: Les Ju gem en ts


d u Président M agnaud (1900) e Les N ouveaux Ju gem en ts d u P résident
M agnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser
o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se
preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se
comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN
LogiqueJuridiqtte - NouvelleRhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp.71/72.

46
mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, consti­
tuir-se em novas disciplinas autônomas.
Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém
relembrai- com EDUARDO J. COUTURE, que "a ciência do processo
não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das
execuções, das formas e dos prazos. Seria difícil construir uma
ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo-
se, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a
ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de
conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de
tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo
— não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado"66.

3.2. A NECESSIDADE DA DISTINÇÃO ENTRE


A CIÊNCIA E SEU OBJETO

Como a expressão "direito processual" é utilizada para de­


signar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto
uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um
conhecimento organizado, quanto para designar o próprio com­
plexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns pro­
blemas no seu uso.
O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto con­
junto de conhecimentos, organizado como disciplina, no senti­
do didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas,
classificadas no campo do Direito Público, não "governa a ativi­
dade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria"
ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo
todo o ordenamento jurídico"67, porque a ciência, considerada

66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da


Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad,
1956, p. 157.

67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na


valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI

47
c o m o atividade d e co n h ecim en to , o u co n sid erad a co m o co n ju n ­
to o rg a n iz a d o de con h ecim en to s, n ã o tem essa função.
C o n sid erad o c o m o co m p le x o d e n orm as, o b jeto d o c o ­
n h ecim e n to d a ciên cia qu e dele se o cu p a, o D ireito P rocessu al
tem a fu n ção criad o ra qu e to d a n o rm a possui, n o sen tid o de
co n ferir significado ju ríd ico a d eterm in ad as situ ações p rod u zi­
das p o r fatos e ato s que receb em a v a lo ração norm ativa.

3.3. A NORMA PROCESSUAL

As n o rm as jurídicas são classificadas co m base em diversos


critério s, qu e perm item sejam recolh id as e sistem atizadas, d en ­
tre o u tro s, o s referen tes a su a fo rm a d e p ro d u ção , a seu âm b ito
d e validade, a seu grau d e ob rigatoried ad e, à garantia d e su a
exigibilidade, à m atéria p o r ela regu lam en tad a, a o ob jeto d e sua
disciplina, a su a p o sição n a h ierarq u ia d o sistem a norm ativo.
T o m a n d o o o b jeto de su a reg u lam en tação c o m o p o n to d e
referên cia, a d ou trin a d esd o b ra o s critério s d e classificação p ela
plu ralid ad e d a m atéria disciplinada. N esse sen tid o fala em n o r­
m as d e d ire ito m aterial, o u substancial, e em n o rm as d e D ireito
P ro cessu al. R elacion an d o as duas categ o rias, co m base em crité ­
rio s d itos d e co m p lem en tação , d en o m in a as n orm as d e d ireito
m aterial c o m o n orm as substantivas, n o rm as prim árias, n o rm as
d e p rim eiro grau, e as n orm as p ro cessu ais n o rm as secundárias,
n o rm a s d e segu n d o grau, n orm as instrum entais.
É in teressan te verificar qu e as teorias, e m b o ra utilizando a
m esm a d en o m in ação , n em sem p re falam a m esm a linguagem
so b re e ssa classificação. Alguns a u to re s invertem a p o sição das
n orm as, d e n tro d o q u ad ro definido p elo critério, e d en om in am
n o rm as d e prim eiro grau, n orm as prim árias, as n orm as p ro c e s­

GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed.


rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 48.

48
suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de se­
gundo grau, às normas materiais68.
E, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de nor­
mas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria.
Essas constatações são suficientes para que se dê razão a
FAZZALARI quando afirma que a qualificação das normas em
normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente con­
vencional69.
Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordena­
mento jurídico e se complementam mutuamente. ‘
A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que com­
portam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois
enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta,
qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria ás

68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabe­


lecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As
primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, cons-
tituindo-se com o condição da manutenção da vida em sociedade. Delas,
conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo
que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele.
O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indireta­
mente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas
estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação
das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam
competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam
condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam
o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en som m e le règle
organique d e la contm ínte e por ela se define a própria existência do
Estado: il n'y a d'Etat q u e s ’il y a monopole de la contrainte, et il y a État
des q u e ce m onopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité d e Droit Constitu-
tionnel, Paris: A ncienne Librairie Fontem oing & Cie Éditeurs, 1927, v.I,
pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material
são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as
normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas com ­
pletas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General d el Derecho, traduccion d e la
segunda edicion en lengua a/em ana p o r el Dr. Jose Safra Valverde, M a­
drid: Ediciones Ria/p S.A, 1962, pp.35/38.

69 Cf. ELIO FA22ALARI - Istituzioni d i Diritto Processuale, quinta edizione,


Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp.91/96.
U üuU U O U ^L /vu uU U uu uuu O U U U üO O O uüJüüü U Í

situ açõ es jurídicas d e g u e d e c o rrem d ireito s e deveres, as n o r­


m as processuais disciplinam a ju risd ição: o e x e rcício d a fu n ção
ju risd icio n al e õ ínstr.umenFõrpeIõ^~quãI_eía se m anifesta, o
p ro ce sso .
V/'
/
3.4. AJURISDIÇÃO

O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo


fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem
jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa.
As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo
poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a sobera­
nia pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto repre­
sentante da áociedade politicamente organizada pelo Direito,
assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres,
garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo
os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual
reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos.
É preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas
soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente
constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional,
que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala
pela nação, se exerce em conformidade com as normas que
disciplinam a jurisdição.
"Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do
Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio pro­
blema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo,
nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elemen­
tos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou
dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as
situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70.

70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São


Pauló: Sugestões Literárias, 1980, p. 66.

50
O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas
noções.- statu s, no sentido original de situação, condição, e res
p o p u li-res p ú b lica , a coisa pública, que se sintetizaram no
S tatu s-res p ú b lic a , em que a situação de organização política
da sociedade se corporifica no Estado71. As doutrinas contra-
tualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e
ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado
"social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil,
adquirido — expressões utilizadas para designar o direito exis­
tente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabe­
lecer um fundamento racional para o poder. Embora divergin­
do sobre o caráter social do estado pré-político, negado por
HOBBES, com violência a manifesta e latente do h om o lu pu s
h om in i, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter
cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na
construção teórica do "pacto social". Tais doutrinas são
expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e
a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade
para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitis­
se de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo
Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na épo­
ca. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o
Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formu­
lação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo
concebido como instrumento de opressão da classe dominan­
te — , tem recebido várias análises da Ciência Política e da
Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o
conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada
na legitimação pelo procedimento em detrimento da comple­
xidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contra­
posição entre a superlegalidade política e a legalidade consti­

71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Di­


ritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Genem li, Bologna: Giuffrè
Editore, 1980, pp.3/4.

51
tucional72. O dimensionamento da "crise", sob a concepção da
"democracia" como espaço da liberdade que não anula mas per­
mite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão
jurídica73, e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se
desenvolveu como elem ento fundamental do conceito de
processo.
Os três enfoques mencionados, referidos a momentos his­
tóricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a ques­
tão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas
diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias de­
senvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo
sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações
sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função
jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expres­
são de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela
norma jurídica.
No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a
autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança
privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica,
do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das
formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de san­
gue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer
representante do clã de onde partira a ofensa, vingança neces­
sária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que

72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política -


NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO,
trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis
Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2a ed., 1986, pp.401/409.

73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito e p ra x is


política, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp.56/58.

74 Cf. FUSTEL DE COULANGHS - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo


Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Heraus, 1975, p p .17132. Sobre as
primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da
retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59-

52
hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino deE shn un n a, tombado
sob o exército de H a m m u ra b f3, o Estado foi se organizando
juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos
atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históri­
cas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o
Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respos­
tas à sociedade sobre as condutas valoradas negatiyamente, que
seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a
tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é
expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introdu­
zam os direitos individuais e coletivos, em suas várias clas­
sificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reco­
nhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum
nas sociedades contemporâneas.
Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHE-
RING, a quem reconhece o título de l e plu s g ra n d ju riscon su lte
d e V Allem agne m odern e, segundo a qual o Direito ex a composto
de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela
força (Z w an g), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopó­
lio da força sobre seu território, não são regras de direito senão
aquelas que têm, atrás delas, a força estatal76.
O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a
outros tipos de sanção que estão presentes enj outras formas
normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL
REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens nor­
mativas, e de ordens jurídicas grupalistas. extra ou intra-estatais,
demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando-

75 Cf. - As Leis de Eshntm na, Introdução, texto cuneiforme em transcrição,


tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópolis: Vozes, 1981.

76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com


aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via
para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as
regras normativas. Cf. Traité d e Droit Constitutionnel troisième édition,
Tome I - La Règle d e Droit - Le Problèm e de L 'État, Paris: A ncienne Libraire
Fontem oing& Cie, Éditeurs, 1927, p .101.
se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque
mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante
segue uma série dê normas de seu sistema jurídico77.
Podem ser aparados os excessos das doutrinas que conce­
bem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se
investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a
outros critérios axiológicos78, que não sejam os dele decor­
rentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidên­
cia comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados
pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação
dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O
sentido lógico de "princípio" — o que está posto como funda­
mento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito
—, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de
"princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apre­
sentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo,
impedem sua projeção, através de normas que com ele possam
ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do
sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado
sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados
pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos co­
mo não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque,
obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que
os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do
sistema jurídico, em direção contrária a ele.
Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do
Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar

77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva,


1976, pp.76/78.

78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas


para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido,
v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo
Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário
pode-se atribuir o monopólio do "direito" com o força, porque a lei pode
ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força.
efeitos jurídicos aos atos lícitos cumpridos espontaneamente,
que se desenvolvem e se esgotam sem o apelo à proteção jurisdi­
cional. E esses, em uma sociedade dotada de certa estabilidade,
prevalecem sobre as situações de litígio que, quando não resolvi­
das na esfera particular, são levadas à apreciação do Estado,
através da provocação da função jurisdicional.
A jurisdição se organiza para a proteção de direitos e das
liberdades, asseguradas na ordem jurídica, contra o ilícito, e
ilícito, em qualquer campo do Direito, é a inobservância da
conduta normativamente valorada como devida, cuja ocorrência
na prática, se se admitir a liberdade do reino humano, não estárá
fora da esfera do possível.

3.5. O PROCESSO

O D ireito Processual, com o ramo autônom o do co­


nhecimento jurídico, desenvolve sua investigação sobre a norma
que ordena e disciplina a jurisdição, a norma que regula o
exercício do Poder Jurisdicional, e, por isso, não é raro que se
diga que seu objeto é a norma que disciplina o processo. A
jurisdição, entretanto, é organizada para que o Estado, através
dos órgãos jurisdicionais, se manifeste em situações que envol­
vem conflitos litigiosos e em situações em que, havendo ou não
divergências, encontra-se ausente o litígio.
Por isso. a afirmação de_que o processo constitui o objeto
por excelência do estudo do Direito Processual deve ser tomada
com certo cuidado, pois para se compreender o seu alcance é
necessário se entender o que se está designando como "proces­
so".
A questão se reveste da maior importância, por várias ra­
zões. Primeiro, pode considerar-se que vem posta no próprio
ordenamento jurídico positivo, quando destina suas noxmas a
reger a "jurisdição contenciosa e voluntária", a regular o "proce­
dimento comum" e os "procedimentos especiais", o "processo"
de conhecimento, de execução e cautelar79. Em seguida, obser-
va-se que já se encontra consolidada, no plano teórico, a propos­
ta de um novo tratamento das relações entre procedimento e
processo, que suscita nova reflexão sobre seus conceitos. Por
fim, a Constituição da República de 5 de outubro de 1988, ao
atribuir, no art. 22, item I, competência privativa à União para
legislar sobre Direito Processual, e no art. 24, item XI, competên­
cia concorrente80 aos Estados e ao Distrito Federal, para legislar

79 O art. I2 do Código de Processo Civil expressamente estatuiu que a


jurisdição civil, "contenciosa e voluntária", seria exercida em conformidade
com suas normas. Essas normas, com o decorre dos arts. 2 7 0 e 271, se
destinaram a regular o "procedimento comum" e os "procedimentos espe­
ciais", o "processo" de conhecimento, de execução e cautelar, e o art. 1.211,
ao delimitar o âmbito espacial e temporal de sua validade, dispôs que o
Código rege o "processo" civil. Além de delimitar o quadro da atuação do
Poder Jurisdicional, tra2endo para seu âmbito relações litigiosas e não
litigiosas, a norma do Código de Processo Civil especificou a sua matéria,
apontando o objeto de sua disciplina: procedimento e processo.

80 RAUL MACHADO HORTA distingue, na repartição das competências, o


m odelo clássico e o que denomina de moderno, que se caracteriza por
com preender a legislação exclusiva da Federação e a legislação concor­
rente ou comum, em uma competência mista, a ser exercida pela União e
pelos Estados-membros. É ela que configura o Federalismo de equilíbrio,
em que a descentralização tende a ampliar as matérias da legislação co ­
mum à União e aos Estados-membros, ficando no domínio da União a
legislação de normas gerais e no dos Estados-membros, a complementação
da legislação federal. Cf. Organização Constitucional do Federalismo in
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, n^s
28/29, 1985/1986, pp.9/31. Estudando as possíveis hipóteses de incompati­
bilidade entre a lei federal e a lei estadual, JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA
BARACHO demonstra que, quer na competência privativa, quer na com pe­
tência concorrente, a questão se acerta pelo princípio da hierarquia das
leis, esgotando-se, quanto à competência privativa e exclusiva, pela decla­
ração de inconstitucionalidade da lei estadual incompatível com a lei
federal e na competência concorrente pelo predomínio da lei federal
válida. Cf. JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Teoria Geral do Fede­
ralismo - Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982, pp.68/69- Em relação à
extensão, JOSÉ AFONSO DA SILVA classifica as competências em exclusiva,
privativa, comum, cumulativa ou paralela, concorrente, e suplementar: a
privativa é enumerada com o própria de uma entidade com possibilidade
de delegação, ou de competência suplementar, a competência comum,

56
a
a
a
sobre "procedimentos em matéria processual", desperta um no­
3
vo interesse sobre procedimento e processo como objeto das
normas estudadas pelo Direito Processual, que ultrapassa o cam­ a
po acadêmico. a
Anote-se que a doutrina processual brasileira já vislumbra,
nos arts. 22, I, e 24, XI, da Constituição da República de 5 de a
outubro de 1988, distinção entre "norma processual" e "norma a
procedimental"81. a
a
cumulativa ou paralela, significa a faculdade de legislar ou praticar certos
atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistin­
a
do, pois, num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o a
exercício de uma venha a excluir a competência da outra, que pode assim
a
ser exercida cumulativamente, a competência concorrente possui dois
elem entos constitutivos: 1. a possibilidade de disposição sobre o mesmo
assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; 2. a primazia da
a
União no que tange à fixação de normas gerais; a competência suplemen­ 3
tar, que é correlativa da competência concorrente, significa o poder de
formular normas que desdobrem o conceito de princípios ou normas d
gerais ou que supram a ausência ou omissão destas. Essa é a dos §§ 1° a 4~
do art. 24 da Constituição de 1988. Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA - Curso de
3
Direito Constitucional Positivo - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3
1990, pp.413/415.
3
81 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER
e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8 - ed. rev. e atual. 3
- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, P- 83.
Desta "técnica e teoria..." vai resultar, no final, que a Constituição de 05 de 3
outubro de 1988, abre, definitivamente, as portas para a edição de Códigos
Q
Estaduais de Processo (civil e penal). Outra não pode ser a conclusão que
se extrai de leitura do art. 24, item XI e parágrafos, do texto constitucional Q
em vigor, que dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito
Federal legislar, concorrentemente, sobre "procedimentos em matéria 3
processual", ou em outras palavras, legislar sobre "procedimentos em
processo jurisdicional". Para maior clareza vejam-se os capítulos IV e VI
Q
seguintes, onde estão explicitados os sentidos dos termos "procedimento" 3
(gênero) e "processo" (espécie), não havendo "distinção" entre eles, mas
relação de inclusão (todo processo é um procedimento). Fica, pois, aos O
"legisladores estaduais" o cumprimento da missão que lhes foi deferida,
cabendo-lhes discutir, votar e aprovar, o quanto antes, as Codificações O
locais de processo (civil e penal). No que concerne à "distinção" entre o
"norma processual" e "norma procedimental", ANTÔNIO CARLOS DE
ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMAR- o
a
o
57
o
Q
Essa interpretação só poderia se ajustar a um contexto teó­
rico em que procedimento e processo são tratados como realida­
des independentes e distintas. Em uma concepção de procedi­
mento que comporta o processo, a diferenciação teórica entre
normas de procedimento e normas de processo perde todo o
significado, mesmo diante das disposições constitucionais referi­
das. O processo será uma espécie de procedimento, e assim se
poderá compreender que a matéria processual sobrequ èincide
a competência concorrente é a matéria do Direito Processual,
enquanto norma que disciplina o processo jurisdicional.
A norma processual é a que disciplina a jurisdição e seu
instrumento de manifestação, o processo, mas a própria exten­
são do conceito de processo ainda não se esgotou na doutrina.

CO incidem em leve equívoco, resultante, talvez, do fato de que o Consti­


tuinte de 1988 tenha se utilizado das expressões legislar sobre "direito
processual" (art. 22, item I) e "procedimentos em matéria processual" (art.
24, item XI) e da falsa suposição de que haja "distinção" entre "procedimen­
tos" e "processo". Não, não há, o vínculo é de inclusão ou fica mais bem
explicitado se se recorrer ao auxílio da "lógica da relação entre classes..."
(v. retro 2.5.2, n25 9 e 10 e adiante 6.3.1 fin e ). Frise-se, e bem, que, com o
art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim,
que é da competência privativa da União legislar sóbre "direito processual"
em "processo administrativo", em "processo legislativo" e em "processos
jurisdicionais” exclusivamente federais (os das justiças federais - com um e
especializadas) ; nos "processos jurisdicionais" das Justiças Estaduais editará
normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais (art.
22, XI e parágrafos).

58
CAPÍTULO IV

PROCESSO E PROCEDIMENTO

4.1.PROCESSO E PROCEDIMENTO:
MULTIPLICIDADE DE ACEPÇÕES

4.1.1. PROCESSO
O termo processo é muito rico em acepções. É empregado
na linguagem comum, na linguagem científica, na linguagem
filosófica e na linguagem jurídica (com maior ou menor rigor),
com uma variedade tão grande de sentidos que, quando se
pretende dar-lhe uma conotação específica, é conveniente deter­
minar a acepção em que é utilizado.
Na linguagem corrente, fala-se indiferentemente em proces­
so como etapa, como desenvolvimento, como método, como
movimento, como transformação. Na linguagem científica, com
suas conotações específicas, o termo é amplamente utilizado em
qualquer domínio do conhecimento. Pode-se lembrar que, na
informática, por exemplo, a idéia sugestiva de processo inte­
grou-se à linguagem da ciência na expressão processamento de
dados, como técnica de transformação de dados (números) em
informações, informações obtidas de variáveis quantitativas ou
qualitativas, depois que os dados são organizados, pois os núme­

59
ros sozinhos não dizem nada. Processamento de dados, proces­
sador de textos, são exemplos frisantes dos mais recentes usos
do vocábulo, que denotam a intensa carga simbólica sugerida
pela palavra processo.
Na linguagem filosófica, NICOLA ABBAGNANO82 registra
três sentidos para o termo: 1. "Procedimento, maneira de operar
ou de agir", exemplificando com extratos da Sum m a T beologica
de Sto. Tomás de Aquino, "o Processo de composição e de
resolução" que indica "o método que consiste no descer das
causas ao efeito, ou no subir, de novo, do efeito às causas", e
"processo ao infinito" "para indicar o subir de novo de uma causa
para outra sem parar". 2. "Transformação ou desenvolvimento"
exemplificando com WHITEHEAD (P rocess a n d R eality, 1929):
"Processo da história". 3. "Uma concatenação qualquer de even­
tos", exemplificando com expressões de campos científicos
"Processo de digestão", "Processo químico".
Em LALANDE, o vocábulo é registrado significando: Suite
d e ph én orn èn es p résen tan t une certain e u n ité ou se reprodu i-
sa n t a v ec une certain e régu larité83.
Em meio às variedades da acepção do termo, pode-se perce­
ber uma constante implícita em seu sentido: a de movimento e
de conseqüente desenvolvimento e transformação, o que se con­
trapõe à inércia, à imobilidade e à inalterabilídade.
Que a vida, a realidade, a experiência humana, as paixões,
os sentimentos e, também, o conhecimento, enfim, tudo que
pertence a este mundo sublunar84, possuam seus "processos", no

82 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, cit., verbete: Processo.

83 ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Technique et Critique d e la Philosophie,


Paris: Presses Universitaires de France, 1972 - verbete: Procès ou Proces-
sus.
84 Lembrando a filosofia grega pré-socrática que via as transformações ou o
movimento (com o processo de geração e corrupção, isto é, de gênese e
destruição) no mundo sublunar, e o imutável no mundo supralunar, o céu
das estrelas fixas, a quintessência.

60
; nA '
sentido de movimento, de desenvolvimento e de transformação,
já o havia percebido HERÁCLITO — "tudo flui", "ninguém se
banha duas vezes no mesmo rio"85, e, na filosofia moderna, é
difícil imaginar que algum pensador o tenha exposto com maior
ardor do que HEGEL86.
No Direito, a palavra está também impregnada desse simbo­
lismo, mesmo quando tecnicamente empregada, embora seu uso
indiferenciado, em diversificadas situações, a tenha tornado um
dos termos mais equívocos do campo jurídico.

4.1.2. PROCEDIMENTO
A palavra procedimento, na linguagem comum, assume fre­
qüentemente o mesmo sentido registrado por ABBAGNANO na
primeira acepção do termo processo.- "maneira de operar ou de
agir".. — ---------- ------ — ------
Em geral, a doutrina do Direito Processual relembra a ori­
gem etimológica do termo procedimento: "procedere" — pros­
seguir, seguir em frente, para dela fazer derivar a palavra "proces-
sõ ^ co m idêntico sentido etimológico. Esquece-se, entretanto,
de indicar um outro significado que etimologicamente o vocábu-

85 O eterno fluir das coisas, com o tônica de seu pensamento, é expresso em


diversas assertivas. Cf. a reunião dos fragmentos da filosofia pré-socrática,
com comentários de vários filósofos modernos e para A e RÁCLITO, sobre­
tudo, HEGEL, NIETZCHE e HEIDEGGER: "Os Pré-Socrátícos — Fragmen­
tos, Doxografia e Comentários", seleção de textos e supervisão do Prof.
José Cavalcante de Souza, 2 - ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp.92-136.

86 Cf. As bases de seu sistema, principalmente os conceitos desenvolvidos no


Prefácio à Fenomenologia do Espírito, foram retomadas em sua Filosofia
do Direito, em cujo prefácio explicita o que é a filosofia, essa "rosa na cruz
do sofrimento presente", que tem a sua missão em "conceber o que é,
porque o que é é a razão" e "tudo que é racional é real e tudo que é real é
racional", e cujo Prefácio se ocupa do movimento dialético do conceito - Cf.
HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, Trad. de Orlando Vitorino, s/l:
Livraria Martins Fontes Ltda., 1976, p .l a 51. Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇAL­
VES - Introdução Ontológica, in Natureza Jurídica dos Recolhimentos Para
o Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço - Belo Horizonte, 1977 (Tese
de Doutoramento), pp.1/91, principalmente pp.6/15.
Io procedimento comporta, e em sentido próprio mesmo, não
apenas figurado, extraído de TITO LÍV1O, e ainda hoje tão co­
mum em nossa língua, quando se usa o verbo proceder como
transitivo indireto (isto procede de...) e, embora o retorno às
origens das palavras nem sempre auxilie o aclaramento de con­
ceitos, a retomada do tema, pelo sentido de derivação, com­
preendido no termo procedimento, pode se revelar de alguma
utilidade.
No latim, processu s, -a, -um, é partiçípio passado de p r o c e ­
d o, e processus, -us, é substantivo. A origem de processo é,
portanto, do verbo p roced o, -is, -ere, -cessi, -cessutn, que teve
dois sentidos próprios e alguns sentidos figurados. O primeiro
sentido próprio, utilizado por CÉSAR (De B ello G allico) e CÍCE­
RO (T u scu lan ae), corresponde a avançar, alongar-se; o segundo,
usado por TITO LIVIO, refere-se a prolongar, continuar. Na
mesma raiz, há, no latim, o verbo progign o, -is, -ere, -genui,
-genitum , com o sentido próprio de: prolongar a raça engen­
drando, gerar, assim empregado por CÍCERO (De D ivinatione) ,
e o adjetivoprognatus, -a, -um, com o sentido próprio de: saído
de, descendente dè, como utilizado por HORÁCIO (Sátiras)87.
Proceder é, também, "originar-se", "descender de" e procedi­
mento é, também, "o originar-se", e "o descender de".
Essa lembrança pode ser de alguma utilidade no tratamento
dos novos conceitos que serão examinados.

4.2. PROCEDIMENTO E PROCESSO:


DUAS TENDÊNCIAS TEÓRICAS DISTINTAS

A postura da doutrina contemporânea sobre o modo de se


compreender o procedimento e o processo, sobre os critérios
que devem ser utilizados para a conceituação de cada um deles,

87 Pode-se consultar o Dicionário Escolar Latino-Português do Professor ER­


NESTO FARIA.

62
sobre a relação que pode existir entre eles, é básica para a adoção
de todo um quadro conceptual, um sistema de conceitos, que
servirá como instrumental teórico para o tratamento do proces­
so.
As doutrinas particulares, quando possuem fundamentos
comuns, podem ser agregadas em escolas ou em correntes de
um determinado campo do pensamento jurídico. Podem ser,
ainda, designadas genericamente como "doutrina", mas a essa
expressão se ajunta um determinado qualificativo, que será a
marca pela qual se reconhecem os fundamentos que, sendo por
elas compartilhados, sustentam diversas construções teóricas so­
bre um dado tema, que se põe como objeto do conhecimento. As
diferenças internas que apresentem não serão importantes para
impedir seu recolhimento dentro de uma mesma tendência de
pensamento.
É nesse sentido que se pode falar na existência, no campo
do Direito Processual, de duas tendências distintas, firmadas
sobre dois fundamentos teóricos diferentes, cada uma delas
trabalhando com base em seus conceitos, suas definições, suas
categorias, seus institutos. As diferenças do quadro teórico não
incidem apenas no conceito isolado de procedimento e de
processo, mas alcançam temas fundamentais d]5 Direito Proces­
sual. E necessário se ressaltar^ entretanto, que essa diferença de
tratamento dado aos temas decorre, lundamentalmente, da con­
cepção qué~s’e ãdote sobre procedimento e sobre processo, por­
que é por ela que se começará a estabelecer todo um sistema de
conceitos de que o Direito.Processual necessita para suas cons­
truções jurídicas.
No desenvolvimento do Direito Processual Civil como ciên­
cia autônoma, a doutrina, sob a influência de BÜLOW, reagiu
contra a postura tradicional deséculos passados, que absorvia o
processo no procedimento e consideraváestecõm om era suces­
são^ de atos que compunham o rito da aplicação judicial do
direito. Em progressivos passos, buscou estabelecer a distinção

63
entre processo e procedimento, e encontrou, em critérios teleo-
lógicos, a base da diferenciação. .— ___
Essa distinção perdurou por muito tempo de foima quase
soberana, até que começou a despontar, dentro da doutrina,
uma outra proposta pela qual era possível se considerar as rela­
ções entre procedimento e processo. Em movimentos concer­
nentes a desenvolvimento de idéias, falar-se em pioneirismos é
algo bastante arriscado, mesmo porque, como ocorre em geral,
as idéias que conduzem a mudanças são latentes nos sistemas
precedentes, e, ademais, não sé fez úm levantamento histórico
com esse objetivo. Mas dentre os autores mais divulgados, pode-
se encontrar em REDENTI um esforço bem conduzido em dire­
ção a essa nova visualização do procedimento e do processo, e
em FAZZALARI, o sistema aperfeiçoado dessa nova postura88.

4.2.1.PROCEDIMENTO E PROCESSO:
A DISTINÇÃO BASEADA EM CRITÉRIO "TELEOLÓGICO"
A linha doutrinária que separa o procedimento do processo
firmou-se sobre o critério teleológica, pelo qual se atribui finali­
dades ao processo e se considera o procedimento delas destituí­
do. Nela, o procedimento é "puramente formal", algo que tanto
pode ser uma técnica, como os atos de uma técnica, como a
ordenação de uma técnica, enfim, separa-se do processo como
idéia impregnada de finalidades por ser estranho a qualquer
teleologia89.

S8 O tema não encontrou, ainda, suficiente divulgação na doutrina brasileira,


onde sequer aparece dentre as grandes preocupações por ela manifestadas
ou dentre as perspectivas abertas no estudo do processo, inventariadas e
examinadas por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA em "Os Temas Funda­
mentais do Direito Brasileiro nos anos 80: Direito Processual Civil" - e
"Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no Estudo do Processo" in Temas
de Direito Processual, Quarta Série, São Paulo. Saraiva, 1989, pp.1/10 e
pp. 11/21.
89 Assim, com o se lê em N1CETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO reco rd a re­
m os qu e m ieníras la idea d e proceso responde a u n a contem plación
teleológica, la d e procedim iento obedece a un enfoque form alista. Cf.

64
Essa posição predomina na doutrina processual brasileira
contemporânea, em que_Q-p£Ocedimento comparece como técni­
ca que "disciplina, organiza ou ordena em sucessão lógica o
processo"90, á técnica de "ordenação e racionalização da ativida­
de á ser desenvolvida" (...) "forma imposta ao fenômeno proces­
sual"91. A doutrina pátria, em sua expressão mais jovem e bri­
lhante, aprofundou o conceito do procedimento como "meio
extrínseco" de desenvolvimento do processo, "meio _pelo qual a .
lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo", até
reduzi-lo a manifestação exterior do processo, "sua realidade
fenomenológica perceptível"92. ^ jb&ujy. ^ctu í) 1ÁÀO-
Em contraposição, ao processo é atribuída natureza teleoló­
gica, "nele se caracteriza sua finalidade de exercício do poder",
como "instrumento através do qual a jurisdição opera (instru­
mento para a positivação do poder)"93.
A distinção pelo critério teleológico propicia ao processo a
abertura de um leque de finalidades94, dentre as quais a atuação
do direito95, mas suscita, dentre outras questões, um problema
para o qual não se encontra resposta adequada. E que, se o

Estúdios Procesales, M adrid: Editorial Tecnos, 1975, p. 455. No mesmo


sentido, reporta-se à sua obra Processo, autocomposición, pp. 127-9-

90 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL - Comentários ao Código de Processo


Civil, 2 - ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1979, v. 3, p. 9-
91 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL, op. cit., p. 10.

92 ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e


CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 247.

93 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER


e CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p.247.

94 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2~ ed.


rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

95 JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA refere-se às finalidades que não são


excluídas perante o fim público do processo, em As Bases do Direito
Processual Civil in Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977,
pp. 3/15.

65
3
O
3
3 procedimento se constitui em meio necessário, (pois não se
aboliu, ainda, a necessidade da existência do procedimento),
3 para a existência, ou o desenvolvimento, ou a ordenação, do
3 processo, tem, então, o caráter teleológico que toda técnica
3 intrinsecamente comporta, como meio idôneo para atingir fina­
lidades. Mesmo considerado como série de atos, como forma de
O ordenação, como meio de se estamparem o sãtos do processõ, õ
O procedimento estaria impregnadojde sentido teleológico,,por­
o que sua finalidade, já explícita em sua funcionalidade, não.pode­

o ria ser negada.

3 4.2.2. A BASE DA DISTINÇÃO


3 PELO CRITÉRIO TELEOLÓGICO
As reações contra as posições tradicionais do século pas­
O sado geraram múltiplos resultados e um deles foi o estigma que
D se abateu sobre o procedimento.
O Se o procedimento envolvera o processo, a ponto de deluí-
lo na mera sucessão de atos, a reação veio tão forte que provocou
O a postura doutrinária exatamente em pólo contrário. A doutrina
O processual mòderna, em sua larga maioria, diluiu o procedimen­
o to no processo. O processo absorveu-o e anulou sua importân­
o cia.
Não obstante, essa postura não supera o quadro do século
o passado, pois continua operando dentro dele, embora nela já se
o note a integração de vários conceitos renovados, que fazem
pensar em um passo ensaiado para um novo itinerário, que ainda
3
não se completou. Mesmo trazendo latentes as inovações da
3 construção jurídica que se reelaboraram nas últimas décadas,
3 essa linha doutrinária trata o processo com apelo a uma catego­
ria conceituai do século passado, a da relação jurídica, que já
O
passou por graves críticas na teoria do Direito e que é absoluta­
3 mente imprópria para explicar as posições que assumem os
3 sujeitos envolvidos no processo.
3
3
3
3 66
3
3
4.2.3-PROCEDIMENTO E PROCESSO
VISTOS SOB UMA PERSPECTIVA LQ ÇIfA
A evolução dos conceitos de procedimento e de processo,
como se percebe na exposição dos itens anteriores, não se fez em
trajeto linear, mas foi bastante assemelhada a uma dialética de
oposição, em que a antítese se levanta contra a tese, para negá-la,
até que advém o momento da síntese, que absorve as afirmações
e as negações em uma nova tese.
Como assinala ELIO FAZZALARI96, o desenvolvimento dos
contornos dos dois institutos e o próprio "emprego apropriado
dos dois termos tardaram muito". O conceito de procedimento
mudou, acompanhando o desenvolvimento da realidade norma­
tiva, do Direito positivo, e não foi por acaso que as maiores
contribuições, para sua alteração, vieram do campo do Direito
Administrativo, que iria se inspirar justamente no modelo de
processo, buscado nos domínios do Direito Processual. Entre­
tanto, a dõutrinã~jrocéssuãTníãoextraiu dessa mudança as con­
seqüências adequadas para definir o processo. Mesmo diante de
um novo conceito de procedimento, os processualistas não
aproveitaram essa contribuição para a conceituação do processo
e, necessitando de um suporte teórico para defini-lo, prenderam-
se ao antigo modelo da relação jurídica processual97. Esse "veMio
e antigo clichê pandectista", na expressão de FAZZALARI, teria
imperado, ainda, conforme expõe ele, em alguns decênios deste
século98.
Entretanto, não se pode tratar a questão no passado, como
o faz FAZZALARI, porque a relação jurídica ainda predomina,
mas, agora, não já com a sua antiga soberania, sobre toda a
doutrina.

96 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni d i Diritto Processuale, quinta edizione,


Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp. 72/73.

97 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 72/73-


98 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 73-

67
Pelo critério lógico, as características do procedimento e do
processo não devem ser investigadas em razão de elementos
finalísticos, mas devem ser buscadas dentro do próprio sistema
jurídico que os disciplina. E o sistema normativo revela que,
antes que "distinção", há entre eles uma relação de inclusão,
porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se
pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma
propriedade que possui e que o torna, então, distinto, na mesma
escala em que pode haver distinção entre gênero e: espécie. A
diférença específica entre o procedimento em geral, que pode ou
não se desenvolver como processo, e o procedimento que é
processo, é a presença neste doelem ento que o especificado.
contraditório/Ò processo é um procedimento, mas não qual-
quer procedimento; é o procedimento de que participam aque-
les que são interessados nõatõTihãl, de caráter imperativo, por
ele preparado, mas náo apenas participam; participam de uma
forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interes­
ses em relação ao ato finaLsão opostos. ___
Fica evidente que essa concepção trabalha com um novo
conceito de procedimento e dele extrai um novo conceito de
processo.
Ao se concluir este tópico, não se pode deixar de registrar as
palavras dirigidas por FAZZALARI à própria ciência do Direito
Processual, ante a constatação de um fato que os processualistas
de ambas as correntes já perceberam, o da crescente tendência
da sociedade contemporânea para resolver suas questões (suas
qu aestion es) adotando o modelo do processo, com o contradi­
tório que o especifica:

"Insomma, la n ostra era assiste a lia d iffu sion e


d e l processo in tu tti i settori delV ordin am en to, spe-
cie, p e r cosi dire, in q u a lli p iú cald i; e il f uturo n e
fa r à sen tire m aggiortnente il bisogno. R im ane, p er-
ciò, com pito d elia d ottrin a ap p rofon d íre e p erfezio-
n are i m od u li p rocessu a li (ciò d i p a rtecip a z io n e

68
d eg li in teressati, in con traddittorio, alV iter d i fo r-
m azion e d i un ato), en u cleare prin cipi, offrirli a chi
f a le leggi e d a ch i deve applicarle'm

A doutrina do Direito Processual, por certo, não recusará o


papel que constitui a missão social de toda a ciência de elucidar,
de .esclarecer, de aperfeiçoar e aprofundar a realidade, objeto de
sua investigação, e, depois, tornar o resultado de seu trabalho —
o conhecimento, por mínimo que seja — disponível, não só para
os que devem fazer as leis e os que irão aplicá-las, mas para a
própria sociedade.

