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Apesar da relação íntima e simbiótica entre a adequação de escala e objetivos. Antes de entrar
Arqueologia e as Ciências Sociais, não seria exa- nestes tópicos, porém, seria interessante começar
gero dizer que a Arqueologia como disciplina ou do início, ou do nascimento de uma disciplina cha-
empreendimento científico é extremamente liga- mada Pré-História e das condições que levaram a
da às Geociências. O modelo de Arqueologia que este nascimento.
temos no Brasil é bastante influenciado (ao menos
em retórica) pela "New Archaeology", e com isto
importamos também um modelo acadêmico. A li-
A História Natural, a
gação da Arqueologia com a Antropologia é bas- Geologia e a Pré·História
tante forte nos Estados Unidos, a ponto de quase
todos os cursos de Arqueologia estarem inseridos Para chegarmos à Arqueologia é necessário en-
em departamentos de Antropologia. Esta porém tender antes o processo de acumulação de co-
não é uma associação universal e automática; em nhecimentos geológicos que prepararam o terreno e
vários países da Europa, a Arqueologia está mais permitiram o aparecimento de qualquer coisa que se
intimamente ligada aos centros de Geologia do assemelhasse à nossa disciplina. Primeiramente, po-
Quatemário; em outros países, aos departamentos deríamos citar Nicolaus Steno (1968 [1669]), que em
de História. No Japão, por exemplo, a Arqueologia meados do século xvn enunciou o "princípio da
insere-se comumente nos departamentos de Letras. superposição de camadas", segundo o qual dada uma
A situação no Brasil não é cristalizada, e temos sucessão de camadas geológicas, a que está em bai-
núcleos de Arqueologia tanto em departamentos xo é sempre mais antiga do que a que está em cima.
de História como em departamentos de Ciências Além desse conhecido princípio, Steno também ob-
Sociais. De qualquer modo, sem negar o fato de servou que conchas fossilizadas encontradas nas ro-
que a Arqueologia é uma disciplina voltada para o chas eram remanescentes de animais semelhantes aos
entendimento da trajetória humana, é fácil esque- que ainda existiam. Apesar de este e outros trabalhos
cer que seus métodos e material de estudo são in- versarem sobre características gerais da Terra, o es-
timamente ligados às Ciências da Terra. O que pro- tudo mais detalhado dos estratos, o próprio desen-
curarei mostrar neste artigo é que as características volvimento da estratigrafia, só seria efetivado por
do material estudado pela Arqueologia, bem como razões comerciais: em plena Revolução Industrial,
o meio onde este material está inserido e todos os percebeu-se que as camadas de carvão poderiam ter
procedimentos necessários para sua recuperação sua profundidade e espessura estimadas pelo estudo
são moldados por fatores cuja dinâmica é eminen- da estratigrafia. Após um período de grande pragma-
temente natural. A meu ver, seja de maneira cons- tismo, iniciaram-se as especulações a respeito das re-
ciente ou inconsciente, os arqueólogos utilizaram lações entre estratos e a história da Terra. Georges
e continuam utilizando conceitos e paradigmas ad- Cuvier, Alexandre Brongniart e William Smith são
vindos diretamente da Geologia e Geografia, her- exemplos de naturalistas que observaram, na
dados do século XIX, sem haver no entanto uma primeria metade do século XIX, a existência de fós-
seis distintos em camadas distintas, a correlação
entre fósseis e camadas, e a possibilidade de se or-
(*) Doutorando do Museu de Arqueologia e Etnologia da denar eventos cronologicamente, por meio da su-
Universidade de São Paulo. perposição das camadas (Grayson 1983).
