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O IN{CIO DO TRATAMENTO EM FREUD E EM LACAN ANTONIO DI CIACCIA (Roma) De que modo Freud inicia um tratamento psicanalt- co? Para sabé-lo, podemos recorrer a seus casos clinicos ‘0u a0 aparetho teérico por ele elaborado. Em Appunti procurei indicar alguns sinais de como Freud operava no inicio de um tratamento, fazendo referéncia a alguns de seus casos clinicos" No presente texto, tomarei seu artigo “Inicio do trata mento” como apoio, para destacar alguns dos aspectos @ dos problemas do inicio do tratamento, segundo Freud, para depois passar a um breve comentirio de parte da “Proposigao de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalis- ta da Escola”, na qual esti exposta a questio do inicio do tratamento em Lacan, Inicio do tratamento Em Freud, as questoes referentes ao inicio do trata~ mento colocam-se numa visio do conjunto da técnica da psicanilise. Este é titulo de um trabalho, comecado em 1908 ¢ abandonado em meados de 1910, étil para quem pratica a psicandlise. Freud logo retomaria a questao, programando doze textos sobre os problemas particulares da técnica psi- canalitica. Porém, em consequéncia de intimeras difi- culdades pessoais, de ordem técnica e inerentes & pro- pria matéria, acabaria por escrever somente seis en- saios, entre 1911 ¢ 1914, entre os quais 0 texto “Inicio do tratamento” Originalmente 0 texto era dividido em trés pequenos capitulos, com 08 seguintes subtitulos: “Inicio do trata- mento”, “O problema das primeiras comunicacdes” € *Dindimica da cura”. Na parte “Inicio do tratamento”, depois de um prélo- g0 com referéncia ao jogo de xadrez’, Freud tenta seagrupar algumas regras para a viabilizacao do trata- mento, Tais regras dizem respeito a selegio dos presen- tes, a propésito das quais faz. referencia a0 texto de 1904 =Psicoterapia’; ao periodo de experiencia, ao qual sobre- tudo atribui um valor no diagnéstico; as situacdes desf voriveis que 0 analista pode encontrar € & questio da posigio subjetiva do paciente a respeito da confianga no processo analitico, Os temas “tempo”, “dinheito" e “diva ‘io examinados como condigdes do inicio do tratamento. © problema do material a levar para andlise ¢ da prescri- cao da regra fundamental, finalizam esta primeira parte. Na segunda parte, sobre 0 problema das primeiras comunicacdes, Freud se pergunta como interpretar € de que modo a interpretagio se situa frente & transferéncia Nas duas paginas que compdem a terceira parte € que se referem & dindimica da cura, esta em questo a forca motriz da andlise: 0 desejo de curar motivado pelo sofrimento, Este texto nos convida a algumas consideracdes & pontuagdes. Em primeito lugar, Freud nos indica de que manei- +a se utiliza do aparelho analitico, mas no nos diz. de que modo este funciona. Nio € a mesma coisa respon- der a questio: como funciona a maquina légica do inconsciente? Ou a questo: como posso fazé-la funcio nar? Esta ltima se resume a um problema de técnica e 4 outta requer um saber sobre a causa, re-enviando, assim, ao campo da ética claro que este horizonte nao est ausente em Freud Ble explica sua ambivaléncia quando recorre a expedi- entes técnicos, mesmo limitando seu alcance por tornd- Jos contingentes. Assim, por um lado Freud constréi uma estandardizagio que depois viri a se transformar em dogma incondicional e, por outro, repete-se colocando- se em alerta contra a “estandardizacéo da técnica’, para destacar 0 particular prOprio ao analisante ou ao analista ‘Atualmente, lemos os imperativos colocados por Freud sobre alguns aspectos do tratamento, como, por exem- plo, a inevitabilidade da regra fundamental, a obrigat- riedade do pagamento € a necessitia utilizacto do tem- Po, nao mais como um estimulo 8 estandardizacto, mas como uma evidéncia da ligagao entre 0 funcionamento do tratamento © a questio ética Por nio localizar a ética da anilise em telagio & téc- nica, o texto de Freud é abundante na enumeragio das condigdes do tratamento € limitaese a reves alusdes a aspectos verdadeiramente centrais, como, por exemplo, a questio do saber no tratamento analitico. Além disso, as condicdes do tratamento nao esto livres dos aspectos imaginétios; pensemos no manejo do tempo justificado com a necesséria subsisténcia material do analista ou no uso do diva, que se aplica para isolar a transferéncia, porém serve também para poupar 0 ana- lista do desagradavel face a face. Todas as