*
99 Cf. FAZZAIARI, op. cit., pp. 14/15. Impende insistir na Codificação Estadual
de Processo (civil e penal), em face da diretiva de política jurídica emanada
do texto da Constituição de 05 de outubro de 1988 (art. 24, XI e parágra­
fos). E isto porque, com o se deixou bem claro, não há "distinção" entre
"norma processual" e "norma procedimental" ou entre "processo" e "proce­
dimento". "Procedimento" é gênero, "processo" é espécie. Como se insistiu,
a marca ou sinal específico está no "contraditório" e a relação é de "inclu­
são". Com o já está no rodapé 81, importa destacar, mais uma vez, que, com
o art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim,
que é da competência privativa da União legislar sobre "direito processual"
em "processo administrativo", em "processo legislativo", e em processos
jurisdicionais exclusivamente federais (os das Justiças Federais comuns e
especializadas); nos processos jurisdicionais das Justiças Estaduais editará
normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais
(art.22, XI e parágrafos).
CAPÍTULO V

O PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA

5.1. RELAÇÃOJURÍDICA PROCESSUAL

CHIOVENDA ao lançar as bases da ciência do Direito Proces­


sual Civil, flxou o conceito de processo como relação jurídica.

"IIprocesso civ ile con tien e un rap p orto g iu ridi-


co. E V idea g ià in eren te a l iu diciu m rom an o; non-
chè a lia d efin izion e cb e d e l g iu d iz io d a v a n o i n ostri
p rocessu alisti m ed iev ali: Iu d iciu m est actu s trium
person aru m , actoris, rei, iu d icis (Búlgaro, De iudi-
ciis, § 8). E V idea cbe la d ottrin a e la p r a tic a espri-
m evan o g ià in con sapev olm en te c o lla p a r o la litis-
pen den za, in tesa qu esta com e la p en d en z a d ’una
lite n ellap ien ezza d ei su oi effetti g iu rid ici. Litispen-
d en za e rapporto g iu rid ico p ro cessu a le son o concet-
ti ed espression i non eq u iv alen ti m a coin ciden ti"100.

100 GIUSEPPE CHIOVENDA - Istittizioni. di Diritto Processuale Civile, volume I, I


Concetti Fondamentali - La Dottrina Delle Azioni-Ristampa Inalterata Delia
2a Edizione, Napoli: Casa Editrice Dott. Eugênio Jovene, 1940-XVTII, p.50.
A figura da relação jurídica que já se constituíra como um
dogma na doutrina civilista, para explicar direitos e deveres,
faculdades e obrigações, e alcançara outros ramos do Direito,
alastrou-se também pelo Direito Processual Civil que a adotou
sem grandes polêmicas.
A profundidade com que a idéia do processo como "relação
jurídica" arraigou-se na ciência do Direito Processual Civil pode
ser apreendida na exposição de CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A
doutrina da relação jurídica processual nasceu na Alemanha há
pouco mais de um século e tem hoje ampla aceitação em toda a
literatura do mundo romano-germânico. Embora a idéia já
andasse pela doutrina do processo, dela não se tinha senão mera
intuição e foi apenas no século passado que se observou a sua
existência — ressaltando-se que se trata de relação nitidamente
distinta da de direito substancial, da qual difere, em seus pres­
supostos, em seu objeto e em seus sujeitos".101
Essa idéia intuída no século passado brotava realmente do
espírito da época, como se verá, e encontrou sua formulação nas
teses de WINDSCHEID, no momento que se conciliou uma de­
terminada noção de Direito subjetivo, que se firmava também
segundo o espírito da época, com a de processo. Mas a ampla
aceitação a que se refere DINAMARCO, dessa que, na sua exposi­
ção, é uma "formulação, clara e convincente, quase elementar no
estágio atual da ciência do processo"102, começou a encontrar
suas objeções em outros campos da reflexão jurídica, quando o
pilar do conceito de relação jurídica, o Direito subjetivo, nas
dimensões concebidas no século passado, foi posto em questão.
A descoberta das semelhanças não aparentes e das relações
existentes entre os conceitos com que a ciência do Direito
Processual Civil trabalha tem sido retardada, talvez porque o
Direito Processual Civil tenha se acomodado nos progressos

101 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, vol. 1, 2~ ed. rev. e ampl.,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 95.
102 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, cit. p. 95.
que já obteve, dando por encerrada sua reflexão sobre a adequa­
ção de seu próprio instrumental técnico para capturar o objeto
de sua investigação.
EDUARDO COUTURE, afirmando que La d octrin a d om i­
n an te con cib e e l p ro ceso com o una relación ju r íd ic a I03, men­
ciona os argumentos que se levantaram contra tal concepção e
tenta demonstrar que a relação é uma "união real ou mental,
vínculo que aproxima uma coisa da outra, permitindo que
mantenham sua individualidade". Entretanto, não é só de uma
correlação, de uma interação, que se"fala quando se emprega o
termo relação jurídica, mas de vínculo entre sujeitos. COUTURE
o demonstra: C u an do en e l lenguage d e l d erech o p r o c e s a l se
h a b la d e relación ju ríd ica , n o se tien d e sin o a sen a la r e l víncu­
lo o lig am en qu e une en tre s í a los su jetos d e l p ro ceso y sus
p o d e r e s y d eb eres respecto d e los d iv ersos a c to sp ro cesa les. (...)
Se h a b la , en tonces, d e la relación ju r íd ic a p r o c e s a le en e l sen ti­
d o ap u n ta d o d e ord en a ción d e la con d u cta d e los su jetos d e l
p r o c e s o en sus con ex ion es recíp rocas; a l cúm ulo d e p o d eres y
fa c u lta d e s en q u e se h a lla n unos respecto d e los o tro s104.
Os gráficos que representam as relações paralelas, as formas
angulares de relação, são repetidos habitualmente para caracteri­
zar a relação jurídica processual, ressaltando, justamente, esse
vínculo entre sujeitos do qual fala COUTURE.
As teorias que trabalham com os antigos conceitos de rela­
ção jurídica e de Direito subjetivo, na clássica acepção, são ainda
predominantes na ciência do Direito Processual105. OSKAR VON

103 Cf. EDUARDO COUTURE - Fundam entos Del D erecho Procesal Civil, terce-
ra edición (póstuma), Reimpresión inalterada, Buenos Aires: Ediciones
D epalm a, 1974, p. 132.
104 Cf. EDUARDO COUTURE, op. cit., pp. 133/134.

105 Cf. OSKAR VON BÜLOW - La Teoria d e las Excepciones Procesales, Los
Presupuestos Procesales. Trad. de Miguel Angel Rosas Lichtschein, Buenos
Aires: Ediciones Ju ríd ica s Europa-America, 1984, J. RAMIRO PODETi'1 -
Teoria y Técnica d el Proceso Civily Trilogia Estructural de la Ciência d el
Proceso Civil, Buenos Aires: EdiarSoc. Anón. Editores, 1963, UGO ROCCO

72
3
3

BÜLOW, J. RAMIRO PODETTI, UGO ROCCO, SALVATORE SATTA 3


CARNELUTT1, LIEBMAN ... seria longa a relação dos nomes repre­ 3
sentativos da doutrina já clássica, que se encontram nessa linha, e 3
dela não diverge, nesse ponto, a doutrina processual brasileira.
3
CARNELUTTI recorda que a intuição da conexão entre rela­
ção jurídica e processo, tendo germinado na Alemanha e se o
transplantado para a Itália, continuou sendo cultivada. E faz a o
crítica da concepção de processo como relação jurídica, e da
doutrina que sustenta que no processo a relação jurídicá assume
o
-significado diferenciado. Entretanto, sua resposta ao problema é 3
a pluralidade de relações jurídicas geradas no processo: L a sitn-
p le v e r d ã d d e q u e e l p roceso no es una relación ju r íd ic a sin o
o
o
qu e g en era u n a red, p o r n o d ecir una m a ran a d e relacion es
ju ríd ica s, n o está en absolu to con solid ad a en la ciên cia d e l 3
d erecb o p ro cesa l; y esto b a sta ria p a r a d em on strar tod o e l cam i- O
no qu e esta ciên cia h a d e recorrer tod av ia a p e s a r d e con side- 3
rarse m uy a v a n z a d a 10^. Em suas obras, percebe-se que há uma
pronunciada intuição de que o conceito de Direito subjetivo 3
deveria ser retrabalhado, mas seu quadro conceituai é ainda o de 3
supra-ordenação e de subordinação, do caráter imperativo do 3
Direito subjetivo, de obrigações como sujeições107.

3
5.2. A QUESTÃO DA RELAÇÃOJURÍDICA * 3
O modelo clássico de relação jurídica construiu-se sobre a
3
idéia de que é ela um enlace normativo entre duas pessoas, das 3
3
- Tratado d e D erecho Procesal Civil, Bogotá: Temis Buenos Aires: Depal-
3
ma, 1970, SALVATORE SATTA - Diritto Processuale Civile, nona edizione
riveduta e d am pliata a cura d i Caimine Punzi, Padova: CEDAM, 1981.
3
106 Cf. CARNELUTTI - Derecho y Proceso, Trad. de Santiago Sentis Melendo,
3
Bueno Aires: Ediciones Ju ríd ica s Europa-America, 1971, p. 41. 3
107 Cf. CARNELUTTI, op. cit., pp. 16/17. Na nota 32 da p. 17, há referências às
obras anteriores que tentaram aprofundar tais conceitos.
3
O
3r
73 3
3
3
quais uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever
jurídico.
O desenvolvimento desse modelo é bem descrito por CLAU-
DE DU PASQUIER108, que relembra a lição de ORTOLAN (1802-
1873), segundo a qual "Todo direito tem necessariamente um
sujeito ativo e um ou vários sujeitos passivos, e sejam eles ativo
ou passivos, somente podem ser pessoas"109.
Nascia, assim, a teoria dos dois sujeitos, que começaria a ser
aperfeiçoada quando ROGUIN nela incluiu um terceiro elemen­
to: a prestação. A confluência de direitos e deveres para a presta­
ção permitia a afirmação do ju s et ob lig atio sunt correlata.
A-tearia_daxelação jurídica não se distineuiu. em suas bases
fundamentais, das construções do Direito privado dõ~seculõ~
passado, impregnadas das concepcões-iadividualistas .da_época.
JOÃO BAPTISTA VILLELA descreve como essas concepções,
assentadas na "idéia de concorrência", se refletiram no Direito:
"O princípio cardeal que tudo informava era o da obrigação
concebida como vínculo jurídico exercitável pelo constrangi­
mento." Não se vislumbrava outra forma de se organizarem as
relações sociais e humanas senão pela opressão, pelos elos de
uma tirânica dominação de que, conforme diz, nem o Direito de
família com seu conteúdo ético e afetivo escapava. "Todos os
direitos da ordem privada, segundo a idéia individualista, se
reduzem àquela formulação dos clássicos COLIN e CAPITANT
lembrada ainda por BERTRAND: Tacu Idades_0.u-prerr0 gatiya.s-
pertencentes a um indivíduo e das quais ele pod_e_pxevalecer-se
em relação a seus semelhantes!'!10.

108 Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théorie G énérale et à la


Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1967, p. 102
e s.

109 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 102.


110 Cf. JOÃO BAPTISTA VILLELA - Por uma nova teoria dos contratos, in Revista
Forense, vol. 261, ano 74, jan.-fev.- mar. de 1978, pp.27/35, v. especialmen­
te p. 32.

74
O conceito de relação jurídica foi elaborado nesse quadro.
Seus elementos se definiram com a contribuição definitiva de
WINDSCHEID para as novas bases científicas do Direito subjeti­
vo, a partir das quais o "vínculo de exigibilidade", ligando "sujeito
ativo" e "sujeito passivo", por um poder da vontade, se estrutura­
va para logo se alastrar por todo o campo do Direito.

5-3. A QUESTÃO DO DIREITO SUBJETIVO

"Nous n ou s som m es longu em en t a tta rd és sur


cette heu re p riv ilég iée d e V histoire du d ro it su bjec­
tif, ou cet en fan t m onstrueux sem ble sortir d es lim -
bes"111

As palavras de MICHEL VILLEY dão a dimensão das muta­


ções que, desde sua gênese, iriam fazer do direito subjetivo uma
criatura monstruosa do Direito, até que a ciência jurídica desper­
tou para a necessidade de refletir sobre a sua própria criação,
recuperando-a ajustada aos novos tempos — à la rech erch e d e
V horizon t th éo riq u e, como se expressa FRANÇOIS LONG-
CHAMPS sobre as novas "vias que levam a esse tema sedutor"112.
A idéia do direito subjetivo tem a sua fase mais profícua,
conforme narra HELMUT GOiNG, no A ufklaru n g, no iluminis-
mo, em que floresce o direito natural do ('acionalismo113. Mas
sua gênese é mais remota e tem sido referida pela doutrina que

111 Cf. MICHEL VILLEY - La Gcnèse d u Droit Subjetif chez G uillaum e d'Oc-
carn, in Archiues de Philosophie d u Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en
Question, Paris: Sirey, 1964, p. 127.
112 Cf. FRANÇOIS LONGCHAMPS - Quelques Observations su r Ia nolion de
droit subjectif dans la doctrine, in Archiues d e Philosophie d u Droit, tome
IX Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.70.
113 Cf. HELMUT GOÍNG - Signification d e la notion de droit subjectif, trad.
p a r N. Poulantzas, in Archives d e Philosophie d u Droit, Tome IX - Le Droit
Subjectif en Question, Paris: Sirey, 19 6 í, pp. 1/15.

75
se dedica ao tema a GUILHERME DE OCCAM, que segundo
MICHEL VILLEY foi, provavelmente, o primeiro a definir o direi­
to subjetivo e a edificar sobre ele uma teoria. As teses de GUI­
LHERME DE OCCAM, formuladas para demonstrar a heresia de
João XXII, em defesa de Michel de Césène e da Ordem Francisca-
na, destinaram-se a sustentar que Jesus Cristo e os apóstolos
tinham o uso dos bens, sem deles ter a propriedade. A revolta
dos Franciscanos contra o papa de Avignon, na defesa da idéia da
pobreza e do poder profano, conduziu-o à concepção de um
direito inserido em uma hierarquia de poderes, na qual os confe­
ridos pelas leis humanas podiam ser renunciados. O poder se
organizava hierarquicamente em três planos: no primeiro, estava
a p o testa s a b so lu ta , fonte de toda ordem jurídica, que era a
liberdade de Deus; no segundo, os ju r a p o li, constituídos pelo
poder dos homens, e no terceiro, os ju r a fo r i, pelos quais o
governante recebia, por delegação do povo, o poder legislativo.
As leis positivas engendravam o dom in iu m e o ju s u ten d i, e os
direitos subjetivos, no sentido estrito, garantidos pela sanção da
autoridade estatal, importando em p o testa s v in d ican d i. Os di­
reitos subjetivos, como poder, admitiam renúncia e, enquanto
direitos assegurados pela lei, poderiam ser reivindicados114.
De OCCAM, no século XIV, a WINDSCHEID, no século X3X,
as transformações se fizeram na quebra da hierarquia do regime
feudal, e o s d i r e i t o s s u b j e t i v o s do racionalismo foram pensados
em termos de uma liberdade absoluta que, derivada do direito
natural, ou a ele identificada, se opunha ao próprio__Direito
positivo e ao Estado.
Com WINDSCHEID, o conceito de..direito subjetivo deu
origem ao dgjcelação jurídica, já no sentido prenunciado por
OCCAM. O antigo vinculum ju r is aperfeiçoou-se como o vínculo
normativo que liga sujeitos, em dois pólos, passivo e ativo7atfi-

114 Cf. MICHEL VILLEY - La Genèse d u Droit Subjectif chez GuiUaum e d ’Oc-
cam, in Arcbives de Philosophie d u Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en
Question, Paris: Sirey, 1964, pp- 116/125.

76
buindo ao sujeito ativo o poder de exigir do sujeito passivo uma
determinará conduta e impondo a este o dever cie prestá-la.
Como afirma HELMUT GOiNG: En A llem agne, on est venu,
d ep u is W indscheid, à une rupture entre la fa ç o n d e voir du
d ro it p riv é et du d roit d e la procédu re. C’est p o rq u o i on a
rem p lacé la n otion d ’a c tio p a r celle d e "Anspruch". Le sen s d e
celle-ci con siste ici d an s le d ro it su b jectif à exiger d ’au tru i qu ’il
fa s s e qu elqu e chose, ou q u ’il s ’abstien n e115.
Vê-se por que o conceito de direito de ação, que iria surgir
das posturas divergentes entre WINDSCHEID e MLJTHER, nasce
sob o signo de um conceito de relação jurídica engendrado por
uma noção de direito subjetivo. Essa opção ressurgida com
WINDSCHEID conciliava o direito subjetivo da A ufklaru n g, po-
der absoluto decorrente da liberdade, com o poder de exigir de
outrem ações e*omissões. Com a clássica obra "A ação do direito
romano do ponto de vista do direito civil", de 1856, WINDS­
CHEID lançava as bases da moderna concepção de direito subje­
tivo, como narra FRANZ WIEACKER110.
São conhecidas as objeções feitas à teoria de WINDSCHEID
por outras teses que pretenderam aperfeiçoar o conceito de
L direito subjetivo (de VON HERING, DAB1N, JELLINEK, dentre
outras) mas, na procura de novos fundamentos, a doutrina não
feria nenhum ponto essencial do conceito, estabelecido como
'poder absoluto sobre a própria conduta ou como prerrogativa
sobre a conduta alheia117.

115 Cf. HELMUT GOYNG - Signification d e la notion dc droit subjectif - trad,


p a r N. Poulanlzas, in Archives d e Philosophie du Droit, Tome !X - Le Droit
Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.9-

116 Cf. FRANZ WIEACKER - Storia d el Diritto Privato M oderno co n p a rtico /a re


riguardo alia Germania, volum e secondo, traduzione italiana di llmber-
to Santarelli (§ § 1-19, tomo 1) e Sandro - A Fusco (§ 20-fine, tom o II),
M ilano: Giuffrè Editore, 1976, p. 145.

117 Em seu desenvolvimento, no século passado, a partir da clássica obra de


WINDSCHEID o direito subjetivo foi concebido como faculdade jurídica
abstrata, unia fa cu lta s agendi que o titular usava sem prestar contas a

77
Do campo do Direito Privado o conceito ganhou o do
Direito Público, e nessa passagem foi fundamental a contribui­
ção da obra clássica de JELLINEK - System d er S u bjektiven Of-
fen tlich en Rechte, de 1892. O transporte se deu com a mesma
conotação do vínculo normativo entre sujeitos e da exigibilidade
da prestação: o particular, no pólo ativo da relação jurídica,
podendo exigir do Estado, no pólo passivo da relação jurídica,
uma determinada prestação.

5- 4. AS DIFICULDADES NA APLICAÇÃO DO MODELO


CLÁSSICO DE RELAÇÃOJURÍDICA E DO CLÁSSICO
CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO .

A teoria da relação jurídica em breve se revelou insuficiente


para responder às situações jurídicas que, à evidência, não cor­
respondiam a vínculos entre sujeitos. O problema do direito de
piopriedade recebeu novãsTõrmúlações, mas o pátrio poder, a
nacionalidade, o direito à honra e, genericamente, o que mais
tarde se denomínaxia direitos pexsonalíssimos ficavam sem res­
postas adequadas peX ovinculum iuris.
LEON DUGUIT demonstra que a noção que está na base do

ninguém, ou como poder garantido porque dotado de exigibilidade. Deve-


se, ainda, a WINDSCHEID. a base da classificação dos direitos subjetivos:
absolutos, seriam os direitos que existem contra todos; relativos, os que
existem contra uma pessoa ou um número determinado de pessoas. Quan­
to aos direitos subjetivos relativos, a doutrina não encontrou qualquer
ponto para colocar em dúvida o vínculo jurídico que, nos direitos obriga-
cionais, ligava dois sujeitos (ou mesmo uma pluralidade de pessoas, por­
que as relações jurídicas, bilaterais ou plurilaterais, se caracterizam pela
bipolaridade das situações dos sujeitos). Mas a respeito dos direitos subje­
tivos absolutos, a construção foi acidentada, havendo teses que sustenta­
vam a relação jurídica imediata do sujeito com a coisa; propostas de
substituição dos conceitos tradicionais e adoção de uma nova definição dos
direitos reais como direitos correlatos de uma obrigação passivamente
universal; negação da existência de uma obrigação, no sentido específico
do termo, nesse tipo de relação.
conceito de relação jurídica é a da autonomia da vontade, que
constitui o fundan^éhto dé tcídõ õ sistema individualista do sécu­
lo passado, da noção de contrato à noção de liberdade118, ex­
traindo do Código Civil francês os postulados que sustentam
suas conclusões. As conseqüências decorrentes do princípio da
autonomia da vontade, conforme discorre, levou ao dogma da
doutrina do século passado, com heranças no vinculum ju r is
dos romanos, que não permitiu que o Direito fosse concebido
senão como uma relação entre sujeitos, dos quais um deve uma
prestação negativa ou positiva que o outro pode exigir119.
Das dificuldades que a doutrina encontrou para sustentar
essa tese, perante situações que exigem proteção em razão de
seu fim social e que devem ser garantidas pelo Direito, mesmo
sem a existência de qualquer relação entre as pessoas, fala DU-
GUIT, ressaltando as concepções de MICHOUD, sobre a ir­
realidade das noções de Direito objetivo e direito subjetivo, e
sua indispensabilidade para a ciência do Direito; de PLANIOL,
sobre a excepcional situação dos direitos reais e, por fim, a
jurisprudência administrativa e judicial que se formou em Fran­
ça, permitindo a criação de fundações de Direito privado, através

118 DUGUIT contesta a doutrina que denomina individualista e que funda toda
- 'n orm a na autonomia da pessoa humana. Nega, expressamente, essa auto­
nomia, que, se existe, conforme diz, é um simples fato, e fatos não fundam
normas. Em lugar da autonomia, propõe, sob a inspiração de DURKHEIM
(La Division du Travail Social, 1891), o princípio da solidariedade social
com o fundante da norma social. Essa será moral, econômica ou jurídica,
pelo grau de reação produzida, no interior do grupo social, à sua violação.
Toda regra social torna-se norma jurídica quando penetra na consciência
da massa de indivíduos, componentes de determinado grupo social, a
noção de que o grupo pode intervir, ou o próprio grupo ou aqueles que
detêm a força mais concentrada dentro dele, para reprimir a violação
daquela regra. Cf. LÉON DUGUIT -Traité d e Droit Constitutionnel, Paris:
A ncienne Librairie Fontem oing & Cie, Éditeurs, 1927, v.I, pp. 65/116.

119 Cf. LÉON DUGUIT - Las Transformaciones d el Derecho (Público y Priva­


do), trad. Las Transformaciones d el D erecho Público, p o r Adolfo G. Posa­
d a y R am ónjcién, Las Transformaciones d el Derecho Privado, p o r Carlos
G. Posada, Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 216.

79
de testamento, contra as concepções dos civilistas e da própria
disposição do Código de Napoleão, que no art. 906, § 2a, exigia,
para a validade da disposição testamentária, que o beneficiário
fosse ao menos concebido antes da morte do testador. O início
dessa construção jurisprudencial se deu pelo célebre caso do
reconhecimento, pelos Tribunais franceses, da validade do ato
que culminaria na criação da Academia Goncourt, o testamento
deixado pelo escritor Edmond Goncourt (1822-1896), que, re­
presentando também a vontade de seu irmão, o escritor Jules
Goncourt (1830-1870), dispunha que todos os seus bens deve­
riam ser vendidos para a criação de uma sociedade literária que
teria renda e a obrigação de premiar, a cada ano, uma obra da
literatura.
Os argumentos utilizados, quando os herdeiros dos irmãos
Goncourt pretenderam invalidar o ato, a polêmica criada em
tom o da impossibilidade de existência de direitos sem sujeitos,
e os fundamentos dos arestos são amplamente relatados por
DUGUIT, para demonstrar como se realizou uma profunda trans­
formação nas concepções jurídicas, ao se admitir a possibilidade
de que o sistema jurídico proteja e garanta certas situações, em
razão de sua finalidade social, e sem que haja relação entre
. . 1 90
sujeitos .
O conceito de relação jurídica, com suas conotações indivi­
dualistas e seu precário alcance, é rejeitado por DUGUIT de
modo absoluto, tanto pela sua fundamentação quanto pela sua
estreiteza, que o torna inaplicável aos atos jurídicos que se pro­
jetam fora das figuras criadas pela autonomia da vontade. Em
vários capítulos da obra aqui referida, (Las Transform acion.es...)
cita, como exemplo, o "contrato" de adesão, o "contrato" coletivo
de trabalho, e outras figuras, a que a doutrina, mais tarde, acres­
centaria, com muita facilidade, prazos, capacidade, e tantas ou­
tras.

120 Cf. DUGUIT -Las Transformaciones... cit., pp. 216/220.

80
5.5. A5 REAÇÕES DA DOUTRINA E A FORMULAÇÃO DE
NOVAS PROPOSTAS

As reações que surgiram no campo doutrinário, inspiradas


em questões teóricas e questões de ordem prática, discutidas nos
Tribunais, que, como se mostrou, desafiavam soluções, foram
direcionadas para um ponto: a superação do conceito de relação
jurídica. Os fundamentos, entretanto, em que se assentaram as
propostas, se diversificaram, e doutrinas que partiram de bases
diferentes chegaram também a conclusões diferentes. Quando se
compara a doutrina de KELSEN com as de BONNECASE, DU-
GUIT, JÈZE e ROUBIER percebe-se que em comum só tiveram
um ponto essencial: a rejeição do conceito de relação jurídica.

5 .6.A NEGAÇÃO DA RELAÇÃOJURÍDICA PELA SUA


REDUÇÃO A UMA CONEXÃO DE NORMAS E A
CORRELATA NEGAÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO

Em sentido diametralmente oposto ao adotado pelas dou­


trinas tradicionais, KELSEN analisa o conceito de relação jurídica
e os possíveis empregos da expressão, para demonstrar que, em
todas as hipóteses em que se poderia falar em relação jurídica, o
que existe não é uma conexão de vontades, um vínculo entre
sujeitos, mas uma conexão de normas que determinam a condu­
ta dos indivíduos.
Começando pela análise da concepção tradicional, KELSEN
afirma que: "Dizer que dever e direito se correspondem significa
que o direito é um reflexo do dever, que existe uma relação entre
dois indivíduos dos quais um é obrigado a uma determinada
conduta em face do outro"121.
Desse ponto de partida, mostra a estreiteza da concepção

121 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, 5a ed., trad. de João Baptista
Machado, Coimbra: Armênio Amado - Editor Sucessor, 1979, p. 231.

81
3
3
3
tradicional, porquanto há "relações jurídicas", isto é, determina­
3 das pela norma, não só entre dois indivíduos mas entre o indiví­
3 duo que tem competência para criar normas gerais e os que têm
3 competência para aplicá-las, entre indivíduos que têm competên­
cia para imposição de atos coativos e indivíduos contra os quais
3 esses atos se dirigem.
3 Essa extensão da relação jurídica não significa, entretanto,
3 outra coisa que a relação entre sujeitos de deveres. A relação
entre o sujeito do dever de criar ou aplicar a norma e o sujeito de
O
direitos estabelecidos por essa norma é duplamente reflexa, pois
3 esses direitos não são reflexos imediatos do dever do órgão aos
3 quais incumbe a criação ou a aplicação da norma, mas dos
O próprios deveres estatuídos por essa mesma norma.
Por outro lado, afirma, não há qualquer posição de supra-
3 ordenação oh de infra-ordenação entre esses sujeitos, pois os
O órgãos, a quem incumbe criar ou aplicar a norma, somente
O podem atuar no exercício de um poder jurídico, ou seja, estão
subordinados à norma que lhes confere poder ou competência
o para o exercício da função. Assim, não são esses órgãos que
o estatuem os direitos conferidos ou os deveres impostos mas,
o sim, a própria norma que lhes adjudicou tal competência. Não

o há, verdadeiramente, relação entre sujeitos, mas apenas relações


entre normas, e entre as condutas que são por elas reguladas,
o formando o seu conteúdo.
3 Prosseguindo em sua análise, examina uma outra pos­
sibilidade de "relação jurídica" entre a conduta de dois indiví­
D duos: "Quando a ordem jurídica confere ao indivíduo, em face
3 do qual um outro está obrigado a conduzir-se de determinada
3 maneira, o poder jurídico de, através de uma ação, iniciar um
processo que conduza à norma individual, a estabelecer pelo
3 tribunal, pela qual é ordenada a sanção prevista pela norma geral
3 e a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao
3 dever"122.
3
122 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.
3
3
3 82
3
3
A "relação jurídica" entre o indivíduo dotado do poder jurí­
dico e o indivíduo obrigado não é, entretanto, "outra coisa senão
a conexão ou relação entre a conduta que consiste no exercício
deste poder jurídico, a ação, e a conduta contra a qual a sanção é
dirigida, o delito; isto é, a conexão entre dois fatos determinados
pela ordem jurídica como pressupostos para sanção"123.
A distinção da teoria tradicional que via na relação entre o
Estado, representado pelo tribunal, e o réu, uma relação de
supra-ordenação e de subordinação é, segundo diz, a mesma que
existe entre o autor e o réu, pois o poder de instaurar a ação, ou
"o poder jurídico do titular do direito de ação consiste na sua
competência para intervir na produção da norma individual que
ordena a sanção a dirigir contra o indivíduo que se conduz
contrariamente ao dever"124.
Assim, a relação de supra-ordenação e infra-ordenação "na­
da mais é senão a supra-ordenação e infra-ordenação que existe
entre a ordem jurídica e os indivíduos cuja conduta ela regula",
ou seja, o fato de que a conduta desses indivíduos forma o
conteúdo das normas da ordem jurídica, e a autoridade que se
representou foi apenas a autoridade da ordem jurídica, que
obriga e confere poderes125.
A terceira possibilidade de uma "relação jurídica" se dá
"quando a obrigação de um indivíduo em face do outro está
numa interconexão determinada pela ordem jurídica, com a
obrigação deste outro, em face do primeiro"126. KELSEN exem­
plifica com o contrato de compra e venda em que a obrigação de
prestar a coisa está em conexão com a obrigação de pagar o
preço. Essa relação jurídica nada mais é do que a conexão entre

123 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.


124 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.

125 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235.


126 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235.

83
normas que prescrevem a conduta do vendedor e do compra­
dor.
Por última hipótese de "relação jurídica", KELSEN toma a
relação da vida, em crítica à teoria de VON JHERING, do direito
subjetivo como interesse juridicamente protegido.
Cor o o direito subjetivo não é o interesse protegido, mas
a própri ■*. proteção, que consiste nas normas, também toda e
qualquer relação da vida não é extrinsecamente regulada, mas
toma forma no direito, através da norma. E nada mais é, então,
=do que um instituto jurídico, um complexo de deveres jurídi­
cos e de d: rei tos subjetivos, "no sentido técnico do termo", ou
seja, como KELSEN repete à exaustão, o reflexo daqueles deve­
res.
Sob qualquer ângulo, nessa perspectiva normativista, a rela­
ção jurídica será sempre negada e seu conceito substituído por
uma conexão de normas jurídicas, enquanto conexão de condu­
tas reguladas pelas normas.
Em correlação com a negação da relação jurídica, KELSEN
rejeita a concepção tradicional de direito subjetivo. De início,
demonstra que não há base para a distinção tradicional entre
direito subjetivo absoluto e direito subjetivo relativo, pois ambos
se unificam no mesmo conceito, sendo que "um ju s in rem é
também um ju s in p erso n a m ", podendo se considerar, em tal
distinção, apenas uma relação primária entre sujeitos, e secun­
dariamente, a conduta do sujeito em relação à coisa127. A partir
da unificação dos conceitos demonstra a precariedade das
construções tradicionais e, na linha de sua concepção de direi­
to centrada no ilícito, em que a norma é vista sob o aspecto
coativo, uma vez reduzido o conceito de direito subjetivo à
unidade conceituai, KELSEN lhe retira a substância, conceben­
do-o como um "reflexo do dever jurídico".

127 Cf. KELSEN, op. cit., pp. 190/193-

84
5. 7. A TEORIA DAS SITUAÇÕESJURÍDICAS

Em bases diferentes da adotada por KELSEN, mas destinan­


do-se, também, à superação do conceito de relação jurídica,
desenvolveu-se a teoria das situações jurídicas. Ela não excluirá a
faculdade, ou o dever do campo do Direito, que não é concebido
apenas como um instrumento coativo, mas não aceitará, tam­
bém, a clássica concepção de relação jurídica como vínculo entre
sujeitos, e do direito subjetivo como poder sobre a conduta de
"oütremr
Como toda construção doutrinária, passou ela pela fase
polêmica de elaboração, desde a tese de JULIEN BONNECASE128,
que dividia as situações jurídicas em concretas e abstratas, para
nessas incluir os direitos de liberdade, de personalidade, en­
quanto faculdades jurídicas abstratas, até a de PAUL ROUBIER,
que demonstrou que situações jurídicas não nascem automa­
ticamente da lei, e que ofereceu a contribuição definitiva para o
tratamento teórico do tema.
ROUBIER rejeitou a proposta de BONNECASE, entendendo
que não era possível falar-se em situações jurídicas abstratas, que
são apenas complexos normativos. Somente o ato jurídico é
susceptível de criar a situação jurídica. As fontes genéticas do
Direito criam as normas, e estas definem os atos que dão nasci­
mento às situações legais, mas não são em si mesmas essas
situações.

128 "La situation ju ríd iq u e concrète - definiu BONNECASE - q u i absorbe la


n otion d e ra p p o n d e droit concret est, p a r opposition à la situation
ju ríd iq u e abstraite, u n e m anière d'être dérívéé p o u r un e p erso n n e déter-
m inée d ’u n acte ju ríd iq u e ou d ’u n fa it ju ríd iq u e qu i a fa it jo u e r à son
p ro fit ou à son encontre les règles d ’u n e institutionjurídique et lui a d u
coup conféré effectivement les avantages et les obligations inhérents a u x
fo n ctio n n em en t d e cette institution. Autrement dit, tandis q u e la situa­
tion ju ríd iq u e abstraite est simple m anière d ‘être théoríque, u n e voca-
tion, p ouirait-on dire, à bénéficier éventuellement d 'u n e institution, la
situation ju ríd iq u e concrète est u ne réalité positive". JULIEN BONNECASE
- Introduction à 1'Étude d u Droit, Paris: Sirey, 2~ ed. 1931, pp. 105/106.

85
3
3
Na doutrina francesa, ROUBIER destaca duas grandes con­
tribuições para o desenvolvimento da teoria das situações jurídi­
3 cas, vindas do campo do Direito Público: a de LÉON DUGUIT e a
3 de GASTON JÈZE. DUGUIT, no clássico Traité d e D roit C onstitu-
tion n el, rejeitando a teoria da relação jurídica, como uma cons­
trução do individualismo do século passado, e a concepção clás­
3
sica de direito subjetivo, que via como mera metafísica, dividiu as
3 situações jurídicas em legais ou objetivas, que derivariam direta­
3 mente da lei, e individuais ou subjetivas, que resultariam de
manifestações individuais de vontade129. GASTON JÈZE, cuja
3
doutrina se formou na mesma linha, indicou as diferenças entre
3 a situação subjetiva ou individual e a situação objetiva ou legal. A
3 situação jurídica subjetiva ou individual, em sua concepção, é
3 particular e temporária, sendo fixada a partir de um ato de
declaração individual de vontade, como, por exemplo, a aquisi­
3 ção de um bem, de que pode derivar a situação de adquirente ou
3 de legatário; a situação jurídica legal é geral e permanente, sendo
3 fixada para todos, da mesma maneira, como por exemplo a
situação do proprietário ou dos cônjuges130.
3 PAUL ROUBIER131, apontando as dificuldades apresentadas
3 por essa divisão quando confrontada com a questão da ir-
3 retroatividade das leis. demonstrou que as situações jurídicas,
cujo número é infinito, cabendo a cada ramo do direito determi­
3 ná-las e definir seus efeitos, têm um ciclo de desenvolvimento
3 que se cumpre em três momentos: o da constituição, o da produ­
3 ção dos efeitos e o da extinção. No que concerne ao momento da
3
3 129 Cf. DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, Paris, 1927, vol.I, pp.
3 200/307. Cf. também Las Transformaciones... cit.

3 130 Cf. Os trabalhos de JÈZE, Les Príncipes G énéraux d u Droit A dm inistratif


2a ed., 1914, e numerosos artigos publicados na Revue d u Droit A dm inis­
3 tratif de 1913 a 1924, são amplamente citados por ROUBIER, em sua
clássica obra Les Conflits des Lois dans le Temps - tom e Premiei-, Paris:
3 Libraire d u Recuei!, Sirey, 1929, p3*'i6 e s.

3 131 PAUL ROUBIER - Théorie Générale du Droit, Paris: Sirey, 1946.

