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Arqueologia e Pré-história do Planalto Sul Brasileiro (Archéologie e Prehistoire du plateau sud brésiliénn) View project
All content following this page was uploaded by Silvia Moehlecke Copé on 02 August 2016.
Introdução
Todo conhecimento acerca do passado remoto é produzido pela arqueologia. É
resultado de um processo ativo desempenhado por um sujeito no presente, que através
do seu empenho em compreender como viviam os grupos humanos em tempos antigos,
constitui uma forma de saber. Este conhecimento não é dado ou refletido pelos objetos,
mas é elaborado a partir do seu resgate e do seu estudo por pesquisadores situados em
uma dada sociedade.
Ao compreender a arqueologia enquanto uma prática interpretativa, que constrói
socialmente e de forma ativa o passado no presente (e não meramente como um reflexo
passivo das coisas que ocorreram em tempo remoto), esta disciplina deixa de tratar
apenas de eventos ou de cultura material. Passa a ser compreendida enquanto um evento
e uma produção material, pois elabora todo o conhecimento sobre o modo de viver de
sociedades antigas.
Seguindo este enfoque, produto das abordagens pós-processualistas adotadas nos
anos 80 e hoje cognominadas de arqueologias interpretativas, presente e passado não
são concebidos de forma oposta ou dicotômica, pois um se constitui em relação ao outro
num processo ativo e dialético. O passado não é visto como completo, acabado, ele está
vivo de alguma forma no presente, através da presença física dos vestígios materiais
(Hodder, 1992; Shanks e Tilley, 1987, Tilley, s/d). Assim sendo, os arqueólogos devem
mediar passado e presente, pois o trabalho arqueológico une estes dois tempos.
Com o objetivo de mostrar como o conhecimento arqueológico é produzido
pelos investigadores a partir da cultura material, neste artigo nos propomos analisar
como este processo ocorre através das atividades que resultam na constituição dos dados
e na elaboração dos discursos.
Professora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Arqueológica – NuPArq, Depto de História,
IFCH/UFRGS
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Arqueológica – NuPArq, Depto de História, IFCH/UFRGS
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A práxis arqueológica
A prática arqueológica envolve pesquisa de campo e laboratório, muitas vezes
realizada concomitante ou alternadamente, e compreende, como em qualquer outra
disciplina, três momentos distintos e inter-relacionados: a elaboração de projeto e
planejamento, a execução do projeto e a divulgação de resultados. A elaboração do
projeto exige a eleição do tema e a problemática, o levantamento bibliográfico, gráfico e
a análise das coleções existentes de pesquisas anteriores, a definição do recorte espaço-
temporal, a orientação teórico-metodológica, o cronograma, o financiamento. Além
disso, como a legislação brasileira determina que tudo que está no subsolo brasileiro
pertence à União, os projetos arqueológicos devem ser aprovados pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a autorização da pesquisa ser
publicada no Diário Oficial da União (D.O.U.), em cuja portaria consta o nome do
arqueólogo, o prazo em que deve ser realizado o trabalho e a instituição que ficará
responsável pela guarda do material proveniente da pesquisa.
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sistemático destes achados. Aliás, nem todos os sítios precisam ser descobertos, pois sua
existência material é inquestionável como as pirâmides mesoamericanas e as cidades e
estradas andinas. No Brasil, alguns sítios arqueológicos possuem dimensões
monumentais como os conhecidos sambaquis ao longo das costas marítima e fluvial, as
estruturas semi-subterrâneas e as estruturas em alto relevo no planalto sul brasileiro, os
grandes abrigos sob rocha com pinturas e gravuras produzidas por grupos caçadores e
coletores existentes em quase todo o território nacional, as grandes aldeias anelares do
centro-oeste brasileiro e da Amazônia, os ‘tesos’ da cultura marajoara, as igrejas, os
centros históricos urbanos, as fortalezas, entre outros. Provavelmente, alguns desses
sítios foram edificados não exclusivamente para atender necessidades materiais, mas
sim com a intenção de legar à posteridade elementos de representação de dada
sociedade. Entretanto, a grande maioria dos sítios arqueológicos é fruto das ações
cotidianas das diversas sociedades e está enterrado ou é visível na superfície do solo
somente em forma de objetos dispersos e precisam, portanto, de um exame mais
minucioso – o que Renfrew & Bahn (1993) chamam de prospecção de reconhecimento,
para ser detectado.