condigées do tratamento enumeradas por Freud ressentem-se do mesmo limite: a referencia 20 sim- bolico, verdadeito motivo que langa Freud a examind- las, permanece oculta pela predomindncia do eixo ima: sindrio na relagao analisante-analista Um outro ponto fundamental refere-se a0 material ‘que se leva para a anélise. Com qual material se deve iniciar? Freud dé a0 paciente 0 arbitrio sobre o ponto de partida. O material € indiferente as finalidades da andilise © a0 analista € indiferente de onde parte 0 dliscurso do paciente. A tinica excego a este deixar falar 0 paciente €a prescriclo da regra fundamental, a tinica que © paci- ente deve seguir, diz Freud. A anilise é, portanto, no dizer de Freud, um “deisar falar” livremente, com uma \inica excecao - a observncia da regra fundamental. NOs indicamos que a regra fundamental permanece como um. imperativo, porém nao mais em funcio de deixar falar, mas em fungio de «© que falar quer dizer‘. De fato, 0 dixar falar no tem as mesmas consequencias, tanto em relacao a instauracao do interlocutor, quanto na implica- @o do sujeito na propria palavra, na subjetivagio do sintoma ou, ainda, na travessia do Fantasma ‘Tomemos um outro aspecto: a maneita pela qual Freud enfrenta o problema das primeiras comunicacdes. Quan: do é possivel comecar a revelar a0 analisando 0 “signifi- do inconsciente? Nao antes que se tenha instaurado uma transferéncia eficaz, responde Freud. E quando a transferéncia € eficaz? Quando existe uma re- lagao forte e regular com o médico (ordentlicher Rapport Com tal finalidade, 0 primeira objetivo do tratamento € © de ligat (attachieren) © paciente ao tratamento € & cado ocult ee TION pessoa do analista. E para conseguir este objetivo o analis- ta tem um meio eficaz: 0 tempo. Gracas ao fator tempo, 0 analisando inseriré 0 analista ventre as imagens daquelas pessoas das quais estd acostumado a receber o beme Se este € 0 objetivo primario da andlise, & claro que o analista deve escusar-se de revelar a tradugio dos sinto- mas, Mesmo quando for verdadeira, tl tradugto acarre- taria a resisténcia, tanto mais violenta quanto mais exata E assim, Freud opde 0 caminho da revelagio do valor dos sintomas ao caminho da revelagao do valor da trans- feréncia. A solucio do sintoma, ou a tradugio de um desejo, deve acontecer sem colocar em tisco a ligagio transfetencial, levando em conta que qualquer comuni- cagdo prematura levaré a um final prematuro do trata- mento, Deve-se interpretar somente quando a transferén- cia se faz resistencia, evitando porém que a resisténcia tome-se um impedimento ao prosseguir da transferéncia ‘Temos aqui um duplo problema: o primeiro, refere- se A transferéncia e o segundo 2 intervengio do analist No que diz respeito a intervengo do analista, Lacan ‘mantém, com Freud, que a interpretacio, que € a inter- pretacdo do sintoma, deva ser efetuada somente depois a transferéncia, F indica, ainda, um outro modo de in- tervencdo do analista, que denomina stetificagio das re- lagdes do sujeito com o real’, que precede a instauracao da transferéncia € que, mais do que isso, pode provoca- Ja, Enquanto a interpretacao, através do equivoco, revela a estrutura de metifora do sintoma, a tetificagao das te- lagdes do sujeito com o real revela a posicio equivaca €o sujeito, em relacio ao gozo do qual se lamenta, No que se refere & transferéncia, notamos como Freud tenta desembaracar-se de uma concepeao de transferén- cia que € 0 primeiro obsticulo ao tratamento €, a0 mes- mo tempo, 0 mais poderoso meio a seu servigo. A acen- 4o da vertente afetiva da transferéncia nada mais faz, do que reforgar 0 paradoxo, A solucao de Lacan é a cle vincular a transferéncia 20 saber inconsciente, articulan- do-a a presenca real do analista e subordinando 0 afetivo a0 saber inconsciente. Retomemos a Freud ¢ vejamos de que modo tenta resolver 0 paradoxo em relagao ao saber. De fato, se a psicandlise € a revelacio da verdade do sintoma do su- jeito, por que € justamente esta revelacdo que se opde & analise? Que papel desempena o saber nisso tudo? A ccunissima digressio que faz Freud a prop6sito do *signt- ficado do saber e sobre o mecanismo da cura em psica- 105 nilise’, acentua 0 estranho comportamento dos pacien- tes «que sabem conciliar um saber consciente com um ino saber: (bewustes Wissen mit dem Nichtwissen), 0 qual, se € inexplicivel para a psicologia normal, no 0 é mais, diz Freud, para a psicandlise, E por que? Pelo