Professional Documents
Culture Documents
Nota introdutória1
1 O presente texto serviu de base à intervenção realizada no I Congresso Lusófono de Direito Processual Civil
(Coimbra 12 e 13/3/2019).
Miguel Teixeira de Sousa
I. Construção do regime
1. A extinção do crédito do autor (crédito passivo ou crédito principal) por compensação com
um crédito do réu (crédito activo ou contracrédito) é uma matéria que tem ocupado a doutrina
processualista há cerca de um século3, sem que se possa dizer que, entretanto, tenham sido obtidos
resultados indiscutíveis. As razões deste estado de coisas são simples de enunciar (ou, pelo menos,
de adivinhar):
– Por um lado, a compensação pressupõe a alegação de um contracrédito do réu e,
portanto, a discussão de uma matéria que nada tem a ver com o crédito alegado pelo
autor; no caso da compensação nem sequer se pode falar do “positivo” e do “negativo”
de uma mesma realidade, como sucede, por exemplo, quando o réu contraria o afirmado
pelo autor alegando que já pagou a dívida ou que o contrato é inválido;
– Por outro lado, pelo menos quanto a uma parcela do seu crédito, o réu só pretende alegar
ou provocar em juízo a extinção do crédito do autor, como sucede quanto a qualquer
excepção peremptória extintiva.
Deste panorama resulta a constante hesitação entre o modo de fazer valer a compensação
em juízo. A excepção peremptória parece ser “de menos” para a alegação e discussão de um crédito
que é independente do crédito do autor (mesmo que possa ser conexo com este crédito); a
reconvenção, em contrapartida, parece ser “de mais” para a alegação e discussão de um
contracrédito que, pelo menos numa certa parcela, apenas visa extinguir o crédito alegado pelo
autor. Daí ter-se entendido, há bem mais de um século, que a excepção de compensação é uma
“reconvenção rudimentar”4, dado que, se, como sucede quanto a qualquer excepção, é verdade que
a mesma é um meio de defesa contra o pedido do autor, também é verdade que o seu objecto é
apreciado com autonomia perante o pedido do autor, sendo, aliás, por isso que, ao contrário do que
sucede na generalidade das excepções peremptórias, o pedido do autor e o pedido de
compensação formulado através da excepção podem ser ambos procedentes.
2 Nesta matéria, foram interlocutores, em conjunto com o presente autor, o Cons. Lopes do Rego, o Cons. Abrantes
Geraldes e o Dr. Pinheiro Torres.
3 A primeira obra de fôlego sobre a compensação judiciária ou processual foi Die Aufrechnung im Deutschen
Zivilprozeßrecht (1916) de OERTMANN (1865-1938).
4 “Die Compensationseinrede eine unentwickelte Widerklage”: SCHOLLMEYER, Die Compensationseinrede im
Deutschen Reichs-Civilprozeß (1884), 26.
Miguel Teixeira de Sousa
2. Antes da vigência do actual CPC era maioritária na jurisprudência uma orientação que
conjugava as duas referidas vias (excepção e reconvenção) para a alegação da compensação:
– Até ao montante do crédito do autor, o contracrédito do réu era alegado por via de
excepção;
– Na parte excedente do crédito do autor, o contracrédito era alegado por via de
reconvenção.
Esta solução – que, globalmente, era considerada uma boa solução pelos práticos do direito
– conjugava, na realidade, o “pior de dois mundos”, dado que, ao partir em dois o contracrédito do
réu, tinha as seguintes consequências:
– Atendendo ao disposto no art. 96.º, n.º 1, CPC/1961 (equivalente ao actual art. 91.º, n.º
1, CPC), a parcela do contracrédito que era alegada por via de excepção dispensava a
competência internacional e material do tribunal e, considerado o estabelecido no art.
96.º, n.º 2, CPC/1961 (igual ao actual art. 91.º, n.º 2, CPC), era apreciada numa decisão
sem valor de caso julgado material, permitindo, teoricamente, que o réu, em acção
autónoma, pudesse exigir ao anterior autor o pagamento do contracrédito, sem que este
pudesse obstar a uma nova decisão através da excepção de caso julgado;
– Em contrapartida, a parcela do contracrédito que era alegada através da reconvenção
exigia a competência internacional e material do tribunal da acção para apreciar essa
parte do contracrédito e era apreciada numa decisão com valor de caso julgado material.