Nos últimos anos os arqueólogos, em razão de estarem se interessando pela
reconstrução do uso humano global da paisagem, deram-se conta que há dispersões
apenas perceptíveis de artefatos, que não poderíamos qualificar de sítios, mas que
representam atividades humanas significativas, geralmente articuladas a assentamentos.
Alguns investigadores como Dunnel & Dancey (1983) sugeriram que estas áreas fora
dos sítios, com uma baixa densidade de artefatos, não constituem sítios propriamente
ditos e que deveriam ser localizadas e registradas, o que somente pode ser feito
mediante um trabalho sistemático de prospecção que implique procedimentos de
amostragens cuidadosos. Cabe lembrar que áreas vazias possuem um potencial
informativo importante, como por exemplo, as praças centrais de aldeias ou de
estruturas cerimoniais. Este enfoque é útil, sobretudo, em áreas onde viveram povos
com um modo de vida itinerante que deixaram um registro arqueológico disperso, como
em grande parte da América e África (Renfrew & Bahn, 1993).
A prospecção arqueológica
Tradicionalmente, a imagem do arqueólogo trabalhando em campo está
associada à minuciosa escavação de sítios individuais, sejam pré-históricos ou
históricos. Atualmente a escavação ainda possui sua importância, porém, a prospecção
tem ganhado destaque devido ao desenvolvimento de estudos regionais que pressupõe
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RS-PE-01 é a sigla do sítio que nos diz sobre a localização do mesmo: RS = Rio Grande do Sul, PE =
bacia hidrográfica do rio Pelotas e o 01 é o nº seqüencial dos achados na região. Esta forma de registro é
nacional e segue as regras do Cadastro Nacional dos Sítios Arqueológicos – CNSA, banco de dados
acessível no site do IPHAN.
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A escavação arqueológica
A escavação é a principal forma de produção de documentação arqueológica. É
a única maneira de comprovar a confiabilidade dos dados superficiais, confirmar a
exatidão das técnicas de teledetecção e ver na realidade o que resta no sítio
arqueológico. A escavação dá os dois tipos de informação que mais interessam os
arqueólogos: as atividades humanas desenvolvidas em um determinado momento no
passado e as mudanças nestas atividades de uma época a outra (Renfrew & Bahn, 1993).
Um dos propósitos da prospecção é a escolha do(s) sítio(s) a ser(em)
escavado(s), que além de depender dos objetivos do projeto de pesquisa, deve
contemplar a variabilidade de sítios identificada na área prospectada e o grau de
relevância e significância dos mesmos. A necessidade de determinar o grau de
relevância (dado pelo valor humanístico e científico) de um sítio arqueológico advém da
impossibilidade de salvar todos os bens arqueológicos da nação, assim há que se
estabelecer critérios para seu estudo e preservação (Dunnel, 1984 apud Caldarelli,
2002). A significância é dada pela singularidade do sítio, seu estado de conservação, seu
papel como elemento definidor de identidades sociais, seu potencial para explanação de
processos sócio-culturais passados, etc. (McMillan, Grady & Lipe, 1984 apud
Caldarelli, 2002). A escolha também é definida por questões logísticas e pragmáticas
como acesso ao sítio, infra-estrutura (equipe e equipamento, alojamento, alimentação)
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disponível que, por sua vez, novamente dependem das variáveis tempo e recursos
financeiros.
Como em todo trabalho arqueológico, os procedimentos iniciais no sítio
compreendem o registro documental e fotográfico da situação encontrada e do seu
estado de conservação, assim como, o percurso de sua área observando-se a sua
extensão, a sua forma e a sua implantação no relevo. Durante a prospecção de
reconhecimento realizada na área a ser investigada geralmente são feitas as medições e
anotações quanto à distância dos recursos d’água mais próximos, a distância, acesso,
visibilidade entre os sítios localizados, as possíveis fontes de matérias-primas e
realizadas amostras.
Após a escolha do sítio a ser escavado e o registro de sua situação original, o
primeiro passo para a escavação é a escolha de um local com boa visibilidade da área
total do sítio, onde será colocado o Ponto Zero (= P0, que poderá ser também o Ponto de
Referência de Alturas = PR) que servirá para amarrar todos os demais pontos de
controle do trabalho como as demais estações topográficas e as linhas de base e
referência. Após a seleção dos pontos de controle e o local - o Ponto 100/100 – da
intersecção das linhas de orientação e de base para implantação da malha de
quadriculamento, procede à elaboração do croqui planimétrico e do perfil topográfico
do sítio e seu entorno imediato (Figura 4). O sítio está pronto para ser escavado.
