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Arte/Rolê no Buzão: cotidiano/ atentar, observar, andar de

ônibus para provocar o start da criação na cidade.

Tatiana Duarte/Mestranda-PPGAV-CA-UFPel

Pedro Elias Parente da Silveira/Graduando-Artes Visuais-CA-UFPel

Leão Jahan/Graduando-Artes Visuais-CA-UFPel

Prof. Dra.Eduarda Azevedo Gonçalves/Docente-CA-UFPel

Juliana Chacon/Graduanda-Artes Visuais-CA-UFPel

Adriane Rodrigues Corrêa/Mestranda-PPGAV-CA-UFPel

Preambular:

que passasse

deixando intactas as pétalas

você passou por mim

(transpenumbra, de Paulo Leminski)

Neste artigo apresentamos imagens e reflexões suscitadas pela ação


artística coletiva intitulada “Arte/rolê no buzão”, realizada pelo grupo de pesquisa
Deslocamentos, Observâncias e Cartografias Contemporâneas – DESLOCC
(CNPq/UFPel), em dois momentos, em fevereiro de 2017 e em junho de 2018.
Embarcamos no ônibus destino Centro-periferia-centro da cidade de Pelotas,
localizada no interior do Rio Grande do Sul. Na primeira parte do texto revelaremos
em primeira pessoa do plural os objetivos, metodos e a dimesnão teorica da ação,
dando a ver um pensamento coletivo que perpassou as reflexões dos participantes
do DESLOCC. Na segunda parte a escrita apontará a produção poética realizada
por cada um, portanto será redigido em primeira pessoa do singular. Por fim,
retomaremos a escrita em várias vozes.
Primeira parte - o rolê

Adotamos a expressão “rolê e buzão” porque são gírias de uso popular, que
se referem tanto ao caminhar pela cidade como ao transporte público. A palavra
buzão redigida com a letra z, se refere a expressão verbal e escrita que é
comumente usada pela “galera” que usa diariamente o transporte coletivo, e
denotando a ênfase no som expressivo do Z, quando pronunciado pelos usuários
que deslocarem-se pelas zonas centrais e periférica das cidades. Essa ação teve
como prática o deslocamento pela cidade, por meio do transporte público, que liga
centro e a periferia, numa rota circular, com o objetivo de promover um outro modo
de afetar-se pelos diferentes locais e seus usos que constituem a cidade de Pelotas,
onde residem os membros do grupo, para alguns desses era a primeira vez que
deslocavam-se por essa rota, adentrando os bairros e as zonas periféricas. No
percurso, observamos as diversas características dos locais que percorremos, dos
passageiros e da cidade, acolhemos possíveis ideias e imagens que
potencializaram a produção artística de cada um, além de percebermos fatores os
mais distintos e dialogarmos sobre questões culturais e socioeconômicos que
caracterizam as distintas localidades das cidades brasileiras e de Pelotas. Assim,
buscamos modos de criar desvios, de levar a arte até o cotidiano e de trazê-lo para
o contexto da arte, por meio da geração de registros audiovisuais, escritos poéticos
e fotográficos, bem como desenhos, anotações e cartografias durante o percurso.

Deslocamento como método:

Está ação tem como mote a prospecção em deslocamento como maneira


pela qual recriamos e evidenciamos o atravessamento poético, advindo de
experiências vividas em conjunto, observando-se as relações de cada integrante do
DESLOCC com o trajeto. Ressaltando as distintas linguagens do grupo como
facilitadoras de uma ação poética no deslocar para pensar a cidade, provocada pelo
transitar do ônibus, deixando fluir olhares atentos para os processos de cada um,
com o foco em seu mote artístico e atento a experiência. O andamento deste
processo se deu no dia 12 de junho de 2018, começando com um encontro às
7h45min da manhã em uma parada de ônibus na rua General Osório na cidade de
Pelotas-RS. Embarcamos na linha interbairros esquerda que cruza os bairros centro
- Simões Lopes - Fragata - Três Vendas- Santa Terezinha - e pela ruas 1. Osório a
Dr.Frederico Bastos, 2. Dr.Frederico Bastos a Av.Bento Gonçalves, 3. Av.Bento
Gonçalves a Av.Theodoro Muller, 4. Av.Theodoro Muller a R.Ernâni Osmar Blass, 5.
R.Ernâni Osmar Blass a D.Pedro II. ou seja, atravessando zonas centrais e
periféricas. Durante o trajeto buscamos ficamos atentos ao em torno do ônibus e
também para seu interior.