3
3
86
3
3
constituição, ou da extinção, a questão a ser resolvida, conforme
diz, incumbe ao legislador. Este se coloca diante de simples fatos
que podem ser, indiferentemente, naturais ou humanos. A lei
discriminará entre esses fatos e atos aqueles que são susceptíveis
de produzir a constituição ou a extinção da situação jurídica e os
que são vistos como incapazes para engendrá-la132. Em relação à
produção dos efeitos, o interesse de ROUBIER se concentra em
estudá-los enquanto referidos à possibilidade ou à impos­
sibilidade de serem alcançados pela nova lei, pois a sua investiga­
ção é dirigida ao problema da irretroatividade das leis.
Das quatro categorias de situações jurídicas especiais estu­
dadas por ROUBIER133, é oportuno recordar que as situações
jurídicas concorrentes têm um caráter duplo, no sentido de que
interessam simultaneamente a duas pessoas, como o crédito que
interessa ao mesmo tempo ao devedor e ao credor, a prescrição
que terá efeito simultâneo sobre o patrimônio daquele a quem
beneficia e daquele contra quem opera. E, ainda, convém relem­
brar que as situações jurídicas dependentes surgem como conse­
qüência de uma outra situação jurídica, de tal modo que a lei que
governa sua constituição pode ser vista como governando os
efeitos desta que a gerou. Assim o direito ao nome, a obrigação
alimentar são, como exemplifica ROUBIER, conseqüências de
certas situações de estado, como casamento, parentesco; como a
constituição de uma tutela é conseqüência da situação jurídica
da menoridade.
A superioridade da categoria da situação jurídica sobre a da
relação jurídica, para o tratamento dos temas do Direito, é de­
monstrada por ROUBIER em razão de sua amplitude. Todas as
leis são feitas para determinar certo número de situações jurídi­
cas que podem ser unilaterais ou oponíveis a todas as pessoas,

132 Cf. PAUL ROUBIER - Les Conflits des Lois dans le Temps, cit., tom eprem ier,
pp. 346/381.

133 As permanentes, as concorrentes, as dependentes e as retroativas, Cf.


ROUBIER, op. cit., p.406 e s.

87
que podem ser constituídas pela ocorrência de um fato, ou de
um ato ou de uma pluralidade de fatos e atos, e que não pode­
riam ser explicadas pela categoria da relação jurídica porque não
decorrem de vínculo entre sujeitos.
Em todas as propostas, a teoria das situações jurídicas se
estruturou não como vínculo jurídico entre dois sujeitos, com o
poder de exigibilidade de um sobre a conduta do outro. A situa­
ção jurídica forma-se por fato jurídico ou ato jurídico, produzido
segundo a lei que governa a sua constituição. E, uma vez consti­
tuída, é ela o complexo de direitos e deveres de uma pesspa,
direitos e deveres que não se confinam mais no plano abstrato e
genérico da norma, mas que se realizam na situação de um
determinado sujeito. Assim, na situação jurídica de advogado,
nascem para uma pessoa direitos e deveres, que não são os
mesmos de uma pessoa que se encontra na situação de comer­
ciante ou de empregado.
Nas situações jurídicas concorrentes, pode-se qualificar o
statu s ou a posição jurídica de que um determinado sujeito é
titular. Em uma situação jurídica de parentesco, por exemplo,
perante a lei, pode-se falar na posição jurídica do filho, com seu
complexo de direitos e deveres, e na posição jurídica do pai,
igualmente com seu complexo de direitos e deveres, como se
pode falar na situação jurídica do serviço público, na posição
jurídica da Administração Pública, com seu complexo de direitos
e deveres, e na posição jurídica do servidor público, igualmente
com seu complexo de direitos e deveres.
Os exemplos seriam infinitos como infinitas são as pos­
sibilidades que nascem das normas, que se criam para organizar
a vida social e regular a conduta, tanto quando definem a compe­
tência para a prática de atos, como quando valoram os atos como
lícitos ou ilícitos.
Pode-se lembra, aqui, que a doutrina das situações jurídicas
não encontrou terreno fértil no Brasil, pelo tempo e pela forma
em que foi aqui introduzida. A tentativa de sua aplicação não teve
grande sucesso, quando o Decreto-lei n2 4.657, de 04 de setem­

88
bro de 1942, alterou a Lei de Introdução ao Código Civil e
substituiu, no art. ó2, a doutrina dos direitos adquiridos, cons­
truídos sobre a concepção de direito subjetivo, pela das situa­
ções jurídicas134. Era a tese de PAUL ROUBIER, adotada na refor­
ma do Código Civil francês. No Brasil, as situações jurídicas
penetraram no Direito sob a vigência da Constituição de 1937,
que abolira a proteção especial que, no plano da norma constitu­
cional, era conferida ao direito adquirido perante os efeitos da
lei nova. Sem essa proteção, a situação jurídica esteve na letra da
Lei de Introdução ao Código Civil até 1957, mas na letra: apenas,
porque a Constituição de 1946, em seu art. 141, § 3a, reintrodu-
ziu a garantia do direito adquirido no sistema brasileiro e, con­
frontado com o preceito constitucional, o artigo da Lei de Intro­
dução ao Código Civil não poderia subsistir no sistema. Os
juristas brasileiros nunca deixaram de trabalhar com o conceito
de direito adquirido, mesmo quando o Direito brasileiro o subs­
tituiu pelo critério da situação jurídica135 e, depois que a Consti­
tuição de 1946 o recuperou, seu retorno na lei infraconstitucio-
nal se deu com a alteração da Lei de Introdução ao Código Civil
de 1957136.

134 O texto era o seguinte: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não
atingirá, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações
jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfei­
to".

135 Cf. VICENTE RÁO - O Direito e a Vida dos Direitos, 2 - ed., São Paulo: Ed.
Resenha Universitária, 1976, v.I, Tomo III, p.370.

136 Observe-se que a resistência da doutrina brasileira às inovações da época


do Estado Novo manifestou-se, também, em outros campos. Assim, em
relação ao Anteprojeto de Código de Obrigações, conforme análise de
JOÃO BAPTISTA VILLELA: "A circunstância de que o Anteprojeto se tenha
produzido em tempo de restrição às liberdades públicas terá concorrido,
possivelmente, para uma certa indisposição que se formou a seu respeito e
para que sobre ele se cerrasse cômoda, porém imerecida cortina de silên­
cio, após a reconstitucionalização do País, em 1946." Cf. Introdução in
Anteprojeto de Código de Obrigações, Arquivo do Ministério da Justiça.
Ano 41 - n2 174, Outubro/Dezembro 1988, p .11.

89
5 8 . DIREITOS SUBJETIVOS E SITUAÇÃOJURÍDICA

A teoria das situações jurídicas nasceu para superar a dou­


trina da relação jurídica e para fornecer um critério ”mais objeti­
vo"137 para se falar em direitos, não em "direitos objetivos", no
direito como norma, mas em direitos constituídos para um de­
terminado sujeito, que assume sua titularidade.
A expressão direito subjetivo, entretanto, é, pela tradição,-
muito forte, e as tentativas de substituí-la por outras não tiveram
grandes êxitos na doutrina138.
Contudo, é conveniente assinalar que a teoria das situações
jurídicas não pretendeu eliminar a noção do direito que decorre
da norma para um determinado titular. Pretendeu, sim, assentá-
lo em outras bases, defini-lo em outros termos, porque a reflexão
jurídica demonstrou que o direito qualificado de subjetivo, ou
com qualquer terminologia alternativa, poderia ser visto como
uma faculdade ou como um poder de agir, mas não poderia ser
concebido como um "poder sobre a conduta alheia"139.

137 Esse critério "mais objetivo", assim qualificado por BONNECASE e por
ROUBIER, tem sido utilizado, amplamente, pela doutrina, que já denomina
a linha desses autores de "objetivista", quando fazem o levantamento das
teorias sobre a irretroatividade da lei. Nesse sentido, v. CAIO MÁRIO DA
SILVA PEREIRA - Instituições de Direito Civil, (Edição Universitária), vol. I,
2~ ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, p .108 e s.

138 Cf. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral


do Direito, Belo Horizonte, Editora Vega, 1976, pp. 258/259-

139 Cabe aqui uma observação sobre as concepções de "poder" desenvolvidas


no campo da Ciência Política, com o relação que envolve a possibilidade de
se "provocar intencionalmente o comportamento de outrem, ou de se
exercer influência" sobre a conduta alheia, ou mesmo a mais ampla "pos­
sibilidade de agir e de provocar efeitos", registradas por MARIO STOPPINO
no verbete Poder, do Dicionário de Política, de NORBERTO BOBBIO,
NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de João Ferreira e
outros, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2~ ed., 1986. Na teoria
da relação jurídica e no conceito clássico de direito subjetivo, o poder já é
aquele acolhido pela norma jurídica, já não é fenômeno psicológico ou
sociológico, mas jurídico.

90
5 .9 .0 PROBLEMA DO DIREITO SUBJETIVO COMO PODER
DE EXIGIR A CONDUTA DE OUTREM

Negando que pudesse haver um direito sobre a conduta de


outrem, a doutrina se dividiu, na negação de todo direito decor­
rente da norma e na busca de novas bases para se falar em um
direito decorrente da norma. De qualquer modo, teve neces­
sidade de estruturar um novo quadro para superar o antigo
conceito de relação jurídica, formada por um vínculo entre sujei­
tos, em que se fazia presente o direito de um sujeito ativo exigir
de um sujeito passivo uma conduta, ou uma prestação, o que
significa o mesmo, e essa necessidade resultou nas tendências já
discutidas.
Entretanto, talvez nenhuma construção haja mostrado tão
profundamente, com tanta clareza, o que significava essa tentati­
va de superação, que nasceu e cresceu em diversas direções, do
que a interrogação de GOETHE, lembrada por RADBRUCH quan­
do examinou os fundamentos da pena de morte140.
"Wer h a t dir, H enker, d iese M acht Über m ich g egeben ?'
A pergunta perplexa de Margarida, no F au stol41, é a mesma
que se põe sobre o vínculo da relação jurídica, que liga sujeito
ativo e sujeito passivo: Que ser humano possui poder sobre a
conduta de outro sèr humano? Que pessoa tem poder sobre o
ato de pessoa? Que vínculo pode conferir a um ente que o
Direito reconhece como livre, tratando-o como sujeito de direi­
tos e deveres, ao lhe reconhecer a personalidade, poder sobre
outro ente igualmente livre, porque também dotado de persona­

140 Cf. RADBRUCH - Filosofia do Direito, trad. do Professor L. Cabral de


Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, Vol.II, pp.
99/108.

141 Cf. GOETHE - Fausto, Trad. de Jenny Klabin Segall, Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. O verso
original: Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben? literalmen­
te: "Quem deu a ti, Carrasco, esse poder sobre mim?" foi traduzido: "Car­
rasco, quem te deu, nas trevas,/Sobre mim tal poder?", p. 198.
lidade, que o torna igualmente sujeito de seus atos, agente e não
instrumento do querer de outrem? Que tratamento é esse que se
dá à vontade, a ponto de se torná-la soberana e dominante sobre
uma outra vontade, subjugada e dominada? Que pacto pode
tornar a vontade, que se constitui na consciente determinação
para o agir, senhora de outra vontade?
A substituição do termo vontade pelo termo interesse, pelo
pertença-domínio, por qualquer outro termo, não i'esolvia a
questão, porque o seu ponto de estrangulamento não estava em
se saber õ que O Direito protegia para con ferir tamanho poder a
um ser humano sobre outro ser humano, ou a uma pessoa, de
direito privado ou de d ireito público, sobre ou tra pessoa de
qualquer das categorias.
D ireito d e exigir a conduta alheia, ju s in rem , que é também
u m ju s in p erson am , direito de obrigar alguém à prática de um
ato, direito de exigir de outrem uma prestação, exigibilidade
sobre a conduta de outrem... Não é de causar admiração que a
doutrina jurídica reagisse, como podia, e nos limites em que
podia.
A doutrina contemporânea reconhece que o único ato im­
perativo que pode incidir sobre a universalidade de direitos de
uma pessoa é o ato imperativo do Estado, proferido segundo um
procedimento regulado pelo Direito, que disciplina o próprio
exercício do poder, manifeste-se ele no cumprimento de qual­
quer das funções do Estado, legislativa, administrativa ou jurisdi­
cional.
Sublinhe-se que esse reconhecimento não tem como conse­
qüência a negação de direitos, que existem no plano da norma
jurídica material, ou substancial, direitos que dela decorrem e se
manifestam, se realizam nas situações jurídicas. E a força impera­
tiva de uma vontade particular sobre o ato de outrem que se
contesta. É por isso que a função jurisdicional é dita substitutiva.
Por ela, a atividade do Estado se substitui à atividade do particu­
lar, quando um direito deve ser garantido, ou quando sua pró­
pria existência, perante o ato de outrem (ação ou omissão), deve

92
ser apreciada e declarada. A atividade do Estado se substitui à do
particular quando um dever deve ser coativamente exigido e uma
medida reparatória deve ser aplicada. O ato imperativo do Esta­
do, o provimento, pode reparar direitos lesados, mas nenhum
particular tem poder para, através do predomínio de sua vonta­
de, vincular outro sujeito. Só ao ordenamento jurídico se pode
reconhecer a força para atos de império, só pelos procedimen­
tos, por ele definidos e regulados, tais atos podem ser admitidos.
Mesmo quando se pensa na hipótese da legítima defesa, torna-se
evidente, no Direito contemporâneo, que é toda submetida a um
quadro disciplinado pela lei, que a define, estabelece seus limites
e as condições em que ela é permitida.
O despertar da doutrina jurídica para a fragilidade do con­
ceito de relação jurídica, como vínculo entre sujeitos, vínculo de
exigibilidade, não teve como conseqüência necessária, como se
viu, a destruição da concepção de direitos decorrentes da norma,
mas a modificação de seus fundamentos e a sua visualização sob
um novo prisma. O direito que decorre da norma passou a ser
visto não mais como um poder sobre outrem, mas uma posição
de vantagem de um sujeito "em relação a um bem", posição que
não se funda em relação de vontades dominantes e vontades
subjugadas, mas na existência de uma situação jurídica, em que
se pode considerar a posição subjetiva, a posição do sujeito em
relação à norma que a disciplina. *
Já foi explicitado que a teoria da situação jurídica evoluiu de
sua consideração como complexo de normas para uma situação
constituída por fatos e atos que a lei reconhece como idôneos
para sua formação. O "direito subjetivo", ou qualquer outra de­
nominação que se dê ao direito que decorre da norma, direito
renovado em seus fundamentos sob a concepção de uma posição
jurídica de vantagem do sujeito em relação a um bem, surge, não
do nada, evidentemente, mas quando é produzido um fato jurí­
dico (genericamente considerado) que cria as condições para
seu nascimento. Assim, o próprio tempo que, como dizia RAD­
BRUCH, não interessa ao direito pelas voltas que a Terra dá em
torno de si mesma ou em torno do Sol, mas pela significação
jurídica que lhe é conferida, pode ser o fato legalmente previsto
como idôneo para o nascimento de todo um complexo de direi­
tos, nas situações jurídicas de diversas categorias, como idôneo
para produzir direitos pode ser o fato humano. A eleição desses
fatos é do Estado, através da função legislativa.
Nessa perspectiva, pode-se falar nos direitos que, configu-
rando-se como uma posição de vantagem do sujeito em relação
a um bem, manifestam-se na situação jurídica, como se pode
falar na posição jurídica subjetiva que se qualifica como um
dever, ou seja, como uma conduta que, perante a norma, deve
ser observada.
Se se quiser manter a clássica terminologia dos direitos
"subjetivos", sobre o novo fundamento, são eles posições jurídi­
cas do sujeito, de vantagem em relação a um bem. Essas posições
jurídicas não se formam do nada, mas são posições derivadas da
situação jurídica, que também não se forma do nada, mas do ato
(ou fato) a que a lei confere força para tanto. São, portanto,
posições apreendidas quando se confronta o ato do sujeito com
a qualificação que a norma lhe confere, como poder ou faculda­
de. Como se disse, quando se fala em dever e na posição subjeti-
va a ele concernente, não se está referindoa uma condutasubju-
gada a outrem, mas a uma conduta que deve ser observa, porque
qualificada, pelos cânones normativos,-eomo-devida-.— -
A classificação das posições jurídicas de vantagem de um
sujeito em relação a um bem, segundo as possibilidades de sua
manifestação, teoricamente consideradas, pode ser feita, porque
o direito que decorre da situação jurídica é sempre uma faculda­
de ou um poder. O dever que dela decorre não traz grandes
problemas de classificação, pois todo dever significa observância
de uma conduta estabelecida pela norma, segundo a valoração
dos atos pelo ordenamento jurídico.
Sob o selo da licitude, a posição subjetiva de vantagem do
sujeito em relação a um bem deixará de ser uma mera faculdade
abstrata, pela realização de uma faculdade que a norma assegura
ao sujeito, ou por um poder que a norma lhe confere, ou pela
conjugação das faculdades ou dos poderes com os deveres que a
norma atribui a outrem ou à generalidade das demais pessoas.
FAZZALARI faz, em relação ao ordenamento jurídico italia­
no, o levantamento das possibilidades de manifestação, nas si­
tuações jurídicas de direito substancial (ou de direito material),
do chamado "direito subjetivo", ou seja, da posição de vantagem
de um sujeito em relação a um bem. Seu quadro é perfeitamente
aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, e dele se podem
obter as seguintes hipóteses: 1. o direito realizado por uma
faculdade do titular; 2. o direito realizado por um poder do
titular (que corresponde, em termos, ao chamado direito potes-
tativo, mas sem a clássica conotação de poder sobre ã conduta de
outrem, como, por exemplo, a renúncia a um direito, a confissão
judicial); 3- o direito realizado pela obrigação de outro (que
corresponde, em termos, ao "direito de crédito", sem a conota­
ção do "vínculo" da relação jurídica); 4. o direito realizado pela
faculdade do titular e pelos deveres de todos os demais (que
corresponde, em termos, ao "direito absoluto" de propriedade);
5. o direito realizado somente pelo dever de todos (nesse critério
estão os direitos da personalidade e os direitos reais em que falta
a faculdade, como a servidão negativa)142.
Não é demais insistir em. que faculdades e poderes não
significam faculdades e poderes de um titular de-direitos. sobre
atos de outras pessoas, mas .são_prerrogativas_que derivam da
nòfma e que quaiificam o ato do próprio agenteem relação à sua
própria conduta. Uma faculdade é a posição de vantagem do
sujeito em relação a um bem e realiza-se pelo simples ato (con­
duta) sem necessidade de prévias declarações de vontade, sendo
que esta constitui a consciente determinação para o ato. Na
faculdade essa determinação não necessita ser explicitada, mani­
festa-se naturalmente na conduta. Um poder que decorre da

142 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni d i Diritto Processuale, Q uinta Edizione,


Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1989, p. 264.

95
norma é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem,
que se realiza pela declaração da vontade do agente, ou seja,
quando é condição do ato a manifestação, a exteriorização da
consciente determinação que o produziu143.

143 Alarga-se, hoje, o quadro, e aprofunda-se a importância dos direitos indivi­


duais, sociais, políticos, culturais e econômicos. Mas a antiga divisão dos
direitos subjetivos em absolutos e relativos, privados e públicos, ainda tem
sido resolvida pelo critério da oponibilidade do direito ao "sujeito passivo"
da "relação jurídica", e continua a basear-se na nota essencial que acom pa­
nhou o conceito do vínculo entre sujeitos e da exigibilidade da conduta de
outrem . Nessa postura, alguns problemas emergentes do Direito positivo
contem porâneo continuam sem solução adequada. Assim, na classificação
dos direitos subjetivos, entre os relativos, no campo do Direito Privado,
foram recolhidos os obrigacionais e, no campo do Direito Público, o
direito de ação, o direito de petição e os direitos políticos, entre os direitos
subjetivos absolutos, no campo do Direito Privado foram postos os direitos
reais e os direitos personalíssimos, e, no campo do Direito Público, a
liberdade jurídica, com os seus desdobramentos em vários direitos de
liberdade (as liberdades de pensamento, de circulação, de religião, de
associação, de comunicação, dentre outras). O antigo problema do direito
absoluto foi resolvido pela sua oponibilidade erga omrtes, o que significava
o poder do titular sobre a conduta de todos os demais membros da
coletividade. Essa concepção, vinda do esquema da relação jurídica, que
parecia válida para o direito de propriedade, instituto dotado de uma
ampla prescrição normativa protetora, que impede e veda a perturbação
dos direitos do proprietário, dirigindo deveres a terceiros, volta a suscitar
um antigo problema, quando se trata de outros direitos, que não são
dotados de igual proteção, pela indicação dos deveres dos demais feita
pela lei. O problema aparece quando uma faculdade normativamente
conferida não encontra, também na norma, os correlatos deveres. A res­
posta da doutrina, presa à relação jurídica, só poderia ser o recurso à mera
faculdade jurídica abstrata, sem possibilidade de concretização com o direi­
to, a não ser no momento em que é turbada. A solução não é coerente, pois
se um direito é objeto da proteção legal, isso significa que sua existência
precede à violação, e a própria violação só poderia incidir sobre direito
existente. A discussão desse tema envolveu, sob outro prisma, a interes­
santíssima e atualíssima questão do direito de liberdade, quando definido
pelo aspecto negativo, que se exprime pelo brocardo "tudo que não é
juridicamente proibido é juridicamente permitido". A permissão, no senti­
do negativo, conforme já explicitara KELSEN (Cf. Teoria Pura do Direito,
op. cit., pp. 35/37, e Teoria Geral de Normas, trad. de José Florentino
Duarte, Porto Alegre, Fabris, 1986, pp. 123/125) significa somente que
nenhuma norma tem tal conduta por objeto, o que resultaria no total

96
5.10.A QUESTÃO DA CONCEPÇÃO DO PROCESSO COMO
RELAÇÃO JURÍDICA

O problema que se coloca ao se considerar o processo


como uma relação jurídica é o problema da própria relação
jurídica.
A se admitir o processo como relação jurídica, na acepção
tradicional do termo, ter-se-ia que admitir, conseqüentemente,
que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em que um pede
exigir do outro uma determinada prestaçãofou seja, uma condu­
ta determinada. Seria o mesmo que se conceber que há direito de
um dos sujeitos processuais sobre a conduta do outro, que
perante o primeiro é obrigado, na condição de sujeito passivo, a
uma determinada prestação, ou que há direitos das partes sobre
a conduta do juiz, que, então, compareceria como sujeito pas­
sivo de prestações, ou, ainda, que há direitos do juiz sobre a
conduta das partes, que, então, seriam os sujeitos passivos da
prestação.
A doutrina processual utilizando a figura da relação jurídica

desam paro jurídico do titular daquela liberdade, definida pelo negativo,


pois não há com o se torná-la eficaz. Para exemplificar com a atualidade do
tema no Brasil, basta a lembrança dos direitos e das liberdades públicas
que decorrem da liberdade jurídica, que ficavam sem proteção até que,
pela Constituição da República de 05 de outubro de 1988, foi instituída a
garantia do Mandado de Injunção, que veio como um instrumento para a
criação de instrumento, da proteção jurídica; um instrumento que cria
instrumento, que faz lembrar a expressão de BERGSON sobre a técnica:
des outils q u i fo n t des outils. Mas o Mandado de Injunção tem endereço
certo quanto aos direitos cuja eficácia visa a garantir. Há direitos, além
daqueles que podem constituir objeto de provocação da proteção, que
dependem de regulamentação e cuja eficácia não se tornou efetiva. Esses,
pelo conceito de relação jurídica, continuam sendo, para os possíveis
titulares, mera.faculdade jurídica abstrata, embora não se coloquem no
m esm o plano da liberdade definida pelo negativo. Não se pode, entretan­
to, deixar de considerar que o problema da eficácia se levanta sobre outro
plano, pois tais direitos constitucionalmente garantidos já existem efetiva­
mente enquanto atuam com o um princípio de limitação à ação do legisla­
d or ordinário.

97
"trilateral" inovou a velha bipolaridade do vínculo normativo
existente na relação jurídica, mas mesmo a inovação não poderia
dispensar, na relação "angular" ou trilateral, o vínculo jurídico de
exigibilidade entre os sujeitos do processo, vínculo que constitui
a marca de qualquer "relação jurídica".
E é esse o ponto significativo da questão. Foi demonstrado
que, quer se negue ou se admita o direito subjetivo, já não se
pode afirmar que ele se constitui em "poder sobre a conduta
alheia". Em conseqüência, não há como se admitir que, no
processo, uma das partes possa exigir da outra o cumprimento
de qualquer conduta, por um vínculo entre sujeito ativo e sujeito
passivo.
O processo não se confunde com a situação de dire
material, ou situação de direito substancial, cuja existência ou
cujos efeitoS nele se discutem, mas deve se relevar que mesmo na
situação de direito material, como se expôs, já não se concebe a
possibilidade de que um sujeito possua o poder de exigir a
conduta de outro sujeito. E por isso que o particular tem, na
função da jurisdição, a possibilidade de pedir que o Estado o
substitua, na imposição do ato de caráter imperativo. Assim,
mesmo à situação de direito substancial já não se poderia, coe­
rentemente, aplicar a figura da relação jurídica que, nascida do
individualismo do século passado, constituía-se em vínculo entre
sujeitos, vínculo que, mesmo quando dito de "coordenação",

yínculp
expressava, apenas, momentos alternados de subjugação.
No processo não poderia haver tal entre as partes,
porque nenhuma delas pode, juridicamente, impor à outra a
prática de qualquer ato processual.
No exercício de faculdades ou poderes, nos atos proces­
suais, a parte sequer se dirige à outra, mas sim ao juiz, que
conduz o processo. E, do juiz, as partes não exigem conduta ou
atos. Mesmo a doutrina tradicional já via a dificuldade de se
sustentar o poder da parte sobre a conduta do juiz, resolvendo a
questão pela concepção de que a "relação" entre eles, juiz e parte,
seria de "subordinação". Não há relação jurídica entre o juiz e a

98
/parte, ou ambas as partes, porque ele não pode exigir delas
' J qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qual-
1 quer das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres em
I ônus, ao suportar as conseqüências desfavoráveis que possam
1 advir de sua omissão.
>—'' A análise de algumas hipóteses pode ser ilustrativa dessas
situações, a começar pelos deveres das partes e de seus procura­
dores, previstos no Capítulo II, do Título II, do Livro I, do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1973. Nenhum deles, nem
a boa fé, nem a lealdade, nem a responsabilidade por danos pela
litigância de má-fé, nem a responsabilidade por despesas e mul­
tas tem a sua origem na manifestação de vontade de qualquer das
partes, em vínculo de exigibilidade144. Esses deveres decorrem
tão-somente da situação jurídica que confere à pessoa a posição
de parte no processo.
O mesmo se poderia dizer quanto aos deveres do juiz, que
se podem relacionar, no Código de Processo Civil de 1973, com
base nos arts. 125 a 128: assegurar às partes igualdade de trata­
mento; velar pela rápida solução do litígio; prevenir ou reprimir
atos atentatórios à justiça; decidir; decidir nos limites da lei;
decidir nos limites da lide. A relação poderia prosseguir pelo art.
35 da Lei Complementar n2 035, de 14 de março de 1979, que,
nos itens I a VI, tanto se refere a deveres no processo como a
deveres em relação ao processo (cumprir e fazer cumprir prazos,
até o relacionamento do juiz com as partes). Contudo, verifica-se
de plano jiu e os deveres do juiz não derivam de^poderes das
partes.sobre-seus atos, mas são deveres que decorrem da funcão
jurisdicional. Seu fundamento está nas próprias normas que
disciplinam ãTütTsdigãõlTõ~pr5céss5rque..é.a-esti:uiura normati­
va .em .que ela se manifesta, onde o. exercício do poder , é .a
realização do poder de cumprir o dever,_o dever pelo qual o

144 Sobre o tema, v. a excelente exposição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREI­


RA - "A Responsabilidade das Partes por Dano Processual no Direito Brasi­
leiro" in Temas de Direito Processual, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 16/33.

99
Estado se obrigou, quando assumiu-a-função.de.se substituir ão^
particular para garantir seus direitos,._para reagir contra o ilícito,
exercendo um poder que, como todo poder, no Estado de Direi­
to, limita-se pela lei.
Inexistindo vínculo entre sujeitos, pelo qual atos possam
ser exigidos, pelo quaS condutas possam ser impostas entre as
partes e o juiz, não há como se aplicar ao processo a figura da
rdarão-jnridira que, conforme se expôs^.construída no-século.,
passado, fruto do individualismo jurídico, já não encontra-tei^
reno propício para continuar Vicejando no Direito.
Há ainda que se registrar problemas que surgem quando se
explica a natureza do processo pela eclética mistura de dois
quadros conceituais diferentes. Posições subjetivas são faculda­
des, poderes e deveres que decorrem de uma situação jurídica.
Subordinação e subjugação são conceitos que se situam no qua­
dro da relação jurídica. Assim, faculdades, poderes e deveres
como posições subjetivas decorrem da situação jurídica, que se
constitui, como foi visto, sob a disciplina da lei. Faculdades,
poderes e deveres, no quadro conceituai da relação jurídica,
decorrem de vínculos de subordinação de vontade de um sujeito
sobre a vontade do outro. Faculdades, poderes e deveres, na
situação jurídica, são qualificação de condutas valoradas como
lícitas: faculdades e poderes como possibilidades juridicamente
asseguradas, e deveres, como a conduta-a-sei-cumprida. O ato
gerado por uma vontade implícita (faculdade), o ato gerado por
uma vontade declarada (poder) e o ato de cumprimento da
norma (dever) são manifestações exteriorizadas do comporta­
mento dos sujeitos, ou seja, conteúdo de condutas.
Quando se usa dentro do mesmo argumento conceitos per­
tencentes a categorias jurídicas diferentes, criam-se, inevitavel­
mente, dificuldades para a compreensão do próprio argumento.
Diante dessas dificuldades, a reflexão jurídica deve indagar o que
se pretende dizer com tal linguagem, o que se está chamando
por um determinado nome. Sem resolver a questão, ela não tem
qualquer condição de prosseguir em seu crescimento.

100
A exposição que se fez sobre a teoria das situações jurídicas
não levará à afirmação de que o processo é uma situação jurídica.
A teoria da situação jurídica cumpre o seu papel quando de-
rnõnstía a impossibilidade de se considerar vínculos imperativos
entre sujeitos, quando substitui a relação jurídica, mas nem por
isso se pode dizer que o processo seja uma situação jurídica145.
Situações jurídicas nele estarão presentes, mas não o definem,
porque, como instrumento do exercício da jurisdição, ele é uma
estrutura normativa que as comporta. É essa estrutura normativa
de um procedimento que prepara um ato final, de caráter impe­
rativo, um provimento,,realizado em contraditório entre as par­
tes, que se estudará a seguir.

145 A tentativa de superação da concepção de processo com o relação jurídica


levou à construção de outras teorias, dentre as quais a da situação jurídica.
A visão do processo com o "situação jurídica", de GOLDSCHMIDT, encon­
trou alentadas críticas na doutrina, dentre as quais as produzidas pela
profunda reflexão de HÉLIO TORNAGHI - Instituições de Processo Penal,
São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 387/597. Tanto a concepção de GOLDS-
CHMIDT quanto as críticas estão estruturadas sobre o mesmo campo
teórico que se pretende superar, e GOLDSCHMIDT o tentou. Situações
jurídicas existem dentro do processo, diz TORNAGHI, no que tem toda
razão. Mas isso o reconduz à relação jurídica, e o círculo se fecha, sem
outra alternativa (a não ser, é claro, das construções mais frágeis, como a
do processo com o contrato, quase-contrato, instituição, serviço público).

101
3
3
3
3
3
3
3
3
O
•3 CAPÍTULO VI
O
3 O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO
3 REALIZADO EM CONTRADITÓRIO
3 ENTRE AS PARTES
•3
D
O 6.1. PROCEDIMENTO: ATIVIDADE PREPARATÓRIA DO
O PROVIMENTO
O
A caracterização do processo como uma espécie de procedi­
Q mento exigiu a reelaboração do conceito de procedimento. Para
O edificar este como uma unidade mental, suficientemente genérica,
para comportar uma multiplicidade de particularidades, o ponto
D de partida foi o ato do Estado, dotado de caráter imperativo, para o
O qual se vólta toda a estrutura normativa que disciplina a atividade
3 constituída pelo procedimento.fO procedimento é uma atividade
preparatória de um determinado ato estatal, atividade regulada por
O
uma estrutura normativa, composta de uma seqüência de normas,
O de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma
3 dinâmica bastante específica, na preparação de um provimento. O
provimento é um ato do Estado, de caráter imperativo, produzido
3 pelos seus órgãos no âmbito de sua competência, seja um ato
3 administrativo, um ato legislativo ou um ato jurisdicional. No exer­
3
3
3 102
3
3
cício das funções administrativa, legislativa e jurisdicional, o
Estado pratica vários atos que não se revestem de imperatividade
e que são necessários na dinâmica de sua atuação. Mas quando o
ato do Estado se destina a provocar efeitos na esfera dos direitos
dos administrados, da sociedade, dos jurisdicionados, quando é
um ato dotado de natureza imperativa, um ato de poder, tem-se
o provimento que, para que seja emanado, válida e eficazmente,
deve ser precedido da atividade preparatória, disciplinada no
ordenamento jurídico. Em razão de seu caráter imperativo, o
provimento se distingue de todos os demais atos (sejam atos dos
órgãos da administração, dos órgãos legislativos e dos órgãos
judiciários), pois no Estado de Direito o poder se exerce nos
limites da lei e o Estado cumpre suas funções dentro do quadro
legal que disciplina suas atividades.
A atividade preparatória do provimento é o procedimento
que, normalmente, chega a seu termo final com a edição do ato
por ele preparado, por isso, esse mesmo ato dé caráter imperati­
vo geralmente é a conclusão do procedimento, o seu ato final.146

6.2. A RENOVAÇÃO DO CONCEITO DE PROCEDIMENTO

A renovação do conceito de procedimento já vinha despon­


tando na doutrina do processo, mas de um modo incompleto,
indiferenciado, ou ainda bastante informe, com várias questões
não resolvidas ou resolvidas de forma insatisfatória.
Em estudos publicados a partir de 1936, ENRICO REDENTI
já vislumbra o procedimento sob uma nova ótica,147 entendendo

146 Cf. FAZZA1ARI - Istituzioni d i Diritto Processuale, Quinta Edizione, Pado-


va: CEDAM-Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1989, pp. 7/8.

147 Conforme menciona REDENTI, os Profili, publicados pela Giuffrè em


1936, foram os progenitores do Diritto Processuale Civili, publicado pela
primeira vez em 1947 e o projeto do amplo Trattato delia giustizia civile
não chegou a ser concluído. Cf. Proemio alia Terza Edizione e Proemio
alia segonda Edizione, in Diritto Processuale Civile, Terza edizione ag-

103
o processo como a atividade destinada à formação do provimen­
to jurisdicional. A lei se ocupa de determinar os atos que devem
compor essa atividade, quando são legalmente necessários ou
simplesmente consentidos, como devem ser coordenados e com­
binados entre eles. A atividade preparatória do provimento en­
volve atos do próprio autor do provimento e dos outros sujeitos
que devem concorrer para a sua formação, por isso sua disciplina
se dá por vários esquemas normativos. Esses esquemas, segundo
REDENTI, propostos para as diversas possibilidades de proces­
sos, devem tomar o nome dè'^rbcêdimento, que se entende
como il m od u lo legale d e l fe n o m e n o in astra tto 148.
Os paradigmas ou módulos legais, como diz REDENTI, não
se encontram sempre perfeitamente traçados e prontos para o
uso, no texto da lei. Muitas vezes é necessário construí-los pela
via da interpretação, com auxílio de critérios gerais, com e i l bu on
g eo m etra p r o ced e alie sue trian gu lazion e d a lla con oscen za d i
la ti e d i a n g oli.149
O "módulo legal", o modelo normativo capaz de comportar
toda a variedade de procedimentos, se elabora pela mesma ativi­
dade de generalização e abstração desenvolvida na formulação
de qualquer conceito. Sua construção é possível a partir das
espécies de procedimentos previstos pela lei, que, conforme diz
REDENTI, podem ser recolhidos ou distinguidos em grupos ou
subgrupos (fam iglie), em razão da classificação dos provimentos
finais que visam a formar.150

giom atci e rielaborata da Tito Carnacini e Mario Vellani, 1 - Nozione e


Regole Generali, Giuffrè Editore, 1980.

148 Cf. REDENTI, op. cit., pp. 99/100.


149 Cf. REDENTI - U Giudizio Civile con Pluralità di Parti, Milano: Dott. A.
Giuffrè Editore, 1960, pp. XI/XII. A obra é reimpressão da edição original de
1911. No prefácio feito para a reimpressão, REDENTI refere-se ao problema da
configuração dos paradigmas das ações civis, que por uma visão "planimetrica
d el sistema stesso viene a ttovarsi inposizione marginale" Cf. p. XI.
150 Cf. REDENTI ■Diritto Processuale Civile, cit. p. 100.