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ARAUJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
Até 1859, a maior parte dos filósofos e natura- antigüidade do homem, na verdade o uniforrnitaris-
listas ocidentais considerava o advento da huma- mo não implicava em nada desta natureza; o pró-
nidade como um fenômeno recente, baseados prin- prio Lyell demorou trinta anos para aceitar a idéia
cipalmente em preceitos religiosos. O nascimento de que homens e animais extintos haviam coexis-
do que hoje conhecemos por Arqueologia se deve tido em alguma época da história da Terra, tendo
a uma conjunção de fatores: naturalistas por um publicado a primeira edição de Geological Eviden-
lado, preocupados com aspectos geológicos e ces o/ the Antiquity o/ Man somente em 1863 (Lyell
paleontológicos, encontravam artefatos imersos em 1973 [1873]). É interessante também notar que,
camadas antigas mas não lhes davam muito valor. apesar de ter sido introduzido como um princípio
Antiquários à cata de artefatos, por outro lado, não geológico, é bem provável que o uniformitarismo
os procuravam em depósitos antigos porque já su- tenha sido a semente de uma abordagem bastante
punham não haver artefatos em tais depósitos, e utilizada posteriormente em Arqueologia: a ana-
mesmo que porventura achassem, não tinham ne- logia etnográfica, que será abordada mais à frente.
nhuma preocupação com a estratigrafia ou o con- Desenvolvimentos anteriores da disciplina já
texto geológico dos locais de achado. Quando fi- dependiam fortemente de princípios geológicos.
nalmente ocorria alguma descoberta mostrando as- Por exemplo, o "princípio de associação" de Wor-
sociação entre fauna extinta e artefatos, o paradig- saae, proposto em 1843, dizia que artefatos encon-
ma dominante na Geologia, denominado "catastro- trados em uma tumba muito provavelmente teri-
fismo", impedia que as descobertas fossem levadas am pertencido ao morto e, portanto, seriam contem-
a sério. O catastrofismo era uma corrente teórica porâneos. Em suma, altefatos encontrados em uma
que defendia a existência de vários eventos catas- mesma camada teriam a mesma idade, o mesmo
tróficos (dos quais o dilúvio bíblico seria um exem- princípio já exposto por Cuvier em 1808.
plo), explicando a superposição das rochas na face É certo que algumas inferências sobre o ma-
da terra. Por esta lógica, não poderia haver fósseis terial arqueológico foram feitas de maneira inde-
humanos de idades muito recuadas. A contrapartida pendente da Geologia; um exemplo seria o siste-
do catastrofismo era o princípio do uniformitaris- ma de três idades (Idade da Pedra, Idade do Bron-
mo, segundo o qual os processos existentes atual- ze e Idade do Ferro). A ordenação cronológica des-
mente na Terra seriam a chave para o entendimen- tas três idades foi feita com base no estado de con-
to do passado. Charles Lyell era um dos principais servação dos túmulos e do tipo de artefatos en-
defensores do princípio do uniformitarismo. Suas contrados no século XVIII. Posteriormente, no sé-
idéias foram publicadas no livro PrincipIes o/ Geo- culo XIX, o dinamarquês Christian Thomsen utili-
Iogy, publicado entre 1830 e 1833. Foi somente em zou o sistema de três idades para organizar uma
1840 que as duas tradições (antiquarismo e natu- coleção de antigüidades dinamarquesas (Graslund
ralismo) se combinaram no trabalho de um único 1981). Seu sucessor, Jens Worsaae, pode ser con-
indivíduo: Jacques Boucher de Perthes, um oficial siderado o primeiro arqueólogo profissional, e ao
de aduana cujo passatempo eram escavações de contrário de Thomsen era voltado para trabalhos
cunho arqueológico. Boucher de Perthes encon- de campo. Por meio de escavações estratigráficas,
trou artefatos de pedra lascada em níveis de casca- Worsaae foi capaz de confirmar a seqüência de
lho supostamente muito antigos, ou "ante-diluvia- idades dos artefatos. Outro mérito de Worsaae está
nos", sugerindo portanto uma grande antigüidade relacionado ao desenvolvimento de estudos inter-
para a espécie humana. O trabalho de Boucher de disciplinares. Já em 1848 uma comissão encabeça-
Perthes foi porém desacreditado por quase duas da por Worsaae e composta de um biólogo e um
décadas, até ser confirmado por vários geólogos, geólogo estudaram sítios conchíferos na costa da
incluindo o renomado Charles Lyell, cognominado Dinamarca. O estudo rendeu a publicação de seis