No dia que “pegamos” o coletivo urbano o dia estava nublado e frio, a


cidade aos poucos despertava, revelando um clima melancólico de retomada da
rotina por parte de trabalhadores, estudantes, etc. Aos poucos, passageiros
começaram a ocupar espaços, num ir e vir, constante que começa a revelar o fluxo
da cidade e nossa condição de transeuntes conduzidos por um transporte urbano.
(Fig.1 e 2).

Figura 1e 2. Deslocc. Arte/Rolê no busão. Pelotas junho de 2018: Fonte:


Pedro Parente

O ônibus fabricado industrialmente impõe regras ao corpo, modos de sentar e


viajar emprega os ritmos e os tempos da labuta cotidiana capitalista. “Foi definido
por Marx como um sistema injusto e explorador, em que os meio de produção não
pertencem aos que trabalham, mas apenas aos donos do capital” (SCHÖPKE,
2010, p.50). Se configurando como um “objeto específico que manifesta a
atemporalidade de um objeto fabricado em série e escala industrial”
(UBERMAN,1998). Quando ele passa a ser utilizado e habitado, ganha outras
formas de se pensar como desperta memórias, marcas, riscos, rasgos, pó,
lembranças que o desvinculam dos resquícios de atemporalidade presentes em sua
fabricação. É o transporte que ameniza a distância entre o trabalhador e os locais
de trabalhos. É possível verificar que o ônibus liga a cidade do patrão com a cidade
dos trabalhadores. Quando vamos adentrando as bordas da zona central é possível
verificar moradias populares. Isso não é novidade, mas passa a ser cotejado por
nós que vivemos no miolo citadino, olhar para as zonas consideradas invisíveis é
um modo de se relacionar de outra maneira com o local que vivemos, assim como
subverter a lógica empregado pelo capitalismo ao transporte público, o utilizando
para poetizar o mundo.

Nós, ao embarcarmos no ônibus somos passageiros sem rumo, tornando -o


um dispositivo da criação desviando da lógica comum, no que se refere a condução
de pessoas a pontos de partida e chegada na cidade. Dele descemos, subimos,
saímos, chegamos, descansamos, dormimos, estudamos, lemos, observamos e
vivemos. Jean Baudrillard ao tratar sobre o objeto carro nos fala: “Mais do que em
qualquer outro lugar torna se aí perceptível a convivência entre um sistema
subjetivo de necessidades e um sistema objetivo de produção” (Baudrillard, 2009,
p.74). O autor reflete sobre o papel que o carro desempenha nas relações sociais,
no cotidiano e no sistema de produção global. Diferente do carro, que podemos
guiá-lo ao rumo desejado, no ônibus somos conduzidos pelo trajeto pré-
determinado. Porém, eles dividem semelhanças como a capacidade de gerar
mobilidade sem um grande esforço. Assim, Baudrillard atesta:

A Velocidade tem como efeito, ao integrar o espaço-tempo, reduzir o


mundo a duas dimensões, a uma imagem, vem ela livre de seu relevo e de
seu devir, entrega-se de certo modo a uma imobilidade sublime e a uma
contemplação. ‘ o movimento’, diz Scheilling, ‘ é somente a procura do
repouso’. (BAUDRILLARD, 2009, p 74)

E é em meio ao movimento, que durante o deslocamento percebemos cada


passageiro que entra e sai, cada um que possui o seu próprio tempo e metas a
cumprir. O cobrador, a catraca e o cair das moedas parecem servir como
contadores/interruptores que interfere nesses tempos e que liga a todos por alguns
instantes. Nessas múltiplas camadas em que se encontram diferentes cores e sons,
o ritmo veloz da cidade vai sendo marcado e o olhar se torna apressado. Esse
dispositivo de condução coletiva que atravessa a cidade é um excelente espaço
para a observação da urbanidade. Às vezes o tempo se cala e sentados olhamos
para fora, esquecemos que estamos num ônibus, que temos um caminho a
percorrer, um destino para chegar e que ele interfere na vida de cada um que o
utiliza diariamente. Entramos num estado de suspensão de tempo como revela o
texto de Baudrillard supracitado. Enquanto a paisagem escorre pelas janelas de
vidro, como ondas que vão e vêm, o sacolejo do ônibus traz as memórias e
pensamentos mais diversos a tona.

