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O

possível nativo: o outro sentido


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(de um rascunho originalmente autorado por Eduardo Viveiros de Castro)

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A imagem do vínculo Editar


1. Este livro versa sobre os pressupostos do pensamento indígena americano. Ele procura discernir as
intuições instauradoras que, a montante do pensado, definem o pensável, o que há a pensar para esse
pensamento. Mais particularmente, seu foco é a imaginação conceitual nas culturas nativas da
Amazônia, e sua abordagem é antropológica, pois descreve tal imaginação do ponto de vista das relações
sociais que ela implica.
2. Os capítulos desta primeira parte tentam precisar os termos — as palavras e os limites — de semelhante
declaração de intenções, a natureza do experimento intelectual que ela propõe, e o campo de problemas
em que ela se situa. Comecemos diretamente por algumas palavras do parágrafo acima.
3. Pela última, por exemplo: o verbo ‘implicar’, que começa por excluir uma alternativa pouco interessante.
Este livro não trata as relações sociais como causa ou sujeito da imaginação amazônica, menos ainda
como seu objeto ou efeito; isto é, ele não distingue entre ‘sociedade’ e ‘cultura’, e assim não as ordena
causalmente. As relações sociais são tomadas como dimensão intrínseca ao exercício dessa imaginação,
o espaço implícito que ela percorre. Dito de outro modo, elas não são uma ordem transcendente ao
pensamento, mas seu elemento imanente: nem contexto, nem texto, formam a contextura própria do
pensamento indígena.
4. Em seguida, tais relações vão qualificadas de ‘sociais’ somente em atenção preliminar às nossas
convenções cosmológicas, pois o que se tenciona apreender é o conceito geral de relação imaginado
pelo pensamento indígena, e a constituição deste pensamento como imaginação relacional. O esquema
ou figura de tal conceito radica-se, decerto, em uma intuição da socialidade como implicada na própria
trama do cosmos; mas é por isso mesmo que a expressão ‘relação social’ é, a rigor, um pleonasmo, de
utilidade apenas temporária. As concepções indígenas sugerem, ademais, uma idéia da relação como
consistindo em um tipo de dinamismo mais que em um tipo de atributo. As relações são aqui
virtualidades relacionantes, relações que acionam e diferenciam relações; mais precisamente, elas
envolvem a existência de uma diferença de potencial que se atualiza em seus termos, ou relações
relacionadas. Os termos (substâncias e propriedades) serão interpretados como resíduos das relações
que os constituem, aquilo que surge e sobra quando estas se consumam e se consomem. Mas resta
sempre, como veremos, uma virtualidade relacional irredutível nesse resíduo, algo que ele não pôde
atualizar.

5. Uma relação, em particular — justamente porque ela não é uma relação ‘particular' —, funciona como
fio condutor das páginas que seguem. Um dos temas centrais do livro, e é a isso que eu me referia ao
falar na intuição de uma socialidade cósmica, é o sentido da relação de alteridade no pensamento
ameríndio. Há muito que os etnólogos interessados na Amazônia, o autor entre eles, vêm insistindo
sobre a importância da alteridade na economia simbólica dos povos dessa região. Essa importância foi
por vezes atribuída a um certo estilo cognitivo panamericano (quiçá ‘primitivo’ em geral), que
privilegiaria as classificações dualistas e as oposições binárias. [Nota 1]

§ Nota 1. Ver Viveiros de Castro 1996a, para um breve sobrevôo. O primeiro a destacar tal
importância foi Lévi-Strauss. O tema aparece desde o início de sua obra (L.–S. 1943), e forma o
eixo de Histoire de Lynx, o último livro do autor sobre a mitologia americana (1991)]
6. Cuido que semelhante propensão, se podemos realmente chamá-la assim, é antes um fenômeno
derivado, uma repercussão abstrata de algo que pouco tem de cognitivo, de classificatório, ou de
simplesmente binário — algo de que os dualismos indígenas são o limite inferior ou a versão reduzida,
e que lhes imprime um viés característico (Lévi-Strauss 1991). As dualidades tão frequentes nas
cosmologias amazônicas formam apenas as margens, incessantemente desfeitas e refeitas, entre as
quais flui o pensamento nativo. Longe de ser o avatar de um Dois a obcecar a razão indígena, a alteridade
está situada, como diria Guimarães Rosa, na terceira margem desse rio.

7. Em outras palavras, a alteridade se inscreve nos pressupostos da imaginação amazônica como o campo
próprio do pensável. Ela é a marca da presença de Outrem enquanto relação a priori ou condição geral
de atualização dos estados de coisas e corpos que povoam o mundo. Tal condição se reflete na
cosmopraxis indígena sob a forma de um esquema conceitual virtual, que rotulei de perspectivismo,
devido a algumas analogias com as orientações filosóficas assim denominadas.[Nota 2] [Nota3]

§ Nota 2. Nota terminológica. A variação entre os determinativos ‘amazônico’ e ‘indígena’, nas


páginas que seguem, não é rigorosa. Em certos momentos, ‘amazônico’ refere-se apenas aos
povos da floresta homônima; em outros, ele é uma sinédoque que designa todas as culturas das
chamadas ‘terras baixas’ da América do Sul; em outros, enfim, ele indica apenas o foco principal
do livro — ou os limites de minha ignorância etnográfica —, sem implicar a exclusão de outros
povos americanos. O pressuposto de base é a existência de uma unidade histórico-cultural
profunda de toda a América indígena. Note-se também que uso indiferentemente os termos
‘indígena’, ‘ameríndio’ e ‘americano’ para me referir aos povos nativos do Novo Mundo:
‘americano’ e/ou ‘norte-americano’ não deve ser confundido em nenhum momento com
‘relativo aos Estados Unidos’.
§ Nota 3. Viveiros de Castro 1996a. O perspectivismo filosófico a que me refiro está associado
originalmente ao nome de Leibniz, mas se acha variamente presente em pensadores como
Nietzsche, Tarde, Whitehead e Deleuze; este último, como ficará claro, é minha referência
principal para o conceito.
8. A idéia básica (que não é uma idéia simples) do perspectivismo, tanto o indígena como seu análogo
ocidental, é que toda posição de realidade especifica um ponto de vista, e que todo ponto de vista
especifica um sujeito — nessa ordem. No caso indígena, tal especificação é em primeiro lugar uma
especiação, pois a diferença de ponto de vista entre humanos e não-humanos é ali uma questão
fundamental, e a realidade assim posta compreende a realidade reflexiva do sujeito, individual ou
coletivo, uma vez que toda posição de auto-identidade envolve a “perspectiva do Outro” (Taylor 1993:
673) como um momento constitutivo. O perspectivismo implica portanto a alteridade: a diferença como
ponto de vista, o ponto de vista como diferença — e a diferença como positiva, nos dois sentidos da
palavra. A alteridade não é uma dentre as várias categorias formais impostas arbitrariamente pelo
espírito sobre um mundo preexistente, em vista de sua ordenação, mas a condição imanente de
categorização da experiência real, e, ao mesmo tempo, um vínculo necessário que dá corpo aos termos
que efetua, pondo-os no mundo e assim pondo o mundo.