o "pai" da Geologia moderna. Isto só foi possível volumes, mostrando que os montes de conchas
após o advento desta verdadeira revolução no pen- eram de origem humana, e identificando o paleo-
samento geológico, ou a suplantação do catastro- ambiente reinante nas imediações, os tipos de ani-
fismo pelo uniforrnitarismo (Daniel 1975). mais domesticados e a época do ano em que os
É importante notar que, apesar de aparecer em sítios tinham sido ocupados. Desse modo, pode-
vários livros como tendo constituído uma condi- se dizer que a Arqueologia pré-histórica já estava
ção básica para o desenvolvimento da idéia de bem definida como disciplina em algumas regiões
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ARAUJO, A.GM. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Emologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
da Europa, como a Escandinávia, Escócia e Suíça, Pitt-Rivers (DanielI964: 73), Escavações extrema-
antes de 1859. A base da disciplina era a construção mente cuidadosas, sem a predileção por artefatos
de cronologias relativas, baseadas em seriação e "bonitos" ou "obras de arte", onde a estratigrafia e
estratigrafia, onde todos os materiais arqueológi- proveniência individual dos artefatos era a regra,
cos poderiam ser encaixados de maneira satisfató- foram realizadas por Pitt-Rivers. Outro arqueólo-
ria. Após 1860, o desenvolvimento da Arqueologia go com bastante peso no desenvolvimento de mé-
pré-histórica deu-se principalmente na França, todos foi Flinders Petrie, que realizou escavações
onde Edouard Lartet e Gabriel de Mortillet, ambos no Oriente Médio. Além do uso extensivo de re-
com formação em Paleontologia e Geologia, rea- gistros meticulosos e estratigrafia, Petrie foi o pio-
lizaram escavações em várias cavernas. A determi- neiro do uso da estatística na análise de dados, em
nação cronológica passou a ser mais dependente 1886 (Bahn 1996:149). Raphael Pumpelly, então
ainda do posicionamento estratigráfico dos acha- presidente da "Geological Society of America",
dos, uma vez que o material encontrado era com- teria demonstrado o potencial de uma abordagem
posto principalmente de material lítico lascado e interdisciplinar ao escavarmontículos (kurgans)
ossos trabalhados; não facilmente sujeitos a uma no Turkestão, em 1906, coletando não só artefa-
classificação estilística, ou seriação (Trigger 1989). tos como ossos de animais e material paleobotâni-
Neste ponto, é suficiente deixar claro que nos- co, anotando a proveniência estratigráfica dos mes-
sa disciplina nasceu como um problema geológi- mos (Gifford & Rapp 1985:10). Infelizmente, estes
co. Um problema de associação de vestígios, um pesquisadores pioneiros não formaram escola e
problema de estratigrafia e de cronologia. Ao mes- seus métodos foram por muito tempo esquecidos.
mo tempo, a inserção da Arqueologia pré-históri- A implementação efetiva de tais métodos só foi
ca na problemática geológica teria algumas con- realizada após a Primeira Guerra Mundial, com os
seqüências bastante fortes, principalmente na Fran- trabalhos de Mortimer Wheeler na Europa (Daniel
ça: resíduos de lascamento e artefatos não consi- 1964), e nos Estados Unidos com o trabalho de
derados "diagnósticos" eram descartados, uma vez Alfred V. Kidder (Lyman et ai. 1997). Os motivos
que seu único valor estava na possibilidade de ser- do distanciamento entre Arqueologia e Geologia
virem como elementos para estabelecer a antigüi- que ocorreu após a virada do século parecem se
dade do homem. Mortillet e outros geólogos e dever a dois fatores: uma maior influência da Geo-
paleontólogos da época foram capturados pelo en- grafia humana e da Etnologia na pesquisa arqueo-
tusiasmo evolucionista da época, um evolucionis- lógica (DanieI1975:243) e, nos Estados Unidos,
mo unilinear que pouco tinha a ver com as idéias uma delimitação mais rígida das disciplinas (An-
de Darwin. Uma das características desse evolucio- tropologia e Arqueologia versus Geologia), fazen-
nismo cultural (que não deve ser confundido com do com que os estudantes de universidades con-
o evolucionismo científico; vide Dunnelll980) era ceituadas como Harvard e Pennsylvania não tives-
a idéia de que o desenvolvimento cultural da hu- sem mais a formação abrangente de seus prede-
manidade poderia ser representado em uma única cessores (Gifford & Rapp 1985:11).
