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Jards Nobre

E, de repente, em meio à
chuva forte, um corpo caído so­
bre o asfalto úmido. Quem se­
ria então aquele desconhecido?
Teria se atirado ou teria es­
corregado da varanda de seu
apartamento?
Menos pelas perguntas
que responde, são as pergun­
tas que suscita o grande atra­
tivo desta narrativa.
Nela, a tragédia de Hi­
pólito se repete... Desta vez, em
uma destas pequenas cidades
quase esquecidas pelo Brasil.
Muito do espírito destes luga­
res encontra-se ali impresso,
sem apelar para os clichês mais
típicos do sertão e da seca.
Na história dos encontros
e desencontros das persona­
gens Nadja, Tito e Paulo, os
novos sertanejos não mais se
apresentam como os guarda­
tários de uma tradição into­
cável, sabedores de sua origem
Logo atrás, um automóvel freou bruscamente e um cantar de pneus sido esfaqueado no m
rasgou a cortina de chuva. O condutor do veículo desceu espantado e cor­ notícia causou uma co
reu para verificar se realmente vira ou não cair uma pessoa sobre a pista. nhora, que morava numci
Tamanho foi o pavor quando constatou que não se enganara. Havia mesmo uma das poucas residê
um corpo caído no asfalto. Sob a chuva, ele distinguiu um grito e olhou pela multidão, aproxima
para cima. Seus olhos desafiaram os pingos. Os apartamentos acendiam­ apertou os olhos e verte
se, janelas abriam-se e pessoas punham seus rostos para fora. O homem tão novo, tão bonito e já
abandonou o carro no meio da avenida e correu para a portaria do prédio. O uma frase religiosa enq
porteiro via tele:1isão, completamente entretido com um daqueles noticiá­ chegou seguido por uma
rios que enfocam a violência urbana. Teve grande susto quando o outro imediatamente, enquantc
apareceu gritando por socorro e avisando que alguém havia caído ou sido shes de câmeras digitais·
jogado do edifício. reram às suas gavetas pai
Meia-hora depois, quando a chuva era apenas uma fraca neblina e a lhessem o cadáver - bant
noite seguia fria e muito escura, o fato já havia se espalhado pela cidade. ra um pequeno rio de san
Os moradores do Monolith, chocados, haviam telefonado para os parentes Com o passar dos
e conhecidos, repassando o acontecimento. Estes, após passarem adiante a ao centro da cidade inci
notícia, dirigiram-se para lá, não obstante a chuva ainda desse para encharcar encobriam o cenário da
uma roupa. insuportáveis e um engar
O Monolith era um prédio novo, ainda continha muitos apartamen­ correu para pôr ordem n
tos vazios, de modo que praticamente ninguém se conhecia ali. A maioria rua transversal. Alguns, r
dos inquilinos eram moradores novos na cidade, professores ou alunos de ça, estacionavam o carrc
uma faculdade construída havia pouco tempo, a qual estava atraindo pes­ Logo, toda a praça estavf
soas de diversas regiões do estado. Por conta disso, nenhum deles sabia aumentado para o triplo.
quem era aquela pessoa cujo corpo se chocara contra o asfalto molhado. Àquela altura, os <
Com a multidão na calçada do edifício, agora choviam perguntas. Quem para exames. Mais duas I
era? Teria caído acidentalmente? Sofrera um empurrão? De qual aparta­ litares. Uma delas encont
mento? multidão, fazendo com qt
No meio das perguntas, começaram a surgir informações imprecisas, nunciado em voz alta po:
que se misturavam, gerando respostas confusas e hipóteses diversas. Al­ espanto e surpresa. Aque
guém saiu espalhando que tudo levava a crer que fora um assassinato, um Seus conhecidos e,
crime passional, e uma versão bastante curiosa logo se difundiu pela mul­ outros procuravam saber
tidão. Porém, havia quem afirmasse que fora um acidente, que, com aquela onde era, fazia o quê, en
chuva, o prédio ficava escorregadio e, se alguém gostava de tomar banho vítimas ... As respostas e
de chuva e tivesse usado a varanda para isso, poderia ter escorregado. Dis­ meçaram a surgir. Mesn
so todos duvidavam. Parecia absurdo. Principalmente, depois que a polícia viaturas se retiraram, a r
desceu do apartamento onde morava a vítima morava e trouxe uma decla­ Cada um contava como
ração bombástica. Houve um assassinato naquele edifício. Alguém havia no momento. Havia um

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- Você está chamando minha filha de burra? ele olhava o celular a e
A discussão seguia enquanto Nadja, constrangida, dirigia-se à secre- sorriu desconversando.