9. Nesse sentido, o perspectivismo amazônico poderia ser descrito como uma ontologia relacional, isto é,
como uma imagem do ser na qual a relação ocupa o lugar da substância enquanto ‘categoria’ primeira.
Uma ontologia relacional, ademais, onde a relação primeira é o nexo de alteridade, a diferença ou ponto
de vista implicado em Outrem. Não bastaria dizer então, com Gilbert Simondon ([1964]: 30, 126), que a
relação tem o estatuto de ser, é uma modalidade do ser, uma relação no ser. Aqui, é o ser que teria o
estatuto de relação: a substância é uma modalidade da relação, os termos são a relação em seu estado
explicado, e a relação é a diferença ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve. [Nota 4]

§ Nota 4.Formulação que leva adiante uma sugestão do mesmo Simondon, quando recomendava
uma apreensão realista das relações e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo a
compensar o viés inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo de
individuação forneceu vários dos instrumentos utilizados neste livro, em particular as noções
de pré-individual e de alagmática (ver adiante). Por sua vez, a imagem de uma tábua de
categorias com a relação no lugar da substância é, naturalmente, de inspiração whiteheadiana:
“As Donald Sherburne points out, ‘It is customary to compare an actual occasion with a
Leibnizian mona/princ/d, with the caveat that whereas a monad is windowless, an actual
occasion is 'all window.' It is as though one were to take Aristotle's system of categories and ask
what would result if the category of substance were displaced from its preeminence by the
category of relation …." As Whitehead himself explains, his "philosophy of organism is the
inversion of Kant's philosophy … For Kant, the world emerges from the subject; for the
philosophy of organism, the subject emerges from the world." [Irvine, A. D., "Alfred North
Whitehead", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2003 Edition), Edward N. Zalta
(ed.), [1]

10. Tudo isso, é claro, se admitirmos que a imagem do ser — o ser como imagem — constitui uma alegoria
adequada à imaginação indígena, e portanto que a noção de ontologia se justifica nesse contexto.[Nota
5] Talvez a ousada sugestão de Gabriel Tarde ([1893]: 86-88), de abandonarmos o conceito
irremediavelmente solipsista de Ser e recomeçarmos a metafísica a partir do Ter (ou Haver: Avoir, o qual
nos daria os úteis neologismos hajência e hajente…), no que este implica de transitividade intrínseca, de
abertura originária a uma exterioridade, seja mais interessante para o caso amazônico, onde o processo
que chamei de predação ontológica faz as vezes de princípio geral de subjetivação.[Nota 6]

§ Nota 5.Ou em qualquer outro contexto não-ocidental. A questão é levantada, e respondida


negativamente, por François Jullien a propósito da China, para cujo pensamento esse autor
reivindica, aliás, um mesmo “primado da relação” (Jullien & Marchaisse 2000: 12–13, 265–67,
308, 352) — e, convém recordar, um uso particularmente sofisticado da dualidade (Jullien
1993).
§ Nota 6Viveiros de Castro 1993a, 1996b. O capítulo @@ abaixo, onde se retoma a monadologia
de Tarde (e a de Whitehead), trata da preensão ontológica — conceito que hoje me parece
preferível ao de predação — como dinamismo característico da socialidade amazônica.
11. Não obstante, conservei a linguagem da ontologia por um motivo, digamos, tático. Ela toma a contrapelo
uma manobra frequente contra o pensamento indígena, que consiste no bloqueio desrealizante desse
pensamento através de sua redução às dimensões de um conhecer ou representar, isto é, a uma
‘epistemologia’ ou a uma ‘visão de mundo’ — como se o que houvesse a conhecer ou a ver já estivesse
resolvido de antemão; e resolvido, é claro, a favor de nossa ontologia (Latour 2000a). A noção de
ontologia, portanto, não é empregada aqui para sugerir que o pensamento indígena exprime mais uma
metafísica do Ser (dizer que o ‘ser’ é relação é indicar o contrário de uma Ontologia), mas sim para
sublinhar que esse pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior.

12. A manobra que se pretende neutralizar foi bem resumida por Roy Wagner, na linguagem mais
classicamente antropológica da natureza e da cultura:

Quando usamos desse modo os controles, não-convencionalizados e diferenciantes, da natureza, nós


objetificamos e recriamos nossa Cultura coletiva com sua ideologia básica do ‘natural’ versus o
‘cultural’ e artificial. [Nota 7] Quando usamos esses controles no estudo de outros povos, inventamos
suas culturas não como análogos de nosso esquema cultural e conceitual em seu todo, mas somente
de parte dele. Inventamos essas culturas como análogos da Cultura (como ‘regras’, ‘normas’,
‘gramáticas’, ‘tecnologias’), isto é, como a parte consciente, coletiva e ‘artificial’ de nosso mundo, em
relação a uma única ‘realidade’ natural universal. Assim, essas culturas não contrastam com nossa
cultura, ou oferecem contra-exemplos dela enquanto um sistema total de conceitualização, mas, antes,
sugerem uma comparação como se elas fossem ‘outros modos’ de tratar nossa própria realidade.
Incorporamos esses povos dentro de nossa realidade, e assim, incorporamos seus modos de vida dentro
de nossa própria auto-invenção. Aquilo que conseguimos perceber das realidades que eles aprenderam
a inventar e habitar é relegado ao ‘sobrenatural’ ou despachado como ‘meramente simbólico’ (Wagner
1981: 142; grifos originais).
§ Nota 7 Veremos adiante o significado das noções wagnerianas de controle, convenção e
diferenciação.