3. Como se sabe, o actual CPC consagrou, no art. 266.º, n.º 2, al. c), que a compensação
deve ser alegada por via de reconvenção. No âmbito da execução, a solução tem o seu lugar
paralelo no disposto no art. 729.º, al. h), CPC quanto à possibilidade da invocação de um
contracrédito do executado para extinguir o crédito exequendo.
A solução tem a clara vantagem de evitar os inconvenientes da solução da “dupla via” que
era maioritária na jurisprudência durante a vigência do CPC/1961. No entanto, a solução actual
também não evita uma outra “dupla via”. Com efeito, quando se fala da compensação em processo
pode estar a falar-se de uma de duas situações:
– Da alegação pelo réu de que já antes da propositura da acção o crédito que o agora autor
invoca se tinha extinguido por uma declaração de compensação que aquela parte tinha
dirigido a esta última (art. 848.º, n.º 1, CC);
– Da alegação pelo réu de um crédito contra o autor com a finalidade de obter em juízo a
extinção do crédito desta parte.
Não há dúvida de que estas situações implicam, segundo o regime actualmente vigente,
soluções processuais distintas:
– A alegação de que o crédito do autor se extinguiu por compensação é a invocação de
um facto extintivo, o que deve ser realizado por via de excepção (art. 576.º, n.º 3, CPC);
Miguel Teixeira de Sousa
5 Cf. Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 28; MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 19, qualificando a compensação
como uma “sofort wirkende materielle Gestaltungserklärung und Prozesshandlung”; Prütting/Gehrlein/DÖRR ZPO
(2017), § 145 10; Musielak/Voit/STADLER ZPO (2018), § 145 14; BeckOK ZPO/WENDTLAND (2018), § 145 24;
ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht (2018), 614.
6 Estas consequências são referidas pela doutrina alemã (cf., por exemplo, MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 19),
que, pelos vistos, não vê nenhum problema em considerar que a inadmissibilidade da excepção de compensação
Miguel Teixeira de Sousa
obsta à extinção do crédito do autor, mas não impede a extinção do contracrédito do réu. Não se discute agora a
justificação desta dualidade de soluções.
7 Cf. Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 65; MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 28; Musielak/Voit/STADLER ZPO
(2018), § 145 24; BeckOK ZPO/WENDTLAND (2018), § 145 22 e 26; ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht
(2018), 619, embora excepcionando a compensação pré-processual ou para-processual que não seja considerada
por razões processuais; cf. WOLF, JA 2008, 753 ss.
Miguel Teixeira de Sousa
Seja como for, nem a jurisprudência, nem a doutrina ficam impossibilitadas de atribuir
relevância à dedução da excepção de compensação como a declaração de compensação exigida
pelo art. 848.º, n.º 1, CC e de extrair disso quer consequências materiais (ao nível da extinção
recíproca dos créditos), quer consequências processuais (nomeadamente, ao nível da
desnecessidade de determinar se o tribunal tem competência para apreciar o crédito do autor ou o
contracrédito do réu).
Artigo 91.º
Competência do tribunal em relação às questões incidentais
1–
2–
3 – A decisão proferida sobre o contracrédito invocado na excepção de compensação tem valor de
caso julgado material até ao limite da compensabilidade dos créditos.
Notas:
a. O sentido do disposto no n.º 2 é, na parte relativa aos meios de defesa do réu, algo
indefinido. Apesar do estabelecido no preceito, parece ser claro que não se pretende
estabelecer, por exemplo, que a decisão sobre a excepção de pagamento invocada pelo
réu não adquire valor de caso julgado material. O preceito parece estar a pensar naqueles
casos em que a mesma excepção peremptória (de nulidade, por exemplo) pode ser
oposta em diferentes acções a diferentes pedidos, e não naquelas hipóteses em que a
excepção (de pagamento, por exemplo) só pode ser oposta a um único pedido.
Seja como for, a decisão sobre o contracrédito na agora proposta excepção de
compensação (seja essa decisão de reconhecimento ou de não reconhecimento deste
contracrédito) não pode deixar de ter valor de caso julgado material. Como é evidente,
qualquer que seja a decisão do tribunal sobre esse contracrédito, não pode voltar a ser
pedida numa acção posterior a condenação no seu cumprimento.
Mesmo que o contracrédito do réu seja superior ao crédito do réu, só fica abrangido pelo
caso julgado material o montante até ao qual os créditos são compensáveis, isto é, o
montante até ao qual o contracrédito se extinguiu por compensação. Se o contracrédito
do réu for inferior ao crédito do autor, é naturalmente apenas até ao seu montante que a
decisão obtém valor de caso julgado material.
b. A redacção o n.º 2 do preceito coincide com a redacção do n.º 2 do art. 96.º CPC/1961,
mas importa ter presente que era diferente a redacção do § 2.º do art. 96.º CPC/1939.