seqüência e lido no perfil estratigráfico de uma ca- O nascimento do paradigma histórico-cultu-
verna, assim como uma seqüência geológica pode- ral, cujo objetivo maior era a organização de ele-
ria ser lida em rochas estratificadas (Trigger 1989: mentos arqueológicos em entidades maiores de-
99). É importante notar que esta visão se distanci- nominadas "culturas" ou "tradições" e suas res-
ava da tradição escandinava, que era igualmente pectivas cronologias, também dependeu fortemente
baseada em uma abordagem geológica, mas com da estratigrafia como ferramenta de datação rela-
objetivos mais amplos. tiva. A principal mudança, porém, ocorreu no aban-
dono do evolucionismo cultural e sua busca por
estágios universais de desenvolvimento, para uma
Arqueologia e Geologia: maior preocupação com detalhes mais específicos
o início do distanciamento
e uma aproximação com a História. O paradigma
histórico-cultural era bastante coeso, e os profissi-
o final do século XIX e o início do século onais da época tinham um grande consenso no que
XX pre<;enciaram ainda uma revolução em termos se referia aos métodos e objetivos da disciplina
".= étodo, iniciada por figuras como o General (Sackett 1981). Apesar de objetivos bastante limi-
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AR.A.UJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e El71ologia. São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
tados, a abordagem histórico-cultural era, por outro ria era advinda da Antropologia. O produto final
lado, extremamente eficiente no que fazia. O suces- do reconstrucionismo seria o ponto de onde o etnó-
so da seriação por freqüência, desenvolvida por Kroe- logo começa a trabalhar. Aqui entramos no para-
ber (1916) e utilizada extensivamente por Kidder, lelo já mencionado com o uniformitarismo geoló-
Ford e seus alunos, viria a fechar mais o círculo de gico; a analogia etnográfica era uma das felTamen-
interesses desta abordagem. A construção de uma tas mais utilizadas na tentativa de se reconstruir
seqüência "seriável" por sua vez dependia da es- comportamentos, maneiras de pensar e atividades
tratigrafia. O princípio da superposição de cama- cotidianas. O uniformitarismo porém implica na
das entrava em uso novamente. ausência de mudança, ou em ciclos perpétuos.
Por fim, os anos 60 viram uma reorientação Apesar de elemento chave no estabelecimento ini-
de objetivos que culminou na chamada "New Ar- cial da Geologia como ciência moderna, sabe-se
chaeology" (p. ex., Binford 1962,1968). Umapreo- hoje que o unifoITnitarismo tem uma aplicação bas-
cupação em tornar a Arqueologia mais "científi- tante restrita quando se trata de entender a história
ca" e ao mesmo tempo mais "antropológica", jun- da TelTa. Muitos dos processos existentes no pas-
tamente com a adoção do neo-evolucionismo cul- sado não têm cOlTelatos atuais. Outros processos,
tural de Leslie White, foram a'sprincipais caracte- como a tectônica de placas, não são verificáveis em
rísticas do movimento. Este período que se estende uma escala temporal humana, ou em uma aborda-
do final dos anos 50 até hoje merece uma discus- gem sincrônica, sendo necessária uma perspectiva
são mais aprofundada no tocante às relações entre histórica para compreendê-los. A confusão prin-
a Arqueologia e as Ciências da TelTa. cipal, porém, reside na não identificação de dois
tipos bastante distintos de unifoITnitarismo: o uni·
formitarismo de processos (ou processual) e o
A "New Archaeology" e a Antropologia uniformitarismo substantivo (Dunnell 1986).
Uma coisa é dizer que processos em grande escala
O que conhecemos por "New Archaeology" é OCOlTeramno passado e continuam a ser atuantes
um conjunto de abordagens que tem se ramificado hoje em dia; tal é o caso do uniformitarismo geo-
bastante desde o começo do termo nos anos 60. lógico, da lei da gravidade ou da Teoria da Evolu-
Um dilema mal resolvido, decolTente da tentativa ção. Outra coisa bem diferente é dizer que um de-
de ser científico e antropológico ao mesmo tem- teITninado artefato, que tem uma aparência X, foi
po, resultou em uma bifurcação cujos ramos fo- usado em uma atividade Y porque existe um COlTe-
ram denominados "reconstrucionismo cultural" ou lato atual (ou etnográfico) que é bastante parecido.