13. O comparativismo usual poderia ser descrito, então, como um jogo de dois contra um, ou como uma
discussão onde um dos interlocutores é ao mesmo tempo juiz e parte: de um lado, nossa cultura e nossa
natureza; do outro, a cultura do nativo. A natureza do nativo é vista como interna à sua cultura, ao passo
que a natureza do antropólogo é vista como externa a todas as culturas. Mas assim, como se diz, é
covardia… [Nota 8]

§ Nota 8 Outro modo assimétrico de jogar esse jogo é o praticado pelos antropólogos
‘cognitivistas’ — mas também por autores como Ingold (2000), embora com os sinais de valor
invertidos. Se a crítica de Wagner à comparação pseudo-relativista, de tipo ‘dois contra um’,
visava a idéia de que nós temos natureza e cultura, os selvagens tendo só cultura, quando
passamos aos especialistas na ‘natureza humana’ a distribuição muda: os selvagens são só
natureza (suas culturas exprimem imediatamente as disposições cognitivas ou existenciais do
Homo sapiens), os ocidentais somos natureza e temos cultura (a escrita, a ciência etc.). Para os
cognitivistas, essa cultura nos dá um acesso privilegiado à natureza das coisas, corrigindo as
ilusões (necessárias) inscritas evolucionariamente na constituição mental da espécie; para
Ingold, ao contrário, tal cultura é uma perversão que nos expulsa da morada do Ser,
compartilhada pelos demais humanos

14. Wagner está distinguindo, na passagem acima, entre um conceito de cultura como plano de imanência,
com suas duas faces dadas simultaneamente — uma imagem do pensamento e uma matéria do ser —,
de um conceito de cultura como doxa, como conjunto particular de representações referidas a um
mundo exterior universal. [Nota 9] Neste segundo e mais corrente sentido da noção de cultura, a
democracia epistemológica professada pela antropologia, quando afirma a diversidade cultural dos
significados, revela-se, como outras democracias que conhecemos tão bem, muito relativa, pois se apóia
‘em última instância’ em uma monarquia ontológica absoluta, onde se impõe a unidade referencial da
natureza. [Nota 10] No primeiro sentido da noção de cultura, porém, não há última instância: o oposto
da cultura não é a natureza, mas o nada, pois ‘atrás’ da cultura não há nada. Ou, talvez, tudo — isto é, o
caos.

§ Nota 9 Para o conceito de plano de imanência, a que retornaremos, ver Deleuze & Guattari
1991: 38–59. Seria também possível pensar o contraste entre os dois sentidos de cultura em
Wagner nos termos da diferença entre Weltbild e Weltanschauung feita pelo ‘último’
Wittgenstein. A analogia entre os conceitos de Weltbild e de plano de imanência foi avançada
em um magnífico artigo de Bento Prado Jr (1998: 317-ss)
§ Nota 10 O recurso a tal ultima ratio é analisado por Bruno Latour em vários trabalhos recentes
(Latour 1996, 1999, 2000a). A cultura de Wagner, no sentido de “sistema total de
conceitualização” que inclui tanto a ‘cultura’ como a ‘natureza’, poderia corresponder ao que
Latour (1991, 1996b, 1999, 2000) chamará de Constituição, embora possa ser igual ou talvez
mais adequadamente aproximada, na medida em que só existe como complexo de ação e
motivação atualizado em uma coletividade humana concreta, dos conceitos latourianos de
natureza-cultura e de coletivo. Latour e Wagner são duas influências capitais sobre este livro;
seus trabalhos (desenvolvidos de modo independente) mostram uma clara mas pouco notada
convergência, em particular Nous n’avons jamais été modernes (Latour 1991) e The invention
of culture (Wagner 1981). Além disso, eles me parecem completar-se à maravilha, com o
primeiro sendo nitidamente mais forte quando se trata de descrever a Constituição da
modernidade, e o segundo, muito mais rico na caracterização dos regimes ontológicos de tipo
extra-moderno
15. Tentando contornar a piedosa hipocrisia relativista de nossa disciplina, e em acordo com o conceito de
cultura proposto por Wagner, o presente livro advoga o direito à autodeterminação ontológica das
culturas indígenas. Autodeterminação, aliás, é exatamente a palavra, pois estaremos falando de
conceitos — da imaginação conceitual nessas culturas.

Outrem Editar
1. Dissemos acima que há um razoável consenso do discurso americanista no tocante à importância do
vínculo de alteridade. Como todo consenso, este também repousa sobre um mal-entendido, e envolve
um processo de esvaziamento semântico. Um dos objetivos do presente livro é tentar uma tematização
mais rigorosa da ‘questão do outro’ no pensamento amazônico. Não por via de uma compilação de suas
diversas incidências na literatura disponível, ou do exame em profundidade de um caso etnográfico, mas
de um esforço para lhe dar consistência conceitual, isto é, para situá-la em um campo problemático bem
definido.
2. Para tanto, é necessário desenvolver a mútua implicação dos conceitos de perspectivismo e de
alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois ‘falsos amigos’ com os quais costumam ser
confundidos. Trata-se de mostrar, de um lado, como o perspectivismo indígena (uma ontologia da
relação) pouco tem a ver com o relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como
a alteridade amazônica (o Eu e o Outro como efeitos da relação-Outrem) resiste a uma tradução no
vocabulário da ‘intersubjetividade’ (o Eu e o Outro como conteúdos da forma-Sujeito).
3. A distinção entre perspectivismo e relativismo já fora esboçada nos textos reelaborados neste livro, e é
aqui aprofundada; mas a ‘irredução’ do regime de alteridade amazônico a um tipo de intersubjetivismo
é algo cuja necessidade só se me tornou clara recentemente, obrigando-me a rever algumas
formulações, e mesmo, como logo veremos, o próprio nome dessa relação que estou chamando
‘alteridade’. Tal revisão tem consequências para o conceito de perspectivismo, pois permite evitar sua
trivialização em uma forma de idealismo intersubjetivo ou de construcionismo social. Mas ela se impôs,
em primeiro lugar, em vista de um melhor entendimento dos dispositivos de subjetivação indígena, e de
uma imaginação mais precisa das relações — ou melhor, da relação — referidas pela etnologia
americanista pelos termos de ‘troca’ e ‘reciprocidade’, ‘predação’ e ‘inimizade’.