Estabelecia-se neste último que a decisão sobre as questões que o réu suscitar como
meio de defesa e sobre os incidentes não constitui caso julgado fora do processo
respectivo, excepto se (al. a)) alguma das partes requerer o julgamento com essa
Miguel Teixeira de Sousa
c. A excepção de compensação deduzida pelo réu fica sem efeito se a contestação ficar
igualmente sem efeito (como acontece, por exemplo, através do desentranhamento da
contestação por ter sido apresentada fora de prazo ou da revelia do réu decorrente da
falta de patrocínio judiciário obrigatório do réu). Nesta situação, não há nenhuma decisão
sobre o contracrédito, pelo que, nada ficando decidido quanto a este crédito, não há
nenhum caso julgado material sobre ele.
Artigo 91.º-A
Excepção de compensação
1 – O réu pode invocar ou provocar a extinção do crédito alegado pelo autor através da
compensação com um crédito próprio.
Notas:
a. O regime procura abranger tanto a hipótese em que a compensação já foi declarada
e operou antes da propositura da acção (compensação pré-processual), como a situação
em que o réu, durante a pendência da causa, declara a compensação do crédito do autor
com um contracrédito próprio (compensação para-processual), como ainda a hipótese
em que o réu pretende provocar a compensação na acção pendente através da alegação
de um crédito contra o crédito do autor (compensação processual).
Apesar de apenas a alegação da compensação pré-processual corresponder realmente
à alegação de um facto extintivo ocorrido antes da propositura da acção, a circunstância
de, também nessa hipótese, o contracrédito do réu poder vir a ser apreciado nessa acção
8 O regime já se encontra no art. 108.º do Projecto de Código de Processo Civil de 1936 (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (Ed.),
Projecto de Código de Processo Civil Organizado pelo Professor José Alberto dos Reis /Edição Oficial (1936), 28).
9 ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil I (1960), 284).
Miguel Teixeira de Sousa
10
11
c. Se o réu invocar vários contracréditos, deve determinar a ordem pela qual os mesmos
devem ser apreciados pelo tribunal (cf. art. 855.º, n.º 1, CC). Na falta dessa indicação, o
tribunal aplica oficiosamente um critério supletivo (cf. art. 855.º, n.º 2, CC).
12 Cf., por exemplo, Stein/Jonas/Althammer (2016), § 145 63 ss. e 70; MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 25 ss.
13 Cf. Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 67 e 70, com o (inteligente) argumento de que, se o crédito do autor
foi reconhecido na acção, então isso significa que o mesmo não se encontra extinto por compensação e que, por
isso, o contracrédito também não pode estar extinto por essa compensação; MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 27
s.; Prütting/Gehrlein/DÖRR ZPO (2017), § 145 12; sobre o problema, cf. HÄSEMEYER, ZZP 118 (2005), 280 ss.
14 Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 49 e 50 s.; MüKoZPO/FRITSCHE (2016), § 145 29 s.; Prütting/Gehrlein/DÖRR
ZPO (2017), § 145 18; Musielak/Voit/STADLER ZPO (2018), § 145 20; ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD,
Zivilprozessrecht (2018), 616; cf. WOLF, JA 2008, 673.
15 Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 50; BeckOK ZPO/WENDLAND (2018), § 145 29.
Miguel Teixeira de Sousa
12
f. Não está excluído que o autor possa responder com uma contra-excepção de
compensação, invocando, por exemplo, que o contracrédito alegado pelo réu já se
encontra extinto por uma compensação pré-processual declarada por esse autor. Muito
mais discutível é saber se o autor pode provocar, na acção pendente, a extinção por
compensação do contracrédito do autor. Na doutrina alemã responde-se negativamente,
com o argumento de que, se operar a compensação provocada pelo réu, a compensação
alegada pelo autor não tem objecto possível, dado que o contracrédito do réu, antes de
poder ser extinto pelo crédito compensante invocado pelo autor, já se encontra extinto
pela compensação alegada pelo réu17.
Diferente é a situação na qual o autor (não pretende provocar a compensação do
contracrédito, antes) alega a extinção do contracrédito do réu por uma anterior
compensação processual. Nesta situação, o que o autor faz valer é um caso julgado,
que, naturalmente, tem de ser considerado e respeitado na acção.