tária. Ouviu-se a porta
- Com licença - disse ela - Eu gostaria de obter uma informação. e uma moça sair aos pra
-Pois não - falou uma senhora que preenchia uma transferência. -Você é uma den
- Um rapaz chamado Francisco é aluno de vocês?-Nadja se sentiu manecia sentada atrás d
ridícula depois que fez a pergunta. mente, foi o povo que ll
- Temos muitos alunos chamados Francisco, moça. Paulo e as colegas
Nadja sorriu sem graça. estava acontecendo.
- Eu sei, mas é que eu não sei mais nada a respeito dele, apenas que - Você foi posta n
ele fazia o segundo ano. não para perseguir quen
- Sabe qual a turma? A porta da sala d
-Não. tentou, educadamente, 1
-Nem o turno? mas esta recusou a ajud
-Não tenho certeza... Talvez... mente abrir a porta. Iru
-A senhora conhece esse aluno de onde? irritou ainda mais a mo,
Nadja sentiu que não seria tão simples conseguir descobrir ali se - Você deveria te
Francisco, o Tito, existia de fato ou teria sido apenas uma ilusão de sua não tem educação!
mente cansada. Resolveu ser mais objetiva. Paulo, com seu je
- Eu poderia ver as pastas escolares das tmmas de segundo ano do acalmar-se. A moça, qm
ano passado? Quem sabe, através da fotografia... e disse:
- Infelizmente, talvez isso não adiante... São poucos os alunos que - Paulo, ela está r
entregam uma foto para colocar em sua pasta escolar. -Acalme-se, varn
A professora achou que esse poderia ser o caso de Francisco, pelo A jovem não que
que ele havia lhe contado na lanchonete. Então, sem ter como prosseguir e secretária e lhe fazia ar;
sem querer contar o que houve, ela agradeceu, pediu desculpas e saiu, pas­ estava fazendo, que as
sando novamente por entre a mãe e a professora que, ainda sem chegarem direitos, tudo aos gritos.
a um acordo, discutiam acirradamente, enquanto a aluna em questão, de diante da qual se dava e
braços cruzados e cabeça erguida, mascava chicles. O professor, pem
Dali, Nadja foi a algumas lojas de móveis para comprar algo que secretaria e que aquilo t
diminuísse o vazio de seu apartamento no Monolith. da moça e a chamou n·
uma conversa amigáYe.
Paulo, que saíra cedo do Hotel Estrela do Sertão, passara em casa -Não sei como Y
para tomar café, estava agora numa sala da secretaria de educação, onde mulher dessas! - disse ::
trabalhava como assessor ao lado de outras três pessoas. Eram três mulhe­ - Pois vamos sair
res, duas delas solteironas, que já trabalhavam ali havia muitos anos. Uma A jovem pôs a u
comentou que Paulo estava calado naquela manhã, a outra acrescentou que conduzia com a mão n2
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-A Ida me contou que a garota estava se recusando a aceitar a lota­ -Ah! Vou lhe apre
ção dela, que queria coisa melhor, foi isso? amigo, de quem ouviu u.
-Não foi bem assim. mentar, mas achou ridíc.
O professor contou sua versão do fato, revelando informações que -Passe lá em casa
Ida Fidélis omitira e outras que contradiziam a secretária. O prefeito mos­ feito - Leve sua namora
trou-se decepcionado com a mulher. cuidado para o .outro não
- Você tem como entrar em contato com essa moça?- perguntou. Nadja ficou confu:
-Eu tenho o telefone dela... -O que ele quis di
-Pois, por favor, peça para ela ir ao meu gabinete o mais depressa - Que o Nélson nã
possível. Se a Ida pensa que vai usar o cargo que eu lhe dei para fazer esse -E o que ele tem ,
tipo de coisa, está muito enganada. Ela que forme os alicerces de sua car­ -Nada. Mas sabe c
reira política através da qualidade do seu trabalho na educação, e não com Subiram de voltar
perseguições a adversários políticos. seio, resolveram voltar p,
-Mas a moça nem adversária política é! -informou Paulo -Apenas A sala, porém, continuav
declarou certa vez que não votaria jamais na Ida! - Não deu para cc
- Ela está certa de que o partido vai escolhê-la como candidata a comprometi todo o meu
prefeita, não é? -Ainda bem que ,
-Acho que sim. -E tem o aluguel
-Mas eu tenho outro nome melhor. -O Nélson deve ti
-Ah é? Quem? Nadja riu, abraçar
O prefeito sorriu. sala vazia.