4. A revisão se mostrou necessária, acima de tudo, para dissipar qualquer conotação de transcendência
que tenha alguma vez sido dada, pelo autor inclusive, à idéia de ‘Outro’ no mundo amazônico: que os
deuses araweté sejam outros, por exemplo (Viveiros de Castro [1986]), não significa que o Outro
araweté seja Deus. A alteridade é indubitavelmente um dispositivo transcendental do pensamento
indígena, mas não projeta nenhuma imagem do transcendente; trata-se, ao contrário, da modalidade
mesma de imanência desse pensamento. [Nota 11] Ela é a versão amazônica daquilo que Roy Wagner,
em um contexto melanésio, chamou de “mundo da humanidade imanente” (1981: 86-89), onde a
‘cultura’ é da ordem do fato, e a ‘natureza’, do feito. [Nota 12] Este mundo da humanidade imanente,
advirta-se, está nas antípodas de qualquer forma de humanismo, assim como o mundo da alteridade
imanente está nas antípodas de qualquer forma de altruísmo. Há bem mais sujeitos, no mundo
amazônico, que os sujeitos humanos; em certo sentido, há mais humanos nesse mundo que os membros
da espécie epônima; mas isso só faz tornar as concepções indígenas de sujeito e de humanidade ainda
mais avessas a qualquer interpretação em termos de razão comunicacional ou de consenso dialógico.

§ Nota 11Recordo a diferença, de origem kantiana, entre o ‘transcendental’ (cujo antônimo é


‘empírico’), que remete às condições de possibilidade da experiência, situando-se aquém desta,
e o ‘transcendente’ (cujo antônimo é ‘imanente’), que se refere ao que está além da toda
experiência possível, isto é, ao supra-sensível ou às coisas-em-si.
§ Nota 12Sobre a humanidade imanente, ver também Sahlins 1995 (How Natives Think): 6-7; 152-
3; 162-65; e vários parágrafos de artigo The Sadness of Sweetness, in CiPractice pp. 542-5 et
passim)

5. Para distinguir a função amazônica de alteridade da problemática da intersubjetividade, um ponto de


apoio decisivo para mim foi o conceito acima evocado, o de Outrem como estrutura a priori. Ele foi
inicialmente proposto no conhecido comentário de Gilles Deleuze ao Vendredi de Michel Tournier.[Nota
13]

§ Nota 13Esse comentário está publicado em apêndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 350–
72; ver também id. 1969b: 333–35, 360). O conceito de Outrem pertence à fase que se poderia
chamar de estruturalista da obra de Deleuze; mas ele é retomado, em termos praticamente
idênticos, em seu último livro, Qu’est-ce que la philosophie? (Deleuze & Guattari 1991: 21–24,
49), e justamente como o primeiro exemplo do que vem a ser um conceito filosófico.
6. Lendo o livro de Tournier como a descrição ficcional de uma experiência metafísica — o que é um mundo
sem outrem? —, Deleuze procede a uma indução dos efeitos da presença desse outrem a partir dos
efeitos causados por sua ausência. Outrem aparece, assim, como a condição do campo perceptivo: o
mundo fora do alcance da percepção atual tem sua possibilidade de existência garantida pela presença
virtual de um outrem por quem ele é percebido; o invisível para mim subsiste como real por sua
visibilidade para outrem.[Nota 14] A ausência de outrem acarreta a desaparição da categoria do
possível; caindo esta, desmorona o mundo, que se vê reduzido à pura superfície do imediato, e o sujeito
se dissolve, passando a coincidir com as coisas-em-si (ao mesmo tempo em que estas se desdobram em
duplos fantasmáticos). Outrem, porém, não é ninguém, nem sujeito nem objeto, mas uma estrutura ou
relação, a relação absoluta que determina a ocupação das posições relativas de sujeito e de objeto por
personagens concretos, bem como sua alternância: outrem designa a mim para o outro Eu e o outro eu
para mim. [Nota 15] Outrem não é um elemento do campo perceptivo; é o princípio que o constitui, a
ele e a seus conteúdos. Outrem não é, portanto, um ponto de vista particular, relativo ao sujeito (o
‘ponto de vista do outro’ em relação ao meu ponto de vista ou vice-versa), mas a possibilidade de que
haja ponto de vista — ou seja, é o conceito de ponto de vista. Ele é o ponto de vista que permite que o
Eu e o Outro acedam a um ponto de vista.[Nota 16]

§ Nota 14 “[O]utrem para mim introduz o signo do não-percebido naquilo que percebo,
determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (Deleuze
1969a: 355)
§ Nota 15Utilizo aqui e doravante o substantivo ‘(o) Eu’ (e o pronome oblíquo ‘mim’), com inicial
maiúscula, para traduzir o francês (le) Moi ou o inglês (the) Self, e a forma ‘(o) eu’, com
minúscula, para traduzir o francês ‘le Je’ ou o inglês ‘the I’. A noção deleuziana de Outrem dá
conta precisamente da diferença entre o eu e o Eu, o Je e o Moi, diferença esta tanto externa
(outrem sou eu para um outro Eu e vice-versa) como interna (o eu é um outro que o Eu). Tais
‘questões pessoais’ terão importância na parte III do livro, quando discutiremos a deixis
cosmológica e seus pronomes.
§ Nota 16Esse ‘ele’ que é Outrem não é uma pessoa, uma terceira pessoa diversa do eu e do tu,
à espera de sua vez no diálogo, mas também não é uma coisa, um ‘isso’ de que se fala. Outrem
seria mais bem a “quarta pessoa do singular” — situada, digamos assim, na terceira margem do
rio —, anterior ao jogo perspectivo dos pronomes pessoais (Deleuze ([1979]: 79).