104
Também LIEBMAN já revela uma certa aproximação dessa
nova concepção, quando discorre sobre a estrutura do procedi­
mento, em que os atos processuais formam elos de uma cor­
rente. Mas a aproximação de LIEBMAN é apenas relativa, pois sua
doutrina separa o processo do procedimento, mantendo quanto
a este a concepção antiga, ainda dominante na teoria processual,
quando enuncia que o termo processo é mais amplo, porque
pode compreender mais de um procedimento.151
O ato estatal de caráter imperativo para cuja preparação
todo procedimento se volta é o seu motivo,-sua ratio, mas não é
elemento próprio para que dele se deduza a específica dinâmica
do procedimento, que não é um mero encadeamento de atos.

A contribuição definitiva para a renovação do conceito de


procedimento, no Direito Processual, orgânica, sistematizada,
coerente e lógica, vem de ELIO FAZZALARI, que partiu de uma
bem estruturada visão do ordenamento jurídico e de um quadro
conceituai muito bem definido para investigar as formas pos­
síveis de "enucleação", ou de conexões de normas, ou seja, de
agrupamentos normativos vistos quanto à especial forma do
entrelaçamento dessas normas; dos atos por elas regidos, não só
na qualificação de sua juridicidade, mas na sua predicação quan­
do tais atos são correlacionados com tais normas, para a caracte­
rização do procedimento e do processo.
FAZZALARI preocupa-se em definir previamente os con­
ceitos que utiliza no desenvolvimento de sua argumenta­

151 Cf. LIEBMAN - Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, tradução e notas
de Cândido R. Dinamarco, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp. 228/229.
Essa posição aproximada também se verifica em ANTÔNIO CARLOS DE
ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRlNl GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMAR-
CO, quando, vendo o processo com o uma relação jurídica, incluem, em
seu conceito, o procedimento. Cf. op. cit. 253.

105
w'
0
3
3
ção, porque estes, muitas vezes designados com o mesmo nome
3 dos conceitos tradicionais, não possuem a mesma conotação e,
3 conseqüentemente, referem-se a realidades jurídicas diferentes.
3 A norma jurídica, do ponto de vista de sua estrutura lógica,
é contemplada não apenas como "cânone de valoração de uma
3
conduta", isto é, como regra vinculante e exclusiva que expressa
3 os valores da sociedade,152 mas também em relação à conduta
(3 por ela descrita, a que se liga a valoração normativa. Sendo o ato
sinônimo de conduta (que tem no comportamento o seu conteú­
3 do), dessa valoração resulta a qualificação do ato jurídico como
O lícito (o uso do próprio bem), ou como devido. A posição do
3 sujeito em relação à norma permite falar em posição subjetiva,
ou posição jurídica subjetiva, e qualificar a conduta como facul­
3 dade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever, se é
3 valorada como devida.
O Da posição do sujeito em relação ao objeto do comporta­
mento descrito na norma, FAZZALARI extrai o conceito de direito
O
subjetivo, não como um poder sobre a conduta alheia, ou de
O direito à prestação decorrente de relação jurídica, mas como
o uma posição de vantagem do sujeito assegurada pela norma,
posição que se apreende pelo "objeto do comportamento" des­
o
crito na norma relacionado ao sujeito. Se da norma decorre uma
Q faculdade ou um poder, para o sujeito, sua posição de vantagem
o incide sobre o objeto daquela faculdade ou daquele poder que a
o norma lhe conferiu153.
O quadro conceituai com o qual FAZZALARI trabalha será
3 explicitado, na medida em que for conveniente para a clareza
O desta exposição.
o Entretanto, é importante sublinhar, desde já, que os atos
lícitos qualificados como faculdades ou poderes nada têm a ver
3 com a concepção tradicional de direitos subjetivos, e que seu
3
3
3 152 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 19126.

153 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 46/50.


3
3
3 106
3
3
contraponto não é o ilícito. Os atos lícitos constituem poderes,
se consistem em declarações de vontade (uma confissão judicial)
e, faculdades, se consistem em atos em que a vontade, embora
presente, como em qualquer ato válido, não necessita ser decla­
rada porque é implícita como "consciente determinação do agen­
te de ter o comportamento descrito na norma".154 Os exemplos
oferecidos por FAZZALARI auxiliam a distinção: as partes têm
poder de "proferir juramento decisório", faculdade de alegar
fatos e dever de exibir prova.155 Quando há conseqüências legais
vinculadas à falta do exercício dos poderes e faculdades, desfavo­
ráveis ao titular do ato, surge a figura do ônus. Como diz FAZZA­
LARI, os poderes e faculdades caracterizam-se como ônus, quan­
do à falta de seu exercício a lei processual liga uma conseqüência
desfavorável ao titular do ato. Ao sujeito é dado cumprir ou não
o ato, mas a falta de cumprimento se resolve na possibilidade de
dano para ele156.
O segundo ponto que merece relevo é a explicitação de que
a qualificação do ato como lícito (poderes e faculdades) não se
faz em contraposição ao ilícito. O ilícito não é incluído na estru­
tura do procedimento e do ponto de vista lógico, nem o poderia
ser, pois não poderia compor o conceito de ato jurídico. E é
sobre atos jurídicos que se fala no procedimento, são eles que o
compõem em todo o seu iter, até o momento final. E claro que
não se exclui o ilícito da experiência do Direito, mas nela ele
comparece como inobservância da conduta devida, descrita pela
norma substancial, pela norma de direito material. Terá ele,
naturalmente, assim como o direito material cuja tutela é reque­
rida, suas relações com o ato final, o provimento, no processo,
mas não integra a sua estrutura.157

154 Cf. FAZZALARI, op. cit. p. 338, v., ainda, p. 3 3 0 e p. 401.

155 CF. FAZZALARI, op. cit., p. 401.

156 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 401.

157 Cf. A concepção de norma jurídica, com o cânone de conduta, vinculativa


(no sentido de que a conduta deve se conformar a ela) e exclusiva (porque

107
^ O procedimento não é atividade que se esgota no cumpri­
mento de um único ato, mas requer toda uma série de atos e uma
série de normas que os disciplinam, em conexão entre elas,
regendo a seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se fala em
procedimento como seqüência de normas, de atos e de posições
subjetivas.

se sobrepõe a outras normas) de que decorre a juridicidade, em FAZZALA­


RI, lembra STAMMLER, na definição do Direito com o um querer vinculati-
vo, entrelaçante, autárquico e inviolável, e também pela opinio iuris vel
necessitatis, toda linha de pensamento, de diversas tendências que, pelas
contribuições do historicismo jurídico, se formou sobre a juridicidade. O
ilícito não é realçado nessa juridicidade, senão com o elem ento que a
rompe. Nesse ponto FAZZALARI está mais próximo da linha humanista,
com a qual concilia sua abordagem lógica da norma, e em posição absolu­
tamente distanciada de KELSEN. Mesmo a norma penal em FAZZALARI,
com o norma de conduta, refere-se à conduta devida, e sua expressão
lógica que liga o ilícito à sanção não descreve a norma substancial, mas a
norma jurisdicional. Ressalte-se que no campo do estudo da estrutura
lógica da norm a e das funções que decorrem de sua vinculação com a
conduta regida, há excelente contribuição de NORBERTO BOBBIO - Teoria
do Ordenamento Jurídico, trad. de Cláudio de Cicco (capítulo 1) e de
Maria Celeste C.J. Santos (capítulo 2 a 5), São Paulo: Polis, Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1989- KELSEN, que já havia desenvolvido o tema,
em tópicos da Teoria Pura do Direito, teve seus trabalhos sobre a norma
recolhidos em publicação póstuma sob o título de Teoria Geral das Nor­
mas. As funções da norma jurídica, que são estudadas do ponto de vista
teleológico ou sob o prisma formal, na Ciência do Direito, enquanto
referidas ao sistema jurídico, estão ali descritas com o funções da norma,
enquanto dever-ser de conduta, em relação à própria conduta por ela
disciplinada. Por esse critério, KELSEN classifica as funções da norma com o
de: 1) Imposição de uma conduta, em que imposição é sinônimo de
prescrição, que se diferencia de descrição, enquanto se rem ete a algo que
deve ser. Toda proibição pode ser descrita com o imposição, precisamente
como imposição da conduta ou de sua omissão, porque o conceito de
conduta com preende "o fazer e a omissão passiva de uma ação". A imposi­
ção compreende, assim, a prescrição e a proibição: a imposição do fazer —
a prescrição, e a imposição do omitir aquele fazer — a proibição. 2)
Autorização — que é o ter poder para a conduta. 3) Permissão — o ter a
conduta consentida. A permissão compreende dois sentidos: o sentido
positivo e sentido negativo. (O sentido negativo, para KELSEN, não é
função na norma; para BOBBIO, gera problema do espaço vazio. Significa

108
O ato de caráter imperativo, um provimento, tem no proce­
dimento sua fase preparatória, mas não é, entretanto, suficiente
para esgotar sua definição. A atividade que precede sua emissão,
ou edição, ou emanação, é constituída de atos que são disciplina­
dos segundo um modelo normativo próprio, que determina sua
especial forma de coordenação e de conexão, no desenvolvimen­
to, ou, no iter do procedimento, até o ato final.
Essa especial forma de coordenação será descrita a seguir,
mas, antes, convém recordar que, para FAZZALARI, o procedi­
mento não é um conceito particular de uma disciplina, maíLum
conceito geral do Direito, e deve ser "colhido", extraído, de um
complexo de normas que incidem sobre atos e posições subjeti­
vas que preparam o provimento, que é, como se viu, um ato do
Estado, emanado de seus órgãos, na órbita de sua competência,
dotado de caráter imperativo.
Não é excessivo ressaltar que a expressão "posição subjeti­
va" contém um sentido muito específico. Não se refere à posição
de sujeitos em uma relação com outro sujeito ou à posição de
sujeitos em um quadro qualquer de liames. Posição subjetiva é a
posição de sujeitos perante a norma, que valora suas condutas
como lícitas, facultadas ou devidas.
No procedimento, os atos e as posições subjetivas são nor-
mativamente previstos e se conectam de forma especial para
tornar possível o advento do ato final, por ele préparado. Não só

que a conduta nem é proibida, nem imposta. O ser permitido aí é o ser


Livre. Em KELSEN, o sentido positivo da autorização pode significar que
uma norm a que proíbe uma conduta definida é abolida, ou que a norma
que proíbe tal conduta é limitada por outra (Ex. a proibição de matar e a
legítima defesa). A limitação da proibição importa em permissão. Essa
função é reduzida à função de derrogação (que aparece com o a 4~ espé­
cie), ou seja, a abolição ou limitação da validade, norma que proíbe uma
conduta definida. Isto porque a permissão não pode ser cumprida nem
violada. Sobre os desdobramentos e a importância de cada uma dessas
funções KELSEN fala longamente, mas prosseguir no tema desviaria o
propósito dessa exposição. Cf. KELSEN - Teoria Geral das Normas - trad.
de José Florentino Duarte, Porto Alegre: Fabris, 1986, pp. 120/144.

109
ÜÜÜUUÜUOOOGOOOOOOOOOOÜUOOOOÜÜOÜJUÜÍ

o ato final, em sua existência, mas a própria validade desse ato e,


conseqüentemente, sua eficácia, dependerão do correto desen­
volvimento do procedimento.
A forma especial de conexão dos atos e posições subjetivas
normativamente previstas, que torna possível a identificação de
qualquer procedimento, é descrita por FAZZALARI:

"II procedimento si coglie qu an d o ci trova d i


fron te a una serie d i nortne, ciascu n a d elle qu ali
regola una determ inata con dotta (q u alifican d ola co­
m o lecita o doverosa), m a enuncia com e p resu pposto
delia p róp ria incidenza il com pim ento d i un ’attività
regolata d a altra nor?na d elia serie, e cosi via fin o a lia
norm a regolatrice d i un ato finale"158
Í
Quando o pressuposto para a incidência de uma norma é o
cumprimento de uma atividade prevista na norma anterior da
série do complexo normativo, não se está diante da simples
ordenação de uma cadeia normativa, que poderia ser linearmen­
te concebida.
Pressuposto, em linguagem filosófica e da lógica, é premissa
não explícita, e essa, como se mostrou, em tópico anterior, é a
proposição da qual são extraídas outras proposições, pelo
processo de inferência, e, como se recordou, as conclusões po­
dem se tornar novas premissas de novas conclusões, na cadeia de
proposições, no raciocínio dedutivo159. Essa é a noção funda­

158 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58.

159 FAZZALARI trabalha com a lógica, como ele próprio declara quando expli­
cita a eleição de seu método: D a lp a rtico la re a lgen era le, d a lg e n e r a le a l
particolare: è il método delia doppia scala che, quattro secoU fà , ci ha
insegnato Bacone. Cf. op. cit., p. 16. Mas está visto que não trabalhou com
a lógica das classes, no desenvolvimento do raciocínio que o levou a
relacionar o processo com o procedimento, através da extração da espécie
do gênero, quando ao invés de unia relação, que levaria à inclusão, p roce­
deu a uma cisão.

110
mental para a apreensão do novo conceito de procedimento. Foi
ele inicialmente referido como uma estrutura que prepara um
ato final imperativo, o provimento, e essa estrutura é constituída
de tal forma que, na cadeia normativa que disciplina os atos e as
posições subjetivas, a incidência de uma norma só poderá se
verificar validamente sobre os atos da seqüência, se a norma
anterior houver sido observada e cumprida, na sua previsão de
atos que poderiam ter sido exercidos ou que deveriam ter sido
cumpridos. Em outras palavras, na seqüência normativa que
compõe a estrutura do procedimento, a observância da incidên­
cia da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser
cumprido é pressuposto, é condição de validade, da incidência
de outra norma que dispõe sobre a realização de outro ato,
sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento se
esgota atingindo seu ato final, quando se verificaram todos os
pressupostos normativamente previstos para a emanação do
provimento. A observância da incidência da norma significa que
os atos que ela permite são realizados ou têm a possibilidade de
sua realização garantida, e o atos que ela estatui como devidos
são realizados, quando não se permite a sua conversão em ônus.
Se o procedimento fosse considerado apenas como uma
série de normas, atos e de posições subjetivas, o ato jurídico
isoladamente considerado poderia produzir nele seus efeitos.
Mas o procedimento é mais do que uma mera seqüência norma­
tiva, que disciplina atos e posições subjetivas, porque faz depen­
der a validade de cada um de sua posição na estrutura, que
requer o cumprimento de seu pressuposto. O ato praticado fora
dessa estrutura, sem a observância de seu pressuposto, não pode
ser por ela acolhido validamente, porque não pode ser nela
inserido.

6.3.1.0 PROCESSO COMO ESPÉCIE DO GÊNERO


PROCEDIMENTO
Como foi exposto, FAZZALARI caracterizou os provimentos
como atos imperativos do Estado, emanados dos órgãos que

111
exercem o poder, nas funções legislativa, administrativa ou juris­
dicional. O procedimento, como atividade prepâratória do provi­
mento, possui sua específica estrutura constituída da seqüência
de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada
conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é
pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato
nela previsto.
O provimento implica na conclusão de um procedimento,
pois a lei não reconhece sua validade, se não é precedido das
atividades preparatórias que ela estabelece. Mas o provimento
pode ser visto como ato final do procedimento não apenas
porque este se esgota na preparação de seu advento. Pode ser
concebido como parte do procedimento, como seu ato final,
c o m o o último ato de sua estrutura./É na possibilidade de se
enuclearem os provimentos, em conjunto, segundo essa ótica,
pela qual eles são o próprio ato final do procedimento, que
FAZZALARI encontra a perspectiva própria para o estudo do
processo.1*50
O processo começará a se caracterizar como uma "espécie"
do "gênero" procedimento, pela participação na atividade de
preparação do provimento, dos "interessados", juntamente com
o autor do próprio provimentoy1Os interessados são aqueles em
cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos, ou
seja, o provimento interferirá, de alguma forma, no patrimônio,
no sentido de universum ius,l(A dessas pessoas.
A primeira aproximação do conceito de processo é assim
desenvolvida:

"Se, p oi, a l p roced im en to d i fo r m a z io n e d e l


provvedim ento, alie attiv ità p rep a ra to rie attrav erso
le q u a li si verificano ip resu p p osti d elp rov v ed im en -

160 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 7/8.


161 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 54.

112
to stesso, son o c h iam a ti a participare, in una o p iú
fa si, a n c b e gli interessati, in contraddittorio, coglia-
m o Vessenza d e l "processo": che è, appunto, un p r o ­
cedim en to a l quale, oltre alVautore d e li’atto fin ale,
partecip an o, in con traddittorio fr a loro, g/'interes-
sati, cioè i d estin atari degli effetti d i tale a tto " }62

O processo começa a se definir pela participação dos


interessados no provimento n a fase que o prepará, ÕLrseja, no
proclidimêntQ. Mas essa definição se concluirá pela apreensão da
específica estrutura legal que inclui essa "participação, da qual se
extrairá o predicado que identifica o processo, que é o ponto de
sua distinção: a participação dos interessados, em contraditório
e n tre eles:

! "Se, p oi, il p roced im en to è regolato in m o d o che


v ip artecip in o an ch e coloro n ella cui sfera g iu rid ica
1’atto fin a le è d estin ato a svolgere effeti (talch é l ’au-
tore d i esso d e b b a tener conto d elia loro attività), e
se tale p artecip a zion e è congegnata in m o d o che i
con trapposti interessati (quelli che asp iran o a lia
em an azion e d e li’atto fin a le — interessati in senso
stretto — e qu elli che vogliono ev itaria — contro-
interessatij sian o sul p ia n o d i sim m etrica p a rità;
a llo ra il p roced im en to com prende il contradditto­
rio, si f a p iú a rticolato e complesso, e d a l genus
procedimento è con sen tito e n u c le a r e la sp ecies
processo.163

Chega-se, assim, ao processo como "espécie"164 de procedi­

162 FAZZALARI op. cit., p. 8.


163 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58.

164 Lembrando o que foi exposto anteriormente, sobre as doutrinas que


consideram o processo mais amplo que o procedimento, incluindo este

113
3
3
3 mento realizado através do contraditório entre os interessados,
3 que, no processo jurisdicional, são as partes.
3 Dentro da linha de raciocínio desenvolvida por FAZZALARI,
talvez a relação entre o "gênero" procedimento e a "espécie"
3
processo possa ficar mais bem explicitada se se recorrer ao
3 auxílio da lógica da relação entre classes para a apreensão de seu
3 argumento.
Uma classe se define pelas qualidades, ou propriedades,
O
comuns dos membros que nela se incluem. A classe dos procedi­
O mentos é constituída pela atividade que possui uma "estrutura
O normativa" determinada, voltada para a preparação do provi­
mento. A classe dos processos (jurisdicionais, legislativos, admi­
3 nistrativos, e outros admitidos pelos ordenamentos jurídicos
3 como os arbitrais) possui em comum a preparação do provimen­
3 to com a participação dos interessados, em contraditório entre
eles. Como se disse, anteriormente, a respeito dos princípios
O'
lógicos da inclusão, ela é válida se obedecida a hierarquia das
O classes. O procedimento, como "estrutura normativa" que prepa­
o ra o provimento, constitui a classe imediatamente superior pela
abrangência que comporta, para que nela se inclua a classe dos
processos.
o É interessante observar que a via encontrada por FAZZALA-
o RI, que foi a da cisão, quando ceifou o gênero, para extrair de seu
o
o naquele, pode-se testar o resultado apresentado para FAZZALARI. Se se
3 invertesse a proposição, dizendo-se que o processo é o gênero e o procedi­
mento a espécie, isso significaria que todos os procedimentos deveriam
3 conter todas as qualidades específicas do processo, o que não seria correto
3 porque há procedimentos que não possuem a especificidade que caracteri­
za o processo: o contraditório. O processo, sim, contém as qualidades
3 atribuídas ao procedimento. Por isso, se se diz que "todo procedimento é
preparação de um provimento", é possível se dizer que o processo com pa­
3 rece como espécie do gênero procedimento porque participa da qualidade
que lhe foi predicada. A relação entre gênero e espécie pela quantificação do
3 sujeito do discurso, no juízo, nas antigas formulações do juízo universal (Todo
3 S é P) ou particular (Alguns S são P), ou do juízo singular (S é P) trazia algumas
dificuldades, que foram superadas pela lógica das relações entre classes.
3
3
3 114
3
O
âmago a espécie, importou, implicitamente, em uma relação que
é, logicamente, de inclusão, porque a classe dos processos, pela
sua qualidade de atividade que prepara o provimento, comparti­
lha, com os procedimentos, dessa "específica qualidade" que os
define.
O que há de realmente extraordinário nos resultados de
suas investigações é a identificação do elemento que permite
definir o procedimento e do elemento que constitui a diferença
específica do processo, sendo que este é um procedimento.

6.3.2.0 PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO


EM CONTRADITÓRIO
— i Há processo sempre onde houver o procedimento realizan­
do-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste
está na "simétrica paridade"165 da participação, nos atos que
preparam o provimento, daqueles que nele são interessados
porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos.
A espécie de procedimento denominada processo se subdi­
vide, também, em subclasses, e pode-se falar em espécies de
processos: processo administrativo, em que se desenvolve a ati­
vidade da Administração, processo legislativo, em que se desen­
volve a atividade legislativa, processo jurisdicional, em que se
desenvolve a atividade do Estado de fazer a justiça, por meio de
seus juizes. Há, ainda, os "processos" infra-estatais, que são aque­
les que, no campo do Direito Privado, em que prevalece a auto­
nomia da vontade, preparam um ato final sem a característica do
ato estatal, porque não dotado da imperatividade do provimen­
to, mas que tem o caráter de uma deliberação, e cuja dinâmica se
faz pelo modelo do processo jurisdicional. FAZZALARI lembra
exemplos que mostram a extensão, em tendência crescente, do
arquétipo do processo jurisdicional, ao campo do Direito Priva­
do para solução de controvérsias, entre outros, nas deliberações
internas de partidos políticos, de sindicatos, de associações es­

165 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 80.

115
portivas, de sociedades comerciais. Os exemplos poderiam ser
multiplicados na realidade social brasileira, em que se observa o
movimento ascendente de organização de associações, em vários
setores, e a introdução da prática democrática dos debates que
precedem as decisões dos grupos.
É claro que a atividade que prepara o provimento, seja
administrativa ou jurisdicional, nem sempre constitui processo,
pois o contraditório pode dela estar ausente. O provimento
; administrativo e o provimento jurisdicional podem ter como
atividade preparatória o simples procedimento, como se,dá,,por
exemplo, no âmbito da administração, em relação a um pedido
de inscrição em concurso público, um pedido de licença para
porte de arma, um pedido de matrícula em Instituição Pública de
Ensino e, no âmbito do Judiciário, em relação a um pedido de
tutela, enfim, aos atos da chamada "jurisdição voluntária". Mas se
ocorrer divergência de interesses sobre o provimento, entre seus
destinatários, o procedimento pode se transformar em processo.
Observe-se, apenas, que, em relação aos exemplos referentes à
matéria de natureza simplesmente administrativa, a transforma­
ção do procedimento em processo exigirá, naturalmente, o pres­
suposto de sua instauração perante o órgão jurisdicional, onde
não houver especialização dos órgãos da Justiça para a aprecia­
ção de matéria administrativa. Essa questão não prejudicará a
compreensão da transformação do procedimento em processo
se se recordar que a jurisdição é una, comportando especializa­
ção de órgãos do Poder para seu exercício.
Pode entender-se, então, por que o estudo da jurisdição, ou
seja, da norma processual, que é a norma que disciplina seu
correto exercício, deve se fazer sobre o processo que, sendo uma
espécie de procedimento, oferece, como diz FAZZALARI, a estru­
tura mais completa para que sejam reunidos e ordenados coe­
rentemente os vários aspectos que envolvem a manifestação des­
sa atividade fundamental do poder.166

166 "... Io studio delia giurisdizione (e cosi d i quella civile) d ev e fa rp e rn o sul

116
Da manifestação do poder jurisdicional, em razão da maté­
ria constitucionalmente organizada, segundo a estrutura dos
órgãos jurisdicionais, podem ser apontadas as várias espécies de
processo. Nos termos da Constituição da República de 05 de
outubro de 1988, no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se
falar em processo jurisdicional civil, penal, trabalhista, militar,
eleitoral, constitucional e legislativo.167 O processo jurisdicional
administrativo — em plano de jurisdição autônoma —, e o arbi­
trai não foram contemplados no texto constitucional, que é de
onde se extrai, fundamentalmente, a legitimidade dos órgãos
que podem atuar no exercício da jurisdição.168
Em relação ao processo de apreciação de inconstitucionali-

processo. IIprocesso è la sola struttura nela quale, e in virtu delia quale,


i vari aspetti d i q u e ll’attività fon d a m en ta lep o sso n o essere coerenziati ed
ordinati: con u n cam biam ento, m a anche, io credo, con u n innegabile
progresso tispetto a i p reced en ti sistemi, fo n d a ti sul concetto d i azione,
anco ra utile, m a d a elaborare e collocare a l suo posto, e su quello di
rapporto giuridico processuale, orm ai d a rípudiare d el tutto". Cf. FAZZA­
LARI, op. cit., pp. 98/99-

167 JOSÉ FREDERICO MARQUES denomina categorias anômalas de jurisdição


não-judiciária as exercidas por órgão administrativo, no contencioso admi­
nistrativo que não chegou a se implantar e por órgão legislativo, no
julgamento do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do
Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República, nos termos
previstos na Constituição. Cf. Manual de Direito Processual Civil, São
Paulo: Saraiva, 1985-1986, l c vol., p. 2.

168 O art. 114, § 1“ da Constituição de 1988, permitiu às partes elegerem


árbitros, frustrada a negociação coletiva. Entretanto, essa arbitragem se
coloca no cam po das relações privadas, como a própria negociação, pois
não substitui o provimento jurisdicional, com o se extrai do § 3a do mesmo
artigo. A arbitragem, na hipótese referida, é apenas uma fase preparatória
de um procedimento, desenvolve-se na fase pré-processual da instauração
do dissídio coletivo, mas voluntária e não necessária, pois, inexistindo, não
impede seu ajuizamento. Todo o Capítulo XIV, do Título I, do Livro IV do
Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade poderia ser discutida
perante a Constituição anterior, sob cuja égide o Código entrou em vigor,
está revogado, porque mais do que um simples negócio jurídico, prevê o
ato imperativo do provimento, e este é, constitucionalmente, reservado ao
poder jurisdicional do Estado, cujos órgãos são definidos na Constituição.

117
3
0
3
dade da lei em tese, as divergências doutrinárias169 sobre sua
D
natureza, como "processo" ou como processo de "jurisdição vo­
3 luntária", ou seja, simples procedimento, não poderão ser resol­
0 vidas sem o eXame do direito positivo, que determina a estrutura
do procedimento em que se dá o controle da constitucionalida-
0
de. As dúvidas, entretanto, não alcançam o Direito brasileiro,
O pois o contraditório ressalta do art. 103 e parágrafos, da Consti­
o tuição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 32
o expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da
União, "que defenderá o ato ou o texto impugnado,:, quando o
o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade em
3 tese (abstrata) de norma legal ou ato normativo. E, portanto, um
verdadeiro processo, e não um simples procedimento, ou um
3
"processo de jurisdição voluntária".
O O procedimento legislativo, conforme observa FAZZALARI,
O sempre é processo, sempre se realiza como "espécie" processo,
sempre se realiza com a participação de parlamentares que re­
■0 presentam e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e
'3 comunidades dos cidadãos. E na sua caracterização que FAZZA­
O LARI sublinha o valor da própria estrutura do processo para a
o democracia, o momento em que ele comparece nitidamente

o como um instrumento para a garantia da liberdade: "Si tratta,


du n qu e non d i m eri procedim en ti, ben si d i processi. Qui il
o p ro cesso conferm a, se m a i ve ne sia bisogno, la su a essen za d i
o struttura privilegiata p e r l a gestion e d em ocratica d i attiv ità

o >
fo n d a m en ta li; e du n qu e, d i strum ento p e r la salv ag u ard ia de-
lie liberta1,170 .
o
0 f.
i. 169 Em linha contrária à de FAZZALARI, CAPPELLETTI sustenta a tese de que "a
.3 jurisdição constitucional é uma dentre as grandes manifestações da jurisdi­
ção não ‘contenciosa’, latu sensu, ‘voluntária’" Cf. MAURO CAPPELLETTI -
O O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Compara­
3 do, trad. de Aroldo Plínio Gonçalves, Revisão de José Carlos Barbosa
Moreira, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, pp. 125/126.
3 170 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 580. Não custa repetir, resistir, persistir e insistir
0 na necessidade da urgente edição dos Códigos Estaduais de Processo (civil

3
O 118
O
o
6.4. O CONTRADITÓRIO

A idéia do contraditório não é recente. RUDOLF VON JHE-


RING deixou páginas memoráveis sobre a administração da justi­
ça, na qual a primeira exigência era a da "justiça no processo".
Para ela, para essa justiça interna e intrínseca, a "organização" do
processo deveria estar voltada, pois, no processo, era ela a pri­
meira e também a única exigência essencial, perante a qual todas
as demais, no processo, seriam secundárias. Essa "justiça no
processo" é bem explicitada por VON JHERING, quando fala das
relações das partes no processo, que, com o juiz, terceiro e não
parte, era, segundo entendia, de "subordinação jurídica". Mas a
relação entre as partes deveria ser caracterizada pela igualdade
jurídica: "devem combater-se com armas iguais e devem-lhes ser
distribuídas com igualdade a sombra e a luz".171 O conceito de
contraditório, entretanto, é bem atual, e ainda não foi totalmente
assimilado, embora seu princípio fundamental, "au diatu r (...) et
a lte r a pars", "audita a ltera parte", "audi alteram p a r te m ", seja
bastante difundido, e já esteja presente na Teoria Geral do Direi­
to, com a conotação bastante aproximada da que lhe seria dada
pelo Direito Processual Civil. Assim, na segunda parte de sua
"Introduction à la Science d u D roit (dividida em E n cyclopédie
d u D roit, em Théorie G én érale d u D roit e em In trodu ction à la
P h ilosop h ie du Droit)", PIERRE PESCATORE fala sobre le carac-
tère con trad ictoire d e la p rocéd u re, explicitando o adágio a u ­
d ia tu r (...) et altera p a r s , que significa, conforme diz, que uma
decisão não pode adquirir a autoridade da coisa julgada para
quem não participou do debate judiciário, que o contraditório

e penal), já que esta é a vontade política do Constituinte de 1988 (art. 22,


XI) — que cumpre seja rigorosamente respeitada — , voltando em parte, e
isto pouco importa, ao regime da Constituição de 1891.

171 Cf. RUDOLF VON JHERING - A evolução do Direito, Salvador: Livraria


Progresso Editora, 1956 (Não há menção ao tradutor, mas trata-se da obra
cujo título original é Zweck im R echt, de 1878), p. 307.

119
possibilita o melhor esclarecimento do juiz, e que, entretanto,
significa, sobretudo, a possibilidade que a parte deve ter de se
fazer ouvir: "Ce p rín cip e d o it être en ten du tou tefois en c e sen s
qu e tou te p a r tie interessée d o it av o ir la p ossib ilité d e se fa ir e
entendre" } 72
A conotação citada como uma aproximação do conceito
atual de contraditório explica-se, pois ele exige mais do que a
audiência da parte, mais do que o direito das partes de se
fazerem ouvir. Hoje, .seu conceito evoluiu para o de garantia
de participação das partes, no sentido em que já falava VON
JHERING, em simétrica paridade de armas, no sentido de jus­
tiça interna no processo, de justiça no processo, quando as
mesmas oportunidades são distribuídas com igualdade às par­
tes.
O contraditório não é apenas "a participação dos sujeitos do
processo". Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o
Ministério Público, quando a lei o exige, e as partes (autor, réu,
intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em
simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os
efeitos da sentença, daqueles que são os "interessados", ou seja,
aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provi;
mento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.
O juiz é sujeito do processo, é o sujeito que tem a titularida­
de não apenas do ato do provimento final, mas de provimentos
emitidos no curso do procedimento, sempre que decisões são
proferidas, e de outros tantos atos processuais que a lei lhe
reserva, na preparação do ato final, enquanto investido na fun­
ção jurisdicional, enquanto órgão pelo qual o Estado fala. Sendo
sujeito de atos processuais, é claro que ele participa do processo.
A participação do juiz, na fase de instrução, que afasta definitiva­
mente a possibilidade de que ele seja visto como um simples
autômato, é posta em relevo por BARBOSA MOREIRA, que, com
base em várias disposições do Código de Processo Civil de 1973,

172 Cf. PI ERRE PESCATORE, op. cit., p. 374.

120
demonstra que ele não se limita a "uma postura de estátua"173. A
maior participação dos juizes no processo é um direito que,
conforme alerta, assiste à própria sociedade, para o qual o legis­
lador deve ser sensibilizado e despertado174.
Contudo, saliente-se, a participação do juiz não o transfor­
ma em um contraditor, ele não participa "em contraditório com
as partes", entre ele e as partes não há interesse em disputa, ele
não é um "interessado", ou um "contra-interessado" no provi­
mento. O contraditório se passa entre as partes porque importa
no jogo de seus interesses em direções contrárias, em divergên­
cia de pretensões sobre o futuro provimento que o iter procedi­
mental prepara, em oposição. É essa oposição, essa contrarieda­
de de interesses, de que o provimento seja favorável a uma e
desfavorável à outra, que marca a presença das partes e que tem
a garantia de igual tratamento no processo. O contraditório, não
é, por isso, a "mera participação no processo". Essa era a idéia
originária do contraditório, quando a participação era concebida
como o auge das garantias processuais. Participação no processo
têm todos os sujeitos do processo, caso contrário não seriam
"sujeitos dos atos processuais". Entretanto, a participação em
contraditório se desenvolve "entre as pártes", porque a disputa se
passã entre elas, elas são as detentoras de interesses que serão
atingidos pelo provimento.
O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e deve ter
essa posição para poder comparecer como sujeito de atos de um
determinado processo e como autor do provimento. Essa é uma
garantia das partes, que se expressa tanto pelo princípio do juízo
natural, e não pós-constituído, tanto pelas normas que contro-

173 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - "Sobre a 'Participação’ do Juiz no


Processo Civil", in Participação e Processo, Coordenação de Ada Pellegrini
Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, São Pauto-. Edito­
ra Revista dos Tribunais, 1988, pp. 380/394.

174 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, "Sobre a 'Participação’ do Juiz no


Processo Civil", in op. cit., p. 390.
Iam a competência do juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o
juiz não entra no jogo do dizer-e-contra-dizer, não se faz contra-
ditor. Seus atos passam pelo controle das partes, na medida em
que a lei lhes possibilita insurgir-se contra eles. Sublinhe-se,
nesse ponto, o profundo sentido do duplo grau de jurisdição
como garantia de direitos processuais. O controle das partes
sobre os atos do juiz é de suma importância e, nesse aspecto, a
publicidade e a comunicação, a cientificação do ato processual às
partes (que é, também, garantia processual) é de extrema rele­
vância. Entretanto, as partes não se colocam em combate com o
juiz, nem este em contraditório com as partes. Ele fala sempre
pelo Estado, enquanto investido da função jurisdicional, e os
atos decisórios do processo têm o selo da imperatividade. As
partes exercem o seu controle sobre ele, pelo remédio legal
adequado à riíatureza do ato, mas esse controle se dará sempre
através do pedido de pronunciamento do próprio Poder Judiciá­
rio, chamado a intervir para a proteção dos direitos processuais.
Quando tal controle se faz pela impugnação do ato imperativo, pela
via recursal, é o mesmo Poder Jurisdicional, em outro grau, mas
sempre o mesmo Poder, a quem incumbe a reapreciação do ato. A
revisão recursal não importa, como bem demonstra BARBOSA MO­
REIRA "reforma" ou "confirmação" da decisão impugnada, mas em
sua substituição!75 Na hipótese de cassação da decisão, ou anula­
ção, o provimento em grau de recurso implica na determinação
para que a substituição se faça pelo próprio autor do provimento
viciado, para que não se suprima grau de jurisdição. De qualquer
modo, a revisão não se faz por outro órgão que não o jurisdicional,
em qualquer grau de sua manifestação.
O contraditório realizado entre as partes não exclui que o
juiz participe atentamente do processo, mas, ao contrário, o
exige, porquanto, sendo o contraditório um princípio jurídico, é

175 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - Comentários ao Código de Proces­


so Civil, vol. V: art. 476 a 565, 5a ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
1985, pp. 384/389.