- Não posso lhe dizer ainda. Na reunião do partido, você vai saber. -Pudera! - contin
Mudando de assunto, como é que está o trabalho lá com o outro? - Caio todos.
referia-se a Nélson Lemos. -Meus pais me aj
-Ah! Fui demitido! - Que sorte a sua!
- Sério? - Depois, quando
-Ontem. prarei umas cadeiras par
-Não brinca. Lá em casa tem um tapet
- Verdade. Ele me falou para escolher: ou eu ficava do lado dele ou pedi-lo à mamãe. Se ele j
então caía fora. Paulo afastou as p<
o apartamento mergulha
-Aí você largou o emprego. Ih, rapaz! Eu conheço você! Adorava
dar aula ali! -A gente pode se e
o professor, abraçando a
Paulo fez cara de lamento.
seu pescoço.
-Pois é...
Nadja sentiu um a
O prefeito olhou para a moça na praça.
-Paulo, nós nos e
-E a moça, quem é?
-E...?
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medida que outras vozes se juntavam àquelas. Foi preciso que Paulo batesse - Ficam falando que
com a mão na lateral do birô para que a ordem se restabelecesse. tem seus filhos matricula
-Pessoal, vamos combinar uma coisa -propôs ele - Ninguém fala tão todos nas escolas parti
sem que antes se anuncie levantando o braço, certo? Se não, todos vão A discussão seguiu a
tomar a palavra, vai gerar uma bagunça que não nos ajudará em nada. comentários, os mesmos d
O silêncio tomou de conta da sala, até que ele lançou a pergunta: assunto, extraído de uma r,
-E quem disse que não se pode mais reprovar um aluno? um dos maiores pedagogm
V árias vozes se meteram a responder a pergunta. Paulo novamente leitura individual e em voz
bateu no birô. para iniciar a leitura. Por cc
-No ano passado - um professor ergueu o braço e começou a falar­ na ordem em que estavarr
nós desta escola tivemos a seguinte experiência: um grupo de alunos do parágrafo do texto. Então e
sexto ano, altamente indisciplinados, que pouco frequentavam a escola, havia alguns que liam tão I
mas que, quando vinham, não deixavam a gente dar aula direito, ficou re­
provado em todas as avaliações que fizemos. Enquanto Paulo fazí
-Inclusive por falta-interrompeu uma colega professora. daram tarde, após tomarei
-Pois é - continuou o rapaz - Nós, professores, nos reunimos, discu- sistiu um pouco, quis sair,
timos o caso, a situação de cada um deles, chegamos à conclusão de que fez com tanto carinho qm
eles não tinham a menor condição de ir para o ano seguinte, e, como manda Voltaram quase ao meio-e
o regimento da escola, preparamos um relatório expondo os motivos da salão onde Tito cortou o e
reprovação desses meninos. Chamamos os pais de cada um deles, que, ali­ - Nossa! Como voe
ás, nunca haviam pisado na escola antes para saber como seus fühos esta­ no diante de um espelho, j
vam, comunicamos a eles a reprovação dos filhos... Ele, entretanto, esta
-Eles nem se admiraram! - acrescentou a professora, interrompen­ - Não sei por que vi
do mais uma vez. dar nada.