7. Deleuze prolonga aqui criticamente a famosa análise de Sartre sobre o ‘olhar’, afirmando a existência
de uma estrutura anterior à reciprocidade de perspectivas do regard sartriano. O que é essa estrutura?
Ela é a estrutura do possível: Outrem é a expressão de um mundo possível. Um possível que existe
realmente, as que não existe atualmente fora de sua expressão em outrem. O possível exprimido está
envolvido ou implicado no exprimente (que lhe permanece entretanto heterogêneo), e se acha efetuado
na linguagem ou no signo, que é a realidade do possível enquanto tal — o sentido. O Eu surge então
como explicação desse implicado, atualização desse possível, ao tomar o lugar que lhe cabe (o de ‘eu’)
no jogo de linguagem. O sujeito é assim efeito, não causa; ele é o resultado da interiorização de uma
relação que lhe é exterior — ou antes, de uma relação à qual ele é interior: as relações são
originariamente exteriores aos termos, porque os termos são interiores às relações. “Há vários sujeitos
porque há outrem, e não o contrário” (op.cit.: 22). [Nota 17]

Nota 17A idéia de uma realidade própria do possível — o possível tomado como realidade implicada
em sua expressão — é o que Deleuze ([1966]: 96ss; 1969b: 269ss) chama, via Bergson, de virtual, por
oposição ao atual. A distinção entre os pares virtual/atual e possível/real, a que voltaremos, é
importante para a rediscussão do conceito amazônico de afinidade, feita na parte II deste livro, e para
a análise do ‘tempo mítico’ feita na parte III
8. O conceito deleuziano de Outrem mostra várias facetas importantes para este livro. Em primeiro lugar,
sua indução (ou abdução) a partir de um exame do campo perceptivo visual — onde não apenas o sujeito
e o objeto são dispostos por Outrem, mas também o contraste entre a forma e o fundo, a latitude e a
longitude, o ‘texto’ e o ‘contexto’ — é rica em sugestões para uma análise do perspectivismo indígena,
que faz um uso intenso de esquematismos ligados à visão. A relação entre figura e fundo, por exemplo,
será útil para a reconceituação da diferença entre a ‘alma’ e o ‘corpo’ amazônicos.

9. Em segundo lugar, a idéia de outrem como condição de posição da realidade (que, nesses termos
genéricos, certamente não se origina com Deleuze, mas com a tradição fenomenológica - a compilação
comentada por Szymkowiak (1999) e a excelente exposição de Barbaras (1989), ambas sobre o conceito
de outrem, foram muito úteis para um amador em filosofia como o presente autor) permite discernir o
que há de insatisfatório no modelo perceptivo clássico, que continua a servir de paradigma da ‘cognição’
para a maioria das abordagens psico-antropológicas contemporâneas. Este modelo parte de um sujeito
individuado diante de um objeto a individuar, ou vice-versa. Uma vez fechada em torno desse dualismo,
a questão se resume a saber se o sujeito dispõe de categorias inatas ou adquiridas, se ele é um tipo de
objeto ou algo mais especial, se as determinações do objeto são intrínsecas ou projetadas pelo sujeito,
o que acontece quando o objeto é um outro sujeito, e por aí vai — não muito longe. Ao afirmar, contra
isso, que “não é o Eu, é outrem como estrutura que torna a percepção possível” (1969a: 358), Deleuze
remete ao transcendental, como imanência e virtualidade, aquilo que Durkheim havia reificado como
substância transcendente — a socialidade, que deixa assim de ser Sujeito molar coletivo e passa a
Relação distributiva e molecular de subjetivação —, ao mesmo tempo em que transforma o sujeito e o
objeto individuados em termos atualizados de uma virtualidade pré-individual. Não cabe então
perguntar como Outrem ‘aparece’ ou se ‘apresenta’ no campo cognitivo ou perceptivo:: à maneira do
tio materno no átomo de parentesco de Lévi-Strauss ([1945]: 56–57), ele não aparece no campo — ele
sempre esteve lá, como sua condição heterogênea exterior.[Nota 18]

§ [Nota 18]Se o estruturalismo de Lévi-Strauss foi rotulado de “kantismo sem sujeito


transcendental” (Ricœur 1963: 618) — a fórmula foi assumida por Lévi-Strauss (1963: 633; 1964:
19) —, poderíamos dizer que a sociologia durkheimiana é um kantismo com sujeito
transcendente, e a antropologia cognitiva contemporânea um kantismo com sujeito empírico
(a rigor, um inatismo de tipo cartesiano), ao passo que a filosofia de Deleuze sugeriria um
peculiar ‘kantismo com outrem transcendental’, que positiva o kantismo negativo estruturalista
em uma direção duplamente oposta à de sua empirização cognitiva. Digo que o ‘kantismo’
deleuziano é peculiar porque, como observam alguns comentadores (Zourabichvili 1994: 46–
47; Lebrun 1998), seu campo transcendental não é concebido como uma figura da interioridade,
isto é, não é ‘decalcado’ da forma empírica da representação: ele não pressupõe uma forma-
sujeito do campo, mas uma relação impessoal e assubjetiva exterior a seus termos, e a noção
de condição não envolve uma semelhança retroprojetiva com o condicionado, mas é um
princípio heterogenético. O que equivale a dizer: contra os vários racionalismos empíricos, ou
kantismos sem o transcendental, um “materialismo transcendental” (como o batizou Stengers
em algum lugar), ou um transcendental sem Kant. Sobre o ‘irmão da mãe’ lévi-straussiano: ele
é ao mesmo tempo exterior à família conjugal e o que a torna possível; não é, portanto, um
termo de mesma ordem que os membros da família (pai, mãe, filho), mas uma relação
diferenciante. O paralelo entre a estrutura de Outrem e o átomo de parentesco não é apenas
alegórico, como veremos na Parte II. Tal paralelo, note-se bem, não passa por nenhuma noção
de interdito ou de lei (que, entre outros defeitos, modela indevidamente o constitutivo segundo
a forma do regulativo): Outrem não é uma figura da necessidade negativa, mas da possibilidade
positiva. Recorde-se que a relação avuncular é o que produz a diferença entre o ‘eu’ (o filho, no
átomo lévi-straussiano) e o ‘outro’ (o pai), bem como sua projeção temporal. O filho difere do
pai através do irmão da mãe. Na verdade, todas as posições familiares são criadas pela função
avuncular: além da díade pai-filho, ela distingue o marido de sua mulher (ao pô-los como não-
germanos), e o filho de sua mãe (via a posição do pai como diferente do irmão desta). Não seria,
então, por acaso que os Daribi da Nova Guiné definem o tio materno como constituindo a ‘base’
ou ‘causa’ do sobrinho uterino (Wagner 1967): o pai pode ser o autor eficiente da criança, mas
o tio é sua razão suficiente.
10. Esse conceito, em suma, parece-me fornecer um instrumento interessante de tradução do regime de
alteridade amazônico; mais interessante, quero dizer, que as hermenêuticas intersubjetivas visadas pela
antropologia contemporânea como alternativa aos positivismos disponíveis no mercado. Mais
adequado, também, que as interpretações dialéticas da alteridade como trabalho do negativo no sujeito.
Pois Outrem não é, enquanto tal, ‘o outro’, isto é, o outro (alter) do sujeito; ele é um outro (aliud) que
o sujeito, uma multiplicidade virtual de onde emergem todo Eu e qualquer Outro. Outrem é a diferença
relacional pura ou molecular, anterior à sua molarização no par opositivo e relativo Eu/Outro. A
oposição, como já ensinava Tarde, é a versão macroscópica, simplificada e normalizada da diferença,
não o seu modelo; ela é o primeiro compromisso entre a diferença e a identidade.