Neste objeto/dispositivo que percorre o traçado urbano o olhar corre para


fora, e assim, durante o percurso, através dos vidros são reveladas as várias faces
da cidade e seus habitantes. O ônibus segue viagem, olhamos para a rua, tudo
passa: vidas, amores, histórias, etc. No percurso encontra-se ilhas rurais em meio
ao perímetro urbano revelando a justaposição de dois tempos diferentes.
Encontram-se edificações abandonadas, bem como construções e arquiteturas
diversas. A cidade se revela como um canteiro de obras constante. Presencia-se a
memória de uma cidade de 30, 40 anos atrás, que parece silenciada e sua
atualização. A cidade é mediada pelas janelas, pelos vidros e

materializa de forma extrema a ambiguidade fundamental da


ambiência: A de ser a um só tempo proximidade e distância,
intimidade e recusa da intimidade, comunicação e não-comunicação.
Embalagem, janela, ou parede, o vidro funda uma transparência sem
transição: Vê-se, mas não se pode tocar.(...) Uma vitrina é um
encantamento e frustração. (BAUDRILLARD, 2012, p 49)

O devaneio é algo comum no olhar dos passageiros, seja instigado pela


paisagem exterior quanto a interior. Nesse interior se revelam rostos, etnias e
gêneros diversos, as várias facetas de nossa sociedade. O ônibus é utilizado na
maioria por pessoas de baixa renda, sem automóvel e que se deslocam da periferia
para o centro onde trabalham ou estudam.

. Durante o trajeto atentamos para uma utilização lúdica dos espaços que são
ocupados de maneiras diversas. Em meio a isso surgem linhas, diálogos, tempos
que se separam e se costuram através de um mesmo dispositivo, o ônibus. Se
dentro desse veículo vemos todos em um estado de espera e de busca para chegar
a algum lugar, do lado de fora vemos as diferenças que compõem a cidade e seus
fluxos cotidianos.

Ao desembarcarmos de o transporte coletivo circular iniciamos um processo


de constituição de modos de dar a ver o que havíamos prospectado e
potencializado a criação, por meio de dispositivos utilizado por cada participante do
DESLOCC

Segunda Parte

Devir Janela: memória no Arte Rolé no Buzão por Tatiana Duarte


Todos os dias, logo pela manhã, através do bafo do calor das pessoas, a
janela fica embaçada, até que ao poucos começa a circular pelo vento, ficando mais
transparente, o trajeto vai ficando mais fácil de ver, as paisagens da rua, as
pessoas, estas imagens que ficam como ondas que vão e vem, assim como os
sacolejos por onde passa, as vidas que ali passam, esperas marcada por um tempo
de saída e chegada para algum lugar.
Fig. 01: Processos de percurso pela linha de ônibus, interbairros em Pelotas.
2018. Fonte: Acervo Pessoal

Pessoas circularam, elas ficavam observando e anotando tudo por onde


passavam, fotografam a janela, todas sentaram perto dela, pegaram a rota
interbairros esquerda, uma linha que contorna parte da cidade.
Fig. 02: Processos de percurso pela linha de ônibus, interbairros em Pelotas.
2018. Fonte: Acervo Pessoal

O vento que passava era úmido e às vezes tinha gotas de água que escorre
por ela, mesmo assim as pessoas que entraram naquela manhã estavam atentas
aos entornos por onde passavam e davam algumas espiadas para fora,
conseguisse ler algumas das anotações de uma pessoa que se sentou bem ao lado
da janela, e lá estava escrito que esta podia ser um dispositivo, é interessante como
também proporcionam vista para os locais. No caderno tinham algumas perguntas
como esta: Como esse ir e vir, este lugar, pode pôr a memória a ser potencializada
em seu trajeto?
Fig. 03: Rolé de Buzão pelos interbairros em Pelotas, uma hora e vinte minutos
no total. 2018. Fonte: Acervo Pessoal