É clássico nos manuais de arqueologia distinguir dois métodos principais de
escavação. O primeiro deles, a escavação “estratigráfica”, “vertical”, “temporal”,
“diacrônica”, ou ainda, a chamada “micro-história” tem como preocupação maior as
mudanças que se produzem no tempo, verificada na superposição dos níveis de
ocupação e com a datação relativa dos artefatos. A arqueologia apropriou-se do
princípio estratigráfico da geologia que se baseia na superposição dos estratos
acumulados com o passar do tempo através de processos que prosseguem até hoje
(Harris, 1991). Os estratos arqueológicos (os níveis com restos culturais) abarcam
períodos de tempo muito mais curtos que os geológicos, porém o princípio é o mesmo:
quando um estrato se sobrepõe a outro, o que está em cima é sempre mais recente que o
anterior, portanto, nos dão uma seqüência vertical dos eventos que se acumularam
naquele local e um controle de eventuais anomalias que poderiam comprometer a
escavação como inversões estratigráficas muito comuns quando ocorrem enterramentos
ou quando há fatores de bioperturbação. O método da escavação estratigráfica foi
utilizado desde o século XVII, porém é identificado com Mortimer Wheeler que o
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pois o esperado pode não ser o encontrado. Aqui, reportamos-nos ao texto clássico de
Redman (1973) sobre a pesquisa em multi-estágios onde destaca a necessidade de
constante retro-alimentação. Independentemente das técnicas e métodos empregados,
uma escavação só será boa no momento que o registro dos métodos de recuperação seja
bem feito, pois toda escavação é única porque na sua execução destruímos uma boa
parcela do suporte material dos nossos dados. O registro de cada fase da intervenção
deve ser meticuloso, ou seja, pode-se pecar por excesso jamais por omissão.
O ato de escavar propriamente dito é a separação dos artefatos e ecofatos,
através do uso de um pincel ou de uma colher de pedreiro, da terra que os envolvem. A
terra retirada será ou não peneirada e colocada num monte suficientemente afastado do
sítio para não atrapalhar a escavação e razoavelmente perto para facilitar o seu uso para
tapá-la no seu final. As peças arqueológicas são deixadas no local até o final do nível
artificial ou da camada natural, para efetuar o registro da sua distribuição espacial
através da técnica de triangulação (McIntosh, 1987: 83). Em cada quadrícula o
escavador fará um diário de quadrícula, onde constará a posição exata de cada objeto e
de seu estrato arqueológico, ou seja, um registro tridimensional do objeto. A
estratigrafia será documentada de forma gráfica (fotografia e desenho dos cortes e
perfis) e escrita através da descrição dos níveis/camadas com sua espessura,
composição, cor (com auxílio do código de Munsell), inclinação do terreno, etc., ao
longo do trabalho ou no seu final.
Ao longo da escavação e à medida que são encontradas as evidências
arqueológicas deverão ser coletadas amostras de sedimentos para análise
sedimentológica, palinológica ou, ainda, micro morfológica e micro estratigráfica do
solo, bem como de carvões para datação radiocarbônica e análise antracológica.
Igualmente, de acordo com o tipo de sítio, os objetivos da pesquisa e as dificuldades
encontradas no registro arqueológico, decisões deverão ser tomadas sobre o tipo de
peneiramento da terra, com ou sem água, e o uso de peneiras com malhas especiais (no
caso de restos de microorganismos vegetais e animais); sobre a adoção da técnica de
flotação, sobre as técnicas a serem empregadas no caso de restos humanos, entre outras.
Observamos que os projetos de longo prazo geralmente dão mais resultados,
com equipes diferentes e com normatização das formas de registro para toda a equipe.
O trabalho em laboratório
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A espécie humana tem sido definida muitas vezes em função de sua especial
habilidade para fabricar ferramentas e muitos arqueólogos têm explicado o progresso
humano em grande parte sob o ponto de vista dos avanços tecnológicos. Os restos dos
artefatos feitos pelo homem ao longo do tempo constituem a maior parte do registro
arqueológico e eles nos permitem estabelecer tipologias, cronologias, conhecer mais
sobre a dieta alimentar, descobrir antigos padrões de comércio e intercâmbio e inclusive
conhecer sistemas de crenças (Renfrew & Bahn, 1993).