Alteridade e/ou alteração Editar


1. Aqui se começa a poder perceber, enfim, o que há de equívoco, ou pelo menos de impreciso, na noção
de alteridade: ela não permite distinguir entre o outro e Outrem, o termo alterno ao sujeito e a relação
que os altera a ambos. A noção implica, além disso, uma extrinsicidade ou transcendência do Outro face
ao Eu, ao passo que no regime amazônico, como se depreende mais ou menos claramente da etnografia,
a “perspectiva do Outro” é uma determinação imanente dos dispositivos de subjetivação nativos: trata-
se de uma ‘alteridade interna’. Com seu sufixo de estado ou de atributo, a forma ‘alteridade’ sugere
ainda uma imagem finalizada — literalmente, terminada — da relação, que a toma a partir de seus
termos, como relação relacionada e não como relação relacionante: oposição extensiva antes que
diferença intensiva. (Se há uma insuficiência importante na metodologia antropológica que mais fez para
afirmar o primado da relação diferencial — o estruturalismo —, esta reside em sua concepção
exclusivamente extensivista da diferença.)

2. É preciso achar uma outra palavra. O termo que melhor caberia está, infelizmente, ocupado há muito
tempo, e por um locatário conceitual que não poderia ser mais antagônico ao sentido aqui visado:
alienação, que tem a tripla vantagem de ser um nome de ação e não de estado, de estar mais próxima
do aliud latino e não do alter, e de designar uma diferença interna ao sistema subjetivo ‘eu-Eu’. Mas é
inútil insistir por aí, sob pena de criar toda sorte de mal-entendidos. Assim, proponho que se distinga
entre a alteridade, oposição extensiva entre Eu e não-Eu, e a alteração, diferenciação intensiva
característica da estrutura-Outrem. A alteridade procede da alteração, a alteração se resolve ou
desenvolve em alteridade, mas não se confunde com esta: “Outrem é sempre percebido como outro,
mas em seu conceito ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós” (Deleuze &
Guattari 1991: 24). A alteração está para a alteridade como uma relação virtual implicada está para os
termos atuais em que ela se explica. A alteração não é dada; o dado é a alteridade: mas a alteração é
aquilo pelo qual o dado se dá como alteridade. [Nota 19]

§ Nota 19Isso parafraseia uma passagem de Deleuze: “A diferença não é o diverso. O diverso é o
dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. Aquilo pelo qual o dado é dado como
diverso” (1969b: 286). E ver L’Homme nu p. 539-40, sobre a disparidade dada, a assimetria
primeira.
3. Não há alteridade sem alteração. Abstraída da potência de alteração de que procede, a alteridade se
congela em uma ‘relação’ meramente formal, e frequentemente degenera em uma taxonomia de
oposições diacríticas entre posições constituídas. No caso da antropologia amazônica, isso muitas vezes
se traduz em uma “sociologia verbal” (Calavia 1995: 249) de categorias de identidade e de
autodesignações coletivas — uma étimo-sociologia mais que uma etno-sociologia —, e em uma
cartografia estática de círculos de distância social, quando não em análises ‘cognitivas’ que reduzem
toda diferença a uma classificação, todo pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon:
triunfo do extensivo, anulação total das diferenças de intensidade portadas pela alteração.
4. Alteração, então, designaria o ‘processo’ de atualização da alteridade que é o efeito próprio de Outrem
como relação a priori. Escrevo ‘processo’ entre aspas porque não se trata, a rigor, de um processo, ou
não se trata apenas disso: o processo de atualização da alteridade se dobra de um contra-processo
involutivo, um devir, que contra-efetua a alteração por outros caminhos, como se verá na parte II deste
livro.
5. Alteração, enfim, porque essa palavra evoca uma noção capital da metafísica ameríndia, a de
transformação intensiva ou metamorfose, comentada na parte III deste livro. A real relação entre Eu e
Outro, no mundo indígena, não é a oposição analítica ou a negação dialética, mas a metamorfose como
alteração ontológica. Tensão, preensão, alteração: a diferença selvagem ou ‘ferina’: a diferOnça.

§ A onça, um dos animais gramatológicos, como a sucuri etc. Os predadores "com desenho"
(Gow). Forma e força: a diferOnça como diferença intensiva pura, o devir-onça. A onça animal
emblemático, ou heráldico, como o hipogrifo, o unicórnio, a águia bicéfala, o leão rampante —
a DiferOnça, ou diferença que morde, ou diferença ferina. Tradicional função heráldica da onça
nas cosmologias ameríndias, desde Chavín.