13
Notas:
a. Se o contracrédito do réu for conexo com o crédito do autor, não é razoável fazer
depender o conhecimento do contracrédito da competência do tribunal da acção para
conhecer desse contracrédito, se este fosse invocado em acção própria. Utiliza-se
deliberadamente o conceito indeterminado de conexão entre os créditos, porque são
dificilmente catalogáveis as relações possíveis entre eles que podem justificar que o
tribunal internacionalmente competente para o crédito deva ser igualmente competente
para o contracrédito. Aposta-se implicitamente no papel da jurisprudência e da doutrina.
Na hipótese de não haver nenhuma relação de conexão entre o crédito do autor e o
contracrédito do réu, a competência internacional do tribunal para apreciar o
contracrédito é apreciada nos termos gerais.
b. TJ 13/7/1995 (C-341/93) decidiu que o disposto no (actual) art. 8.º, n.º 3, Reg.
1215/2012 “não visa a situação em que um demandado invoca como simples fundamento
de defesa um crédito, de que se afirma titular, contra o demandante”, pelo que “os
fundamentos de defesa susceptíveis de ser invocados e as condições em que podem sê-
lo são regulados pelo direito nacional”. Isto permite que os direitos internos dos Estados-
membros regulem autonomamente a competência internacional em matéria de
compensação, admitindo que, se os créditos forem “conexos”, o tribunal que é
internacionalmente competente para conhecer do crédito do autor (naturalmente, esta
competência internacional não se dispensa) é também internacionalmente competente
para apreciar o contracrédito do réu.
No entanto, não é recomendável que os parâmetros de extensão da competência
internacional do tribunal que é competente para o crédito vão para além daqueles que se
encontram no art. 8.º, n.º 3, Reg. 1215/2012 18. É isto que justifica o disposto nesta alínea.
18 Cf. SCHACK, Internationales Zivilprozessrecht (2014), 157 s.; diferentemente, dispensando a exigência da
competência internacional para a apreciação do contracrédito, cf. Stein/Jonas/ALTHAMMER (2016), § 145 45.
Miguel Teixeira de Sousa
14
b. Se houver uma decisão com valor de caso julgado sobre o contracrédito do réu, é claro
que qualquer tribunal, independentemente de qualquer critério de competência
internacional ou material, deve respeitar esse caso julgado e utilizar esse contracrédito
como fundamento para a extinção do crédito do autor através de compensação 19.
3 – Se, nos termos do disposto no artigo 93.º, n.º 1, o tribunal for competente para conhecer do
crédito alegado pelo réu, esta parte pode pedir, na mesma acção, a condenação do autor quanto ao
valor não abrangido pela compensação.
Notas:
a. Fica claro que o réu não pode, a título principal, deduzir a excepção de compensação
e, a título subsidiário, formular um pedido reconvencional quanto à totalidade do
contracrédito. O que o réu pode fazer é deduzir a excepção de compensação e, se
estiverem preenchidas as condições quanto à competência absoluta, cumular o pedido
reconvencional quanto ao excedente do contracrédito sobre o crédito do autor. Portanto,
o que se consagra é um regime em que a reconvenção pode completar a excepção, mas
não há reconvenção se a excepção não tiver sido deduzida.
Se o autor tiver oposto uma contra-excepção de compensação ao contracrédito do réu,
o mais comum é que esta contra-excepção também valha como contestação do pedido
reconvencional do réu.
15
b. Nesta hipótese, o réu não pretende obter a mera compensação, pelo que, de acordo
com o que resulta do disposto no art. 530.º, n.º 3, CPC e para a determinação do valor
da causa nos termos do estabelecido no art. 299.º, n.º 2, CPC, há que somar o valor
excedente do contracrédito do réu ao valor do crédito do autor.
Artigo 266.º
Admissibilidade da reconvenção
1–
2 – A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a)
b)
c) Quando o réu, na acção em que tenha alegado a excepção de compensação, pede a condenação
do autor no pagamento do excedente do seu crédito sobre o crédito do autor;
Nota:
No âmbito da compensação, a reconvenção passa a ser admissível apenas nas
condições referidas no art. 91.º-A, n.º 3.
d)
3–
4–
5–
6–
Artigo 729.º
Fundamentos de oposição à execução baseada em sentença
Fundando‐se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
h) Alegação de contracrédito, com a finalidade de invocar ou de provocar a extinção por
compensação do crédito exequendo, desde que esta não fosse possível até ao encerramento da
discussão em primeira instância;
Nota:
Miguel Teixeira de Sousa
16
i)