- Exatamente-confirmou o professor - Aceitaram sem questionar. -Eu conheço uma I
Então, entregamos o relatório para a secretária de nossa escola que, na - Uma pessoa?-Ti
primeira reunião que houve com a dona Ida, quando esta quis saber o ren­ -Um amigo... Você
dimento escolar de cada distrito, mandou que desmanchasse o que a gente -Eu não quero conJ
tinha feito porque ela, dona Ida, não admitia que aluno algum da rede mu­ Nadja sorriu.
nicipal ficasse reprovado em Curral de Pedras! - Você vai gostar d�
O depoimento causou nova comoção entre os presentes e Paulo teve sem conhecer ninguém.
novamente dificuldade de conter a agitação. Tito retirou-se para t
-Ela só está de olho na verbá que vem para o município! -disse um. Nadja levou as sacolas par
- É! Ninguém quer saber de qualidade de educação coisa nenhuma! - Tem certeza de q:
-exclamou outro. coisas lá que você gostari.
-A gente tenta fazer as coisas direitinho, eles lá desmancham tudo e -Eu não tenho nad
depois a gente é que leva a culpa! -desabafou outro. -Ora, Tito. Claro
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- Vamos para lá, então. -E eu?
A varanda do apartamento era fria naquele horário. Lá de baixo, vinha Paulo lançou um ol
o ronco frenético dos carros que passavam, vozes misturadas e risos intermi­ responder:
tentes das pessoas na praça e dos transeuntes. Vez por outra, uma motocicleta -Eles não farão naé
rasgava o asfalto com seu motor ensurdecedor. Ao longe, como um ponto Tito pôs-se subitam<
suspenso no céu escuro, a lâmpada vermelha de uma antena sobre a Pedra lhe, com suas mãos aflitas
dos Espinhos prendia novamente o olhar de Tito. O menino estava sentado - Não me deixa aqu
no piso frio da varanda, tendo as pernas flexionadas e os braços ao redor dos Paulo o olhou nos <
joelhos. Paulo, que preferira ficar em pé, apoiava-se na grade. mente.
-Não entendi por que você chorou daquele jeito. -Eu juro que não fa
- Está vendo aquela bolinha vermelha ali? É um planeta. invasores de outra galáxia
-É? O professor levantm
-Eles vão invadir a Terra. abraçou-se a ele, imploran
- Certo... E por que aquele choro todo, Tito? -Tudo bem, não pn
- Os humanos não têm a menor chance... -Não estou fazendc
Paulo, irritado com a conversa, deu passos para o lado oposto àquele De repente, uma ide
onde o garoto estava. ambos poderiam ficar na b
-Eles têm uma tecnologia superavançada. Proposta lançada, propost.
O professor nada comentou. Não estava disposto a ouvir. De chofre, O tempo passou dei
sentiu-se idiota por estar naquele lugar, naquele instante. Não era uma sen­ repletas de livros novos, e
sação inédita. Por diversas vezes, quando encontrava seus alunos adoles­ última edição do Guiness l
centes nas ruas e estes o cercavam com suas conversas eufóricas, sentia estranho enchia os dois de
dificuldade de manter a empolgação com eles. No início, havia o prazer de Errei de novo, peru;,
encontrá-los, a alegria deles o contagiava, levando-o a rir com eles, a falar Esse mundo é muito estrm
alto como eles; com alguns minutos, porém, dava-lhe uma sensação de Tendo telefonado pa
incompatibilidade, e ele chegava a achar-se fora de órbita, fora do tempo, na biblioteca do CELL. Pa
ultrapassado. Ultimamente, evitava encontrá-los fora da sala de aula para oso. Quando tocou para o
não ter que se sentir daquele jeito. de volta à estante de ondí
Enquanto meditava acerca de sua situação presente, Tito, como H. G. corredores, por onde a mo
Wells, relatava uma guerra entre mundos, e o fazia com uma incansável -Você ficou louco! -
fluência e estranha euforia, como se não houvesse vertido quase um rio de per minha aula com um te
lágrimas minutos atrás. De repente, o troço toca tx
Sem paciência para o assunto, o professor deu a entender que se reti­ Paulo sorriu e pediu
rava para casa, caminhando lenta e silenciosamente em direção à sala. -Tudo bem com o s
-Você vai me deixar aqui sozinho? -Tito ergueu as sobrancelhas. que a observava com admi
- Minha mãe está sozinha em casa. Tenho de estar com ela quando Ele apenas deixou e:
os invasores chegarem. -Foram à locadora'!