Observa-se os passageiros e o registro de algumas pessoas que passam


pelo ônibus, as lembranças da pesquisadora de quando era uma criança indo à
escola e durante as férias as idas até a casa de sua avó. Para ela a viagem
demorava quatro horas, e menina, se divertia pelas imagens que passavam rápido,
fixava o olhar para não perder nada, porque quando mal percebia, já estava em
outras paisagens, planícies com figueiras majestosas e um campo imenso, imagens
de alguns trabalhadores arando a terra para o plantio, um instante rápido que ficou
registrado nela, e na estrada as caretas onde passavam velozmente, ela acenava
para os caminhoneiros.
Ao fundo escuta-se: -Bom dia; Logo surge uma pergunta: será que é uma
pista para pensar em algo através das palavras? Já teve outras épocas que as
pessoas deixavam pensamentos escritos não só em cadernos, mas nos bancos,
riscavam nas janelas, pessoas que ali se sentam pudessem ler: haviam palavrões,
desenhos, frases, nome, datas.
Duas meninas vieram pelo corredor e sentam ao lado da janela, escuta-se
outra frase - “tenho prova amanhã” - em um local de muitas ações, solavancos, é
algo difícil, os atravessamentos por múltiplos estímulos é inevitável. Na parada tem
um casal de senhores, a mulher foi levar seu marido (ou amante, aqui a zona da
incerteza se faz fabular na história do outro), dá um longo beijo e entrega uma pasta
transparente, ele estava de blusão vermelho e ela de casaco de lã verde, ele sobe
ao ônibus, e segue viagem, passagem de pessoas situações, tudo passa: vidas,
amores, histórias, etc. Cada assento ocupado leva consigo um sentimento e uma
passagem de tempo, as paisagens escorrem pelas janelas, taquaras, um punhado
delas.
Mochilas; sacolas; carteira de passagem; bolsas; livros. Placas na rua de
PARE, em meio a vegetação, como dizer ao meio ambiente que não pode algo
natural. Uma mulher entra rosto bravo, cansada, puxa a cordinha, e desse. Hoje o
dia foi tranquilo, quase meditativo, poucas pessoas, nesta ida e vinda de suas casas
para os trabalhos, escuta-se outra frase: - “tu vai para lá ou para lá”, escuta-se ao
longe e fica no pensamento que lugar seria este, passa outro ônibus na lateral e tem
um número, 3035, como tinha muita lama, até a metade no ônibus, alguém
desenhou com o dedo este número, é um desenho, pois para que serviria estes
números se não um desenho para chamar a atenção à sujeira. Pessoas de óculos
no ônibus, o olhar vai para dentro do ônibus e hora vai para fora. Pode-se propor
uma mensagem para as pessoas que estão cansadas pelo dia pelo trajeto, colocar
uma placa com frases, informações sobre conforto, quem sabe isso faz um
atravessamento poético no ônibus de todos os dias para a aqueles que pegam.
Fig. 04: Processos de percurso pela linha de ônibus, interbairros em Pelotas.
2018. Fonte: Acervo Pessoal

Pedro Elias Parente

Ao entrar em imersão no trajeto e no dispositivo ônibus, elenco pontos de interesse


como: a arquitetura da cidade, os passageiros, e as oposições temporais presentes
no cotidiano. Assim, atenta e registra em desenhos e fotografias as múltiplas
camadas de tempo que se apresentam tanto no interior do ônibus, quanto no seu
exterior. Nos rostos, janelas, no vai e vem de passageiros, nos tempos que se
entrecruzam e interagem. Em algumas imagens é revelada uma cidade em
abandono, edificações que datam de 50, 60 anos atrás fechadas, como um baú que
guarda a história de Pelotas. Em outras, prédios se erguendo, potencialidades de
futuro que ainda não se concretizaram. Dentre os aspectos heterogêneos urbanos,
se ressaltam ao olhar do artista, as ilhas verdes, onde existe um silêncio, um tempo
em suspensão e lento. Enquanto que por outro lado, os rumores da cidade de
concreto, das edificações que bloqueiam a vista e que apresentam toda a
velocidade da contemporaneidade. A janela do ônibus traz à tona essas cidades,
que servem de passagem, que passam e viram memórias. Num primeiro momento,
para tentar dar a ver esses múltiplos tempos, Pedro trabalha com fotografias
impressas em lâminas de retroprojetor e busca na sobreposição de imagens a união
dos diversos tempos e cidades que se apresentam dentro e fora do ônibus. Num
segundo momento, a percepção do trajeto sentido pelo corpo, dá origem a um mapa
espontâneo e afetivo onde são elencados monumentos como: Casas abandonadas,
construções em ruínas ou em erguimento e pontes. Esse mapa é sobreposto a um
mapa exato do percurso retirado do site Google Maps. Assim, Pedro tenta dar a ver
o caráter de memória e da multiplicidade de tempos presente na cidade de Pelotas.
Cacos de um passeio de ônibus Jahan Leão