122
necessário que o juiz a ele se atenha, adote as providências
necessárias para garanti-lo, determine as medidas adequadas
para assegurá-lo, para fazê-lo observar, para observá-lo, ele mes­
mo.176 Nessa exigência, convém ressaltar que mesmo as provas

176 Nesse sentido, dispõe o atual art. 16 do Nouveau Code d e P ro céd u re Civile
da França: Le Ju g e doit, en toutes circonstances, fa ire observer et observer
lui-m êm e le p ríncipe d e la contradiction. A nova redação provocou o
retorno aos textos de 1971 e 1972, substituindo o art. 16 do novo Código
instituído pelo Decreto nc 75-1123, de 05 de dezembro de 1975: "Le ju g e
doit en toutes circonstances fa ire observer le p rín cip e d e la contradiction"
e sua alínea Ia, que dispensava o juiz de observar "le p rín cip e d e la
contradiction des débats lorsqu'il relève d'office u n m oyen d e p u r droit",
disposição anulada pelo Conseil d'État, em 12 de outubro de 1979, após
reação manifestada por várias associações de advogados, conforme relatam
JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD - P rocédure Civile, vingtième édi-
tion, Paris: Dalloz, 1981, p. 432. Como expõem EMMANUEL BLANC e JEAN
VIATTE, o antigo texto de 1971, que foi revigorado, tinha originariamente
a seguinte redação: "le ju g e doit, en toutes circonstances, fa ire observer et
observer lui-m êm e le príncipe d e la contradiction. Il ne p e u t fo n d e r sa
décison su r les moyens d e droits autres q u e d ’o rd re p u b lic q u 'il a relevés
d'office ou su r les explications com plém entaires q u ’il a dem andées, sans
avoir au p réa la ble invité les parties à p résen ter leurs obseivations". Cf
N ouveau Code d e Procedure Civile com m enté da n s l ’o rde des articles,
Patis, Librairíe d u Jo u rn a l des Notaires et des Avocats, 1980, p. 33). Sobre
os Moyens (conceito muito amplo que designa não apenas motivos e
fundamentos, mas os meios de convencimento em geral que comportam
várias classificações, estudadas por JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD,
op. cit., pp. 400/401) e os Moyens d ’office, foram copiosos os arestos dos
Tribunais, que culminaram na revogação da citada alínea: Um tribunal não
pode levantar de ofício u n m oyen não invocado pelas partes e sobre o quai
uma delas não haja sido chamada a se manifestar; A Corte deve dar visia -i
parte para que apresente suas alegações, desde que levante de ofício u>,
m oyen não invocado; Um juiz francês não pode aplicar lei estrangeira por
ele invocada de ofício, senão após dar vista às partes para que, em contra­
ditório, se manifestem sobre sua aplicação e sua interpretação; Os juizes
não podem reter, mesmo a título de informação, contra uma das partes,
laudos técnicos que não tenham sido elaborados em contraditório com
ela; É vedado aos juizes fundamentar suas decisões sobre uma peça produ­
zida por uma parte, que não tenha sido submetida à discussão contraditó­
ria. As ementas, que serviram de base à citação, podem ser encontradas no
N ouveau Code d e Procédure Civile et Code d e Procédure Civile, soixante-
treiziòme édition, Paris: Dalloz, 1981, nas notas referentes ao art. 16.

123
necessárias para a instrução do processo, determinadas de ofí­
cio, devem ser postas no debate do contraditório!77
Em recente obra, ADA PELLEGRINI GRINOVER faz um pro­
fundo exame da garantia do contraditório na Itália, na Alemanha,
nos Estados Unidos da América e no Brasil, salientando, quanto
à participação do juiz, a observância do contraditório que alcan­
ça as provas introduzidas de ofício, e o zelo pela correta garantia
da integral utilização dos prazos!78
A preocupação com o rápido andamento do processo, com
a superação do estigma da=morosidade da Justiça que prejudica
o próprio direito de acesso ao Judiciário, porque esse direito é
também o direito à resposta do Estado ao jurisdicionado, é
compartilhada hoje por toda a doutrina do Direito Processual
Civil. As propostas de novas categorias e de novas vias que
abreviem o momento da decisão são particularmente voltadas

177 LOURIVAL VILELA VIANA, aprofundando a reflexão sobre a extensão do


contraditório, levanta a questão da eventual relapsia ou inaptidão do
defensor, no processo penal, e indaga se o juiz deve assistir inerte ao fato.
Conclui que "no caso de omissão, não houve contraditório (que é garantia
assegurada constitucionalmente), não se atendeu à defesa plena (que é
também imperativo constitucional)". Cf. Defesa Penal, in Revista do Curso
de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 14, n - 1, janeiro-de-
zembro, 1985, pp. 33/44, v. especialmente p. 4 l ) . A mesma solução quanto
à inexistência do contraditório, no cível, aplica-se quando o juiz omite seu
dever de assegurar às partes o debate sobre os elementos capazes de influir
no convencimento que sustentará a decisão.
178 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - Novas Tendências do Direito Processual
- de acordo com a Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Forense Universi­
tária, 1990, pp. 17/44. Sobre a necessidade do equilíbrio na fixação dos
prazos para que seja viável sua utilização, podem ser relembradas as
ponderações de LUÍS EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, de que a redução de
prazos não contribui para abreviar o julgamento e é apenas causa de
angústia para os advogados. Cf. Comentários ao Código de Processo Civil,
2 a ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, vol. VI, arts. 485 a 495, p.
223. A questão é também posta por ALCIDES DE MENDONÇA LIMA: "não
se agrava o processo por meio de prazos longos e nem se beneficiam os
litigantes com prazos curtos". Cf. Introdução aos Recursos Cíveis, 2 a ed.,
rev. e atual., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p. 269.

124
para a economia e a celeridade como predicados essenciais da
decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em
jogo exige que os ritos sejam simplificados.179 Contudo, a econo­
mia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as
garantias das partes,180 e a garantia constitucional do contraditó­
rio não permite que seja ele violado em nome do rápido anda­
mento do processo.181
A decisão não se qualifica como justa apenas pelo critério
da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não
poderá se apresentar, também, na sentença:'
O juiz, sendo terceiro em relação aos efeitos do provimen­
to, não é um "terceiro no processo", no desenvolvimento do
procedimento realizado em contraditório para preparar o provi­
mento, como não o é em relação ao próprio ato final do provi­
mento. Não é um estranho no desenvolvimento do iter proces­
sual, pois dele não pode estar ausente, em relação a ele não pode
ser alheio; é necessário que esteja presente, atuante nos atos

179 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Manual das Pequenas Causas, São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 1986, pp. 3/8.

180 Cf. KAZUO WATANABE... (et al.) - Juizado Especial de Pequenas Causas,
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985-
*
181 A tendência para a celeridade é característica da época. Lembre-se, a
propósito, o instituto do "processo de adesão" que permite o pedido de
reparação civil no próprio processo criminal a que o lesado é facultado a
aderir e que foi objeto de recente Simpósio realizado em Sarre, na Alema­
nha, conforme divulgado por JOÃO BAPTISTA VILLELA na resenha da
publicação. "Wi/l, M icbael R. (Hrsg.J. Schadensersatz im Strafverfahren:
Rechtsvergleichendes Symposium zum Adhásionsprozess. K ehl a m Rhein:
Engel, 1990". "In Síntese, Nova Fase, n~ 52, vol. XVIII janeiro-março, 1991,
pp. 109/112. No Direito brasileiro as inovações certamente virão com a
aplicação do art. 98, item I da Constituição da República de 1988, pela
criação dos juizados especiais para a conciliação, o julgamento e a execu­
ção de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor
potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumai íssimo. A grande
abertura para a celeridade, entretanto, está na competência concorrente,
prevista no art. 24, XI, da Constituição de 1988, que permitirá novas
construções e já constitui um desafio à criatividade dos juristas.

125
nnooonooQQonnooQQQQCOOOOOOOonnnono
judiciais que visem a assegurar o desenvolvimento correto e
pleno do princípio do contraditório. Fazê-lo observar significará
cumprir o dever da jurisdição, para assegurar que o contraditó­
rio não seja negligenciado, violado, que a participação das partes
em simétrica paridade seja eficazmente garantida182. Observá-lo,
ele mesmo, significará que o juiz se submete às normas do
processo pelas quais os atos das partes são garantidos, que o juiz
não pode se recusar ao cumprimento da norma que instituiu o
direito de igual participação das partes, em simétrica paridade.
A necessidade da observância do contraditório também na
execução forçada é ressaltada por SÉRGIO LA CHINA, que se
preocupa em apontar as normas do Direito italiano e examinar
os princípios que visam a impedir a emanação do provimento
in au d ita altera p arte.
O princípio do contraditório, tecnicamente considerado,
segundo expõe, se articula em dois tempos essenciais: in form a-
zione, reazion e; a primeira, sempre necessária, e a segunda,
sendo eventual, devendo ser necessariamente garantida na pos­
sibilidade de sua manifestação. 183
O juiz tem o dever de informar e de garantir que a informa­
ção seja dada, para que a parte, querendo, possa intervir. E
quando se diz querendo, pretende-se realçar que a parte jamais
poderia ser obrigada a vir praticar os atos processuais que lhe
são destinados, podendo optar por suportar os eventuais ônus
de sua omissão. Não se pode perder de vista que o contraditório
é a garantia, a possibilidade assegurada da participação das par­
tes em simétrica paridade, e uma garantia, considerada do ângu­
lo do Estado, é um dever, mas do ângulo do jurisdicionado

182 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - A garantia do contraditório na


atividade de instrução - in Temas de Direito Processual: terceira série, São
Paulo: Saraiva, 1984, pp. 65/77.
183 Cf. SÉRGIO LA CHINA, UEsecuzione Forzata e Le Disposizioni Generali
d e l Códice d i Procedura Civile, Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1970, pp.
391/402, v. especialmente p. 394.
jamais pode ser identificada a uma coação, porque sempre será
proteção assegurada pelo Direito.
A idéia da participação, como elemento integrante do con­
traditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desen­
volveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera partici­
pação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo.
Ò contraditório é a garantia da participação das partes, em simé­
trica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o
jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas,
são elas os "interessados e os contra-interessados" na expressão
de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo,
são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos
sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingin­
do a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo impe­
rativamente em seu patrimônio.
O contraditório não é o "dizer" e o "contradizer" sobre
matéria controvertida, não é a discussão que se trava no proces­
so sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se
desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteú­
do do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível.
O contraditório é a igualdade de oportunidade no proces-
so, é a igual oportunidade^de igual tratamento, que se funda na
liberdade de todos perante a lei.
E essa igualdade de oportunidade que compõe a essência
do contraditório enquanto garantia de simétrica paridãdê dê
participação no processo. ~ ~ ’ -----
As várias espécies de processo não se regem por normas,
que prevêem atos e posições subjetivas, iguais "em conteúdo e
número", como diz FAZZALARI, normas qualitativa e quantitati­
vamente iguais. Há processos mais extensos e processos mais
sumários. Mas o contraditório será sempre o mesmo, enquanto
igualdade de oportunidades, ou garantia de participação simetri­
camente igual.184 "

184 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 85.

127
A essência do contraditório, que é a igualdade simétrica de
oportunidade dos participantes que sofrerão os efeitos do ato
final, do provimento, a igualdade de oportunidade de "dizer e
contradizer", não se confunde com o seu objeto, que se constitui
das questões que se suscitam sobre os atos processuais. E essas
questões devem ser distinguidas da q u a estio , no específico sen­
tido de res d u bia, que nem sempre se torna questão controversa.
O objeto do contraditório, como elucida FAZZALARI, é
constituído das questões relativas aos atos processuais que com­
põem a própria atividade processual. Sobre a admissibilidade
desses atos, no sentido de que sejam lícitos ou devidos, vale
dizer, de que os sujeitos do processo tenham a faculdade, o
poder ou o dever de praticá-los, se tais atos são pertinentes ou
úteis, formam-se as questões. São questões que incidem sobre os
atos dos sujeitos do processo.
A q u a estio ,185 no sentido próprio de qu esito, de res d u ­
b i a ,18<5 não se identifica com as questões objeto do contraditório,
porque o seu conteúdo incide sobre os requisitos legais do
próprio ato, e não sobre a admissibilidade do ato (no sentido
exposto, de que o referido ato constitui uma faculdade, um
poder ou um dever do sujeito do processo), ou sobre sua opor­
tunidade.
A qu aestio, no sentido de res d u bia, pode ou não compare­
cer no processo como objeto do contraditório, pois nem sempre
o contraditório se fixa sobre ela.
A sua solução pode resultar do exame dos requisitos legais
do ato pelo próprio sujeito que dele seja titular, que faz o prévio
controle dos pressupostos legais de sua existência e subsistência
jurídica. E, uma vez resolvida, pode ocorrer que a qu aestio
sequer seja suscitada no processo. Pode ocorrer, ainda, que ela
seja levantada e que seja resolvida sem divergências. Mas, pode

185 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho,


Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda, 1987, 2a ed., p. 55.

186 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 86.

128
ocorrer a terceira hipótese, que é a da solução disputada, que é a
da controvérsia sobre a solução juridicamente correta para resol­
ver a res d u b ia . Nesse caso, em razão da disputa, da controvérsia,
a q u a e s tio passa a ser questão controvertida, e, nesse caso, sobre
ela instala-se o contraditório, como o "dizer e contradizer". FAZ­
ZALARI adverte sobre a sinonímia imprópria que se estabelece
entre "questão e questão controvertida", porque a questão, no
sentido próprio de res d u bia, não é necessariamente controver­
tida. É a manifestação do contraditório em torno dela que faz
-com que o uso das duas expressões questão e questão controver­
sa seja, com certa freqüência, indiferenciado, e como a questão
controvertida é a mais freqüente nos processos que concreta-
mente se desenvolvem, a idéia de contraditório surge impregna­
da do sentido de "dizer e contradizer".187

6.5. CONDIÇÕES E RESULTADOS DA CARACTERIZAÇÃO DO


CONTRADITÓRIO

O contraditório, como garantia de participação paritária,


em simétrica igualdade, das pessoas a que se destina o provimen­
to, no processo, supõe, naturalmente, mais de um sujeito, na
fase preparatória do ato final.
A doutrina, utilizando os conceitos tradicionais, tem tido difi­
culdades para caracterizar a natureza do processo penal, levantan­
do até mesmo questões paradoxais, como as postas por CARNE-
LUTT1, de que não é ele um processo "de partes" e de que a
jurisdição é u n a p o testa d qu ep erten ece a lju e z y no a lE s ta d o .188
Essa dificuldade desaparece com o conceito atual do con­
traditório. No processo penal, os interessados no ato final são o

187 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 85/86.

188 Cf. CARNELUTTI - Derecho Procesal Civily Penal, Trad. de Santiago Sentis
Meleno, Buenos Aires: Ediciories ju ríd ica s Europa-América, 1971, vol. I, p.
70 e vol. II p. 63.

129
acusado e o Estado, que atua como parte, através do Ministério
Público. Entre eles o contraditório se desenvolve. As questões
suscitadas em torno do argumento de que o Estado é também o
autor do ato final resolvem-se pela essência do contraditório.
Essa essência exige, como diz FAZZALARI, que do processo parti­
cipem pelo menos dois sujeitos, um interessado e outro contra-
interessado, um dos quais receberá os efeitos favoráveis e o
outro os efeitos desfavoráveis do ato final. O autor do ato final
pode ser um dos contraditores, mas o que o distingue, como
autor do ato e como contraditor, é a sua posição, nessa qualida­
de, de simétrica paridade em relação ao outro, ou aos outros
contraditores!89 A dupla atividade do Estado, como parte, atra­
vés do Ministério Público e como poder, que atua pelo órgão
jurisdicional, não prejudica o processo se nele há a gaxantia do
contraditório, e é exatamente a presença do contraditório, no
processo penal, que necessariamente o caracteriza como proces­
so, que faz dele um procedimento realizado em contraditório
entre as partes.
Outro tema que se põe à reflexão, à luz do conceito do
contraditório, é o da caracterização do processo de execução.
FAZZALARI faz ressalvas quanto a ele, porque nele não vislumbra
o contraditório. Entretanto, mesmo considerando-o como um
procedimento sem contraditório, entende que sua estrutura le­
gal é disposta para comportar um verdadeiro p rocesso!90
No ordenamento jurídico brasileiro, não pode subsistir dú­
vida de que o processo de execução é processo, em toda a
extensão desse termo, e não porque haja nele manifestação do
poder jurisdicional. O poder jurisdicional se manifesta em "juris­
dição contenciosa" e em "jurisdição voluntária". O que torna o
processo de execução um verdadeiro processo é a presença do
contraditório, e este emerge de várias questões que incidem

189 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 83/84.


190 Cf. FAZZALARI, op. cit., p, 98.

130
sobre a faculdade, o poder ou o dever de praticar um ato, sua
oportunidade e utilidade no processo. Surge, igualmente, a res
d u b ia sobre a subsistência de atos que, não raro, transformam-se
em questão controvertida.
CÂNDIDO R. DINAMARCO demonstra, em outros termos, a
presença da controvérsia e do contraditório na execução, quan­
do, conforme diz: "O juiz é seguidamente chamado, na realidade,
a proferir juízos de valor no processo de execução, seja acerca
dos pressupostos processuais, condições da ação ou dos pres­
supostos específicos dos diversos atos levados ou a levar a efei­
to."191 Em sua exposição, fornece vários exemplos em que ques­
tões são resolvidas, e ressalta que a preparação do ato final da
execução é feita com a garantia do contraditório.
‘ * -. O processo é o procedimento que se desenvolve em contra-
ditório entre os interessados, na fase de preparação do ato final
I e entre o ato inicial do procedimento de execução até o ato final,
i aquele provimento pelo qual ela é julgada extinta, está presente
o contraditório, como possibilidade de participação simetrica­
mente igual dos destinatários do ato de caráter imperativo que
esgota o procedimento. E claro que o provimento, no processo
de conhecimento, tem conteúdo distinto do ato final da execu­
ção e é mesmo pressuposto substancial desta. Mas é também
claro que o ato final da execução se caracteriza como provimen­
to, porque incide imperativamente sobre a situação jurídica das
partes, produzindo também efeitos sobre o seu universum ius.
Como procedimento realizado em contraditório, o proces­
so caracteriza-se por ser uma atividade cuja estrutura normativa
(organizada por uma forma especial de conexão das normas e
dos atos por elas disciplinados) exige que, na fase que precede o
provimento, o ato final de caráter imperativo, seja garantida a
participação daqueles que são os destinatários de seus efeitos,
em contraditório, ou seja, em simétrica igualdade de oportuni­

191 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2a ed., rev. e ampl. - São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 107.

131
dades, e, pelo "dizer e contradizer", que resulta da controvérsia
sobre os atos, seja-lhes assegurado o exercício do mesmo contro­
le sobre a atividade processual.
A caracterização do processo como procedimento realizado
em contraditório entre as partes não é compatível com o concei­
to de processo como relação jurídica!92 Ressaltou-se, neste capí­
tulo, o quanto foi possível, a idéia de contraditório como d ireito
de participação, o conceito renovado de contraditório como
g a r a n tia de participação em simétrica paridade, o contraditório
c o m o o p ortu n id ad e d e p a r tic ip a ç ã o , como direito, hoje revesti­
do da especial proteção constitucional. O conceito de relação
jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de
supra e infra-ordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma
imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamen-
te oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição.
Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de
simétrica igualdade de participação no processo, como conciliá-
lo com a categoria da relação jurídica? Os conceitos de garantia e
de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O
processo como relação jurídica e como procedimento realizado
em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo
quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita
sua unificação conceituai.

192 Em sentido contrário v. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2~ ed.,


rev. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, pp. 96/103.
Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2 a ed. - São Paulo.- Editora
Revista dos Tribunais, 1987, pp. 64/72.

132
CAPÍTULO VII

A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO

7.1. A AÇÃO: RESPOSTA DA CIÊNCIA AO PROBLEMA DE


UMA ÉPOCA

O trabalho de investigação científica deve sempre relembrar


que as teorias não se constroem no vazio. Elas aparecem sempre
para dar, ou pelo menos para buscar, respostas adequadas aos
problemas de cada época.
Não foi por acaso que a polêmica sobre a natureza jurídica
do direito de ação partiria da Alemanha, e dali se desenvolveria
para dar início à construção da ciência do Direito Processual
Civil, que tem uma data especial — o 03 de fevereiro de 1903, um
local especial — a Faculdade de Direito de Bolonha, um nome
especial — GIUSEPPE CHIOVENDA, e, também, um documento
especial: o texto da conferência intitulada L'azione n el sistem a
d ei diritti.
A polêmica entre,WINDSCHEID e MUTHER representou a
contraposição de duas posturas teóricas, que a Alemanha pan-
dectista, na época, comportava. O movimento pandectista revi­
gorava e atualizava o Direito Romano, com base no último Direi­
to das Pandectas de Justiniano, e deixou ilustres nomes na histó­

133
ria que precedeu à codificação do Direito alemão: PUCHTA,
BRINZ, ERNST BEKKER, REGELSBERGER, ARNDTS,' DERNBURG,
nomes a que se deveu sua sistematização, GERBER e LABAND, e
nomes que ficaram definitivamente inscritos nos temas gerais da
Ciência do Direito, um precursor; VON SAVIGNY, o grande divul­
gador BERNARD WINDSCHEID e um transformador, RUDOLF
VONJHERING193.
No Direito Romano, a partir do século II a.C. antigas legis
actiones, reservadas à tutela do direito subjetivo, são substituí­
das pelo processo formulário, o processo p e r fo rm u la s, em que
um documento escrito "fixa o ponto litigioso” e ”se outorga ao
juiz popular poder para condenar ou absolver o réu, conforme
fique, ou não, provada a pretensão do autor"194. Ao lado do
processo formulário, o Direito Romano conheceu o processo
extraordinário', extra ordin em , a princípio reservado para ques­
tões administrativas e policiais, mas estendido às questões civis,
e, a partir do século III da era cristã, já utilizado amplamente em
substituição ao processo formulário, pela sua celeridade e pela
sua simplificação195.
Na Alemanha, adotavam-se duas terminologias para a tutela,
dos direitos subjetivos, a actio (que rememorava o direito de o

193 Cf. FRANZ WIEACKER - "Storia d el Diritto Privato M oderno con particola-
re riguardo alia Germania", volum e secondo, Traduzione italiana di
Umberto Santarelli (§§ 1-19, tomo I) e Sandro - A Fusco (§ 2 0 -fin e, tomo
II) M ilano: Giuffrè Editore, pp. 123/162. Recorde-se que WINDSCHEID foi
membro da primeira comissão preparatória do BGB, de 1880 a 1883.
Embora sua principal obra seja a Pandecta, de 1862, com a última edição
por ele revisada de 1891, sua obra "A ação do direito romano do ponto de
vista do direito civil", (L'actio d el diritto rom ano d a l ptm to d i vista d el
diritto civile, na tradução italiana da obra de WIEACKER) de 1856, 6
considerada como o marco da fundação científica do m oderno conceito de
direito subjetivo. Cf. WIEACKER, op. cit., p.145.
194 Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - Direito Romano, vol I, 4a ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1978, pp. 282/283, v. também para o processo formulá­
rio, pp. 261/327.

195 Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, op. cit., pp. 329/350.

134
particular pedir ao magistrado a fórmula em que a proteção
estava condensada, e esse direito ao formulário era a actio) e a
Klage, ou K lagerecbt — O direito de demanda, de querela, de
queixa. A actio, que WINDSCHEID quis substituir por pretensão
(Anspructí) significava o direito de se exigir de alguém uma ação
ou uma omissão. A K lage não era essa pretensão, mas o direito
de ter a tutela jurisdicional do Estado, assim, a a c tio era dirigida
contra o obrigado, e a. K lage, contra o Estado196.
Compreende-se por que a discussão doutrinária durou tan­
to tempo, pois, embora diferentes, as bases das duas concepções
fundavam-se em um direito que os juristas alemães atualizavam
para fins práticos e que encontrou aplicação até 1900, quando se
completou a elaboração do BGB, para o qual WINDSCHEID
contribuiu oficialmente, integrando a primeira comissão que se
dedicara ao projeto.
Um segundo ponto que deve ser ressaltado é o de que o
Direito Processual Civil não se desenvolveu à margem dos pró­
prios sistemas jurídicos positivos, e sim como parte deles, e, por
isso, quando se compara, por exemplo, o direito de ação, no
Brasil, de 1891 a 1934, de 1934 a 1937, de 1937 a 1946, de 1946
a 1967, de 1967 a 1969, de 1969 a 1988 e o direito de ação no
Brasil a partir de 05 de outubro de 1988, é claro que haveria
diferença sobre o que poderia ser dito sobre ele197. A análise de

196 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggi d i Diritto Processuale Civile (1900-


1930) Nuova Edizione Considerevolm ente A um entata d ei 'Saggi’ e dei
'Nuovi Saggi’, volum e prim o, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930,
pp. 3/99- Para uma conexão entre o plano histórico e a teoria do Direito v.
WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA, Introdução ao Direito (Filosofia,
História e Ciência do Direito), vol. II, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1968, pp. 902/903; ENRIQUE AFTALIÓN, FERNANDO GARCIA
OLANO e JOSÉ VILANOVA t- Introducción al Derecho, Buenos Aires: La
Ley, 1967, 8a ed., pp.759/762.

197 O "direito de ação" foi incluído entre os direitos constitucionalmente


garantidos, no Brasil, na Constituição de 18 de setembro de 1946, art. 141,
§ 4 °: "A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer
lesão de direito individual". Nesses mesmos termos, foi acolhido no art.
150, § 4~ da Constituição de 2 4 de janeiro de 1967. Na Emenda Constitu-

135
doutrinas históricas deve comportar, portanto, a relatividade
histórica, caso contrário corre-se o risco de se ser absolutamente
impertinente nas possíveis conclusões que delas se tente extrair,
com a certeza de se ser extremamente injusto com os grandes
passos dados na obra comum de construção do conhecimento.
As teorias sobre o direito de ação fizeram dela o centro de
interesse do Direito Processual Civil. Talvez seja o tema mais
discutido nesse ramo do Direito, e, com apoio em CELSO BARBI,
pode-se afirmar que "o conceito de ação talvez seja o mais polê­
mico entre todos os do Direito Processual"198.
A importância histórica que o conceito de ação teve no
desenvolvimento da investigação e da construção científica do
Direito'Processual Civil certamente justificou esse imensurável
interesse por ele. O lugar ocupado pelo direito de ação, conside-

cional n2 1 de 17 de outubro de 1969, a redação sofreu alterações, no art.


153, § 4~: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário
qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser
condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde
que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento
e oitenta dias para a decisão sobre o pedido". Na Constituição 05 de
outubro de 1988, foi expresso em fórmula lapidar, de extrema felicidade;
art. 5~, item XXXV: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito". Nas Constituições anteriores, não há dispositivo
análogo, nas declarações de direitos. A de 1937, no art. 122, item 7, inclui
entre os direitos e garantias individuais, em fórmula genérica, "o direito de
representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou
do interesse geral". A Constituição de 1934 prevê, no art. 113, item 10, da
declaração de direitos, o direito de representação garantido "a quem quer
que seja". A Constituição de 1891, nos direitos declarados no art. 72, não
contém disposição análoga. A Constituição de 1824, no art. 179, item XXX,
dispõe sobre o direito de representação e petição, perante o Poder Legisla­
tivo e Executivo, e em bora contenha disposições da maior atualidade sobre
o Poder Judiciário (art. 179, XII) não se refere ao direito de ação em geral.
Há, sim, nessas Constituições, as garantias criminais, que, aliás, juntamente
com os direitos políticos e as liberdades individuais, foram as primeiras
que compareceram nas Declarações de Direito que tiveram repercussão
universal (a mais importante delas, historicamente, a de 1789, na França).

198 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI - Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nc
5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 16.

136
rado, ao lado da jurisdição e do processo, como elemento funda­
mental na estrutura científica do Direito Processual Civil199, é,
ainda, tão destacado como o foi (embora não se tenha certeza de
que o verbo possa ser usado corretamente no passado) o do
direito subjetivo, no Direito Civil.
As teorias sobre o direito de ação, construídas sobre o
conceito de relação jurídica, não podiam deixar de vislumbrá-lo
como um direito subjetivo. E sobre a espécie de direito subjetivo
que seria, no amplo quadro da classificação que cresceu à medi­
da que o tema se desenvolvia, formularam-se as propostas dou­
trinárias. A partir da polêmica entre WINDSCHEID e MUTHER,
com seus desdobramentos, surgia a concepção de ação como um
direito subjetivo público oponível ao Estado, que assumia o
dever, no pólo passivo de uma relação jurídica, de prestar a
tutela jurídica, e a conquista da noção de "prestação" jurisdicio­
nal se fez básica em vários conceitos, que encerram variações
sobre o direito concreto ou abstrato correlato dessa "prestação".
CHIOVENDA sempre merecerá destaque especial na história do
Direito Processual Civil; com ele, firmou-se a concepção do direi­
to de ação como direito subjetivo de natureza potestativa e do
processo como relação jurídica e como instrumento de atuação
da lei200.
À importância que CHIOVENDA teve no desenvolvimento
do Direito Processual Civil pode-se comparar a importância que
teve ENRICO TULLIO LIEBMAN, no desenvolvimento do Direito
Processual Civil no Brasil. O realce que lhe é devido não se liga
apenas a seu magistério na Universidade de São Paulo, que seus
discípulos lembram com justo orgulho e especial veneração201

199 Cf. J. RAMIRO PODETTI - Teoria e Técnica d el Processo civil Y Trilogia


Estructural d e la Ciência d el Processo Civil, Buenos Aires: EDIAR - Soc.
Anón. Editores, 1963, pp. 335/415.
2 00 Cf. CHIOVENDA. Saggi di Diritto Processitale Civile, op. cit., pp. 18/26,
227/238.

201 Cf. ENRICO TULLIO LIEBMAN, Manual de Direito Processual Civil, I, Tra­
dução e notas de CÂNDIDO R. DINAMARCO, Rio de Janeiro: Forense,

137
pela figura do Mestre, mediante o qual influenciou profunda­
mente a formação de brilhantes processualistas, mas também às
possíveis marcas de várias de suas teses no próprio Direito posi­
tivo, através do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que
traz a chancela do Congresso Nacional, sob a exposição de moti­
vos de um de seus discípulos, o Ministro da Justiça ALFREDO
BUZAID.
LIEBMAN distingue o "poder de agir em juízo", "garantia
constitucionalmente instituída", "reflexo ex p a r te su biecti da ins­
tituição dos tribunais pelo Estado", do direito de ação, "direito
subjetivo sobre o qual está construído todo o sistema do proces­
so", delineado no art. 24 da Constituição italiana, e caracterizado
na norma infra-constitucional. Do art. 24 da Constituição italia­
na, extrai a "legitimação para agir”, referindo-o à atribuição da
tutela dos própVios direitos e interesses legítimos, e o "interesse
de agir". "Como", segundo diz, "o direito de agir é concedido
para a tutela de um direito ou interesse legítimo, é claro que
existe apenas quando há necessidade dessa tutela, ou seja, quan­
do o direito ou o interesse legítimo não foi satisfeito como era
devido, ou quando foi contestado, reduzido à incerteza ou grave­
mente ameaçado202. Nos termos do art. 24 da Constituição (ita­
liana), dentre os que podem propor uma demanda encontram-se
os "que são titulares de um verdadeiro direito que, com referên­
cia a uma situação determinada e concreta, visam a obter um

1984, v. "Palavras do Tradutor". V. CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A Form ação


do Moderno Processo Civil Brasileiro (Uma Homenagem a Enrico Tullio
Liebman)", conferência proferida quando LIEBMAN recebeu a Comenda
da Ordem do Cruzeiro do Sul in Fundamentos do Processo Civil Moderno,
2~ ed., São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1987, pp.1/11. V. ainda ADA
PELLEGRINI GRINOVER — "O Magistério de Enrico Tullio Liebman no
Brasil", publicado originalmente na Rivista d i diritto processuale, 1986,
v.4, por ocasião do falecimento de Liebman, in Novas Tendências do
Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, pp.
439/442.

202 Cf. LIEBMAN, op. cit., p. 150.

138
pronunciamento sobre essa demanda, para que ela seja julgada
procedente ou improcedente, sendo com isso negada ou conce­
dida a tutela pedida. Esse direito é precisamente a ação, que tem
por garantia constitucional o genérico poder de agir, mas em si
mesma nada tem de genérico: ao contrário "guarda relação com
uma situação concreta, decorrente de uma alegada lesão a direi­
to ou interesse legítimo do seu titular(...)203".
A existência da ação, em LIEBMAN, tem como requisitos
duas condições: o interesse de agir e a legitimação, e esses
requisitos de existência são dados na norma processual204.
. O fato de que LIEBMAN haja admitido que o provimento
pode não ser favorável à pretensão do autor não é significativo,
pois lesão e ameaça a direitos se provam no processo, e o con­
teúdo da decisão final depende, e muito, do que está nos autos.
Entre a alegação de uma lesão de direito substancial e o conteú­
do de uma sentença há uma relação inegável, mas entre eles h á ,
também, inegavelmente, todo um desdobrar de atos processuais
que preparam as condições do advento da sentença, e também as
condições materiais para a formação de seu conteúdo.
Significativa, na verdade, é a cisão feita por LIEBMAN entre
"o direito de agir em juízo" e "o direito de ação” delineado no art.
24 da Constituição italiana, tendo sua existência caracterizada na
norma infra-constitucional em relação à situação jurídica concre­
ta: a ação separada do poder de agir, o corte entre o genérico
poder de agir como garantia constitucional e o direito de ação, a
"ação como direito ao processo e ao julgamento do mérito"205.
O art. 24 da Constituição italiana, que reserva o direito de
agir em juízo para a "tutela dos próprios direitos e interesses
legítimos"206 não teve paralelo fiel nas Constituições brasileiras.

203 Cf. LIEBMAN, op. cit., pp.150/151.

204 Cf. LIEBMAN, op. cit., pp. 153/159-


205 Cf. LIEBMAN, op. cit., p.151.
206 Cf. LIEBMAN, op. cit., p. 150.

139
Ressalte-se que, embora não haja interesse em se acompa­
nhar a evolução constitucional do direito de ação, mesmo por­
que isso exigiria um longo desvio do tema central desse trabalho,
não se pode deixar de pôr em evidência a premissa de que partia
LIEBMAN, por ele próprio explicitada, quando separou o "poder
de agir em juízo" e o "direito de ação", no plano constitucional e
no do direito infra-constitucional nele alicerçado.
As dificuldades dessa construção, que em LIEBMAN se vin­
culam ao problema das doutrinas erigidas sobre a ação, são
também enfrentadas por "FAZZALARI, que adota um esquema
conceituai distinto, em que repudia o processo como relação
jurídica e reelabora o conceito de "direito de ação". E chega a
elas, precisamente, quando, discorrendo sobre as medidas juris­
dicionais e o provimento, adverte que nem todo processo juris­
dicional se desenvolve por inteiro, e seu primeiro exemplo é o da
hipótese em que há recusa do provimento207. O tema fica ainda
mais claro quando, examinando os pressupostos processuais,
FAZZALARI demonstra que "nei p rocessi d i cognizione, il giudi-
ce, p r im a d e em ettere, e p e r emettere, il c o m a n d o in ch e la
sen ten za consiste, accerta, in ep ilog o d e l p rocesso, la sus-
sisten za d e l dovere, d e l diritto, d elia lesione; si d i contro, g lien e
risulti la insussistenza, egli non p o tr à em ettere la sen ten za e
d o v rà rigettare la d om an d o!'208.
A asserfiva de FAZZALARI é compreensível, assim como era
a de LIEBMAN, diante do art. 24 da Constituição Italiana, de
1947:

"Tutti p osson o ag ire in g iu d izio p e r la tu tela


d e i p ro p ri diritti e interessi legittimi.
La d ifesa è diritto in violabile in ogn i stato e
g r a d o d e l procedim ento.

2 07 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 99.


2 08 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 259-

140
Sono assicu rati a i non abbienti, con appositi
istituti, i m ezzi p e r agire e difen dersi d av an ti a d
ogn i giurisdizione.
L a legge determ in a le condizioni e i m o d ip e r la
rip arazion e degli errori giudiziari"209.

Há sensível diferença entre o texto da Constituição italiana e o


texto da Constituição brasileira. Por este, é logicamente possível
afirmar-se que o ato final do processo que seja uma decisão desfa­
vorável ao autor-recusa o provimento do pedido formulado sobre
o direito substancial, mas não o pedido da apreciação da lesão ou
ameaça a direito. Mesmo ocorrendo a hipótese em que não fique
acertada a existência do ilícito, se não há causa que impeça o
julgamento do mérito, a sentença desfavorável é emitida e o proces­
so, no sistema brasileiro, terá se realizado por inteiro.
Quando se sentem as insuficiências das doutrinas sobre o
direito de ação, talvez se esteja sentindo também a insuficiência
da apreensão da ordem jurídica vigente no contexto em que
foram formuladas. Não foi gratuitamente que os autores alemães
puderam fazer oposição a WINDSCHEID, mas, ao contrário, ti­
nham eles todo o suporte do Klagerecht.
CELSO BARBI anota sobre o direito de ação que "nenhuma
das teorias até hoje construídas está isenta de críticas ir­
respondíveis"210. A confirmação da assertiva está ria quase gene­
ralidade das obras de Processo Civil.
Não se pretende repassar essas críticas, mas em relação ao
Código de Processo Civil brasileiro, de 1973, pelo menos duas
considerações devem ser feitas, em torno da concepção do direi­
to de ação nele acolhida, e que já se fez objeto de polêmica.