"arqueologia antropológica" por um lado, e "pro- Este último tipo de atualismo, um atualismo subs-
cessualismo" por outro (Dunnell 1978, 1979). As tantivo, que parte do princípio que existe uma imu-
raízes do "reconstrucionismo cultural," na verda- tabilidade na relação forma/comportamento/fun-
de, podem ser traçadas desde o final do século XIX, ção, não pode servir de base a uma disciplina cujo
mas esta abordagem ganhou mais força com a principal objeto de estudo é justamente a mudança,
"New Archaeology". Basicamente, o reconstrucio- A outra ramificação da New Archaeology, que
nismo tomou a Antropologia Cultural como mo- poderíamos então chamar de processualismo, ti-
delo (p.ex., Chang 1967). Contrastado com um nha uma visão do registro arqueológico talvez mais
modelo de sociedade em plena operação, o registro próxima à realidade, além de um enfoque diacrô-
arqueológico só pode ser considerado como algo nico e evolutivo, potencialmente permitindo o en-
pobre e incompleto. Os proponentes desta abor- tendimento de processos de mudança ao longo do
dagem se voltaram então a tentativas de "folTar os tempo, com a busca de regularidades e menor ên-
ossos de carne", fazer reviver culturas passadas, fase para as particularidades. A abordagem proces-
estabelecer cenas do cotidiano de sociedades pré- sualista por sua vez também caiu em algumas ar-
históricas; em suma, tentaram entender o registro madilhas: a utilização de uma visão sincrônica do
arqueológico nos moldes completamente sincrô- tempo, que é incompatível com a abordagem evo-
nicos, sem profundidade temporal, que caracteri- lutiva, foi emprestada da História Cultural. A adap-
zam a Antropologia. Neste contexto, havia pouco tação foi tratada de um ponto de vista ecológico,
ou nenhum espaço para qualquer teoria de cunho e, portanto, sincrônico. Outro problema, desta vez
arqueológico, uma vez que toda a teoria explanató- originário do reconstrucionismo cultural, era a cren-
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ARAUJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
ça de que o objeto de estudo da Arqueologia era o "Geologia arqueológica"l do que do tipo "Geoar-
comportamento humano, e não os fenômenos en- queologia", Seria necessário um elemento catali-
contrados no registro arqueológico. Esta postura zador. A meu ver, um dos maiores motores do
forçou os arqueólogos a manipular inferências ao desenvolvimento e aceitação da Geoarqueologia
invés de fenômenos, culminando em um beco sem foi, paradoxalmente, a abordagem reconstrucio-
saída bastante explorado posteriormente pelo pós- nista. A ansiedade sofrida por arqueólogos re-
processualismo. construcionistas ao compararem o "empobrecido"
registro arqueológico com sociedades tribais atu-
ais tinha que ser compensada por um corpo de co-
o nascimento da Geoarqueologia nhecimentos que permitisse a tradução de peda-
ços de pedra e ossos em comportamento humano,
As digressões anteriores tiveram por objetivo e quanto mais detalhady melhor. O fato de que o
fornecer um pano de fundo para discutir o apare- registro era incompleto não era novidade. Mas tal-
cimento da Geoarqueologia. O desenvolvimento vez um estudo minucioso desse registro pudesse
desta abordagem, e notem que não uso o termo permitir o entendimento de regras de parentesco e
"subdisciplina" ou "subcampo" por razões que vou repartição de trabalho, passando por idiossincrasias
deixar mais claras adiante, deu-se por vários moti- e ideologia. Dois artigos de Michael Schiffer pa-
vos: um deles está relacionado ao desenvolvimen- recem ter canalizado esforços neste sentido:
to natural da disciplina, que contava com um nú- "Archaeological context and systemic context"
mero respeitável de praticantes. Se for permitida (Schiffer 1972) e "Toward the identification of for-
aqui uma observação completamente empírica, mation processes" (Schiffer 1983). Apesar de
uma disciplina só parece avançar realmente quan- demonstradamente não possuir muita familiarida-
do a massa crítica, ou o número de praticantes, atin- de com as Geociências, Schiffer estava falando a
ge um certo patamar. No caso da Arqueologia nor- língua de seus colegas, e talvez por isso tenha tido
te-americana, um grande aumento no número de mais sucesso do que o alcançado por Butzer. Se-
praticantes espalhados por um maior número de gundo Schiffer, era necessário entender as transfor-
universidades parece ter promovido o aporte de mações por que passava o registro arqueológico
profissionais de outras áreas, com outras visões antes de se reconstruir o comportamento humano
de mundo e dominando técnicas muitas vezes des- extinto. Uma nova porta se abria, uma nova es-
conhecidas dos arqueólogos. Este parece ter sido perança nascia, desde que o registro arqueológico
o caso das Ciências da Terra. O fator acadêmico- fosse devidamente entendido, A dura realidade é
demo gráfico porém é necessário, mas não suficien- que, independente de construções mentais como
te. A colaboração extremamente proveitosa entre "sítio", "acampamento", "cemitério" ou o que fos-
arqueólogos, geólogos e geógrafos já se fazia sen- se, o registro arqueológico é um pacote sedimentar.