Em busca de espaços de confronto e de intensidade criativa saímos


numa deriva, em um ônibus de circulação urbana que faz seu trajeto entre o centro
da cidade e a periferia próxima, era uma hora matutina com seu acordar desnudo, e
como propõe Flávio de Carvalho em seu livro os Ossos do Mundo, mergulhamos em
um processo psicoetnográfico,

O problema estético hoje não é mais a abstração lírica cheia


de Impasses lógicos, mas pertence em grande parte aos
domínios dá psicopatologia, e de uma ciência que ainda está
por se cria e que bem poderia se chamar psicoetnografia.
(Carvalho,1936)

Sons e sombras podem se espalhar ou esconder quando o olhar é


apressado. Assim como o tempo, que calado, sentado em um banco de ônibus finge
que não interfere no destino humano e suas relações íntimas com as coisas não
humanas. Esse senhor dos passos, dos deslocamentos, é capaz de um riso
discreto, quando alguém tentar capturar suas cores em um dispositivo tecnológico.
Os infinitos cinzas que descem das nuvens e se esparramam pelo asfalto úmido,
cobrem telhados e abraçam árvores e casacos de inverno.
Instantes de comunicação invisível entre as coisas que dormem em uma
mesma cama, em um mesmo berço materno, é isto que se jogam nos intervalos da
mestiçagem contemporânea, pneus que cantam árvores, que cobrem calçadas com
tapetes de folhas alaranjadas, que convidam sapatos para desfiles imaginários, em
lugares que só as janelas ao serem filmadas suspiram quase em segredo seu
endereço.
Será que uma risada, um gesto aflito, uma ansiedade quanto ao futuro
incerto, podem ficar guardadas entre os bancos e os vidros de um ônibus? Como se
pode ir a algum lugar sem ir a lugar nenhum, deixar-se aqui e agora apenas no
sopro da respiração, no embalar do piscar de olhos, o presente é onde o tempo
morre, fica perdido sem controle, e se desespera ao ver seus filhos livres.

Freme do vídeo da série AUMAA Ente 4


Vídeo disponível em: https://drive.google.com/open?id=1kGOmHppQKfvG8RJmOVSo-
uEbhJ0XeOzX