209 Cf. O texto utilizado é da Costituzione, que integra a compilação Códice


Civile e di P rocedura Civile e Leggi Complementari, a cu ra d i F. CARNE-
LUTTI, W. BIGIAVI, A. CALTABIANO, Edizione Aggiornata a l 1 0 giugno
1980, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. A Milani, 1980.
210 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20.
As condições fixadas pelo art. 3a do Código "Para propor ou
contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade" —
"interesse" e "legitimidade" — são condições que só poderiam ser
apreciadas após a instalação do processo, e assim só podem se
tornar questões intraprocessuais. A instauração do processo não
depende delas, e nem mesmo podem elas existir antes do
processo.
O art. 267, item VI, permite a extinção do processo sem
julgamento do mérito "quando não concorrer qualquer das con­
dições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das
partes e o interesse processual".
Pelo confronto desse artigo com os arts. 890 a 900, 901 a
906, 914, 920 a 940, CELSO BARBI entende haver uma possível
contradição na linha do Código, que parecia haver adotado a
tese de LIEBMAN, e após parece se adaptar à concepção de
CHIOVENDA211. Mas, haverá mesmo tal adoção da tese de LIEB-
MAN ou de CHIOVENDA nessas disposições?
O Código do Processo Civil entrou em vigor sob a égide da
Emenda Constitucional n2 1, de 17 de outubro de 1969, que na
primeira parte do § 4-, do art. 153, dispunha: "A lei não poderá
excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de
direito individual".
O direito de submeter o ilícito, porque lesão a direito é
ilícito, à apreciação do Judiciário não se condicionou aos direi­
tos substanciais212.
Quando o item VI, do art. 267, do Código de Processo Civil,
fala em condições da ação, fala, conseqüentemente, em condi­

211 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20.


212 Sobre as dificuldades que decorrem do condicionamento do direito de
ação à existência do direito subjetivo, que levam à solução de que "não tem
ação quem não tem razão", cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI - Ação Declaratória
Principal e Incidente, 6 - ed. rev., aumentada e atual., de acordo com o
Código de Processo Civil de 1973 e legislação posterior, Rio de Janeiro:
Forense, 1987, pp. 60/65.

142
ções que, como se disse, só podem ser verificadas dentro do
processo.
Os procedimentos especiais dos arts. 914, 926, 934, reservam
determinadas ações a quem detém uma qualidade jurídica específi­
ca, um status decorrente de uma determinada situação jurídica.
Assim, também, os artigos que tratam da ação de consignação em
pagamento, da ação de depósito e das ações possessórias. Pelas
disposições desses artigos não se pode pré-definir a sentença, ou
seja, não há qualquer possibilidade de se afirmar de antemão que a
sentença será favorável ou desfavorável ao autor. A sentença deverá
ser preparada pelos atos do processo, e enquanto esses não se
cumprem, não se pode antecipar seu conteúdo.
Não parece, portanto, que possa ser evidenciada a marca de
LIEBMAN ou de CHIOVENDA em tais disposições, ou que se
possa, por elas, extrair contradições do Código.
Talvez haja chegado o tempo de se tentar visualizar o direi­
to de ação sob outros prismas, que permitam uma maior aproxi­
mação das novas conquistas da teoria do Direito e da realidade
do sistema jurídico, que tem a sua unidade e o seu fundamento
no sistema constitucional.

7.2. A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO

O px incípio nem o ju d e x sine actore, que é um princípio da


própria jurisdição, disciplinada de forma que o Estado responda
ao pedido para fazer cessar o ilícito, para promover a reparação
dos direitos lesados e prevenir a lesão de direitos ameaçados,
aplicando as medidas jurisdicionais previstas no ordenamento
jurídico, exige a iniciativa do sujeito que almeja a tutela jurisdí-
cional.
Sobre a natureza do ato inaugural do processo denominado
pela doutrina direito d e a ç ã o , travaram-se debates pelo decurso
deste século. O direito de ação encontrou, entretanto, o seu
momento de revisão em uma reelaboração conceituai mais ajus­

143
tada aos progressos verificados no quadro dos conceitos gerais
do Direito.
Lembrando a preleção de CHIOVENDA, L 'azione n el siste­
m a d e i diritti, de 1903, o estudo de LIEBMAN L ’az io n e n ella
teo ria d e l p rocesso civile, de 1950, e outros clássicos, FAZZALARI
registra que a relatividade do conceito de ação já se encontra em
CALAMANDREI, La relatività d e l con cetto d i azionne, de 1939,
em ORESTANO, Azione in generale, verbete da E n ciclop éd ia d e l
diritto, de 1959, e prevê a aproximação da época em que se
reconheça não apenas a historicidade das doutrinas, mas a pró­
pria historicidade do problema da ação e da ciência jurídica que
o formulou213.
FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando co­
mo critério a legitimação para agir, que não pode ser concebida
como atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os
sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a
legitimação para agir não se poderia compreender o fundamento
jurídico de seus atos.
Entretanto, a legitimação para agir, trabalhada pelo Direito
Processual Civil, é espécie do gênero legitimação, que é um
conceito geral do Direito, e é por esta base que desenvolve o
argumento, no qual procede ao reexame da ação.
A legitimação em gênero é contemplada por FAZZALARI sob
um duplo aspecto: o da "situação legitimante" e o da "situação
legitimada": "Chiam iam o situazione legittimante ilp u n to d i ag-
g a n c io d e lia legittim azione a d agire, fu o r d i m etafora d a situ a­
z io n e in b a s e a lia qu ale si d eterm in a quaV è il soggeto che, in

213 Cf. FAZZALARI - "Di recente, ORESTANO ha, anzi, aperto l ’affascinante
prospettiva d i liconoscere, non solo e n o n tanto la storicità delle varie
costruzioni proposte, m a a n che la storicità dello stesso p ro b lem a
d e li’azione e delia scienza giuridica che lo ha posto". Cf. op. cit., p.403-
Para FAZZALARI, o "conceito de ação" ainda é útil ("ancora utile, m a d a
elaborare e collocare a l suo posto"), enquanto que a idéia de "relação
jurídica processual" deve ser de todo repudiada ("... orm ai d a ripudiare
d e l tutto'"). Cf. op. cit., p. 99-

144
concreto, p u ò e d eve com piere un certo atto, e situazione legitti-
mata il potere, a la fa c o ltà , o il devere — o una serie d e i
m edesim i-che, d i conseguenza, viene a spettare a l soggeto indi-
vidu ato, v a i dire il contenuto d e lia legittimazione, ciò in cui
e ssa consiste"214.
Não é demais recordar que, na evolução do conceito de
situação jurídica, a situação jurídica abstrata, de BONNECASE,
foi superada e que a situação jurídica, seja objetiva ou subjetiva,
para se constituir, dependerá sempre do cumprimento ou da
ocorrência de um ato jurídico ou de um fato jurídico.
A situaçãòlegitimante é uma situação constituída, perante a
qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao
sujeito, e, conforme considerada por FAZZALARI, permite a indi­
cação de quem pode atuar como sujeito em um processo concre-
tamente considerado, quem deterá a legitimação para agir em
um dado processo215.
Tem-se argumentado que a legitimatio... sustenta-se na per­
sonalidade, o "atributo", ou em linguagem mais técnica, a quali­
dade pela qual se adquire o status de sujeito, a titularidade de
direitos e deveres. Esse argumento é, contudo, absolutamente
impróprio e insuficiente, pois a legitimação se dá sempre para
determinado processo, para a participação em uma série de

214 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289-

215 CÂNDIDO R. DINAMARCO utiliza a categoria de situação jurídica para


caracterizar a "qualidade de parte", mas em linha diversa da de FAZZALARI,
porque insere-a na categoria da relação jurídica processual: "Consiste esta,
com o se vê, na titularidade das situações jurídicas ativas e passivas que
com põem a relação jurídica processual (faculdades, poderes, deveres,
ônus, sujeição). Cf. Litisconsórcio (um estudo sobre o litisconsórcio c o ­
mum, unitário, necessário, facultativo): doutrina e jurisprudência - 2a ed.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, p.7. Bem cairia, aqui, a afirma­
ção que FAZZALARI faz a respeito de CAIANIELLO que, embora aderindo à
nova concepção, continua a im piegare anche il vecchio chichè d el rappor-
to p rocessuale logo senza adesione convinta". (Cf. op. cit., p. 99, rodapé
15).

145
atividades preparatórias de um determinado provimento, e de
uma determinada medida jurisdicional.
O critério para a determinação da legitimação para agir, no
processo jurisdicional civil (podendo ser estendido a qualquer
processo), é referido por FAZZALARI ao provimento, e, em con- ,
seqüência, à medida jurisdicional dele emanada. O provimento
será o ponto referencial para que, com base na situação legiti-
mante, se identifique quem é o sujeito, dentre os protagonistas \
do processo — as partes, (autor, réu, intervenientes), o juiz, seus j
auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exigir —, q u e ;
pode ou deve cumprir um determinado ato processual.
Em relação às partes, os efeitos do provimento determinam i
a legitimação para agir porque esses efeitos incidirão no patri-1
mônio (universum ius) dos sujeitos que dele são os destinatá- >
rios, e o princípio do contraditório exige216 que aqueles que
sofrerão tais efeitos tenham a oportunidade de participar da fase
de sua formação. Por isso, diz FAZZALARI, enquanto são legiti­
mados passivos (perante o provimento), tais sujeitos são legiti­
mados a "dizer e contradizer", são "legitimados ao processo"217.
Anote-se que a própria concepção de parte já tem seu ponto 't
focal de definição deslocado do pedido (parte não é mais apenas
"aquele que pede...") para o destinatário do provimento, e, por
isso, é sujeito do processo, com a garantia de participação nos
atos que o preparam218. 1

216 Exigência hoje posta em princípio constitucional no ordenamento jurídico


brasileiro - Constituição da República, art. 5~, LIV e LV.

217 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289-

218 Sobre a correlação do conceito de parte com o provimento já se lê em


PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA: "O conceito definitivo, preciso, de
parte só nô-lo pode dar a sentença com o ato final e de decisão do proces­
so. Pode-se conceituar a Parte, no processo, todo aquele que, neces­
sariamente, como destinatário ou com o legitimado, com põe o pólo pas­
sivo da sentença". Cf. As partes no Processo Civil in Revista Brasileira de
Direito Processual, Uberaba (MG), vol. 12, 4~ trim. 1977, p p.109/121,
especialmente p. 117.

146
A situação legitimante da parte é constituída por dois ele­
mentos logicamente encadeados: o da medida jurisdicional re­
querida, e o dos sujeitos que serão por ela alcançados, que
sofrerão seus efeitos. São eles que permitem a individualização
de quem pode estar em juízo para participar do processo que se
desenvolve em contraditório.
Quanto à medida jurisdicional, seu estudo só pode ter por
base o Direito positivo, pois cada sistema jurídico especifica
aquelas que nele são possíveis, e cada espécie de processo con­
templa suas medidas. No processo jurisdicional civil, a medida
jurisdicional que resulta da sentença condenatória pode se cons­
tituir, por exemplo, em um ato de eventual execução forçada que
incidirá no patrimônio das partes, beneficiando o autor e atin­
gindo desfavoravelmente a esfera patrimonial do devedor ina­
dimplente, em um ato de execução forçada que incidirá direta­
mente sobre a disponibilidade física de um bem, e um ato que
impõe a uma das partes um determinado comportamento como
conteúdo de uma conduta. Pode-se, também, transferir os exem­
plos para o processo jurisdicional trabalhista, em que as repara­
ções de direitos lesados comportam as medidas indenizatórias, a
imissão na posse, a reintegração do empregado no serviço, a
assinatura de uma Carteira de Trabalho. Em qualquer das hipóte­
ses, o patrimônio das partes, como universum ius, é alcançado
pelo provimento que, sendo favorável ao autor, impõe a medida
jurisdicional requerida.
Em caso de um provimento desfavorável ao autor, obvia­
mente a medida por ele requerida não será imposta, mas o
provimento, como ato final, de caráter imperativo, de qualquer
modo alcança a esfera patrimonial das partes, acertando que, se
não ocorreu a lesão, o universum ius não pode sofrer perturba­
ção.
Na análise feita por FAZZALARI, no caso concreto, pode
ocorrer que o processo, ao invés de se concluir por um provi­
mento, termine com um pronunciamento "de recusa", ou que a
seqüência de atos fique a meio caminho porque a parte renuncia

147
a seu prosseguimento (dentro das hipóteses permitidas na lei),
ou porque o juiz se declara incompetente. A autonomia do
processo se constata pelo seu resultado: o processo se desenvol­
ve embora não chegue à medida jurisdicional, mas se desenvol­
ve, mesmo para estabelecer se a medida jurisdicional deve ser,
no caso concreto, emitida ou recusada219.
Quanto às partes, perante a situação legitimante, que permi­
te a indicação de quem pode estar em juízo, para, em determina­
do processo, participar, em contraditório, da formação do provi­
mento, através da participação no iter procedimental, deve ser
considerado que, além do autor e do réu, há os litisconsortes, e
os intervenientes220. E, como parte é aquele a quem se destinam
os efeitos do provimento, aquele que suportará ou se beneficiará
de tais efeitos em seu universum ius, é oportuno que se façam
duas considerações em torno do Direito brasileiro, sobre a ques­
tão da legitimação: a primeira, sobre a questão do revel, no
Código de Processo Civil, de 1973, em conexão com a Constitui­
ção da República de 05 de outubro de 1988, e, a segunda, sobre
a "legitimação extraordinária", que começa a assumir uma impor­
tância crescente, não porque constitua inovação, mas pelos efei­
tos sociais de medidas jurisdicionais em processos recentemente
regulados.
O art. 322 do Código de Processo Civil, de 1973, — "Contra
o revel correrão os prazos independentemente de intimação.
Poderá ele, entretanto, intervir no processo em qualquer fase,
recebendo-o no estado em que se encontra" — deve ser conside­
rado revogado, porque se o contraditório era, anteriormente,
apenas um principio processual no Direito Processual Civil bra­
sileiro, pela Constituição de 1988 foi elevado a princípio consti­
tucional (art. 5°, LV da Constituição)221.

2 1 9 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 97 e s.


220 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - Da Denunciação da Lide, Rio de Janei­
ro: Ed. Forense, 2a ed., 1987.
221 Ressalte-se que o sistema jurídico brasileiro, nesse ponto, superou os

148
Pelo princípio da hierarquia das leis, o art. 322 do Código
de Processo Civil perde a eficácia, pois contraria o princípio
constitucional do contraditório. É possível que o réu não compa­
reça para se defender por uma infinidade de motivos diversifica­
dos, que absolutamente não interferem em seu direito de partici­
par da formação do provimento. Contudo, constitui enorme
incongruência afirmar-se que ele poderá intervir em qualquer
fase em que o processo se encontre, se se afirma, também e
conjuntamente, que os prazos correm para ele, independente­
mente de intimação. Sem se entrar na- questão “das regras ^da
contagem do prazo, já se percebe que seria verdadeiramente
incompreensível a garantia de participação ao revel, em fases
posteriores àquela em que se caracterizou o efeito da revelia, se
não é ele cientificado dos atos que lhe permitam a participação.
O art. 322 do Código de Processo Civil contraria o princípio do
contraditório e é incompatível com a norma constitucional, pelo
que só pode se considerar revogado.
Quanto à "legitimação extraordinária", é necessário considerar
que a legitimação para agir, enquanto posição subjetiva decorrente
da situação legitimante, da qualidade para ser parte, pode ser
objeto de disciplina legal que, em "caráter extraordinário", destina
os efeitos do provimento a sujeitos que não participaram do
processo. Mas a "legitimação extraordinária" constitui exceção ao
princípio do contraditório, que exige que participem do iter que
leva à formação do provimento aqueles que são seus destinatários,
e, como se configura em exceção, só pode resultar da lei222.

sistemas que vinham dando tratamento mais avançado ao contraditório,


transformando-o em norma de Direito positivo, como o Código de Proces­
so da França, que, no art. 16, expressamente estipula que o juiz deve, ele
mesmo, observar e fazer observar o contraditório.

222 FAZZALARI alerta para a distinção entre legittim azione stra o rd in a ria e
substituição processual — cf. op. cit. pp. 317/320. A propósito da subs­
tituição processual no Direito brasileiro, v. HÉLIO TORNAGHI - Com en­
tários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, vol. I, pp. 9 8 /1 0 1 , 1974.

149
É interessante ressaltar que FAZZAIARI, tratando a questão
do ponto de vista do Direito italiano, faz ressalvas quanto à via da
Justiça civil, para a proteção dos interesses coletivos ou difusos.
Não se pode esquecer que o art. 24 da Constituição italiana, já
mencionado anteriormente, em sua primeira parte, reserva a
legitimação para agir em juízo a todos, "para a tutela de seus
direitos e interesses legítimos". A Constituição brasileira é visivel­
mente mais ampla, no item XXXV do art. 52, como já se exami­
nou, também, anteriormente. Por ele, não se poderá "excluir da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Os
direitos lesados ou ameaçados, objeto da proteção jurisdicional,
não são, a partir de 05 de outubro de 1988, apenas os direitos
individuais, e não apenas para direitos próprios se pode postular
a proteção jurisdicional.
Perante 1 norma constitucional, encontram, assim, explica­
ção lógica, as disposições do art. 103, itens I, II e III, §§ l 2 a 42,
da Lei n2 8.078, de 11 de setembro de 1990. Tais disposições não
importam em alteração do conceito de coisa julgada223, mas em
uma nova visão do conceito de parte, como aquele ou aqueles
que devem receber os efeitos do provimento ou da medida
jurisdicional por ele imposta. E evidente que a legitimação pre­
vista nos arts. 81 e 82, da referida lei, importa em representação,
quando os efeitos da sentença são destinados a se produzirem
no patrimônio dos representados.
A propósito, pode-se entender, também, logicamente, pelo

223 Cf. A respeito dos efeitos da sentença, disciplinados no Código de Defesa


do Consumidor, começam a despontar na doutrina brasileira construções
jurídicas sobre outros fundamentos. V. ADA PELLEGRINI GRINOVER —
"Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor” in Livro de
Estudos Jurídicos, n2 1, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2~
ed., 1991, pp. 381/406; PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO — A Coisa
Julgada nas Ações Coletivas, in Livro de Estudos Jurídicos, n2 1, Rio de
Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2~ ed., 1991, pp. 199/207; ADA
PELLEGRINI GRINOVER — A Class Actíon Brasileira, in Livro de Estudos
Jurídicos, vol. 2, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1991, pp.
22/28.

150
novo prisma em que se considera a legitimação para agir e a
situação legitimante de que decorre a qualificação jurídica de
"parte", a disposição do art. 13 do Código de Processo Civil
brasileiro, em sua exata extensão, quando contempla a incapaci­
dade "processual", além da irregularidade da representação.
As questões relacionadas com a ilegitimidade da parte, tam­
bém, como já se antecipou, são questões do processo, questões
que se suscitam, e que constituem o objeto do contraditório, no
iter processual. Sobre a ilegitimidade, diversas questões podem
ocorrer desde a questão que pode incidir sobre a oportunidade
do ato (a alegação da ilegitimidade), até a da preclusão, que se
pode constituir em simples questão objeto do contraditório, ou
em res d u b ia que se converte em questão controvertida.
Recuperando a exposição de FAZZALARI, deve-se, ainda,
registrar, perante a situação legitimante, a legitimação do juiz, e,
em conseqüência, a de seus auxiliares. Esta se extrai, também,
pelo critério do provimento requerido. O juiz deve controlar se
pode ser sujeito do processo, se pode desenvolver suas funções
de dirigir o iter que conduz ao ato final, ou seja, se pode cumprir
o ato de emanar o provimento, com a medida jurisdicional
requerida, verificando se ele se inclui, ou não, dentro de sua
jurisdição. O exame, a partir do provimento, deve dar relevo,
também, ao princípio inerente à jurisdição que exige que o juiz,
sendo autor do provimento, seja terceiro, em relação aos efeitos
que este irá produzir no universum ius das partes224. E claro que
a parcialidade ou a imparcialidade jamais poderá ser totalmente
controlada pela lei, mas a lei estabelece as condições objetivas
para que a imparcialidade possa ser esperada.
Como a situação legitimante fornece os critérios para se
identificar os sujeitos do processo, concretamente considerado,
pode-se compreender, logicamente, por que FAZZALARI repele,
por absolutamente imprópria, a afirmação de que o autor se
reveste da legitimação ativa e o réu da legitimação passiva, pois a

224 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 295/297.

151
legitimação para agir é de todos os protagonistas do processo e
é "sempre ativa". Somente em relação ao provimento pode-se
falar em legitimação passiva daqueles a quem vem imposto225.
A par da situação legitimante, há a "situação legitimada",
como desdobramento da legitimação, na construção doutrinária
de FAZZALARI.
Enquanto a situação legitimante é contemplada como aque­
la em presença da qual um poder, uma faculdade ou um dever
são conferidos ao sujeito, a situação legitimada consiste em uma
série de poderes, faculdades, deveres, que se põem como expec­
tativa para cada um dos sujeitos do processo220.
A legitimação para agir de cada um dos sujeitos do processo
tem como conteúdo uma série de atos, poderes, faculdades,
deveres. "Tale serie d i a tti costitu isce, in fatti, il con ten u to d e lia
d i lu i legittimazione ad agire, la situazione legittimata d i ciascu -
no"22].
É sobre a situação legitimada que será formulada a nova
concepção sobre a "ação".
O conceito de processo como procedimento realizado em
contraditório entre as partes permite que se deduza que os atos
dos sujeitos do processo, das partes, do juiz e dos auxiliares, são
mutuamente implicados, o que decorre da própria estrutura do
procedimento e da essência do contraditório.
Da situação legitimante dos sujeitos decorre uma série de
atos que, na ordem do processo, a lei processual impõe ou
permite a cada participante, e tais atos podem ser vistos do
ângulo da posição subjetiva de cada um, quando referidos à lei
que os valora, como poderes, deveres, faculdades. Dessa série de
poderes, faculdades e deveres, para o autor e para o réu, e para

225 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 300.


226 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402 (v. nota de rodapé n~ 7 nessa referida
página).

227 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402.

152
os intervenientes se delineia, então, uma "posição subjetiva com­
posta". Mas, para o juiz, como afirma FAZZALARI, si con figu ra
u n ’a ltretta lep o siz io n e, con sisten te n ella serie d ei d i lu i dove-
re228.
Conclui, assim, que: L a p o siz io n e com posita che f a cap o
a lia p a r te costitu isce V azione; q u ella che f a cap o a l g iu d ice (o
a d un su o a u siliare) costitu isce la fu n zion e229.
A construção é admiravelmente lógica e coerente. Para se
perceber o seu alcance é necessário recordar-se que a situação
. legitimada, em FAZZALARI, corresponde à situação jurídica sub­
jetiva, ou posição subjetiva, extraída da específica posição em
que se coloca o sujeito efri frente da norma, conceito geral do
Direito, aplicável à categoria de situação jurídica. É pela posição
subjetiva que o sujeito comparece como titular de um poder,
uma faculdade ou um dever. Os atos que são o conteúdo da
situação jurídica subjetiva não são atos isolados no processo,
mas constituem uma série, e se entrelaçam como pressupostos
da incidência de normas que disciplinam outros atos, até o ato
final do provimento, na estrutura do processo.
Ressalte-se, mais uma vez, dada a importância do tema, na
doutrina de FAZZALARI, que os poderes, faculdades e deveres
das partes não resultam de "relações jurídicas", mas constituem
os atos lícitos ou devidos que podem ser cumpridos no processo
— os poderes como atos que importam na declaração da vonta­
de, e as faculdades trazendo implícita a vontade como consciente
determinação para o ato. Os poderes, faculdades e deveres das
partes não lhes podem ser exigidos. Se a parte preferir não
cumprir tais atos pode optar por sofrer as eventuais conseqüên­
cias desfavoráveis que poderão resultar do não cumprimento.
Quanto ao juiz, seus atos não são valorados como poderes ou
faculdades, porque não lhe é dado deixar de cumpri-los. O juiz

228 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 402/403.


229 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 403.
o
3
3
não pode, como seus auxiliares não o podem, transformar deve­
3 res em ônus, preferindo suportar as conseqüências desfavorá­
3 veis, como é dado à parte. Ele tem o dever de cumprir os deveres
3 da jurisdição. E os deveres da jurisdição exigem que ele haja
dentro do processo, que decida nos limites do pedido, nos
3 limites do processo, e nos limites do Direito.
3 A construção de FAZZALARI sobre a ação, baseada em toda
3 a estrutura do processo como procedimento realizado em con­
traditório, supera as doutrinas clássicas, com suas dificuldades
3 não resolvidas230, da ação como um "direito potestativo" que, na
O concepção tradicional de direito subjetivo, esgota-se no cumpri­
3 mento de um único ato, e, além disto, nessa perspectiva, compa­
rece como "direito sobre a conduta alheia", concepção de há
O
muito superada. A alternativa encontrada pela doutrina, de con­
O ferir caráter "põlítico" ao conceito de ação, não resolvia o proble­
o ma, senão alijando-o do Direito, ou seja, o problema não era
o resolvido, mas excluído da cogitação jurídica.

o
o
o
o
o
o
o
3
O 230 É fácil perceber a razão pela qual pouco se falou neste tópico (7.2. A
Revisão do Conceito de Ação). O tradicional "direito de ação", com as
3 inúmeras teorias que procuram ou procuraram explicar sua natureza,
3 posto que ancora utile (ainda útil), tende fortemente a tornar-se peça de
museu jurídico. E isto porque a cada dia fica mais nítida a consciência de
3 que "ação" e "processo" são fenômenos interdependentes e essa só é
importante enquanto vista como um agir em relação aquele (estrutura que
3 se desenvolve em lace de atos praticados em decorrência de posições
subjetivas das partes).
3
3
3 154
3
3
CAPÍTULO VIII

A SITUAÇÃO DE DIREITO MATERIAL


E O PROCESSO

A concepção do processo como procedimento realizado em


contraditório entre as. partes é erigida sobre um sTstèma~ que se
apresenta com um rigor lógico que encontra pòücõs põntõs de
comparação. nadoutrina-doD ireito.
KELSEN legou à doutrina jurídica, também, um sistema
lógico de rara perfeição.
Entretanto, enquanto KELSEN concentrou o estudo da juri-
dicidade no ilícito, FAZZALARI trabalha exatamente em linha
contrária. O ilícito para ele não é o cânone de conduta. A condu­
ta é valorada pelo lícito, e o ordenamento jurídico é o complexo
de normas, de faculdades, de poderes, de deveres, o complexo
de licitudes. O ilícito nele comparece, mas como a conduta que
consiste na inobservância do dever. Mesmo quando trabalha a
norma penal, FAZZALARI demonstra que o cânone de conduta,
em relação à norma que define, por exemplo, o homicídio, é o
não matar, e a norma penal tem, para ele, o caráter de norma
processual, porque se dirige ao poder jurisdicional. É um argu­
mento, sem dúvida, correto, pois a quem, a não ser ao Estado,
pelo exercício da jurisdição, cumpriria a imposição da sanção?

155
Com essa observação preliminar, pode-se passar à relação
existente entre o processo e a situação substancial, que nada
mais é do que a situação de direito material que será discutida no
iter do processo, e decidida, no ato final, no provimento.
No processo civil, a situação jurídica de direito substancial,
ou situação jurídica de direito material, ou simplesmente situa­
ção substancial, é dada pela conexão entre a inobservância de
um dever jurídico, o ilícito, e o direito por ela lesado ou ameaça­
do. O direito, objeto da lesão ou ameaça, no processo civil, é um
direito subjetivo, mas não mais considerado na acepção tradicio­
nal, e sim no sentido, já exposto, de posição de vantagem de um
sujeito em relação a um bem. Essa posição subjetiva resulta ou
da norma que a confere a um sujeito ou do endereçamento, pela
norma, de obrigações (conteúdo de deveres) a outro ou outros
sujeitos, em determinadas situações jurídicas231, ou da conjuga­
ção das duas hipóteses.
A relação entre a situação jurídica de direito material e o
processo deve ser tratada com certo cuidado. Em uma primeira
aproximação, tende-se a pensar que ela é o pressuposto do
processo de conhecimento.
A confirmação ou a refutação de tal afirmação dependeria,
entretanto, do exame de cada ordenamento jurídico, que possui
as suas especificidades.
É interessante verificar, por exemplo, a mudança da concep­

231 FAZZALARI relaciona as possibilidades de se apreender o direito subjetivo,


nas várias espécies de sua manifestação, que se menciona, a seguir, mas
com a observação de que a expressão "direito realizado", por ele utilizada,
deve ser entendida no sentido de direito que se constitui para o titular, em
oposição a um direito abstratamente considerado: o direito realizado por
uma faculdade do titular; o direito realizado por um poder do titular
(classicamente dito direito potestativo); o direito realizado pela obrigação
de outro (o "direito de crédito"); o direito realizado pela faculdade do
titular e pelos deveres de todos os demais (o "direito absoluto"); - o direito
realizado somente pelo dever de todos (nesse critério estão os direitos da
personalidade e os direitos reais em que falta a faculdade, com o a servidão
negativa). Cf. op. cit., p. 264.

156
ção do direito de ação, na doutrina francesa, ante as novas
disposições dos arts. 30, 31 e 32, d o N ouveau C ode d eP rocéd u re
C ivile. E não deixa de ser surpreendente a constatação de que
esses artigos são reproduções textuais dos arts. 2-, 3a e 4- do
Decreto de 20 de julho de 1972, como expõem EMMANUEL
BLANC e J. VIATTE. Analisando-os, os dois processualistas fran­
ceses discorrem sobre a evolução das teorias da ação e mostram
que a assimilação da ação à realização de um direito subjetivo,
tradicionalmente partilhada pela doutrina clássica, foi abandona­
da. A ação, em princípio concebida comõ uriTtneio de éxêrcício
de um direito, est deven u e le d ro it d ’accès d ev an t la ju stic e en
vue d e lu i sou m ettre les p réten tion s les p lu s diverses"202.
No ordenamento jurídico italiano, FAZZALARI demonstra
que a situação substancial não é condição prévia para a instaura­
ção do processo jurisdicional civil, pois a lei processual requer a
exposição do pedido, mas não a exposição dos fatos e do direito,
como condição para o processo, podendo ela ser feita em fase
posterior à sua inauguração233.
No Brasil, a lei processual exige que a inicial contenha os
fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como o pedido
e suas especificações (Código de Processo Civil, art. 282, III e IV)
e situa a falta do pedido ou da causa de pedir dentre os elemen­
tos que caracterizam a inépcia da inicial, que é cau^sa de indeferi­
mento (Código de Processo Civil, art. 2 9 5 ,1, Parágrafo único, I).
Contudo, essa constatação ainda não basta para que se
considere a situação de direito material como pressuposto do
processo civil, no Direito brasileiro. A inicial inepta nem sempre
é indeferida de plano, o que não é raridade234. Ademais, o pró-

232 Cf. EMMANUEL BLANC-JEAN VIATTE - Nouveau Code de Procédure Civile


com m enté dans Vordre des articles, Paris: Librairie d u Jo u rn a l des Notai-
res et des Avocats, 1980, p. 45.

2 33 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 258.


234 ALCIDES DE MENDONÇA LIMA levanta as questões referentes à inicial
inepta na Justiça do Trabalho, em que a Reclamação se faz por petição ou
por termo, e o juiz despacha a inicial marcando audiência. Entende que, no

157
o
0
3
3 prío Código de Processo Civil admite essa hipótese, quando no
art. 301, III, prevê que o réu, em sua defesa, alegue, preliminar­
3
mente, a inépcia da inicial, e não limita a alegação da inépcia a
D qualquer uma das hipóteses possíveis, descritas nos itens do
3 parágrafo único do art. 295. Obviamente, a alegação de inépcia
da inicial já supõe o contraditório, e, portanto, o processo em
O franco movimento.
O Pelo Código de Processo Civil brasileiro, está visto que a
O situação de direito substancial não constitui pressuposto para a

o instalação do processo.
A questão deve ser examinada, também, pelo prisma consti­
3 tucional, e, por este, não se pode subtrair da apreciação do
O Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 52, XXXV, da
Constituição). Não é, portanto, o ilícito, o pressuposto do
O
processo, ou o direito lesado ou ameaçado.
o A apreciação do Judiciário confirmará ou negará a existên­
o cia do direito lesado ou ameaçado, mas o direito de acesso ao
Judiciário está garantido, independentemente da prévia consta­
o tação da existência do ilícito, da lesão ou da ameaça a direitos.
o A rejeição da inicial inepta, como se disse, pode ocorrer no
o curso do processo, e não poderia ser sequer a mera afirmação do
o ilícito, da lesão ou ameaça a direito, o pressuposto do processo,
porque dentre as causas de inépcia está a falta de pedido ou da
o causa de pedir.
o Pode-se confirmar, então, que situação de direito material
o não é pressuposto do Processo Çivil brasileiro.

o A situação de direito substancial comparece nos atos do

3
3 caso de inépcia, o Juiz Presidente da JCJ não poderia indeferi-la, sem a
audiência dos vogais, porque somente pode agir isoladamente nas execu­
o ções. Cf. Processo Civil no Processo do Trabalho, 3~ ed. atual, de acordo
com a Constituição Federal de 1988, São Paulo: LTr, 1991, PP- 35/36.
3 Ressalve-se, porém, o entendimento de que, em face da Constituição de
outubro de 1988 (arts. 111 e 117), está revogado o art. 877 da CLT, sendo
3 competente a JCJ tanto para o processo de conhecimento com o para o de
3 execução e para o cautelar.

3
3 158
3
3
processo, mas não como pressuposto desses atos e sim como
objeto de alegações e provas, como conteúdo do contraditó­
rio235.
A res in iu diciu m d ed u cta não é, também, pressuposto da
sentença que põe (ou deveria pôr) fim ao processo, pois os casos
de extinção do processo sem julgamento do mérito, sem aprecia­
ção da situação de direito substancial, estão previstos no art. 267
do Código de Processo Civil.
A propósito desse artigo, é oportuno abrir-se um parênte­
se para registrar que as disposições de seus itens II e III são
absolutamente incompatíveis com o princípio do contraditó­
rio, constitucionalmente acojhido. O contraditório não pode
ser considerado como dever das partes de cumprirem atos
processuais. Já se disse sobre faculdades, poderes e deveres
que se tornam ônus, quando a parte não os utiliza. O contradi­
tório é a oportunidade de participação paritária, e não de
participação coativa. Se os prazos processuais são os da lei, se
existe o instituto da preclusão, se o juiz tem o dever de decidir,
que é um dever da jurisdição, e que está explícito no art. 5 a,
XXXV, da Constituição da República de 05 de outubro de
1988 , não se explica por que o processo deve ser extinto sem
julgamento do mérito, nas hipóteses mencionadas. Por incom­
patíveis com o art. 5a, XXXV e LV, os referidos itens devem ser
considerados como revogados236.
Se a situação de direito material, constituída por um direito
subjetivo, no sentido que já se definiu, lesado ou ameaçado, não
é pressuposto do processo ou da sentença, o é, entretanto, da
sentença de mérito, do provimento e da medida jurisdicional
requerida, seja ela acolhida ou rejeitada.
Seja o provimento favorável ou desfavorável ao autor, ele

235 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 260.

2 36 Em casos que tais em face do impulso oficial (art. 262 do CPC) e do que
dispõe o art. 5°, XXXV, da Constituição de 1988, caberia ao juiz prover de
imediato sobre o mérito, julgando conforme o estado do processo.

159
acerta a situação de direito substancial, confirmando a existência
do ilícito e do direito lesado ou ameaçado, para impor as medi­
das requeridas para sua reparação ou para determinar a cessação
da ameaça, ou nega a existência do ilícito e da lesão ou ameaça a
direito, negando a medida requerida.
Nesse ponto, é conveniente que se registre, novamente, a
distinção entre o Direito italiano e o Direito brasileiro, pela
diferença da norma constitucional dos dois sistemas. No Direito
italiano, conforme já se mencionou, o art. 24 da Constituição
'destina o direito de "agir em juízo" à tutela dos próprios direitos
ou interesses legítimos, o que possibilitou várias interpretações
no sentido de que, se constatada a inexistência do direito, não
poderia haver provimento.
FAZZALARI resolveu a questão distinguindo a leg ittim a-
z io n e a d a g ire e a leg ittim azion e a l p rov v ed im en to. Esta últi­
ma não ocorrerá no caso em que se constata a inexistência do
dever e, ou, direito subjetivo (ou que o autor e o réu não são,
respectivamente, titulares do direito e do dever) e, conseqüen­
temente, da lesão ao direito. Entretanto, o processo existiu,
como existiu a ação, como série de posições subjetivas das
partes, que o acompanha do princípio até o momento do
provimento237.
A questão que se apresenta no confronto entre processo
válido e provimento desfavorável, relevante perante o Direito
positivo italiano, pelos termos do art. 24 da Constituição que
funda aquele ordenamento jurídico, poderia ter recebido trata­
mento teórico sobre bases diferentes no Direito brasileiro.
Não obstante, a investigação da doutrina processual no
Brasil transcorreu em linha paralela com a doutrina italiana e
seus resultados merecem uma reflexão mais detida.