Existe, logo pensa Editar


1. O conceito de Outrem como relação a priori serviu-me, sobretudo, para formular de modo mais claro a
conexão entre as duas idéias centrais deste livro, a alteração-alteridade e o perspectivismo.
2. Uma expressão prototípica de Outrem na tradição ocidental é a figura do Amigo. O Amigo é outrem,
mas outrem como ‘momento’ do Eu. Se me determino como amigo do amigo, é apenas porque o amigo,
na conhecida definição de Aristóteles, é um outro Eu (Ética a Nicômaco, 1170 b 6). O Eu está lá desde o
início: o amigo é a condição-Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do sujeito.
Como observa Francis Wolff (2000: 169), essa definição aristotélica implica uma teoria segundo a qual
“toda relação com outrem, e por conseguinte toda forma de amizade, encontra seu fundamento na
relação do homem consigo mesmo”. O vínculo social pressupõe a auto-relação como origem e modelo.
E o mesmo se diga quando a relação arquetipica é a propriedade: “Davis & Naffine (2201: 9) quote the
observation, for instance, that western property is based on self possession as a primordial property
right which grounds all others. This axiom holds whether or not the self-owning individual is given in the
wolrd (being ultimately owned by God, Locke) or has to fashion that condition out of it (through its owns
struggling, Hegel)” [M. Strathern 2002, “Divided origins”, p. 23 n. 57]. @Ver Wolff passim (cf. pgs.) sobre
o Amigo como figura grega. Ver Voelke sobre philia e agapè. Ver Bolstanski sobre os ‘estados de paz’.@
3. Mas o Amigo não funda somente uma ‘antropologia’. Dadas as condições histórico-políticas de
constituição da filosofia grega, o Amigo emerge como indissociável de uma certa relação com a verdade:
ele é uma condição de possibilidade do pensamento em geral, uma “presença intrínseca … uma
categoria viva, um vivido transcendental” (Deleuze & Guattari 1991: 9). O Amigo é, em suma, o que
Deleuze chama de um personagem conceitual, o esquematismo de Outrem próprio ao conceito. A
filosofia exige o Amigo, a philia é a relação constitutiva do saber.

4. Pois bem. O problema que se coloca, do ponto de vista do pensamento indígena, é: como funciona a
estrutura Outrem em um mundo onde é o Inimigo, não o Amigo, que faz as vezes de vivido
transcendental ou de protagonista conceitual? Onde outrem não é concebido como um outro Eu, mas
como um eu Outro? [Nota 20]Onde, em suma, não é a semelhança que funda a relação, e onde a relação
consigo mesmo não é primeira — mas onde é a diferença que liga, e onde é a relação com o outro que
permite a relação consigo mesmo? Este é o problema que se procura tratar na parte II do livro: a imagem
amazônica da Relação. Ele exige a travessia de um campo clássico da antropologia social, o parentesco,
pois o inimigo e a diferença são determinações internas das ‘categorias vivas’ da cosmopraxis indígena,
e estas se exprimem antes de mais nada como categorias de parentesco: o irmão e o cunhado, o pai e o
sogro, a irmã e a prima cruzada… [Nota 21]

§ Nota 20 Reencontro — este livro está cheio de reinvenções do alheio — exatamente tal
formulação em Manuela Carneiro da Cunha (1978: 93-94), a propósito da diferença entre o
companheiro (um ‘outro Eu’) e o amigo formal (um ‘eu-Outro’) dos Timbira, figuras que são os
esquematismos rituais, respectivamente, das posições de irmão e de cunhado. Esse último par
(ou antes, as idéias que eles encarnam) é longamente tematizado na parte II a seguir.
§ Nota 21Seria possível formular o problema a partir de uma outra tradição ocidental fundadora,
por exemplo, da figura do Próximo bíblico, aquele que devemos ‘amar como a nós mesmos’. A
convergência entre essas duas imagens tão diferentes, o Amigo (a philia) e o Próximo (a agapè),
só é pertinente do ponto de vista de seu comum contraste com o regime amazônico da
alteridade. @Agapè@
5. A questão do perspectivismo já se encontra formulada no problema acima. Se Outrem é o conceito de
ponto de vista, o que é um mundo constituído pelo ponto de vista do inimigo (Viveiros de Castro 1992)
como determinação transcendental? Um mundo onde a ‘inimizade’ não é um mero complemento
privativo da ‘amizade’, nem uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura de direito do
pensamento, e uma positividade? E por fim — que relação com o saber, ou que regime de verdade,
constitui-se nesse elemento da diferença ou distância positivas?

6. Para poder começar a dizer algo sobre este último ponto, é preciso percorrer uma outra dimensão do
pensamento indígena, formulável igualmente por contraste com nossas configurações da alteridade.
Pois Outrem não se manifestou na tradição ocidental apenas na figura grega do Amigo — que continua
bem viva entre nós, apenas não mais como mediação maiêutica (o diálogo antigo conduzia a uma
essência transcendente), mas como condição hermenêutica (a verdade moderna se tornou imanente ao
diálogo). Outrem também é consubstancial a uma outra figura, esta um pouco mais recente, um
personagem conceitual completamente singular — Deus. É difícil não ver em Deus a forma por
excelência de Outrem em nossa tradição: ele é ao mesmo tempo o grande Outro, garantia da realidade
absoluta (o Dado) face ao solipsismo da consciência, e o grande Eu, garantia da inteligibilidade relativa
(o Construído) do que o sujeito vê em torno de si. @Ver Althusser IAIE sobre Deus como o Outro Sujeito
que nos faz sujeitos etc.@ Com efeito, a função maior de Deus, no que concerne ao destino do
pensamento moderno, foi a de demarcar a linha fundamental entre o dado e o construído, ao se instituir,
enquanto Criador, como seu horizonte de indiferenciação.

Dieu c'est l'être pour lequel il n'y a pas de donné. En effet Dieu crée, et crée ex-nihilo. C'est-à-dire à
partir de rien. Il n'y a même pas de matériaux qui lui soient donnés. Dès lors la distinction d'un donné
et d'un agi n'existe pas pour Dieu. En d'autres termes, la différence entre donné et crée n'existe pas
pour Dieu. La différence entre réceptivité et spontanéité n'existe pas pour Dieu ; Dieu est uniquement
spontanéité. Dès lors qu'est-ce que c'est que le donné ? Le donné c'est une spontanéité déchue. Il n'y
a de donné que pour la créature parce que la créature est finie. Le donné n'est qu'une spontanéité
déchue, en d'autres termes : nous, étant des êtres finis en fait, nous disons : il y a du donné. Pour Dieu,
il n'y a pas de donné. C'est uniquement notre finitude qui fait la différence de la réceptivité et de la
spontanéité. Cette différence ne vaut pas au niveau de Dieu. Or Dieu c'est le droit, c'est-à-dire c'est
l'état de chose tel qu'il est en droit. Vous voyez, c'est très simple, pour que le kantisme soit possible, il
faut qu'il y ait une promotion de la finitude. Il faut que la finitude ne soit plus considérée comme un
simple fait de la créature, il faut que la finitude soit promue à l'état de puissance constituante. C'est
pour cela que HEIDEGGER aime tant se réclamer de KANT. KANT c'est l'avènement d'une finitude
constituante, c'est-à-dire que la finitude n'est plus un simple fait qui dérive d'un infini originaire, c'est
la finitude qui est originaire. C'est cela la révolution kantienne. (Deleuze, curso)