Os primeiros utensílios reconhecíveis remontam a 2,5 milhões de anos e, até a
adoção da cerâmica em torno de 12.000 anos, a pedra foi a matéria-prima predominante
nas descobertas arqueológicas. Somente em condições favoráveis como sítios
pantanosos, gelados ou secos, os objetos construídos com matéria orgânica podem
sobreviver e, em vista desta escassa capacidade de conservação, lembramos que
inclusive aqueles que já se decompuseram por completo podem ser detectados
ocasionalmente pelos ocos, mudanças no solo ou marcas/impressões que deixaram. A
existência de um artefato pode ser detectada também pelas marcas deixadas nas coisas
ou locais alterados pela ação do mesmo. Portanto, o arqueólogo deve levar em conta que
o universo empírico é incompleto.
Durante a escavação ou em laboratório, o arqueólogo deve determinar primeiro
se o objeto foi feito e/ou utilizado pelo homem no passado, pois nem sempre é óbvio.
Por isso, foi necessário estabelecer critérios para estipular a mediação humana como no
material feito sobre pedra (o material lítico) os bulbos resultantes da percussão
intencional de um seixo sobre outro. A mediação humana é analisada em laboratório
através de uma série de encaminhamentos metodológicos que dependem da orientação
teórico-metodológica do arqueólogo.
Na interpretação das evidências podemos contar com a utilização da análise
arqueológica propriamente dita, da analogia etnográfica e da arqueologia experimental
(reviver o passado através da experimentação). Neste artigo, nos ateremos à análise
arqueológica.
Quando não realizada em campo, em laboratório processa-se a triagem do
material segundo a matéria-prima. O material é revisado, separado, lavado, secado,
acondicionado e enviado para os laboratórios especializados. No caso do laboratório ou
da equipe não possuir integrantes especializados, os ossos pertencentes a esqueletos
humanos serão remetidos para um laboratório de Antropologia Física; os ossos de
animais para um laboratório de Paleontologia ou para um zooarqueólogo; o pólen irá
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Arqueologia
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Estas duas correntes possuem corpos teóricos diametralmente opostos, entretanto, como na arqueologia
brasileira as duas foram colocados em prática no mesmo período e usados de forma combinada por alguns
profissionais, discutiremos sob o mesmo título.
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3
O tipo de coleta do material arqueológico e a idéia de reconstruir o passado estão relacionados com a
abordagem histórica culturalista, onde o conceito de cultura, adotado por Franz Boas, seria de um padrão
de normas mantido implicitamente pelos membros da cultura e obtida através da tradição e difusão.
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Há diversas correntes sob o cognome de arqueologias interpretativas, algumas incompatíveis entre si
como a marxista e a teoria da desconstrução. Nossa intenção não é discorrer sobre elas, porém cabe
lembrar que esta linha teórica deu voz aos segmentos minoritários (mulheres, escravos, índios, etc.)
trazendo o conflito social como um tema privilegiado.
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elementos fornecem as chaves para sua significação. Neste sentido, toda interpretação
deste tipo de conteúdo se vê restringida pela análise do contexto (Hodder, 1986).
Tendo em vista que a arqueologia é uma disciplina histórica, é importante
considerar que todas as ações humanas são localizadas em contextos históricos que são
específicos para cada cultura. Assim, quando se analisa alguma relação estabelecida
entre uma cultura material e um grupo de pessoas, necessariamente deve-se inseri-la
dentro do contexto histórico e cultural específico5. Apenas para exemplificar, os objetos
têm atributos materiais universais, como um machado para cortar árvore
necessariamente deve ser elaborado com uma determinada matéria-prima e deve
apresentar marcas de uso específicas com a realização desta atividade. Entretanto, este
mesmo machado está ligado a um contexto histórico particular, no qual pode estar
associado a esqueletos femininos em um enterramento. Neste sentido, significa mais do
que uma ferramenta utilitária, pois remete a outro tipo de significação, vinculada a
questões como gênero (Hodder, 1992).