237 "Le attività processuali esnberanti — cosi quelle spese p e r istruire il


m érito — an d ra n n o considerate inutiliter gestae, ma n o n m ai invalide
p e r carenza di legittimazione a d agire". Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 49- No
mesmo sentido, v. pp. 299/301.

160
Verifica-se, por exemplo, que AMILCAR DE CASTRO238 ofe­
receu, quanto ao problema dos atos processuais úteis, solução
aparentemente semelhante à proposta de FAZZALARI, mas mani­
festa e profundamente distinta quanto à fundamentação, em
conseqüência da concepção diferente sobre a relação entre pro­
cedimento, processo e ação.
A aparente semelhança está na admissão por AMILCAR DE
CASTRO da movimentação válida mas "inútil" do processo: "(...)
formado um procedimento por pessoa carecedora de ação, o
mesmo, por falta da legitimação para agir, não deve ser tido
como nulo, ou anulável, mas inteiramente inútil a essa pessoa
que não pôde atingir o alvo em mira"239.
A semelhança é, como se disse, apenas aparente porque em
FAZZALARI não há movimentação inútil, mas "exuberante" do
processo, podendo-se falar em inutilidade da g esta e e não na
inutilidade do processo para uma pessoa, porque não é por esse
critério que o processo cumpre seu destino como estrutura que
prepara o provimento.
A diferença verdadeiramente marcante entre ambos trans­
parece em nível mais profundo, na própria concepção de "ação,
de processo ou procedimento", que, para AMILCAR DE CASTRO,
como para a doutrina brasileira predominante, constituem "reali­
dades jurídicas inconfundíveis, com aparência definida, uma in­
dependente da outra"240.
Em FAZZALARI, como se viu, a ação não possui essa inde­
pendência do processo, mas é nele que se realiza, como desdo­
bramento da legitimação para agir dos sujeitos do processo (juiz,
auxiliares, Ministério Público quando a lei o exigir, partes). A
legitimação para agir, que é de todos, se especifica em ação e

2 3 8 Cf. AMILCAR DE CASTRO - Comentários ao Código de Processo Civil, Vol VIII,


Arts. 566 a 747, 3~ ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983, pp. 6/8.
2 3 9 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 7.
2 4 0 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6.
3
3
3 função, dada a posição jurídica dos sujeitos do processo. En­
3 quanto a "função" é dada pela série de atos que correspondem à
3 posição jurídica legitimada do sujeito investido da função juris­
3 dicional — o juiz — a ação se forma pelo complexo de posições
jurídicas legitimadas das partes, complexo que resulta da atua­
3 ção conjunta e interdependente dos sujeitos do iter do processo,
3 e por isso não pode ser dele isolada.
3 Ressalte-se que AMILCAR DE CASTRO aceita, como pres­
suposto de seu argumento, o de que o procedimento é acessível
O a todas as pessoas, que a faculdade de recorrer ao Poder Judiciá­
o rio é de todos que tenham supostamente um direito lesado ou
o ameaçado, e separa os atos processuais válidos dos atos proces­
suais úteis, com base em interesses, distinguindo os escopos das
3 partes, que, conforme afirma, é o de "defenderem seus próprios
3 direitos, e a finalidade do processo, que é de ordem pública241,
O j Não se pode desconhecer a precariedade do critério do
| interesse, de ordem individual e de ordem pública242 para se
O j explicar o processo existente quando há carência de ação ou
3 I quando se constata a "pretensão infundada", critério pelo qual
3 1 AMILCAR DE CASTRO distingue os "escopos particulares e finali­
dade pública", no processo. Percebe-se que o argumento é posto
O
como alternativa quase necessária de uma concepção que separa
3 processo, procedimento e ação243.
iQ
3 ' 241 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6.
3 242 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho,
3 2~ ed., Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda., 1987, p. 35- A dificuldade é
da mesma natureza do problema que se suscita quando se fala em interes­
3 ses de "ordem pública e "ordem privada" para se diferenciar algo que
sempre tem marcadamente o caráter público, com o ocorre com as pró­
3 prias normas.

3 24 3 Cf. AMILCAR DE CASTRO: "se o procedimento é independente da ação, a


(alta de um dos elementos desta não pode determinar a anulação daquele".(...)
3 "Por conseguinte, nada mais razoável do que uma pessoa, sem o direito de
3 ação, poder movimentar processo válido, mas inútil, ou prejudicial a si
mesma". "A ação e o processo são conceitos autônomos, independentes
3 (...) pode a pessoa não ter ação, e não obstante figurar com o sujeito de

3
3 162
3
3
Tal postura, dominante na doutrina, correlaciona-se com a
necessidade que teve o movimento de construção do Direito
P rocessual C iv i], centralizado no direito de ação, inde­
pendentemente de suas divergências internas sobre a natureza
de tal direito, de conciliar, coerentemente, o direito de se provo­
car a atuação do Judiciário com a possibilidade da pretensão
infundada244.
As tentativas de superação dessa dificuldade sugeriram vá­
rias teses na doutrina brasileira, desde a dos atos úteis e inúteis
do processo, acima lembrada, até a do fundamento ideológico
que teria pretendido legitimar a "universalização do procedimen­
to ordinário", excluindo os processos sumários, levantada por
OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, quando, conforme sustenta,
"toda ação é una e abstrata"245.
A utilidade do processo e a sua instrumentalidade são, por
essas doutrinas que têm a atenção voltada para o "direito de

procedimento válido (...) na hipótese de carência de ação, o procedim ento


permanece válido, precisamente para continuar evidenciando que não
havia relação social ameaçada, ou violada, entre o autor e o réu, preen­
chendo seus fins (...) o Estado mantém também a organização da lide
judiciária para que se verifique e declare se à pessoa assiste, o u não, o
chamado direito subjetivo que suponha ter", op. cit. p. 7.
244 JOSÊ OLÍMPIO DE CASTRO FILHO suscita o problema indagando até onde
se pode falar em abuso de direito daquele que demanda sem ter razão.
Diante da questão lembra NICETO ALCALA-ZAMORA Y CAST1LLO, quando
diz "que a rigor não se devia nem falar em direito de ação, mas em
faculdade, poder, ou possibilidade de ação". Cf. Abuso do Direito no
Processo Civil, 2a ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 40.

2 45 Cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA - Curso de Processo Civil, vol. I, Porto


Alegre: Fabris, 1987, pp. 59/115. V. especialmente pp. 9 6 e 97. "Hoje,
porém — afirma — , transcorridos alguns anos, a maior novidade científica,
no campo do processo civil, passou a ser, justamente, a busca de formas
especiais de tutela jurisdicional indicadas pelos processualistas com o espé­
cies de "tutela diferenciada", que outra coisa não é senão a redescoberta
tardia de que a todo direito corresponde, ou deve corresponder, uma ação
(adequada) que efetivamente o "assegure", proclamando-se, mais uma vez,
a função eminentemente instrumental do processo". Cf. op. cit., p. 98,

163
ação", medidas pelo "direito material", sem que se cogite de outra
finalidade cumprida de forma muito útil pelo processo quando
se constata que o direito material, para o qual foi postulada a
proteção, não teve sua existência confirmada no ato final do
provimento.
No sistema brasileiro a Constituição não destina o direito
de se pedir a tutela jurisdicional do Estado à existência de um
direito material. Ò Poder Judiciário é provocado para "a aprecia­
ção de lesão ou ameaça a direito"240.
—O princípio n em o iu d ex sin e actore, que condiciona a ma­
nifestação da jurisdição à iniciativa de quem pretende a tutela
jurisdicional, não é apenas um apêndice do sistema constitucio­
nal brasileiro, pois explica-se já a partir do cap u t do art. 5~ da
Constituição da República de 05 de outubro de 1988, em que há
a promessa de garantia, aos brasileiros e estrangeiros residentes
no País, da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-

246 É oportuno observar que a expressão "ameaça a direito" do art. 52 , XXXV,


da Constituição da República de 1988, abre um amplo campo para a tutela
preventiva de direitos que, com o demonstra BARBOSA MOREIRA, não se
identifica com a tutela das medidas provisórias em razão do caráter defini­
tivo que lhe é peculiar, e que é preventiva justamente porque, ao contrário
da tutela sancionatória, é capaz de resguardar o direito contra a própria
consumação da lesão. O avanço da Constituição nesse aspecto é notável,
pois se a proteção de direitos submetidos à ameaça já encontrava garantias
contra atos ilegais ou abusivos do poder (pelo Mandado de Segurança
preventivo para os direitos líquidos e certos não amparados pelo H abeas
Corpus, pela Ação Popular), na esfera particular, ressaLvando-se a nuncia-
ção de obra nova, foi limitada, pelo Código de Processo Civil de 1973, à
proteção da posse e da propriedade, com injustificada omissão dos direitos
que não possuem caráter patrimonial. Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREI­
RA, Tutela Sancionatória e Tutela Preventiva, in Temas de Direito Proces­
sual, Segunda Série, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 21/29; Processo Civil e
Direito à Intimidade, in loc. cit., pp. 3/19- De se ressaltar, ainda, a amplia­
ção, pela Constituição de 1988, dos instrumentos das garantias de direitos
pela introdução de novos institutos processuais submetidos à sensível
análise d eJ.J. CALMON DE PASSOS em "Mandado de Segurança Coletivo,
Mandado de Injunção, H abeas Data (Constituição e Processo)", Rio de
Janeiro: Forense, 1989-

164
dade, à segurança e à propriedade, nos termos dos itens I a
LXXVII, com seus dois parágrafos. A disposição do item XXXV
não comportaria, portanto, qualquer interpretação no sentido
do exercício espontâneo da jurisdição247, pois a atuação do
Poder Judiciário é posta entre as garantias dos direitos e liberda­
des declarados.
E certo que, nos termos do dispositivo constitucional, o
objeto da apreciação judicial é o direito lesado ou ameaçado e o
ilícito, como dever não observado, causa da lesão ou da ameaça.
O caráter substitutivo da função jurisdicional confere a essa
apreciação sua dimensão tutelar. Contudo, quer se ponha em
relevo o direito subjetivo, quer o ilícito que o lesa ou ameaça, o
"objeto da apreciação" não se confunde com o próprio "ato da
apreciação", e por isso, nos termos postos pela Constituição
brasileira, o agir em juízo não pode se condicionar ao prévio
reconhecimento da existência do direito alegado. Significa dizer
que a existência do direito para o qual se pleiteia a tutela pode
ser confirmada ou negada pelo provimento, sem que se necessite
indagar sobre a existência útil ou inútil do processo. Este cum­
prirá sua finalidade ao chegar a seu final com a participação das
partes, participação revestida da garantia do contraditório, quer
se confirme a existência do direito, da lesão ou da ameaça, caso
em que não se poderá negar a tutela, quer se verifique a inexis­
tência do direito, da lesão ou da ameaça, quando o provimento
será emitido, mas a medida jurisdicional requerida será rejeita­
da.
O art. 93, item IX da Constituição da República de 05 de
outubro de 1988 , exige que "todos os julgamentos dos órgãos do

247 CÂNDIDO R. DINAMARCO refere-se ao dilema criado, quando se examina


o escopo da jurisdição de atuação da vontade da lei; com o esta não
pertence ao domínio dos litigantes, chegar-se-ia ao exercício espontâneo
da jurisdição. Crê que a solução poderia ser buscada não no plano do
direito, mas no da sociedade ao qual ele se destina. Cf. A Instrumentalidade
do Processo, 2a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1990, pp. 228/229.

165
Poder Judiciário" sejam públicos e fundamentadas todas as deci­
sões, sob pena de nulidade, permitindo que a lei limite a presen­
ça, em determinados atos, às partes e seus advogados, ou somen­
te a estes, quando o interesse público o exigir.
Sobre a publicidade dos atos judiciários, ALCIDES DE MEN­
DONÇA LIMA, analisando o dispositivo constitucional, observa
que ela tem sido considerada, "tradicionalmente, como exigência
democrática, instituída como decorrência da Revolução France­
sa", pelo que o sigilo, quando admissível, constituindo exceção,
deve sempre vir expresso em lei248. Ressalta, entretanto, a inova­
ção introduzida pela Constituição de 1988, no Direito brasileiro,
pela extensão da expressão "todos os julgamentos", q ie repele a
votação secreta, em todas as circunstâncias, mesmo naquelas
anteriormente admitidas pelo sistema jurídico, como em matéria
administrativa “referente à remoção, disponibilidade, aposenta­
doria de juizes, ou recusa de promoção por antiguidade249.
A doutrina brasileira tem visto, na exigência constitucional
de publicidade e fundamentação das decisões, a oportunidade
do controle popular sobre os atos judiciais, ou uma "função
política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários
não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual
recurso, mas qu isqu is d e p op u lo, com a finalidade de aferir-se
em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das
decisões250.

248 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA - O Poder Judiciário e a Nova Constitui­


ção. Rio de Janeiro-. Aide Ed. 1989, p. 39-

249 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, op. cit., p. 40.


250 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER,
CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8 a ed. rev. e atual.,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 67. Cf. também BARBO­
SA MOREIRA - A Motivação das Decisões Judiciais Como Garantia Inerente
ao Estado de Direito, in Temas de Direito Processual: segunda série, São
Paulo: Saraiva, 1980, pp. 83/95. Convém advertir para o risco ou o perigo
dos "julgamentos públicos", que podem ser afetados pela natural vaidade
dos juizes. "Julgamento público1' não deve ser confundido com "julgamen­
to fundamentado" ou com "julgamento cuja fundamentação deve ser

166
Não há dúvida de que o caráter público das decisões (que
nem sempre se confunde com o caráter público do julgamento,
exigido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de
1988), acompanhado de sua fundamentação, é uma garantia
que, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789, produzida pela Revolução Francesa, resguarda a socie­
dade contra o autoritarismo e o arbítrio que se manifestavam em
nome da lei.
Não se pode deixar de considerar, contudo, que a funda­
mentação da decisão é uma proteção constitucional especial­
mente dirigida às partes. Elas receberão os efeitos dk séntênça
em seu patrimônio, em seu universum ius, efeitos sustentados
sobre a apreciação da situação de direito material discutida em
contraditório, e se lhes é garantido, pelo contraditório, a partici­
pação nos atos processuais que preparam o provimento, é uma
conseqüência dessa garantia que as partes saibam por que um
pedido foi negado ou por que uma condenação foi imposta. Elas
viveram o processo, ou tiveram a garantia de vivê-lo, participa­
ram do seu desenvolvimento, reconstruindo a situação de direito
material sobre que deveria incidir o provimento e, nessa recons­
trução, fizeram, juntamente como juiz, o próprio processo, na
expectativa do provimento final. Não é, portanto, demasiado que
se tenham as partes como os primeiros destinatários da garantia
da fundamentação das decisões.
Se houver possibilidade de recurso, o contraditório conti­
nuará garantido e se não houver, o contraditório terá cumprido
sua finalidade, permitindo que se saiba por que se nega um
suposto direito e por que se condena, em nome do Direito.

necessariamente publicada", para o controle das partes e dos jurisdiciona-


dos em geral (crítica nos autos ou em órgãos normais de divulgação —
imprensa, revistas e livros jurídicos — ou melhor, o controle "endoproces-
sual" e o controle "extraprocessual" das decisões judiciais).

167
CAPÍTULO IX

A INSTRUMENTALIDADE TÉCNICA
DO PROCESSO

9-1. O PROCESSO COMO TÉCNICA

O procedimento jurisdicional, como atividade disciplinada


por uma estrutura normativa voltada para a preparação do provi­
mento, com a participação, em contraditório, de seus destinatá­
rios, é uma técnica criada pelo ordenamento jurídico, e traba­
lhada pela ciência do Direito Processual, que, em sua função de
formular conceitos, categorias e institutos concernentes a toda a
atividade da jurisdição, deve se esmerar em fornecer o melhor
instrumental teórico para que o processo se torne a técnica mais
idônea possível no cumprimento de sua finalidade.
A norma processual disciplina o exercício da jurisdição, e a
preocupação de se fazer com que a ciência do Direito Processual
ofereça a sua técnica instrumental para o aperfeiçoamento da
instrumentalidade técnica do processo tem sido externada de
várias formas na doutrina251. De modo evidente ou ainda obscu-

251 Investigando as tendências do processo no Direito Comparado, MAURO


CAPPELLETTI ressalta que o processo não é um fim em si mesmo: es u n

168
ro, quase intuitivo, a doutrina jurídica vem percebendo a profunda
e crescente importância do processo como modelo ideal de partici­
pação dos próprios destinatários na formação, na execução e na
aplicação de seu direito. Seja o processo legislativo, seja o adminis­
trativo, seja o jurisdicional, sua instrumentalidade técnica é a mes­
ma: a de poder se elaborar, com a melhor estrutura possível, a mais
adequada e ágil, para dar respostas ao fim para o qual se instaura: a
emanação de um ato do Estado, de caráter imperativo, para cuja
formação concorrem, em contraditório, aqueles que receberão, na
esfera de seus direitos, os efeitos'de tal ato. ~
O processo que se põe como estudo do Direito Processual
Civil é o processo jurisdicional, porque o Direito Processual Civil
tem como objeto de investigação a norma que regula o exercício
da jurisdição.
Uma técnica é valorada segundo sua idoneidade para a
realização de suas finalidades. Será uma boa ou má técnica,
conforme seja hábil a cumprir os seus fins, ou conforme se revele
ineficaz para esse objetivo. De qualquer modo, a avaliação deve
ser feita pela ciência, como atividade consciente e capaz para a
produção do conhecimento e a correção de seus pontos de

instrumento excogitado al objeto de componer Ias litis garantizando la


efectividad — la observancia, y la reintegración para el caso de inobservan-
cia — del derecho substancial. Considera a presença do processo no
ordenam ento jurídico de todas as nações civilizadas com o o sintoma fun­
damental de que os povos renunciaram a confiar à força e à vingança a
p roteção de seus direitos para entregá-la ao juiz e acrescenta: Pcro este
caracter d e la instrum entalidad d e l derecho procesal, e d e la instrumen-
talidad, p o r consiguiente, d e la técnica misma d el proceso, implica una
consecu en cia im portante: lo mismo q u e cualquiera otro instrumento, así
tam bién a q u el instrum ento q u e es el derecho procesal, p a ra ser eficaz o
sea p a ra conseguir cum plir eficazm ente su finalidad, d ebe adaptarse a la
p a rticu la r naturaleza d elp ro p io objeto. En otras palabras, debe asum ir
aq uella s técnicasy valerse d e aquellos institutos q u e son los m ás idôneos
p a ra e l objeto d e la garantia d el derecho substancial'. Cf. MAURO CAPPE-
LLETTI - E l Proceso Civil en e l Derecho Comparado - Las Grandes Tenden-
cias Evolutivas - Trad. de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Edicio­
nes Jurídicas Europa-America, 1973, p. 18.

169
3
3
3
estrangulamento. A responsabilidade da ciência do Direito
3 Processual, em relação ao processo, não é, portanto, pequena.
3
3
9-2. A FINALIDADE DO PROCESSO JURISDICIONAL
3
3 O processo jurisdicional civil, como procedimento que se
O realiza em contraditório entre as partes, para a formação do
provimento jurisdicional, tem, no corxeto desenvolvimento das
O
atividades preparatórias da sentença, a sua primeira finalidade.
O Essa afirmação não pode ser tomada como uma simplificação
3 que poderia conduzir à inexata conclusão de que a técnica se
O desenvolve pela técnica e para a técnica, ou seja, de que ela se
produz e se consome a si própria e nisso se esgota. Tal conclusão
O só poderia advir da falta do alcance do significado contido na
O realização do procedimento em contraditório entre as partes.
o Como se viu, em capítulo anterior, o contraditório tem a

o sua essência e o seu objeto. Onde ele está presente, o processo


jamais será uma estrutura vazia, um esqueleto "descarnado", uma
o construção sem conteúdo. E pelo desenvolvimento do contradi­
o tório que o processo se desenvolve, e o contraditório é pleno de
vida. É no âmago da coesão entre sua essência e seu objeto que
o
o direito material, que será apreciado e decidido na sentença, é
3 discutido, que o jogo dos interesses divergentes torna-se real,
O que as partes desvelam os direitos materiais que afirmam ter, e
que se contrapõem nas afirmações dos direitos materiais que são
O
mutuamente negados.
o A essência do contraditório, a garantia de uma participação
.3 simetricamente igual nas atividades que preparam a sentença, e
seu objeto, a questão que pode se transformar em questão con­
O
trovertida, incidem, naturalmente, no plano processual. A parti­
3 cipação é participação no processo e a questão é questão do
3 processo, sobre ato do processo. Mas aí está a grandeza do
contraditório. A sua presença no procedimento que prepara o
3 provimento possibilita que as partes construam, com o juiz, o
3
3
3 170
3
3
autor do ato estatal de caráter imperativo, o próprio processo, e
que, assim, participem da formação da sentença.
A finalidade do processo jurisdicional é, portanto, a prepa­
ração do provimento jurisdicional, mas a própria estrutura do
processo, como procedimento desenvolvido em contraditório
entre as partes, dá a dimensão dessa preparação: como a partici­
pação das partes, seus destinatários, aqueles que terão os seus
efeitos incidindo sobre a esfera de seus direitos.
A estrutura do processo assim concebido permite que os
jurisdicionados, os membros da sociedade que nele comparecem,
como destinatários do provimento jurisdicional, interfiram na sua
preparação e conheçam, tenham consciência de como e por que
nasce o ato estatal que irá interferir em sua liberdade; permite que
saibam como e por que uma condenação lhes é imposta, um direito
lhes é assegurado ou um pretenso direito lhes é negado.
A instrumentalidade técnica do processo, nessa perspectiva
do Direito contemporâneo, não poderia, jamais, significar a téc­
nica se desenvolvendo para se produzir a si mesma. A instrumen­
talidade técnica do processo está em que ele se constitua na
melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sen­
tença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da
participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão
os seus efeitos.

9 3 . A PROTEÇÃO DE DIREITOS

Tem-se afirmado que chegou o momento de se dispensa­


rem os formalismos para que o s direitos sejam assegu rados e o
processo adquira efetividade.
A história do Direito demonstra, com dados objetivos, que,
com formalismos rigorosos (o processo formulário)252 ou sem

252 Há excelente exposição na obra de JOSÉ CARLOS MOREIRAALVES - Direito


Romano, Rio de Janeiro: Forense, 4~ ed., 1978.

171
qualquer formalismo (os processos que WEBER denominou de
"direito formal irracional", do direito Salomônico, passando pelo
K a d i, chegando aos "tribunais revolucionários")253 os processos
tiveram uma enorme eficácia para uma pluralidade de fins. Com
formalismos ou sem formalismos foram eficazes para condenar
em nome de muitos nomes: em nome de razões sociais e em
nome de razões de Estado, em nome do pecado e em nome de
Deus; em nome de incompreensíveis signos e em nome de mis­
teriosos, formidáveis e insondáveis nomes.
Historicamente, com formalismos ou sem formalismos, os
ordenamentos jurídicos já permitiram que o processo tivesse
como finalidade a salvação da alma e a salvação da sociedade.
Das finalidades transcendentes, não se tem perdido a memória,
quando o juízo de Deus se manifestava nas Ordálias. E não está
tão afastada a época em que os procedimentos da Santa Inquisi­
ção, que torturava para obter a confissão e para purificar a alma
do condenado, antes de entregá-lo ao braço secular, se faziam
em nome de um "bem maior" da sociedade: em nome da fé, e em
nome de Deus.
A atual estrutura normativa do processo está predisposta
para que as partes que dele participam em contraditório, sendo
os destinatários da sentença, contribuindo para sua formação,
saibam por que pode ela constituir o ato de condenação, por que
pode ela impor uma reparação, por que pode ela rejeitar um
pedido de proteção a um suposto direito. Os sujeitos do proces­
so que se realiza como um procedimento em contraditório sa­
bem, hoje, em nome de que nome o ato final do processo
condena ou declara que não há base para se condenar. E estão
garantidos de que a condenação ou a rejeição do pedido de que
ela se imponha se fará dentro da mais cristalina regra de uma
estrutura normativa que assegura, através de suas formas, a sua
participação em todas as atividades que preparam a sentença,

253 Remete-se ao estudo de JULIEN FREUND - La rationalisation d n droit


selon Max Weber in Archives... citado.

172
não de modo arbitrário, mas de modo a que seus atos sejam
reciprocamente controlados, em sua oportunidade e em sua
subsistência. Essa é a forma de um jogo democrático que permite
a manifestação das divergências no iter da formação de um ato
final que produz efeitos na esfera de direitos de seus destinatá­
rios, mas com a garantia de simétrica igualdade de oportunida­
des desses destinatários nos atos preparatórios daquele que se
revestirá de caráter imperativo.
A primeira proteção que o ordenamento jurídico necessita
oferecer aos jurisdicionados é a proteção de seu direito de,
quando destinatário dos efeitos da sentença, participar dos atos
que a preparam, concorrendo para sua formação, em igualdade
de oportunidades.

9.4. A PROTEÇÃO DE DIREITOS MATERIAIS

O processo terá a finalidade de proteger os direitos substan­


ciais, os direitos subjetivos lesados ou ameaçados, se a sua exis­
tência se confirmar, no iter que prepara a formação da sentença.
Nessa hipótese o juiz não poderá negar a proteção requerida,
desde que, observando os deveres da jurisdição, aplique as me­
didas nos limites que o ordenamento jurídico as comporte.
O juiz tem o dever de se ater ao pedido è de se ater às
espécies de medidas jurisdicionais autorizadas pela norma. Ele
atua como órgão do Estado e fala pelo Estado, e, assim como não
pode penetrar na esfera dos direitos dos jurisdicionados, para
protegê-los, sem ser solicitado, não pode decidir além do que foi
pedido pela parte, que tem a liberdade de dispor sobre os limites
da proteção requerida. O juiz não pode impor medida não auto­
rizada pelas normas porque, sendo órgão do Estado, tem o dever
de cumprir o Direito legitimamente criado pela nação pela qual
o Estado fala.
Na hipótese de se verificar a inexistência do direito para o

173
3
0
0 qual a proteção foi requerida, logicamente, ela não poderá ser
0 concedida.
0 Entretanto, em ambas as alternativas, o processo, como
procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes
0
D
que, sendo os destinatários do provimento, participam do iter de
sua formação, permite que saibam por que o conteúdo do ato
O' final, ato imperativo do Estado, consistiu na proteção do direito

o ou na rejeição da proteção pleiteada.


Essa questão é da mais intensa importância para se pôr em
o relevo a necessidade de se garantir, juridicamente, a liberdade.
o O processo, na perspectiva histórica, quando seu ato final
era constituído unilateralmente pelo Estado, ainda que esse ato
o tivesse o conteúdo na maior consonância com o direito material,
o não poderia deixar de ser uma estrutura propícia à práticas
o autoritárias25! Quando os direitos e as garantias individuais
o foram se consolidando, o processo se aperfeiçoou na exigência
de que nele estivesse presente o direito à ampla defesa, com as
o medidas a ela inerentes.
o Hoje, a instrumentalidade técnica do processo requer mais
o do que a garantia de participação das partes. Requer que essa
participação se dê em contraditório, com igualdade de oportuni­
o dades, e que dela resulte essa conseqüência cujo alcance neces­
o sita ser apreendido em toda sua extensão, que é a participação
o dos destinatários da sentença em sua própria formação.
Entre uma decisão "justa", tomada autoritariamente, e uma
o decisão "justa", construída democraticamente, não pode deixar
o de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se
o realiza através da liberdade.

o
o
o
o 254 Sérias reservas são feitas aos arts. 263 (primeira parte) e 295 (itens I a IV)
3 do CPC brasileiro.
0
3
0 174
0
O
9-5. A PROTEÇÃO DO DIREITO LESADO OU AMEAÇADO

Para a proteção de direitos, contra o ilícito, a inobservância


da conduta juridicamente valorada como devida, organiza-se a
jurisdição. Que proteção não é imposição, confirma-o o princí­
pio n em o iu d ex sin e actore, que condiciona a interferência do
Estado na esfera dos direitos dos jurisdicionados, através do
exercício da função jurisdicional, à provocação dos próprios
jurisdicionados. Observado tal princípio, é claro que a função
jurisdicional, como já se falou, exerce-se em processos "conten­
ciosos" e em procedimento de "jurisdição voluntária", manifesta-
se em processos onde há conflitos de interesses contrapostos
(ou litígios), e onde, havendo ou não divergências, os interes­
sados desejam a mesma decisão; enfim, manifesta-se pelo proce­
dimento que se desenvolve em contraditório entre as partes e em
procedimento que se realiza sem o contraditório.
No processo jurisdicional civil de conhecimento, o ato final
do provimento, para ser favorável ao autor, e impor a medida
jurisdicional postulada, tem como pressuposto a constatação,
através do contraditório, do direito lesado ou ameaçado e do
ilícito, que, em qualquer campo do Direito, sempre se caracteri­
zará pela inobservância da conduta legalmente prevista como
cânone ou modelo para o comportamento.
O provimento tem, como pressuposto de sua validade, o
correto desenvolvimento do procedimento que o prepara, realiza­
do em contraditório entre as partes, e, quando se confirma, no
contraditório, a existência do direito lesado ou ameaçado, e do
ilícito, de que decorreu a lesão ou que se constitui em ameaça a
direito, a medida jurisdicional é imposta para impedir que perdure
a lesão ou a ameaça, para determinar a reparação da lesão e a
cessação da ameaça ao direito, para cuja proteção foi requerida.
Sob a inspiração de CHIOVENDA, a doutrina do Direito
Processual Civil, discorrendo sobre os escopos255 do processo,

255 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggí d i Diritto Processuale Civile (1900-

175
sedimentou a idéia de que o escopo do processo é o de atuar o
direito material, e não tardou a lhe acrescentar a pacificação com
justiça, de conflitos sociais, e outras finalidades, nesse plano de
valoração.
Duas considerações são oportunas sobre a imprecisão de
tal concepção. Já se demonstrou que a finalidade do processo
não pode ser confundida com a finalidade da medida jurisdicio­
nal imposta pelo provimento. O processo atuará o direito mate­
rial se constatado, pelo correto procedimento e através do con­
traditório, que há um direito substancial que deve ser atuado.
Caso contrário, não há, obviamente, como atuar um direito ine­
xistente.
Já foi posta em relevo a distinção entre a ordem constitucio­
nal italiana e a brasileira. Pelo art. 52, item XXXV, da Constituição
da República de 05 de outubro de 1988, não se pode endossar a
afirmação de que o processo se desenvolva para atuar o direito
material. Desenvolve-se para permitir a preciação do Poder Judi­
ciário sobre lesão ou ameaça a direito, e a forma dessa aprecia­
ção se dá pelo provimento.
O segundo ponto de reflexão volta-se para as afirmações
sobre os escopos do processo que agregam à atuação do direito
material a pacificação com justiça.
Ainda que se estenda o escopo da jurisdição — o da pacifi­
cação — ao instrumento de sua manifestação — o processo,
dizer-se que a finalidade deste é pacificar com justiça suscita uma
questão imediata. Os direitos garantidos no processo não se
confundem com o direito material que será objeto de exame na
sentença.
Quando atuado o direito material, se constatada a sua exis­
tência no procedimento desenvolvido em contraditório e, cum­
prido o pressuposto da medida jurisdicional, esta for imposta, a

1930) Nuova Edizione Considerevolmente A um entata dei "Saggi" e d ei


"Nuovi Saggi", volum e prim o, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930,
v. sobretudo, pp. 230/233-

176
justiça que decorrerá da atuação da lei terá a mesma medida que
tem a justiça do direito substancial.
A atuação do direito poderá ser valorada como justa, se
justo for o direito a ser atuado. A palavra justiça possui um apelo
emocional muito forte, mas a afirmação que se fez não pode
causar surpresa se se olha para trás na história, ou se se relan-
ceia, também, o olhar sobre o tempo presente.
A valoração da justiça do direito material não é finalidade
do processo. Pode comparecer na sentença, que o processo
prepara, mas nos limites dos deveres da"jurisdição, porque o
exercício do poder jurisdicional, como o exercício de qualquer
poder, se faz dentro da disciplina da lei, e o poder jurisdicional
não é mais o poder de Salomão, mas sim o poder de se cumprir
o dever da jurisdição.
É oportuno observar que, desde os fins do século passado,
a doutrina jurídica passou a revelar uma grande preocupação
com a natureza da função do juiz (não com a natureza da função
jurisdicional, mas com o próprio papel do juiz na função de
aplicar o direito). Surgiram indagações e respostas sobre o que
ele deveria fazer perante a lei injusta, como poderia ter a medida
para julgar com justiça.
No princípio do século, a questão se tornou tão importante
que toda uma corrente doutrinária se formou em torno da cha­
mada Escola do Direito Livre, que, começando por investigar a
questão das lacunas, culminou por investigar a missão do juiz, e
seu lema se espalhou, soprado pelo espírito do tempo: "pelo
Direito ainda que contra a lei". Não mais "pelo direito, além da
lei, mas através dela", como queriam os autores mais moderados,
mas "ainda que contra a lei".
A cisão entre o Direito e a lei é questão antiga. Não se fala
nela sem se rememorar Antígone, e SÓFOCLES nasceu por volta
de 496 a.C. O lema "pelo direito ainda que contra a lei" pode ser
encontrado em expressões vigorosas já no século XIII, quando a
contraposição entre o direito justo e a lei injusta foi organica­
mente analisada, sob a lógica aristotélica, por SANTO TOMÁS DE

177
üüüüüUÜUOOOÜOOSOOOOOOOuOOOOüüüUüUüt
AQUINO256. Na verdade, a leitura da história da Filosofia do
Direito revela que a questão nunca foi abandonada.
No início do século XX, quando o problema ressurgiu, o
Direito Processual Civil estava dando os primeiros passos para
consolidar sua autonomia. Compreende-se que toda ânsia pela
justiça no processo fosse projetada no papel que se reservava ao
juiz. Se o Direito Processual, que seria o direito do exercício da
jurisdição, ainda estava se construindo, não havia então base
para se discutir a função jurisdicional, dentro das disciplinas
jurídicas, e a alternativa encontrada foi o desvio do problema
para o "papel-missão do juiz". Não se percebia que o juiz fala
pelo Estado, porque está investido da função que é do Estado e
que os membros da sociedade precisavam de maior proteção, no
processo, do que a projetada na consciência do juiz.
Hoje, a sociedade pede mais do Direito. Ela necessita de
bons juizes mas não transfere para a consciência do julgador a
medida de seus direitos. Sabe que a sentença "poderá ser justa
ou, eventualmente, até injusta", como diz ADA PELLEGRINI GRI-
NOVER, o que, obviamente, nunca se deseja. Mas, como pros­
segue a processualista, "de qualquer maneira, o que importa é
que a sentença se siga necessariamente a um procedimento legi­
timado pelo ‘devido processo legal’. Não a um procedimento
qualquer. Mas a um procedimento que garanta às partes’ e não
somente ao autor, a possibilidade de apresentarem a sua defesa
e as suas provas e a possibilidade de influírem sobre a formação
do livre convencimento do juiz. Só assim a resposta jurisdicional
será, realmente, a resposta adeqüada ao Estado de Direito"257.

256 Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO-La Ley, trad. do Prof. Constantino Fernan-
dez-Alvar, Barcelona: Editorial Labor S.A., 1936. A referida obra é parte da
Sum m a Theologica, /-//, cc 90-97. V. sobretudo Art. 2, Q.6, p.91, em que a
lei injusta não é considerada lei verdadeira, mas corrupção da lei.

257 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - O Processo em sua Unidade-II, Rio de


Janeiro: Ed. Forense, 1984, p. 6 l.

178
O Direito Processual Civil se desenvolveu, adquiriu autono­
mia, conquistou seu próprio domínio de investigação.
Mas, para lembrar que a construção de uma ciência é uma
atividade muito humana, que passa também pelas contradições e
pelos sonhos humanos, as contradições aparecem dentro da
própria autoconfiança que o Direito Processual adquiriu em seus
achados e em suas conquistas. Ele não pode se considerar como
um domínio do conhecimento pronto e acabado, como se a
construção de seu mundo nada mais tivesse para oferecer de
novo à sociedade, justamente quando ainda tem, em seu próprio
âmago, problemas não resolvidos, e justamente no momento em
que a sociedade descobre suas garantias dentro do Estado.