tir desde meados do século XIX. Como foi visto, Deste ponto em diante, ficou claro que não se podia
esta relação arrefeceu em maior ou menor grau na mais ignorar o fato de que o registro arqueológico
virada do século, uma possível exceção sendo a era o objeto de estudo, a partir do qual inferências
Inglaterra (Gifford & Rapp 1985:14-15). Mais re- comportamentais poderiam, talvez, ser realizadas.
centemente, temos em Karl Butzer (p. ex. 1972, Desde então, a bibliografia no tópico cresceu
1982) um exemplo de profissional das Ciências da exponencialmente, e permeou várias abordagens
Terra cuja atuação intensa em Arqueologia resul- teóricas. Revistas especializadas foram publicadas,
tou em trabalhos extraordinários desde o início dos e nosso conhecimento a respeito de processos de
anos 60. Mesmo assim, a visão da necessidade de formação de sítios arqueológicos alcançou um pa-
integração plena entre Geociências e Arqueologia tamar respeitável. Ao mesmo tempo, as expectati-
demorava a decolar, conforme o próprio Butzer vas reconstrucionistas foram amplamente frustra-
(1982:5) chegou a afirmar, ao diferenciar a Geo- das. A meu ver, ao se debruçarem sobre o registro
logia Arqueológica - Geologia realizada com um arqueológico, arqueólogos, geólogos, geógrafos e
viés ou aplicação arqueológica - da Geoarqueo-
logia - arqueologia realizada com a ajuda de mé-
todos geológicos. Mesmo na Inglaterra, a relação (1) O livro publicado por Rapp & Gifford em 1985 tem como
entre Arqueologia e Geologia era mais do tipo título Geologia Arqueológica e não Geoarqueologia.
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_·\RAUJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
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ARAUJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueolooia
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
nas acumulando informações desconexas sem uma longo do tempo implica também no aparecimento
finalidade última. Uma síntese deveria resultar de de traços com grande potencial informativo.