Dando significado à cultura material ou ‘o colocar em palavras o que não é verbal’
O contextualizar é dar significado a cultura material. Cultura material é o termo
comumente utilizado nesta e em outras disciplinas para se referir aos produtos materiais
da ação humana, os quais são as principais fontes que conduzem à presença humana no
passado mais remoto. Refere-se à transformação da matéria inerte em um objeto
cultural. Desta forma, toda prática de indivíduos é escrita e impressa no mundo com as
coisas (Shanks e Tilley, 1987). De acordo com Glassie (1999), a “cultura material é
cultura feita material”, começando necessariamente com as coisas, mas não terminando
com elas, o estudo da cultura material usa os objetos para abordar o pensamento e a
ação humana. Na troca com a natureza, homens e mulheres fazem coisas, deixam rastros
na terra, estas são as coisas da cultura material (Glassie, 1999: 41-44).
Conforme Hodder (1992) a cultura material é fascinante para muitas pessoas
pelo seu caráter dual, uma vez que aproxima elementos de ciências distintas. Abarca as
ciências sociais (humanas) e as naturais (exatas) num mesmo conceito, que captura esta
dualidade. As primeiras preocupam-se com os significados conceituais que não são
puramente abstratos e que existem em relação a uma determinada cultura, enquanto que
as últimas ocupam-se de analisar as características físicas dos objetos, suas propriedades
materiais observáveis. Logo, o arqueólogo depara-se com uma fonte de estudo que é
5
É oportuno ressaltar que, em contraposição à corrente anterior que pretendia identificar leis gerais, esta
abordagem possui uma natureza particularizante.
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indivíduos e os objetos culturais. Neste sentido, pode ser visto como socialmente
produzido pelas pessoas, estando sempre centrado em relação à atividade humana.
Thomas (1996) sugere a utilização do termo lugar para referir-se aos locais
relacionados a um mundo humano. Para ele, o espaço pode ser transformado em um
lugar pela ação humana, ao serem usados e consumidos e, igualmente, por
envolvimento em estruturas de pensamento. Não é necessário, todavia, que este seja
alterado fisicamente para que isso aconteça. Os lugares envolvem uma paisagem
específica, um conjunto de atividades sociais, teias de significados e rituais – todos
inseparavelmente entrelaçados.
Como os seres humanos que viveram no passado não habitam mais os lugares, é
preciso colocá-los de volta através das análises arqueológicas, incluindo-os nas
interpretações (Thomas, 1996).
O papel ativo do pesquisador
O conhecimento sobre o passado é sempre produzido de forma ativa pelo
pesquisador, um sujeito ativamente interpretante que faz constantemente perguntas de
uma forma dinâmica à cultura material. O arqueólogo, portanto, é um sujeito real que
escava e pensa sobre um passado que também é real (Shanks e Tilley, 1987). A
escavação e a análise dos artefatos, como vimos anteriormente, são em essência
atividades de construção de elementos sobre o passado, que embora tenham uma
materialidade empírica real, trata-se de formas de representação dos fatos realizadas no
presente.
Segundo Shanks e Tilley (1987) um passado observado é um passado
problemático, no sentido de que concebe a arqueologia como uma observação de
objetos separados do observador. No entanto, parece-nos claro que as fontes materiais
arqueológicas são constituídas na prática, uma vez que os sítios são escavados.
A partir da proposta de Hodder (1999) de ‘escavar de forma contraditória’, de
um modo alternativo aos paradigmas amplamente difundidos na arqueologia,
concordamos com o fato de que a interpretação ocorre em toda a prática de campo, pois
descrever e medir são atos interpretativos. O próprio registro arqueológico já seria uma
leitura, em razão de que diz respeito ao que o pesquisador vê em vez do que
simplesmente há (Barker, 1989: 146 apud Hodder, 1999: 692). Da mesma forma, os
métodos selecionados para a escavação dependem do entendimento a priori do sítio, da
mesma forma que do conhecimento prévio do arqueólogo ou dos arqueólogos
responsáveis. Logo, ambos os métodos de escavação e de registros de dados dependem
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da forma como as coisas são vistas pelos profissionais. Acreditamos que devemos tentar
acabar com as barreiras que opõem interpretação e prática e, ao fazermos isto,
acabaremos aceitando o papel central da interpretação no real processo de construção
dos dados.