7. É verdade que Deus foi saindo aos poucos de nossa cena histórica, mas antes de morrer ele tomou duas
medidas propriamente providenciais: interiorizou-se no foro íntimo dos homens como forma inteligível
do Sujeito (a lei moral), e exteriorizou-se em um Objeto sensível infinito, a natureza como campo total
da realidade substantiva (o céu estrelado).[Nota 22] A Cultura e a Natureza, em suma, os dois mundos
(Ingold 2000: 1), o subjetivo e o objetivo, em que se dividiu a Sobrenatureza como Outrem originário.
Deus, portanto, também continuou entre nós, na forma duplamente eficaz da ausência e da divisão.

§ Nota 22 Considerando-se que o Deus cristão é um híbrido greco-judaico, dir-se-ia (e Hegel deve
ter dito isso em algum lugar) que a parte que se interiorizou como Sujeito é a judaica, e a que
se exteriorizou como Natureza, a grega.

8. Essas considerações algo ligeiras (para não dizer grosseiras) visavam apenas introduzir nosso segundo
problema. [Nota 23] Como funciona a relação-Outrem em um mundo radicalmente não-monoteísta, e
que sempre passou ao largo de uma teologia da criação? Problema ligeiramente diferente daquele que
Deleuze lia em Tournier: não se trata aqui de saber o que é um mundo sem outrem, mas o que é outrem
em um mundo sem Deus. Não, note-se, um mundo criado pela retirada de Deus, como nosso mundo
moderno, mas um mundo incriado, na inexistência de uma divindade transcendente. [Nota 24] Nesse
regime de alteração, o que garante a realidade para os sujeitos, que ‘percipiente’ virtual é pressuposto
para assegurar a transição entre os possíveis? Onde está Outrem, como se distribuem — alteram-se e
alternam-se — as posições do sujeito e do objeto, do dado e do construído, da forma e do fundo?

§ Nota 23 Considerações em parte inspiradas na história contada por Latour (1991: 50-53, passim)
sobre a “Constituição” dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986) sobre
as relações entre teologia e imaginação científica na transição para a modernidade
§ Nota 24 Sobre as relações históricas entre o recuo (ou “barramento”, cf. Latour) de Deus e a
emergência, nos dois sentidos da palavra, da questão de Outrem na filosofia contemporânea,
ver as sugestivas indicações de Szymkowiak 1999: 44-45
9. Para responder a tais questões, será preciso rediscutir os termos da oposição clássica entre Natureza e
Cultura, região objetiva e região subjetiva do existente, de modo a discernir a diferença propriamente
ontológica do pensamento indígena face ao nosso. Este é o tema da parte III do livro: a disseminação de
Outrem pelas anfractuosidades do mundo, sua manifestação sob a forma de uma infinidade potencial
de sujeitos não-humanos, e, reciprocamente, a presença do humano como imanência absoluta.
10. Em outras palavras, estaremos discutindo mais uma variante do que Latour (1991: passim) chama de
“velha matriz antropológica” da humanidade, a matriz que a velha ciência antropológica chamava, como
se sabe, de ‘animismo’. Pode-se dizer que o animismo, para defini-lo sucintamente mediante os
conceitos de uma tradição que se imagina ‘desanimista’, é uma imagem do mundo onde o objeto é um
caso particular do sujeito, isto é, onde todo objeto é um sujeito em potência: o cogito indígena não tem
a forma solipsista do “penso, logo existo”, mas a forma animista do “existe, logo pensa”. (Essa “velha
matriz antropológica” deveria ser melhor chamada,a seguirmos a antropologia selvagem de Oswald de
Andrade, de “velha matriz antropofágica”; e a palavra “matriz” não está aqui por acaso. Ver abaixo,
párag. 12).
11. O animismo de que se tratará aqui, entretanto, conhece uma inflexão crucial. No mundo amazônico, o
Eu é um caso particular do Outro, pois ali a relação com o outro, o ‘inimigo’, funda a relação consigo
mesmo. Um animismo, portanto, alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se
inimiza — alteração. Em lugar do animismo e seu regime de subordinação das diferenças à Identidade,
um inimismo, e seu regime da DiferOnça: o perspectivismo indígena, ou o mundo por outrem.
12. Sobre esses quatro últimos parágrafos, é imperativo remeditar sobre os textos de Oswald de Andrade
reunidos em A Utopia Antropofágica. Em particular, por diretamente pertinente, sobre suas
considerações a propósito do Matriarcado, ou do Homem cordial. Veja-se por exemplo:
A cultura matriarcal […] compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropofágico, que é
comunhão.
De outro lado, a devoração traz em si a imanência do perigo. E produz a solidariedade social que se
define em alteridade.
Ao contrário, as civilizações que admitem uma concepção messiânica da vida, fazendo o indivíduo
objeto de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivência, se dessolidarizam. produzindo o
egotismo do mundo contemporâneo. Para elas, há a transcendência do perigo e sua possível dirimição
em Deus.
A periculosidade do mundo, a convicção da ausência de qualquer socorro supraterreno, produz o
“Homem cordial”, que é o primitivo, bem como as suas derivações no Brasil.
A angústia de Kierkegaard, o “cuidado” de Heidegger, o sentimento do “náufrago”, tanto erm Mallarmé
como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre não são senão sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral
ante a vida que é devoração. Trata-se de uma concepção matriarcal do mundo sem Deus.
(“Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o Homem cordial”. Anais do I Congresso Brasileiro
de Filosofia, vol. 1, março de 1950. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, pp. 229-231)

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