(A )VISTA PASSADA – A CIDADE VISITADA Duda Gonçalves


Figura. 1. Rua de complementares. Fotografia Duda Gonçalves

Figura 2. Rua de pontos alaranjados. Fotografia Duda Gonçalves

Ao embarcar no ônibus meu intuito era observar, olhar para a Pelotas nunca
vista, e ao mesmo tempo que eu fixava o que a janela enquadrava sucessivamente,
acionava a máquina fotográfica digital. O olho direcionava a atenção as texturas
presentes na pele das casas caiadas, chamuscadas pelo cimento, em madeiras
desbastadas pelo tempo, em cores vivas e outras cinzentas marcadas pela umidade
climática de Pelotas. A máquina, sem o olho acionava o que o gesto do dedo
captava. Ou seja, apontava a máquina fotografia digital para o que não conseguia
ver. Sentada em um banco ao lado da janela e por meio dessa sentia que ainda não
tinha entrado no veio da periferia, pois de longe avistava as ruas embarradas,
esburacadas que o transporte público não tem acesso. O ônibus ainda percorre um
anel que contorna o centro, as zonas privilegiadas. Pois, onde o ônibus percorre,
uma rota pré –determinada, o asfalto ainda perdura. Nas paradas é possível
vislumbrar um horizonte habitado. A intenção era poder apreender a vista em
movimento, aquela menos atravessada pelo olhar focado e a partir disso acolher as
massas de cor, a densidade das crostas das coisas perpassada pela atmosfera que
junto a experiência do deslocamento imprime uma percepção passageira. Por fim,
uma multiplicidade de quadros compõe a paisagem continua que o ônibus ativa.
Foram captadas 232 imagens de uma câmera digital localizada sobre o ombro e
apontada a cena enquadrada pela janela. As imagens são colocadas lado a lado
(fig. 1 e fig. 2) em conjunções variadas constituindo rotas, reinventando a rota do
ônibus, por meio das fotografias une as sucessivas construções, pessoas, coisas,
nuvens por relações formais e cromáticas. A solidez das casas, os corpos concisos
são revelados em cores e texturas borradas que representam a diversidade que se
interpõe ao olhar e na mesma hora se torna fugidia.

Adriane Corrêa

Outro ponto. Ponto de chegada. Caminhei por algumas calçadas. Acelerei as


passos. Encontro. Dobrei a esquina com o barulho característico de uma manhã de
um dia útil da semana. Esperei na parada obrigatória o ônibus que me conduzirá a
metade do percurso que cotidianamente percorro e, que sempre me suscitam
outros modos de perceber as ruelas, as paradas obrigatórias e as pessoas. Adentro
ao ônibus no sacolejo do desequilíbrio permitido. Pessoas em pé e sentadas.
Conversas. Risadas. Encontro.
Espaço familiar com corpos desconhecidos. Pelo corredor brinco em zanzear entre
corpos, driblando com a palavra “com licença” e, ao mesmo tempo tentando manter
o equilíbrio no sacolejo do ônibus em movimento sobre os trilhos do trem. O
próprio movimento me empurra para o assento. Concomitantemente, meu olhar
percorre o último banco, o assento do lado da janela, do lado direito e como se
soubessem o lugar escolhido, o sacolejo e a freada do ônibus me colocam no lugar
preferido.
O último assento onde posso observar quem entra, quem sai,quem senta, quem
fala, os movimentos e ações que o trajeto de cada passageiro(a) irá se compor até a
sua próxima parada obrigatória do ônibus: descer ou subir.
Um homem observa os outros pela lente da câmera. Uma gesto além de um retrato,
de uma selfie. Um homem e sua câmera observam a rua, os passageiros, o entra e
sai, o ônibus e seu trajeto. Um homem e seu outro olho não miram as pessoas mas
os espaços que circundam o trajeto do ônibus. São esses os espaços ocupados
pelos passageiros(as) que estão na rota do ônibus Um homem que foca e desfoca
na paisagem das ruas e ruelas, dos bairros que são delimitados pela condição
social que é dada por quem está na parada obrigatória do ônibus assim como pelos
corpos que se uniformizam (Figura 8). Corpos uniformizados. Há um gesto no
homem. Um gesto de curiosidade.. O homem não se vê observado. Observa. Seus
gestos e suas mãos se movimentam na mesma rapidez que seu olhar e corpo
quando algo não é captado pela máquina fotográfica. O homem busca a imagem
que o percurso do ônibus já deixou para trás. Seu corpo se contorce tentando imitar
a mesma velocidade percorrida pelo ônibus. Não tem clique. O homem apenas
observou. Sento atrás dele. E na tentativa de imitar seu gesto, o observo. Pauso
seu movimento.( Figura 9).
Foto 8 -Deslocc. Arte/ Rolê de buzão .Pelotas junho de 2018: Fonte: Adriane Corrêa
.
Foto 9 - Deslocc. Arte/Rolê do buzão. Pelotas junho de 2018: Fonte: Adriane Corrêa
Juliana Chacon