O investigador deve ser capaz de afirmar ‘isto é a minha forma de compreender
as coisas’ e não se esconder atrás da descrição objetiva de artefatos. Como a escavação
é uma atividade produtiva de dados, mas também destrutiva, ela mostra-se como o
melhor momento para serem exploradas visões alternativas sobre os dados. Cabe então
fazer com que este trabalho seja produtivo e esteja aberto a outras formas de dar sentido
ao passado.
Com o resgate da cultura material encontrada sob determinada orientação
metodológica, o pesquisador investiga estes objetos em laboratório com o intuito de
obter um conjunto de dados. Para Tomaskova, os vestígios pré-históricos recuperados
(...) podem somente se tornar dados através da representação por meio de algumas
convenções relativamente pertinentes na documentação. Os métodos produzem um
produto específico, tangível e muito real - um banco de dados que pode ser controlado,
examinado e comparado por outros investigadores. (Tomaskova, 2003:496)
Certamente a classificação é o método mais conhecido e aplicado na arqueologia
para o estudo dos artefatos, o qual se baseia em determinadas convenções para guiar a
análise. Há várias formas de classificar os objetos, mas todas elas baseiam-se em
convenções, atributos escolhidos de acordo com a aplicação de uma metodologia
específica, a qual está sempre situada num contexto também particular. Assim,
conforme Tomaskova (2003:50), tais convenções “não são regras infinitas, mas acordos
bastantes locais baseados numa lógica particular”.
Uma leve variação nos aspectos valorizados, até mesmo num nível básico de
tamanho, é capaz de produzir padrões bastante diferentes de dados. Um exemplo disto
pode ser encontrado na classificação tipológica de artefatos líticos, que dá primazia aos
instrumentos na representação dos fatos pré-históricos. Outros vestígios abarcados em
outras formas de estudo representariam uma gama mais ampla de ocorrência de
transformações naturais e culturais num sítio, e assim constituiria um banco de dados
mais inclusivo para a reconstituição de toda a história da ocupação humana no lugar
estudado (Tomaskova, 2003).
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os significados contidos nos objetos ou se podem afirmar alguma coisa com grau
elevado de certeza sobre os eventos passados. Após refletir bastante sobre esta questão,
percebemos que este debate gira em torno de dar ou não dar certezas, e é exatamente
neste ponto que nos parece oportuno que a questão deva ser discutida.
Uma vez que se conceba esta disciplina como uma ciência social produzida por
pessoas no presente, que de forma ativa constroem o conhecimento sobre o passado, tais
dúvidas parecem ficar mais claras. As certezas que podem ser dadas, a nosso ver, são de
que pessoas viveram no passado remoto e elaboraram coisas - objetos reais em
determinados locais - os quais foram trocados, usados, descartados. Cabe aos estudiosos
partir dessas e de outras informações para realizar suas pesquisas e elaborar suas
interpretações na tentativa de atribuir significados. Uma perspectiva contextual pode
auxiliar nesta tarefa, pelo fato de que, ao estabelecer relações entre os vestígios
materiais, o investigador pode aproximar-se das significações contidas nos objetos.
Tilley (s./d) propõe que para manter uma posição materialista e defender o
passado como uma construção, algo socialmente produzido e feito aqui e agora, no
presente, este assunto deve ser abordado a partir de três materialidades que estão
intrinsecamente entrelaçadas: a materialidade do passado (a realidade física dos objetos
materiais), a materialidade do presente (a partir de onde é produzido o conhecimento
sobre o passado pelo arqueólogo) e a materialidade do processo de produzir discursos (a
escrita de textos sobre o passado no presente).
Ao considerar estas três instâncias da materialidade, o arqueólogo respeita a
existência material dos objetos e a sua relação com o tempo remoto e também situa a
sua produção enquanto historicamente e socialmente situada no período em que se
encontra. Ainda, ressalta a importância de compreender os textos arqueológicos
enquanto formações discursivas, elaboradas pelo investigador no seu contexto atual. Tal
forma de ver as coisas permite que a arqueologia seja reconhecida em toda sua
complexidade, pois os relatos realizados sob esta abordagem são “construções que não
são menos reais, sinceras ou autênticas por serem construídas”, pois são frutos de uma
ciência social (Hodder, 1992).
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Carolina Aveline Deitos Rosa, graduada em História pela UFRGS e mestre em História
pela PUCRS, é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Arqueológica – NuPArq do Depto
de História/IFCH/UFRGS.