tal esforço, e este é o produto final de nossa disci- Binford (1977) divide a teoria arqueológica
plina, a explanação em termos arqueológicos. em dois níveis; uma teoria geral e uma teoria de
Vários autores já escreveram sobre a estrutu- alcance intermediário (middle range theory). O
ra teórica de nossa disciplina. David Clarke (1973) desenvolvimento de uma teoria geral de cunho ar-
dividiu a teoria arqueológica em cinco componen- queológico teria de se valer do desenvolvimento
tes, a saber: 1) Teoria Pré-deposicional e Deposi- simultâneo de uma teoria de alcance intermediá-
cional; 2) Teoria Pós-deposicional; 3) Teoria de Re- rio, que buscaria a identificação de "correlatos",
gistro; 4) Teoria Analítica; e 5) Teoria Interpreta- "âncoras" que pudessem permitir uma conversão
tiva.Estes componentes estariam ligados à suces- correta e não ambígua entre o estático (registro ar-
siva perda de informação sofrida pelo registro ar- queológico) e o dinâmico (sistema cultural). O au-
queológico, e à maneira de extrair informações do tor coloca uma forte ênfase no uso de princípios
mesmo. Posteriormente Alan Sullivan (1978) ela- uniformitaristas para alcançar tal objetivo, e igua-
borou um pouco mais os conceitos de Clarke, e aten- la a teoria de alcance intermediário à teoria inter-
tou para o fato de que não ocorre apenas perda de pretativa de Clarke (Binford 1983:422). O mode-
informações, mas adição também (vide Figura 1). lo estrutural de Binford não será adotado por dois
A trajetória de artefatos e feições soterrados ao motivos: primeiramente, o uso de princípios uni-
Níveis de Informação
Nível 1
Atividade Humana
Processos Sociais
~ _P!~C_~~~_~s
~J:!l~i~n~~is
-' _~
Nível 3 Níve14
ganho
Nível 5
Material analisado
e publicado
formitaristas não parece ser muito adequado como tro durante o andamento de uma pesquisa arqueo-
base para a construção do conhecimento em Ar- lógica. Além disso, visualizar as relações entre es-
queologia que, afinal de contas, procura entender tes corpos teóricos permite também um melhor pla-
mudanças. Além disso, o modelo também coloca nejamento da pesquisa, na medida em que somos
todos os diferentes corpos teóricos que envolvem obrigados a tomar explícitas as decisões tomadas;
a Arqueologia em apenas duas classes, sendo um cada uma delas deve se encadear de alguma forma
tanto simplista. com as decisões derivadas dos corpos teóricos re-
Schiffer (1988) propõe uma divisão da estru- lacionados. A aplicação de métodos (o porquê de
tura da teoria arqueológica em três grandes domí- aplicá-los) geralmente deriva de uma teoria, e aque-
nios, que seriam a Teoria Social, a Teoria de Re- les só são implementados por meio de técnicas. A
construção e a Teoria Metodológica. A meu ver, ausência de um entendimento do encadeamento
os problemas começam pela escolha dos rótulos entre corpos teóricos pode resultar nas chamadas
aplicados aos domínios teóricos: "Teoria Social", "técnicas em busca de uma utilização". O pesqui-
apesar do nome, não tem uma relação direta com a sador aplica alguma técnica que deveria estar em-
Sociologia, abrangendo qualquer teoria abraçada butida em algum método que por sua vez seria de-
pelo arqueólogo, desde o Marxismo até a Teoria rivado de uma teoria, mas na falta dos dois últimos
dos Sistemas. "Teoria da Reconstrução" parece ser obtêm-se resultados que podem até ser interessan-
o que Clarke chamou de Teoria Deposicional e Pós- tes, mas são desprovidos de uma articulação com
Deposicional, e talvez muito do que Binford cha- o restante.
mou de middle range theory. A palavra "recons- Neste modelo, a Teoria Explanatória poderia
trução" porém é extremamente infeliz por sugerir ser o que Schiffer (1988) chamou de social theory
algo que na realidade não acontece, nunca aconte- e Clarke (1973) chamou de pre-depositional theo-
cerá e nem deveria ser o objetivo da Arqueologia, ry; a Teoria Formativa abrange o que Clarke (op.cit.)
ou seja, a reconstrução de modos de vida passados chamou de post-depositional theory e depositional
ou de culturas extintas. A Arqueologia pode fazer theory, e o que Sullivan (1978) chamou deforma-
inferências, mas jamais reconstruir. Schiffer (1988: tion theory, incluindo alguns conceitos de forma-
469) se defende de críticas ao termo "reconstru- ção de depósitos arqueológicos propostos por Schi-
ção" (p. ex. vide DunneIl1978, Binford 1986) di- ffer (1983, 1987) e algo da middle range theory
zendo que ele nunca quis reconstruir modos de vida de Binford (1977); a Teoria de Recuperação segue
passados, mas sim fazer inferências. Para Schiffer, as definições de retrieval theory e recovery theory
inferir é, "inequivocamente", reconstruir. Creio de Clarke e Sullivan; a Teoria Formal ou Sistemá-
porém que o uso da palavra reconstrução não trans- tica segue a definição de Dunnell (1971), e é o que
mite essa idéia, não há nada de "inequívoco" na os autores mencionados chamam de "teoria ana-
relação entre inferência e reconstrução, que são lítica"; e por fim, me utilizo do conceito de Teoria
conceitos bastante distintos. O último rótulo, que Inferencial conforme colocado por Schiffer (1988:
nomeia a "Teoria Metodológica" é também um tan- 477-478). As definições de tais corpos teóricos se-
to infeliz porque congrega em uma mesma frase rão dadas abaixo.