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meia-lua. Debalde. Os alunos não paravam de conversar. A todo instante, que, conforme pensavam,
havia um cochicho, um riso inoportuno, um comentário descabido, uma um conteúdo enfadonho e
gracinha sem graça. A professora não conseguia concluir uma frase que Restava a Fabíola
não fosse interrompida. Já tentara apelar para a consciência dos alunos vigiar a porta para que ner
sobre a importância do assunto, mas não adiantava. O mais sério dos as­ insuportável. Uns guarda
suntos parecia sempre brincadeira para os jovens daquela geração. Acima andavam pela sala aproxi
de qualquer coisa, estava o prazer de aproveitar o momento com os cole­ rante a aula, faziam-se pla
gas, a brincadeira, a desafio pelo título de mais engraçado. Que importava graçados daquela tarde, <
o mundo lá fora? O aquecimento global, o desmatamento desenfreado da áudio, compartilhavam-se
Amazônia, as guerras pelo petróleo e pelo gás natural? Para eles, aquelas relhos - dizia-se - eram 1
quatro paredes com aquele teto de gesso e aquele piso industrial, com ar todos os alunos desobede
condicionado, era uma câmara que os protegia do mundo problemático lá exclusivamente de uma cc
fora, um mundo que eles não queriam ver ou, simplesmente, que achavam consciência. Ria-se e fala
que não precisavam ver. Tinham conforto, tinham a proteção dos pais, ti­ perder o autocontrole, ten
nham todas as novidades tecnológicas que surgiam, bastava pedir, de modo mas não poderia fazer-se
que não lhes fazia diferença se a Amazônia existiria ou não dali a algumas para interromper caso pas
décadas. Era uma geração para a qual só importava o presente. Não haviam Por que tem que se1
aprendido a valorizar nada porque tudo lhes fora dado com facilidade. rua, de volta para casa, pe
Queriam a última música número um das paradas de sucesso? Não precisa­ - Eu quero dar aul
vam juntar dinheiro para comprar o disco. Bastava fazer o download pela guindo...
Internet e reproduzi-la quantas vezes quisessem com alguns simples clics. Chegou a casa cans
Queriam uma fotografia? Não precisavam comprar filme nem pagar fotó­ vê-la quase desfalecida se
grafo. Bastava apertar um botão do celular ou da câmera digital e pronto! A apenas deu-lhe um recadc
foto ficou feia? Não tem problema: apaga-se e faz-se outra com a mesma - Seu primo Magnc
velocidade. temente falar com você.
- Pessoal, por favor! - exclamou Fabíola, quando percebeu que a O rosto de Fabíola J
maioria da turma não estava mais prestando atenção ao que ela dizia. Magno era um prirr
- Já vai bater, professora! - disse um garoto, referindo-se ao toque dara de lá fazia muitos anc
para acabar a aula. Mestrado. A família fican
-Ainda faltam dez minutos! - argumentou a moça. gredir nos estudos e solidi
-Ah! Dez minutos não dá para fazer nada, não! gos, o emprego na prefein.
Outras vozes juntaram-se à do garoto reivindicando que a professora Enfrentou grandes dificulc
deixasse o tempo de aula restante livre para suas brincadeiras ou, melhor perdido, conheceu, nos co
ainda, que abrisse a porta e lhes autorizasse a saída, embora fosse norma da turalizado brasileiro, apai:
escola encerrarem-se as aulas todas ao mesmo tempo e no mesmo horário. e lhe ofereceu ajuda. Sem
Daquele momento em diante, não adiantava mais explicar nada, que eles esse era o nome do home1
não estariam mais atentos. Impossível concentrar-se num assunto denso e nos antigos moldes grego�
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-E ele?-perguntou o professor, antes de levar o copo à boca com a busca, que, quando acabavi
mão trêmula. sanda com o tempo e fazei
-Está morto lá embaixo. posteriores, quase não freqi
Paulo teve um impulso de levantar-se e gritar. A cadeira em que ele um relacionamento duradm
estava caiu para um lado. se apaixonara e com quem
-Desgraçado! não fosse aquele acidente tr
-Ele era seu filho - disse a mulher, quando ele voltou a si. sa possibilidade o arrastou
Paulo a olhou com fúria nos olhos. sabia. Pior: estivera com o j
-O que a senhora disse? ojerizou-o, não compreend
-Esse menino era seu filho -repetiu ela, fazendo uma pausa entre as toalha da mesa, os dentes r.