9- 6. A QUESTÃO DOS ESCOPOS METAJURÍDICOS


DO PROCESSO

A doutrina processual, no Brasil, tem-se preocupado em


atribuir escopos jurídicos, políticos, éticos e sociais ao processo.
O grande nome nessa tendência é, certamente, CÂNDIDO R.
DINAMARCO, professor respeitado nacional e internacionalmen­
te, tradutor de LIEBMAN, autor de preciosos estudos de Direito
Processual e do livro "A Instrumentalidade do Processo", que
teve e tem admirável projeção nos meios acadêmicos e jurídicos
de todo o país.
Quando os argumentos se desenvolvem em nome da justiça
social, é por certo difícil vencer o fascínio que eles provocam,
principalmente quando vêm revestidos pelo vigor da cultura e
pela elegância da forma.
Entretanto, se se pretender que o processo seja, realmente,
a melhor técnica possível para, através do procedimento realiza­
do em contraditório, assegurar-se a participação dos destinatá­
rios do provimento nas atividades que o preparam, contribuindo
para sua formação, é necessário que se reflita um pouco sobre os

179
novos escopos que já se difundem pela doutrina brasileira, e por
outras doutrinas, como atestam os Congressos internacionais258.
Em "A Instrumentalidade do Processo", o Professor CÂNDI­
DO R. DINAMARCO propõe que se desenvolva uma nova menta­
lidade entre os processualistas modernos em torno da "instru­
mentalidade do processo", considerada segundo os fins da juris­
dição e do processo. Os fins da jurisdição não seriam apenas
jurídicos, mas também sociais, compreendendo a "pacificação
com justiça e a educação", e políticos, a participação, a "afirma­
ção da autoridade do Estado e de seu ordenamento". O conceito
de jurisdição não seria jurídico mas político, já que ela é expres­
são do poder do Estado e, assim, "é canalizada à realização dos
fins do próprio Estado (.,.)"259. A relatividade social e política
tornaria a jurisdição permeável às mutações dos conceitos de
"bem comum, justiça, e justiça social", ou seja, os escopos da
jurisdição não seriam os mesmos em momentos sociais distintos
e em sistemas políticos diferentes260. Entende que há uma ten­
dência universal, "quanto aos escopos do processo e do exercício
da jurisdição: ‘o abandono das fórmulas exclusivamente jurídi­
cas’". Aponta outras tendências e registra a impossibilidade de
que os escopos da. jurisdição sejam esgotados nos "sistemas
jurídicos, sociais e políticos do mundo"2*51.
A obra é densa e não se pretendeu senão uma pequena
abordagem sobre o que se designariam como escopos metajurí-
dicos. Esses escopos são inspirados nas contribuições da Socio­
logia Jurídica, que, na linha da separação entre Direito e Estado,

258 Foi lembrado, na introdução deste trabalho, o Congresso de Viena, de


maio de 1939- Entre ele e o Congresso Internacional de Direito Processuaí,
de Gand, de 1977, a discussão evoluiu do papel reservado ao juiz para os
papéis atribuídos à jurisdição.

259 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2a ed.


rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 207.

2 60 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., pp. 206/219-


261 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 219-

180
alerta para o problema da legitimação pelo procedimento, que
acompanhou a racionalização do Estado moderno.
A contribuição de outros campos do conhecimento jurídico
para o da ciência do Direito Processual Civil, e de outros campos
do conhecimento em geral para o conhecimento do Direito
serão sempre bem-vindas. A história das doutrinas demonstra
que nenhum campo da ciência cresceu sozinho. Entretanto,
quando se fala de jurisdição e de processo, está-se diante do
momento em que é o Direito Processual que pode oferecer, hoje,
suas *grandes contribuições para os outros "domínios do saber
jurídico e de outras áreas da investigação científica. Seria desejá­
vel que as conquistas do Direito Processual estivessem disponí­
veis para outros importantíssimos domínios que se dedicam a
temas vinculados à normatividade e à legitimidade de suas for­
mas de expressão, porque seguramente se pode afirmar que hoje
ele tem muito a oferecer à sociedade.
No Direito Processual atual, concebido como sistema nor­
mativo, o processo já não pode ser reduzido a uma mera legiti­
mação pelo procedimento262, não porque se deva dispensar as
formas, mas porque o processo já não é mais apenas um rito para
justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o de­
senvolvimento do conceito de processo construído sobre o con­
traditório é resultado de muitas conquistas históricas. O procedi­
mento desenvolvido em contraditório entre os interessados na
decisão final construiu-se não como uma forma de participação
dos jurisdicionais para justificar um ato imperativo final do Esta­
do, mas como garantia da participação dos detentores de interes­
ses contrapostos, em simétrica paridade, para interferir na for­
mação daquele ato.
O Direito Processual estuda as normas que disciplinam o

262 Cf. NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUI­


NO - Dicionário de Política, cit., ver especialmente os verbetes "Estabilida­
de Política", de LEONARDO MORIINO, e "Estado Contemporâneo", de
GUSTAVO GOZZI.

181
exercício da jurisdição. A manifestação do poder jurisdicional
passou por diversos regimes jurídicos no curso de sua história, e
a grande conquista do Direito contemporâneo é a de que, para
que as liberdades se realizem dentro do Estado (e não fora dele,
ou contra ele), o exercício do poder se submete à disciplina do
Direito. É por isso que não é absolutamente vazia a afirmação de
que a jurisdição e o processo são conceitos jurídicos, e a ciência
do Direito Processual não pode renunciar a seu papel de tomar
esses conceitos e trabalhá-los à exaustão, porque estaria se ne­
gando a seu papel social de clarificar, de tornar visível e inteligí­
vel um tema de profunda importância para a sociedade.
A admissão de escopos metajurídicos da jurisdição e do
processo pressupõem, necessariamente, a existência de três or­
dens normativas distintas: a jurídica, a social e a política. Os
escopos metajurídicos só poderiam ser entendidos, portanto,
como escopos pré-jurídicos. Seria possível pensar-se logicamen­
te nessa fase pré-jurídica em relação aos momentos de transfor­
mação, que preparam o advento de uma nova ordem jurídica. No
momento que antecede a cristalização dos valores que serão
acolhidos pelas normas, das ideologias que constituirão o con­
teúdo das normas, pode-se, por certo, pensar em escopos meta­
jurídicos que serão postos no ordenamento jurídico pela norma
que funda toda sua legitimidade. A recente experiência brasileira
foi um verdadeiro laboratório para a observação da eleição das
ideologias que iriam compor a nova ordem estabelecida, sob
uma nova Constituição.
Uma vez que o ordenamento jurídico se institui e se conso­
lida em normas, condutas e relações humanas, valoradas como
lícito ou ilícito, como conduta devida e conduta que inobserva
aquela estatuída como cânone valorativo, já não se pode mais
cindir o ordenamento da sociedade para, paralelamente à ordem
jurídica que ela instaurou, pensar-se em uma ordem social autô­
noma e em uma ordem política autônoma. Três ordens sobera­
nas distintas não explicariam a soberania de uma nação, que não
pode ser fragmentada. Ainda que se possa argumentar com a
pluralidade de ordens jurídicas, em diferentes escalas, no meio
social, elas estarão sempre dentro do ordenamento jurídico so­
berano, como ordens intra-estatais.
A ordem política e a ordem social têm o seu fundamento na
ordem jurídica, existem dentro do ordenamento jurídico e so­
frem a sua regulamentação. Supor o contrário seria o mesmo que
se admitir a possibilidade de se afirmar que, na sociedade orga­
nizada, o poder se exerce dentro da lei e pela lei, e que o poder
não se exerce dentro da lei e pela lei. Já se percebe a impos­
sibilidade de se manter as duas assertivas, pois mesmo no caso
do abuso do poder, os limites da lei dão a medida para a qualifi­
cação de seu exercício abusivo. No Estado contemporâneo de
Direito, o poder se exerce segundo a disciplina da lei, seja ela
mais rígida ou mais elástica, conforme deixe ao Estado um cam­
po mais restrito ou mais amplo de decisão sobre a oportunidade
e as formas de suas manifestações. O critério para a aferição
dessa maleabilidade será sempre dado pelo Direito, pois é na sua
lei fundante, na Constituição, que se encontram a estruturação
dos órgãos do poder, a definição de sua competência e os direi­
tos e garantias que limitam a sua atuação.
Os ordenamentos jurídicos contemporâneos têm dado um
grande realce ao exercício da jurisdição e ao processo, que é o
instrumento por excelência de sua manifestação. ITALO ANDO-
LINA e GUISEPPE VIGNERA203 demonstram que já se pode falar
em um modelo constitucional de processo formado, não mais
apenas pela estrutura e organização do Poder Judiciário, mas
também, em plano de igual importância, pelas garantias proces­
suais dos jurisdicionados, ao lado das garantias do Poder Judiciá­
rio e dos juizes investidos na função jurisdicional. A importância
da especial garantia da norma processual acolhida no plano
constitucional já h á mais de três décadas era ressaltada por

263 Cf. ITALO ANDOLINA - GIUSEPPE VIGNERA - IIM odelo Costituzionale d el


Processo Civile Italiano, Corso d i lezioni, Torino: G. Giappichelli Editore,
1900, passim.

183
RENZO PROVINCIALI264. As garantias constitucionais do processo
são garantias da própria sociedade, enquanto se coloca como co­
munidade de jurisdicionados perante o Estado, que detém a san­
ção em sua universalidade. São garantias de que o Estado não
invadirá o domínio dos direitos individuais e coletivos, se não
for chamado a protegê-los, de que o Estado não instituirá juízos
pós-constituídos, de que a privação dos bens da vida que o
Direito assegura não se dará sem as formas de um processo
devido e de que não se dará sem a participação e o conttole dos
destinatários do provimento em sua própria formação, de que
não se dará sem a devida explicação aos jurisdicionados sobre os
fundamentos de uma decisão que interfere em seus direitos e nas
liberdades pelo Direito asseguradas. Se as Declarações de Direito
do século XVIII se preocuparam em criar as garantias políticas e
criminais dos indivíduos perante o Estado, o século XX, já em fim
de milênio, preocupa-se em "assegurar" a aplicação daquelas
garantias, já ampliadas. Na base dessa preocupação desenvolveu-
se também uma concepção mais ampla de liberdade e de digni­
dade dos homens e da sociedade. As relações sociais não são
sempre harmônicas e a paz que pelo Direito se almeja não
consiste em se abolir a existência dos conflitos, amordaçando-se
o pensamento, negando-se as diferenças, para se aniquilar as
divergências. O conflito é acolhido e reconhecido, abre-se o
espaço para que ele se manifeste, e, do jogo do contraditório,
formam-se as decisões que interferem nos direitos individuais e
coletivos na vida da sociedade.
Processo é termo de múltiplas acepções, como se demons­
trou quando foram discutidas as conotações da palavra, mas o
conceito de processo, como "estrutura normativa", composta de
normas e de atos, e do provimento final, é jurídico, como jurídi­
co é o conceito de jurisdição como função ou atividade do
Estado "sob a disciplina do Direito".

264 Cf. RENZO PROVINCIALI - Norme d i Diritto Processuale Nella Costituzio-


ne, M ilano: Dott. A Giuffrè-Editore, 1959, passim.

184
3
3
3
Os chamados escopos metajurídicos, sociais e políticos,
acolhidos em regimes diversificados, são, também, sem ne­
o
nhuma dúvida, escopos jurídicos acolhidos nas ordens constitu­ 3
cionais que organizam a sociedade. 3
Assim, por exemplo, quando se traz à colação o modelo socia­
lista265, em que o processo inclui, em suas finalidades, a educação
3
para o socialismo, não se pode deixar de considerar que tal finali­ 3
dade está prevista na Constituição da União das Repúblicas Socia­ 3
listas Soviéticas, de 07 de outubro de 1967, onde se encontram266,
a partir do art. 151, as normas que disciplinam a jurisdição. Os
3
Tribunais são constituídos por juizes eleitos e assessores populares 3
eleitos, para um mandato com prazo determinado, respondem 3
perante os eleitores ou perante os órgãos que os elegeram, pres- 3
tam-lhes contas de suas atividades e podem ser por eles demitidos
(art. 152). Os juizes e os assessores populares são independentes e 3
estão sujeitos apenas à lei (art. 155), mas essas se fazem segundo as 3
bases do regime social e da política da URSS, definidas na Constitui­ 3
ção (arts. 1 - a 9a), onde há expressa definição da força orientadora
da sociedade, o Partido Comunista, e expresso compromisso com 3
a doutrina marxista-leninista, em toda a atuação do poder do 3
Estado (art. 6a). 3
Não há outra base na ciência do Direito Processual Civil,
para se afirmar a existência de escopos da jurisdição e do proces­
3
so, como instrumento de sua manifestação, a não ser o próprio 3
ordenamento jurídico, dentro do qual se acomodam as ideolo­ 3
gias, e, nesse caso, os escopos são todos jurídicos.
A reflexão sobre os chamados escopos pré-jurídicos do 3
processo escapa, por certo, ao objeto de investigação do Direito 3
3
265 CÂNDICO R. DINAMARCO reflete sobre ele em várias passagens de "A
3
Instrumentalidade do Processo". 3
266 Naturalmente fala-se aqui do que se contém no texto de outubro de 1967.
Os acontecim entos da Perestroika e da Glasnost e os acontecimentos do
3
final de 1991 não oferecem ainda dados disponíveis para a reflexão sobre 3
os escopos da jurisdição, em épocas posteriores.
3
3
185
3
3
3
Processual Civil, como ciência que estuda a norma que disciplina
a jurisdição. Entretanto, as contribuições que chegam de outras
áreas são, como se disse, sempre bem-vindas, e tomam-se rele­
vantes quando os elementos existentes em um momento pré-ju-
rídico são investigados, identificados e apreendidos depois que
são acolhidos pelo Direito e passam a integrá-lo.
Nesse plano a Ciência do Direito dispõe de estudos verda­
deiramente preciosos, desenvolvidos sobre a ideologia, em suas
várias formas de manifestação, pelo Professor WASHINGTON
PELUSO ALBINO DE SOUZA267, que demonstram que há uma
"ideologia constitucionalmente adotada", uma ideologia que po­
de ser apreendida nos princípios constitucionais que estão na
base de todo o ordenamento normativo.
A valoração da conduta, na sociedade democrática, é feita
por ela própria' através dos processos admitidos na lei fundante
da ordem jurídica, mas é assumida pelo Estado, que detém o
poder politicamente organizado pelo Direito.
Nos sistemas democráticos, que se caracterizam pelo pluralis­
mo, em diversos planos de atuação da liberdade, que se desdobra
em liberdades no Estado e perante o Estado, em liberdades priva­
das e públicas, individuais e coletivas, a investigação da ideologia
constitucionalmente adotada pode gerar a questão para a qual a
doutrina tem despertado a atenção, a das chamadas antinomias
constitucionais — a convivência de princípios divergentes e con­

267 Cf. WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOU2A - Direito Econôm ico, São
Paulo: Saraiva, 1980, pp. 32/49; p. 133 e s.; Ideologia e Ordem Econômica,
in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, n—
23/25, 1980/1982, pp. 132/154; O Princípio Econômico no Discurso Consti­
tucional, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n2
60/61, Jan./Iul. 1985, pp. 271/319; A Experiência Brasileira da Constituição
Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte,
vol. 32, n2 32, 1989, pp. 59/96; Poder Constituinte e Ordem Jurídico-Eco-
nômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol.
30, nQ 28/29, Nova Fase, 1985/1986, pp. 51/73 e Revista de Informação
Legislativa, Brasília, vol. 23, n2 89, Jan./mai. 1986, pp. 33/48.

186
traditórios dentro da mesma ordem instituída, declarados em
sua própria base de legitimação.
Os princípios "divergentes" do texto constitucional são ex­
traordinariamente significativos, quando se pensa no pluralismo
admitido na sociedade, para cuja vida a Constituição se volta. Os
princípios contraditórios exprimem uma pluralidade de valores,
e se a sociedade é pluralista, e não monolítica, a verdadeira
contradição lógica se daria pela sua inexistência268.
É por esse ângulo que se pode entender que o princípio do
contraditório integra a vida social e se realiza plenamente na socie­
dade, o que torna o seu desenvolvimento um verdadeiro proces­
so, quando suas questões são resolvidas com a verdadeira parti­
cipação de um povo livre. Nem por outro motivo o modelo
renovado de processo, do Direito Processual, como apontou
FAZZALARI, conforme já referido, tem se expandido para os
setores das deliberações privadas, porque nenhum outro se mos­
trou mais adequado para a salvaguarda das liberdades.
Ao se admitir a separação entre o Direito material, pára cuja
apreciação o processo se desenvolve, nos casos em que o jurisdicio-
nado pede a proteção do Estado, argüindo sua lesão ou ameaça, e
o Direito Processual que disciplina o exercício do poder jurisdicio­
nal que, através do processo, apreciará o pedido e emanará o
provimento, não se pode confundir a finalidade do processo com
as diversificadas finalidades do Direito material, ou substancial.
E a finalidade do processo, compreendida em toda a exten­
são e profundidade em que se pode entender o princípio do
contraditório, ressurgirá de sua própria instrumentalidade técni­

268 A propósito de princípios contraditórios e de antinomias no texto constitu­


cional, veja-se a exaustiva análise feita por WASHINGTON PÉLUSO ALBI­
NO DE SOUZA em conferência proferida na Faculdade de Direito de Natal
(RN), sob o título "Conflitos Ideológicos na Constituição Econômica",
aguardando publicação na "Revista Brasileira de Estudos Políticos" (BL
ISSN 0034-7191), da Universidade Federal de Minas Gerais (Av. Álvares
Cabral, 211, sala 1206 - Belo Horizonte).

187
ca. N ão é ela pequena, estreita o u dispensável; a o co n trá rio , é
en o rm e, p rofu n d a e n ecessária.
Essa finalidade p erm ite qu e as p artes receb am u m a sen ten ­
ça, n ão co n stru íd a unilateralm en te p ela clarividência d o juiz, n ão
d e p en d e n te d o s princípios id eo ló g ico s d o juiz, n ã o co n d icio n a ­
da pela m agnanim idade de um fen ô m en o Magnaud, m as gerad a
na liberd ad e d e sua p articip ação recíp ro ca, e p elo re c íp ro c o
c o n tro le d o s ato s d o p ro ce sso .
A finalidade d o p ro ce sso , c o m o p ro ce d im en to desenvolvi­
d o em co n tra d itó rio e n tre as partes, n a p re p a ração d e um provi­
m e n to q u e irá p rod uzir efeitos n a universalidade d o s d ireitos de
seu d estin atário, é a p re p a ra çã o particip ad a d a sen ten ça.
O s resu ltad o s d ela n ão sã o desprezíveis. P o r ela o s h o m en s
e a so cied ad e, d o ta d o s de lib erd ad e e d e d ignidade, p o d e rã o
sab er q u e têm um d ireito assegu rad o, qu e n ão são co n d e n a d o s e
n ã o têm seu s su p o sto s d ireitos rejeitad os em n o m e d e qualquer
o u tro n om e, a n ão se r em n o m e d o D ireito, d o D ireito q u e a
p ró p ria so cied ad e form ulou e d o D ireito cu ja existên cia foi p o r
ela co n se n tid a 269.

269 Toda a polêmica questão dos escopos metajurídicos do processo deságua


no Direito material. É o Direito material, construído ou reconstruído pelas
partes em contraditório ao longo do procedimento, que é aplicado pelo
juiz ao caso concreto submetido à sua apreciação. Na atuação deste Direito
material é que se atenderá a "fins sociais" ou a "exigências do bem comum",
conforme o determina o art. 5~ da Lei de Introdução ao Código Civil
(Decreto-lei 4.657, de 04 de setembro de 1942). Nisto não há qualquer
escopo metajurídico do processo, mas aplicação, com o critério de julga­
mento, do Direito material, que deverá regular a espécie. Não poderá,
porém, o juiz vagamente invocar "fins sociais" da lei ou "exigências do bem
comum" sem uma precisa e detalhada especificação de quais sejam estes
"fins sociais" ou de qual seja o conteúdo daquilo a que chama de "bem
comum". É claro, mais que claro, que o "contraditório" permitirá que as
partes influam na construção ou na reconstrução destes "fins sociais" ou
destas "exigências do bem comum", mas tudo com os olhos postos no
direito substantivo, e que irá reger a solução da lide. Dessarte, os escopos
metajurídicos são eminentemente jurídicos e, mais, pertinentes não a n o r­
mas de processo, e sim a normas de Direito material (civil, administrativo,
do trabalho, tributário, comercial...). E, aqui, acaba o conflito!...

188
CAPÍTULO '

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. Como atividade humana, a ciência é um processo em


permanente e contínuo desenvolvimento e não um conjunto de
conhecimentos cristalizados e imobilizados no tempo. A renún­
cia da ciência a novas conquistas importa na renúncia a si própria
e ao aperfeiçoamento de suas técnicas, porque as transforma­
ções no mundo humano são permanentes e é a realidade huma­
na que exige seu progresso. A palavra de fé no crescimento da
ciência é a da confiança em sua racionalidade, a confiança de que
as respostas ainda não encontradas poderão ser alcançadas atra­
vés de um esforço conjunto, na reflexão das construções legadas
pelo passado e no seu repensar no presente, para que os resulta­
dos obtidos possam ser postos à disposição da sociedade.

2. No Direito, a ciência se construiu construindo sua técni­


ca, formulando seu instrumental teórico para unificar em mode­
los amplos o fenômeno jurídico. De posse dessa técnica, dedi­
cou-se a compreender e a elucidar seu objeto, o direito gerado
na sociedade pelos órgãos por ela legitimados a elaborá-lo.
3. A ciência do Direito Processual Civil tornou-se autôno
ao definir seu próprio domínio de investigação e ao adquirir seu
próprio instrumental teórico para o tratamento de seu objeto.
Sua autonomia, entretanto, longe de significar onisciência, re­
presentou o início de um longo caminho de construção doutri­
nária.

4. O ordenamento jurídico, naturalmente, não aguardou


pela autonomia do Direito Processual Civil para incidir sobre
fatos sociais. Tão antigos como o próprio Direito foram os diver­
sificados ritos de sua aplicação: o culto doméstico dos Manes, os
oráculos, as fórmulas, os procedimentos diferenciados que, com
seus ritualismos, chegaram ao século passado.
O procedimento era rito e era forma quando a ciência
Direito Processual Civil começou a se formar, na segunda meta­
de do século XIX, período em que o individualismo alastrava-se
por todas as formas de relações humanas e caracterizava o pró­
prio espírito da época. O instrumental teórico do Direito Proces­
sual Civil foi elaborado sobre o que havia de disponível no
campo do conhecimento e da realidade jurídica. Em sua resposta
aos problemas que deveriam encontrar solução no plano da
racionalidade, as doutrinas nascentes utilizaram os conceitos
construídos no curso da história. E da Alemanha, de WINDS­
CHEID e MUTHER, mais tarde da Itália de CHIOVENDA, expan­
diu-se um Direito Processual Civil que se consolidou em torno
do conceito do "direito de ação". Este teve a sua base na concep­
ção de direito subjetivo que se fora elaborando, a partir da Idade
Média, em dois sentidos: como um poder absoluto de que não se
presta contas ou como um poder de exigir condutas de outrem.
Dessa conexão com a ação surgia a concepção de processo como
"relação jurídica".

5. À medida que a construção jurídica resplandecia, o proce­

190
dimento, então mero rito, era repudiado. Esgotando-se na for­
ma, não merecia um esforço de reflexão mais sério. A ação
tornou-se o centro do universo do Direito Processual Civil, e
desse centro se irradiaram os conceitos que seriam utilizados no
tratamento de seu objeto, mesmo quando este foi identificado na
norma processual e no processo.
O Direito Processual Civil brasileiro deve a sua renovação
ao brilhantismo intelectual de LIEBMAN. E se desenvolveu em
paralelo com a doutrina italiana, que recebera suas bases da
Alemanha do século XIX, privilegiando, também, em suas inves­
tigações, o direito de ação.
A doutrina do Direito Processual Civil esteve consciente das
dificuldades geradas pelas múltiplas teorias da ação, mas não se
deteve suficientemente no reexame dos conceitos que estavam
em suas bases.
O direito subjetivo, a ação, a relação jurídica, o processo,
formavam um quadro conceituai desenhado no século passado
para explicar a atividade do Estado que se manifesta na jurisdi­
ção.

/ 6 . As construções teóricas desenvolveram-se para acompa­


nhar a evolução do Direito que as conquistas sociais produziam.
; E aprimoraram-se o suficiente para acolher a grande conquista
do Direito contemporâneo que já não nega mas reconhece o
conflito e busca resolvê-lo com a participação dos interessados,
em contradição. O conceito do contraditório evoluiu. Já não se
limita ao direito da parte de ser ouvida, ao direito de se defender,
mas erigiu-se como uma garantia dos destinatários da decisão de
|participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa prepa-
: ratória do ato imperativo do Estado — a sentença —, para influir
em sua formação.

7. Os conceitos que responderam a uma realidade normati­

191
va do século passado não são adequados para responder à reali­
dade normativa do mundo de hoje. O processo foi concebido
como uma relação jurídica na circunscrição de um direito marca­
do pelo individualismo.
A categoria de relação jurídica, com seu vínculo de sujeição,
foi submetida à reflexão e à crítica da doutrina do século XX,
exigidas por um direito que se transformou na ampliação das
garantias sociais. A reflexão crítica incidiu também sobre a clás­
sica concepção de direito subjetivo que era o esteio da categoria
da relação jurídica. Ao conceito de relação jurídica como vínculo
entre sujeitos foi proposta a alternativa da categoria de situação
jurídica, que permite o exame de poderes, faculdades e deveres
na correlação da poçição subjetiva com a norma.

8 . Surge no quadro dessas renovações uma nova concepção


de procedimento, como atividade preparatória do ato do Estado
de caráter imperativo, o provimento, disciplinada por uma estru­
tura normativa em que as normas se encontram em uma especial
forma de conexão. O centro de gravidade do Direito Processual
Civil começa a se deslocar. Com base no renovado conceito de
procedimento prepara-se um novo conceito de processo.
A grande contribuição para essa construção, orgânica, lógi­
ca e sistematizada, vem de ELIO FAZZALARI que, com apoio em
um quadro sólido e coerente, formula a concepção do processo
como procedimento realizado em contraditório entre as partes.

9. A jurisdição não é a manifestação de um poder sem


disciplina jurídica. Ao contrário, quando o Estado é chamado a
exercer a "função" jurisdicional ele age dentro de uma estrutura
normativa que regulamenta sua atividade. E essa estrutura nor­
mativa está construída para comportar e garantir a participação
dos destinatários do ato imperativo do Estado na fase de sua
formação. A jurisdição, estudada pelo Direito Processual Civil,

192
exerce-se nos limites do ordenamento jurídico, sob sua discipli­
na, em uma estrutura normativa, em que os atos e as normas são
conectadas em especial forma de.interdependência.

10. A identificação do processo nessa estrutura normativa,


como procedimento realizado em contraditório entre as partes,
supera a concepção de processo como relação jurídica. O contra­
ditório é oportunidade de participação paritária, é garantia de
simétrica igualdade de participação dos destinatários do provi­
mento na fase procedimental de sua preparação. A possibilidade
assegurada de participação em simétrica igualdade não se conci­
lia com vínculo de sujeição.

11. Os conceitos de garantia e de sujeição vêm de esquemas


teóricos distintos, de momentos sociais distintos, de concepções
distintas. Pela evolução do conceito de contraditório, a categoria
da relação jurídica processual já não é logicamente admitida.
Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição
ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato
final do processo, de cuja preparação participam, e não ao juiz. A
categoria da relação jurídica já não é própria para a concepção
de processo centrada na garantia do contraditório, porque não é
com ela compatível: ou existem vínculos de sujeição ou existe
liberdade garantida de participação.

12 . O processo, libertado do conceito de relação jurídica,


renova-se na renovação do conceito de procedimento. O proces­
so é um procedimento, mas não dos ritos e das formas a se
justificarem a si mesmos. Um procedimento realizado em contra­
ditório entre as partes, que trazem seus interesses contrapostos,
seus conflitos e suas oposições à discussão no âmago da ativida­
de que se desenvolve, até o momento final, um procedimento
para a emanação de uma sentença participada, da sentença que é
ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo
Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a
participação, em garantia de simétrica paridade, dos interes­
sados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos.

13. Na concepção de processo como procedimento realiza­


do em contraditório entre as partes, renova-se, também, o con­
ceito de ação como série de "posições subjetivas compostas",
atribuída às partes, no processo, em todo o curso do processo,
em correlação com as atividades do juiz, no exercício da função
da jurisdição.
■*
14. Na estrutura normativa do processo, os poderes, facul­
dades e deveres das partes não podem ser exigidos. Têm elas a
liberdade de transformá-los em ônus. Mas a função jurisdicional
é do Estado que não pode renunciar ao poder da jurisdição que
é o "poder de cumprir o dever" da resposta, o dever de emanar o
provimento. Ação e Função: o agir no processo, no curso do
processo, com as garantias do processo e sob a disciplina do
processo, em uma situação de legitimação.

15. O contraditório foi definitivamente conquistado como


um direito das partes, foi consagrado, no Brasil, como garantia
constitucional, e se transformou em uma exigência da instru-
mentalidade técnica do processo. A idéia que está em sua base é
a da evolução da prática da democracia e da liberdade, em que os
interesses divergentes ou em oposição encontram espaço garan­
tido para sua manifestação, na busca da decisão participada.

16. Enquanto não se podia pensar a função jurisdicional

194
com a participação das partes na fase de preparação da sentença,
a reflexão jurídica se ateve à missão do juiz, e projetou nele a
grande esperança de se retificarem as injustiças do Direito posi­
tivo.

17. Com as novas conquistas do Direito, o problema da


justiça no processo foi deslocado do "papel-missão" do juiz para
a garantia das partes. O grande problema da época contemporâ­
nea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais,
das convicções íntimas do juiz. E o d e que os destinatários do
provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo juris­
dicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua
formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade,
podendo compreender por que, como, por que forma, em que
limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para
negar pretensos direitos e para impor condenações.

18. A instrumentalidade técnica do processo, como ativida­


de regida por uma específica estrutura normativa que prevê a
participação dos destinatários do provimento no iter que o pre­
para é repensada em uma nova dimensão.

19- Os fins metajurídicos do processo não possuem crité­


rios objetivos de aferição no Direito Processual Civil. Se o exercí­
cio da função jurisdicional se manifesta sob a disciplina do orde­
namento jurídico, e nos limites por ele definidos, "qualquer fim
do processo só pode ser jurídico" (Cf. rodapé 268).

20. A concepção do processo como procedimento realizado


em contraditório não comporta fins extrajurídicos, porque a
preparação participada do provimento válido é juridicamente

195
disciplinada. O provimento se forma sob a regulamentação de
toda uma estrutura normativa que limita a manifestação da juris­
dição e assegura às partes o direito de participação igual, simétri­
ca e paritária, na fase que prepara o ato final (Cf., novamente,
rodapé 268).

21. Entre o processo e a situação de direito material já não


se concebe uma relação de necessidade lógica, e, em conseqüên­
cia, a existência dessa situação não é medida cie utilidade-do
processo. Ao Judiciário incumbe apreciar lesão ou ameaça a
direito, para deferir ou rejeitar as medidas requeridas, e essa
função já não se cumpre pelo prévio controle da existência da
lesão ou ameaça. Entre o ato de apreciação, o objeto da aprecia­
ção e o resultado da apreciação, há diferenças manifestas.

2 1 . 1 . O processo cumprirá seu escopo existindo ou inexis-


tindo a lesão ou a ameaça alegadas, ou deficientemente alegadas,
ou ineptamente alegadas. Em face da estrutura normativa que
rege a preparação do provimento, este será emanado, em sua
natureza de ato imperativo, se corretamente realizado com a
garantia da participação das partes, em contraditório, ainda que
a medida jurisdicional requerida não possa ser concedida.

21.2. A finalidade do processo de atuar o direito é condicio­


nada à constatação, no iter procedimental, da existência de um
direito lesado a ser atuado. E a medida da justiça da decisão será
a mesma medida da justiça do direito material.

2 1 .3 . O processo, como procedimento realizado em contra­


ditório entre as partes, cumprirá sua finalidade garantindo a
emanação de uma sentença participada. Os seus destinatários já
não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juizes,
porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua
dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender

196
que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um
pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes,
mas apenas em nome do Direito, construído pela própria socie­
dade ou que tenha sua existência por ela consentida.

22. Este estudo foi iniciado por uma reflexão sobre a cíclica
crise de confiança da cultura ocidental na razão, crise què se
estende à racionalidade do Direito. E conclui pela afirmação da
necessidade de se recuperar a função social do conhecimento. As
práticas caóticas, e as aventuras experimentais, sem maiores
compromissos com a fundamentação, quando se destinam a
influir no campo social, atingindo liberdades, têm provocado
ingentes sofrimentos, muitos deles irremediáveis.

2 Í2. 1 . O conhecimento fundamentado permite, ao'menos,


que seja afastado o argumento autoritário que não se explica
senão pela força que o sustenta.

23. A ciência do Direito Processual Civil não traça normas


para a sociedade, tal como a racionalidade lógica da ciência não
é jamais normativa. Mas ela pode ampliar os horizontes da liber­
dade, possibilitando que haja verdadeira escoltfa, lúcida e inteli­
gível, entre opções possíveis, da utilização que a sociedade pu­
der fazer dos resultados de suas investigações.

197
ÍNDICE

INTRODUÇÃO....................................... ........................................

CAPÍTULO I
CIÊNCIA E TÉCNICA
1.1. A C iência............................................................................
1.2. A T écnica.............................................. - ...........................
1.3- Relações Entre Ciência e T écn ica...........................-. .

CAPÍTULO II
CIÊNCIA JURÍ DICA E TÉCNICA JURÍDICA
2.1. Relação Entre Ciência Jurídica e Técnica Jurídica . .
2.2. Os Campos da Investigação do Direito ....................
2.3- Dogmática Jurídica e Teoria Geral do Direito . . . .
2.4. A Técnica Ju ríd ic a ............................................................
2.5. O Auxílio da L ó g ic a .........................................................
2.5.1. Mitificação e D esm itificação...........................
2.5-2. Um Instrumento para um Raciocínio . . . .
CAPÍTULO III
CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL
; 3 -1. A Ciência do Direito Processual e seu Objeto . . . . 45
l 3-2. A Necessidade da Distinção Entre a Ciência e
seu O b je to ......................................................................... 47
3.3- A Norma Processual..................................... 48
3.4. AJ u r is d iç ã o ......................................................... ... 50
3 5. O P ro cesso ............................................................•. . . . 55

I CAPÍTULO IV
PROCESSO E PROCEDIMENTO
4.1. Processo e Procedimento: multiplicidade de
Acepções ............................................................... 59
l 4.1.1. Processo .................................................. 59
! 4.1.2. Procedim ento.................................................. I 61
[ 4.2. Procedimento e Processo: Duas Tendências
i Teóricas D istin tas............................................................. 62
| 4.2.1. Procedimento e Processo: A Distinção Baseada
em Critério "Teleológico"................................. 64
4.2.2. A Base da Distinção pelo Critério
y-j j‘ T e le o ló g ic o .................................. ....................... 66
22 1 4.2.3- Procedimento e Processo Vistos Sob Uma
24 | Perspectiva Lógica ............................................ 67

CAPÍTULO V
O PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA
27 5 1. Relação Jurídica Processual............................................ 70
28 j 5.2. A Questão da Relação J u r íd ic a ..................................... 73
29 5 3. A Questão do Direito Subjetivo ..................................75
31 5 4. As Dificuldades na Aplicação do Modelo Clássico de
36 , Relação Jurídica e do Clássico Conceito de
36 Direito Subjetivo ............................................................78
39 5 5. As Reações da Doutrina e a Formulação de
,! Novas Propostas............................................................... 81
5.6. A Negação da Relação Jurídica Pela sua Redução a Uma
Conexão de Normas e a Correlata Negação do Direito
Su bjetiv o............................................................................ 81
5.7. A Teoria das Situações Ju r íd ic a s ................................85
5.8. Direitos Subjetivos e Situação Ju ríd ica...................... 90
5-9- O Problema do Direito Subjetivo Como Poder
de Exigir a Conduta de Outrem . ............................91
5.10. A Questão da Concepção do Processo Como
Relação Ju r íd ic a ............................................................... 97

CAPÍTULO VI
O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO
EM CONTRADITÓRIO ENTRE AS PARTES
6.1. Procedimento: Atividade Preparatória do
Provimento ......................................................................102
6.2. A Renovação do Conceito de Procedim ento............ 103
6.3. A Contribuição de ELIO FAZZALARI......................... 105
6.3.1. O Processo Como Espécie do Gênero
Procedimento ......................................................111
6.3 2. O Processo Como Procedimento Realizado em
Contraditório ........................................ ... 115
6.4. O C ontraditório............................................................ . 119
6.5. Condições e Resultados da Caracterização do
C o n trad itó rio ...................................................................129

CAPÍTULO VTI
A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO
7.1. A Ação: Resposta da Ciência ao Problema de
Uma É p o ca ......................................................................... 133
7.2. A Revisão do Conceito de A çã o ....................................143

CAPÍTULO VIII
A SITUAÇÃO DE DIREITO MATERIAL E O PROCESSO . . . 1 55
CAPÍTULO IX
AINSTRUMENTALIDADE TÉCNICA DO PROCESSO
9-1. O Processo Como T é c n ic a ..........................................168
9-2. A Finalidade do Processo Jurisdicional ................... 170
9 3- A Proteção de Direitos ............................................... 171
9.4. A Proteção de Direitos M ateriais............................... 173
9 5- A Proteção do Direito Lesado ou Ameaçado........... 175
9-6. A Questão dos Escopos Metajurídicos do Processo . 179

CAPÍTULO X
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................. ... 189

BIBLIOGRAFIA............. .................................................................199
ÍNDICE DE AUTORES................................................................. 212
ÍN D ICE.................................................................. ; . ...................220

You might also like