tanto teoria quanto método. Sob este título o autor
agregou a Teoria de Registro, a Teoria Analítica e
a Teoria Inferencial de Clarke, a meu ver sem ne- Os cinco conjuntos propostos
nhum ganho em clareza ou objetividade. de modelos teóricos em Arqueologia
O modelo proposto aqui é mais fortemente
baseado em Clarke (1973) e Sullivan (1978), que Teoria Explanatória
creio serem os autores que mais levaram em conta
as especificidades de uma ciência completamente Relativa aos processos que estruturam a orga-
interdisciplinar como a Arqueologia. Como resul- nização social e as mudanças culturais sofridas por
tado de se conceber a disciplina enquanto um con- populações humanas. Paradigma sob o qual a pes-
junto de corpos teóricos interconectados temos quisa é realizada. Interface entre Arqueologia, Ciên-
uma maior explicitação destas relações freqüente- cias Humanas, Ciências Biológicas, Ciências Com-
mente dúbias, e uma maior clareza de como e quan- portamentais etc. (dependendo, é claro, do para-
do um corpo de conhecimentos interage com o ou- digma). Relaciona-se aos níveis 1 e 2 da Fig. 1.
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ARAUJO, AG.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueolof!fn
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
TeorlaFormal ou Teorlade
Sistemática Recuperação
Teoria
Inferencial
Fig.2.
..,
.)
.-\R",CJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Emologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
cos listados acima (Teoria Formativa, Teoria de peração sólida sem uma Teoria Formativa para dar-
Recuperação e Teoria Inferencial). Creio que o que lhe amparo, uma vez que as decisões de como e
chamamos hoje de Geoarqueologia, no futuro faça quando coletar dependem fortemente do entendi-
simplesmente parte do conjunto de procedimen- mento dos processos atuantes no local de encon-
tos rotineiramente aplicados em qualquer pesqui- tro. Por outro lado, as decisões de onde e porquê
sa arqueológica. Geoarqueologia é simplesmente coletar dependem mais da Teoria Explanatória.
Arqueologia bem feita e amadurecida do ponto de É necessário, portanto, investir no conhecimen-
vista teórico e de métodos, nada mais, nada menos. to do registro arqueológico porque nossas perguntas
A Arqueologia enquanto disciplina científica não são as mesmas formuladas por profissionais das
deveria se fundamentar igualmente nos dois cor- Geociências. Do mesmo modo, as perguntas feitas
pos teóricos básicos (Teoria Explanatória e Teoria por antropólogos sociais e etnólogos são distintas das
Formativa). A Teoria de Recuperação, por exem- nossas. Arqueologia é simplesmente Arqueologia.
plo, que irá guiar todos os procedimentos de cam-
po, é diretamente subordinada aos dois corpos teó-
ricos citados acima. A Sistemática, por outro lado, Agradecimentos
depende exclusivamente da Teoria Explanatória,
uma vez que é totalmente condicionada por ela Este artigo é a versão revista e ampliada de
(Dunnell 1971). A Teoria Inferencial depende da uma palestra ministrada na UFPR a convite do
junção de todos os corpos teóricos que lhe são hie- Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas
rarquicamente superiores. Esta hierarquia não se (CEPA), dentro do "I Seminário de Arqueologia e
baseia em nenhum julgamento de "importância", Pré-História Brasileira", realizado em novembro,
mas tão somente no encadeamento lógico do co- de 1998. Meus sinceros agradecimentos aos
nhecimento. Não se pode ter uma Teoria de Recu- organizadores do seminário pela oportunidade.
Referências bibliográficas
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ARAUJO, A.G.M. As Geociências e suas implicações em teoria e métodos arqueológicos. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 35-45, 1999.
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