palavras finais. -A senhora está falai
-A senhora enlouqueceu! -É o que sei. Não pc
-A mãe dele era minha amiga... Certa vez, ela me apontou na rua o eia pode. O senhor pagaria
pai da criança que ela estava esperando. Era um jovem professor com quem Paulo não hesitou en:
havia saído numa noite, no meio de uma festa. Desde então, nunca mais me - Não posso ficar cm
esqueci de seu rosto. Sempre que o via na rua, eu me lembrava do segredo A mulher começou a
que minha amiga me confessara. todo. O rosto foi adquirindo
Paulo apanhou a cadeira que deixara cair e se sentou novamente. todos os poros -e as mãos,
Uma rajada de pensamentos confusos lhe sacudiu o espírito. Aquela histó­ do debaixo das palmas. O o
ria absurda poderia ser perfeitamente verdadeira, pois, até uns quinze anos espatifado no chão se a muJ
atrás, ainda tinha o hábito de frequentar os forrós promovidos nas associa­ poder se conter, Paulo disr
ções atléticas dos bancos ou em outras casas de show. Nesse tempo, ainda urros e gemidos tão altos qu
era um homem sem a formação nem o pensamento que tinha agora. Naque­ hospital onde trabalhava.
las festas, em que se recriava o clima das grandes boates metropolitanas, De repente, três hom
propício ao sexo fácil e descomprometido, ele, como os demais, não perde­ próprio delegado de Curral
ria a oportunidade de uma noite de prazer. De repente, voltou a uma daque­ lharam o apartamento com e
las noites e percorreu o salão e as mesas à procura de um rosto de mulher onde o garoto teria caído, ot
com quem poderia ter saído. Visualizou o clube escuro, com feixes de luz os de luta corporal, enquan1
colorida cortando a multidão frenética, casais agarrados, dançarinas semi­ Nadja esfaqueado no quarto
nuas; a música contagiante e convidativa ecoou de novo em sua mente, ver. Imediatamente, telefon
quase o envolvendo naquela atmosfera promíscua que lhe infligia uma ca­ Recolheram a faca com o <
rência profunda e uma busca desenfreada por sexo. Se saísse de uma da­ tiraram inúmeras fotografia
quelas festas sem ter levado alguém para a cama, parecia que o ingresso envolveram o cadáver em u
não teria valido a pena. Os olhares no meio dos estranhos, o flerte, a abor­ embaixo, e, finalmente, inti
dagem, a dança de corpos colados, o convite ao pé do ouvido, a saída do O fato abalou a cidad1
clube sem se despedir dos amigos, o quarto barato de pousada, a entrega a notícia se espalhou por ti
total e irresponsável ao ato sexual, tudo veio à lembrança. Eram noites de chegou às periferias. Logo.
170 Jards Nobre
e adaptados às asperezas de
seu mundo. Ao contrário, são
eles também, cada um à sua
maneira, solitários e órfãos em
busca de uma identidade.
Em sua estréia, o jovem
escritor Jards Nobre se revela
um observador atento. Seu es­
tilo realista realiza uma cora­
josa atualização do olhar que
se lança sobre a realidade das
pequenas cidades nordestinas
e seus dramas.
O alcance de Curral de Pe­
dras não se limita, entretanto, à
dimensão e aos méritos da
metaforização das crônicas co­
tidianas. Pairam por sobre
essas pedras e seus currais um
constante "apesar de", que faz
com que os ímpetos se esgotem
antes de florescer, petrificando
e esmagando vidas marcadas
não mais pelas densidades
climáticas, mas pela dureza e
pelos desencontros nas rela­
ções interpessoais em seus di­
versos âmbitos (político, so­
cial, sexual).
Adentrar este curral con­
siste, portanto, em acompa­
nhar a narrativa de realida­
des labirínticas que buscam
na ficção e no cinema o fio de
Ariadne para encontrar uma
saída. Haverão de encontrá-la?
Eis uma pergunta que só cabe
a cada leitor responder.

Isabel Cristina Moreira Aguiar


Doutora em Literatura

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