fato de que a psicandlise admice a existencia do inconsciente. E como se 08 pacientes soubessem, no consciente, de um ele- mento recalcado inconseiente, faltando-thes, porém, a ligacdo entre 0 consciente e «0 ponto no qual a recorda- cao recaleada é, de certa maneira, contida Ora, do contexto que 0 exemplo dado por Freud oferece, deduz-se que existe continuidade entre 0 sa- ber € 0 nao-saber; em outras palavras, 0 nao-saber se define como aquilo que ainda nao chegow a ser sabi- do, Uma tal concepcao do nao-saber valoriza a leitura p6s-freudiana do Wo es war soll Icb werden, embora a referencia de Freud a “uma diferenciacao tpica” pos- sa ser lida como preliidio a uma leitura topolégica. Assim, de acordo com este texto de Freud, tudo pode ser da ordem do saber e nao existe um nao-saber que permanece radicalmente como tal. “Proposigio de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” ‘Trata-se de um dos textos fundamentais da Escola de Lacan’, Juntamente com 0 “Ato de Fundagio” e com a *Carta aos Italianos”, a “Proposicao” constitui uma trilogia essencial texto pode ser subdividido em sete partes: @ pri- meira refere-se &s estruturas em ato na psicandlise ¢ que devem ser repercutiveis no psicanalista. Para tal efetuacdo sto examinados, na segunda © na terceira partes, 05 ‘momentos do inicio e do fim da andlise. A quarta refere- se Bs questoes sobre a passagem de analisante a analista ‘A quinta discute mais diretamente o passe. A sexta ofe- rece trés pontos de fuga na projecio da estrutura no social: simbélico - 0 mito de fidipo; imaginario - a socie- dade de psicandlise; real - 0 campo de concentracio. A sétima parte € constituido pelo final Interessar-nos-emos pela segunda parte. (© tom j ¢ dado no final do primeiro pardgrafo. Em reves tragos, de acordo com o estilo do texto, Lacan distingue psicandlise de psicoterapia. Esta Ghtima € det nida como restituigao a um estado anterior, Definicao impossivel para a psicandlise, E, ainda, a psicoterapia funda-se sobre uma logica indecidivel, enquanto que a psicanalise sobre uma l6gica decidivel. Em outras pala- ‘ras, somente a psicanilse baseia-se em um procedimento que verifica, em um niimero finito de passes, se um trata mento em curso responde ou no a teoria psicanalitica E, para dstacar a inscricto da andlise no campo da I6gi- a, Lacan retoma de Freud 0 exemplo do jogo de xadrez. “No inicio da psicandlise esta a transferéncias, assim Lacan abre 0 parigrafo sobre 0 inicio do tratamento. Notemos a dupla referéncia biblica: a Beresbit do Génests € 0 En arché en o Logos juvenil. Na primeira, € colocado em evidéncia o poder criador e na segunda a evidéncia € que este poder é a palavra. Lacan situa 0 inicio da psicanilise na constituiclo do Outro da transferéncia como efeito da linguagem. E prossegue -gracas aquele ‘que denominamos |... © psicanalisante:. O tom, vaga- mente litirgico, est4 atenuaco na primeira versio da “Pro- posicio", onde Lacan o indica com um nome proprio: trata-se de Sigmund Freud, A psicanalise baseia-se, portanto, na transferéncia, Mas, a transferéncia no é a relaglo intersubjetiva, embora 0 uso da palavra implique numa certa intersubjetividade. Na verdade, a transferéncia faz, objecito & relacao de su- jeito a sujeito. Na transferéncia existe dissimetria e qual- quer relagio terapeutica que se baseie na intersubje- tividade, no fundo, reduz-se a um puro exercfcio do ima- gindrio. Embora, ironiza Lacan, o termo tenha servido a uum certo mundo universitirio para produzir efeitos de levitacao. Partindo de duas premissas: ter situado aquilo que 0 inconsciente revela a respeito do cogito € ter estabeleci- do a distingao entre outro imaginario e Outro simbélico, cchega-se & conclusio que -nenhum sujeito é suposto atra- vés de um outro sujeitor, Lacan aqui recorre a dois pres- supestos: seu esquema L, para distniguir 0 simbdlico do imaginario e 20 cogito cartesiano. Num certo sentido, © recurso 20 cogito cartesiano € paradoxal, pois 0 sujeito do inconsciente é exatamente 0 oposto do sujeito filoss- fico. Contudo, é do cogito cartesiano que, a partir de um certo momento de seu ensino, Lacan se utiliza para falar do sujeito do inconsciente Neste texto me parece que Lacan retoma toda a sequéncia cartesiana, que vai do cogito a Deus como garantia do cogitoe, finalmente, 20 Querer de Deus, para estabelecer uma equivaléncia com a sequéncia que vai

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