Do ponto de vista nebuloso era cedo, as 07:30h da manhã o movimento já


era notável na rua, a composição sonora desse horário era tranquila e ruidosa, a
fricção dos pneus no concreto até então era de maior atenção. Um atraso nos tirou
da rota imaginada, mas não cancelou o evento. Permanecia nublado às 08:05h da
manhã quando adentramos o ônibus, da janela parecia até a continuação do rolê
anterior, o sol se escondia em algum lugar atrás das nuvens, e o céu permanecia
um tom de cinza colorido.
Somos seis espalhados pelo transporte. O olhar dos que sobem vagueia
curiosamente, como se procurasse algo nos desconhecidos rostos sonolentos que
passeiam. Apesar do não conhecimento alguns bons dias bem-humorados podem
ser escutados do meu ponto do ônibus. Tem os que focam no mundo de fora, e os
que focam no mundo de dentro, meu olhar é fixo no espectro sonoro 1 que faz uma
dança na tela do aparelho em que capto a sonoridade do movimento. Assim inicia o
diálogo entre eu e o trabalho que está por vir. A captação da sonoridade do
ambiente é revisitada com a atenção ainda mais aguçada aos ruídos nada
uníssonos do ambiente que me circundava. Cada som tem sua unicidade2 e é a
partir dela que investigo a paisagem sonora3.
A imaterialidade do som me conduz a produzir gestos lineares sobre papel
para de alguma forma representa-lo. Surge então o trabalho Sem título - número 5,
que sai do papel para objeto na parede, construído por pregos e linha preta que se
cruzam e tramam na horizontal uma frequência sonora4, o acompanha uma
reprodução do áudio captado que pode ser lido através de código QR 5. A intenção
de explorar o som é para aprender a “ver” o mundo com outros olhos, o que mais
me interessa é a capacidade de imersão, a habilidade de transportar você a lugares
que não é possível estar fisicamente presente, quando a sonoridade colabora com a
memória desencadeia fatos do passado é temos a capacidade de reviver todos os

1
Espectro sonoro é o conjunto de todas as ondas que compõem os sons audíveis e não audíveis
pelo ser humano;
2
Qualidade ou estado de ser único;
3
Paisagem sonora é um conceito com origem na palavra inglesa "soundscape" e que se caracteriza
pelo estudo e análise do universo sonoro que nos rodeia.
4
Frequência Sonora é o número de ciclos de uma onda sonora, por segundo;
5
Quick response - código bidimensional escaneado por telefones celulares com acesso à internet.
Pode ser instalado baixando o aplicativo "QR Code" na loja virtual do aparelho, após instalação so
apontar o quadrado para o código.
acontecimentos ligados aquela lembrança segundo Dr. Aidan Horner, do Instituto de
Neurociência Cognitiva.

Sem título - número 5/2018

Código QR do trabalho Sem título - número 5/2018


Um trabalho puxa o outro, e lentamente a percepção desses sons contribui
para a captação de ainda mais detalhes nos sons que anteriormente eram apenas
barulhos. Sinfonias se formam quando tenho a possibilidade de captar os mais
variados e despercebidos ruídos é uni-los em uma nova composição.
Conclusões:

A observação dos aspectos vivenciados pelo grupo ao longo do percurso e


envolvendo o processo poético, no deslocar de ônibus circular do centro até a zona
periférica nos coloca em estado de atenção criadora, para desenvolvimentos de
processos artísticos de cada um envolvido nesta ação. O grupo, Duda Gonçalves,
Tatiana Duarte, Pedro Parente, Leão Jahan, Adriane Corrêa, Juliana Chacon
experienciaram pelo deslocamento novas percepções. Assim, esta prática
proporcionou-nos algumas expressões, e em grupo, nos afetamos. Nossos
procedimentos em arte. O deslocamento torna-se o mote criador que nos faz
compartilhar a cidade de uma outra maneira. Cada integrante revela a cidade por
meio das linguagens como o vídeo, a fotografia, a colagem, a performance, a
costura envolvendo o sentido de cidade com as implicações de uma revisitação
infinita e lúdica. Cada qual a seu modo mostra a Pelotas em seus olhos, em seus
pensamentos.

REFERÊNCIAS:

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo


com o espírito, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Coleção debates. São
Paulo: Perspectiva, 2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia 2. Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 2011a.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.
SCHÖPKE, Regina. Dicionário filosófico: conceitos fundamentais. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
BENJAMIM, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2000.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer.
Petrópolis, RJ : Editora Vozes Ltda, 2014.

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