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Ensaios sobre Justiça, Processo

e Direitos Humanos II
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Sergio de Souza Salles
Waleska Marcy Rosa
(Organizadores)

Ensaios sobre Justiça, Processo e


Direitos Humanos II

Petrópolis, 2009
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

Dom Filippo Santoro - Grão Chanceler


José Luiz Rangel Sampaio Fernandes - Reitor
Monsenhor José Maria Pereira - Vice-Reitor
Mário Guarnido Duarte - Pró-Reitor Administrativo
Alexandre Sheremetieff - Pró-Reitor Acadêmico

Centro de Ciências Jurídicas

Adriana Sheremetieff - Diretora


Klever Paulo Filpo - Vice-Diretor e Coordenador do Curso

© 2009 por Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira, Sergio de Souza


Salles e Waleska Marcy Rosa

1ª edição: 2009

Ficha Catalográfica

S587a
Silveira, Carlos Frederico G. C. da.
Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II. / Organizadores:
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira; Sergio de Souza Salles; Waleska
Marcy Rosa. Petrópolis: UCP, 2009.

285 p. ; 14 x 21 cm

ISBN 978-85-60654-13-0

1. Justiça 2. Processo 3. Direitos Humanos 4. Direito I. Rosa, Waleska


Marcy II. Salles, Sergio de Souza III. Silveira, Carlos Frederico IV. Título

CDU 340

Bibliotecária Responsável : Antonieta Chinelli Souto – CRB-7 / 3508

Universidade Católica de Petrópolis


Rua Benjamin Constant, 213, Centro - Petrópolis, RJ
CEP: 25610-130 Telefone: (24) 2244-4000
Sumário

Cap. 1: A conexão existencial entre direito e moral em Lon Fuller


Alejandro Bugallo Alvarez 09

Cap. 2: A justiça segundo Santo Tomás de Aquino


Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira 45

Cap. 3: Novos caminhos para o acesso à justiça: reflexões sobre a inclusão


da Defensoria Pública dentre os legitimados para a ação civil pública
Cleber Francsico Alves & Isabela Rampini Esteves 59

Cap. 4: Notas sobre a questão da verdade no direito processual


Flávio Mirza Maduro 101

Cap. 5: A dimensão dialógica e institucional na concepção do justo de


Paul Ricoeur
Hilda Helena Soares Bentes 123

Cap. 6: Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo


Marco Aurélio Lagreca Casamasso 143

Cap. 7: O sentido supra-ético da regra de ouro em Paul Ricoeur


Sergio de Souza Salles 171

Cap. 8: Aplicação do direito internacional humanitário em Guantánamo ou


a institucionalização do desrespeito à pessoa humana?
Sidney Guerra 199
Cap. 9: Ocupações urbanas informais no Brasil: origens da falta de efetivi-
dade do direito à moradia urbana
Waleska Marcy Rosa 227

Índice 279


Cap. 1: A conexão existencial entre
direito e moral em Lon Fuller
Alejandro Alvarez1

I. Introdução

A discussão das relações entre o Direito e a Moral é clássica e


densa na teoria do direito, especialmente na atualidade, polarizada na
contraposição das teses básicas do jusnaturalismo e juspositivismo, tendo
como referencial paradigmático a tese da conexão necessária e da separação
conceitual necessária, respectivamente sustentadas pelo jusnaturalismo e
juspositivismo.2
O objetivo deste artigo é destacar a conexão entre direito e moral,
tomando como eixo temático o debate entre Hart e L.Fuller. Desta forma:
1º reconhece-se como ponto de partida a centralidade da teoria de Hart
no pensamento anglo-americano;3 2º além de ser o principal expoente do
positivismo jurídico contemporâneo, neste contexto, ressalta-se em Hart
o interesse pelo funcionamento do direito no contexto das instituições e
na percepção das reações da sociedade, o que possibilita sua articulação

1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(1972), graduado em Licenciatura em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia
Ciências e Letras (1973), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1976) e doutorado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Comillas
(1968). Atualmente é Professor Emérito I da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Professor Adjunto da Universidade Católica de Petrópolis.
2 ALVAREZ,Alejandro,B.Teses básicas do positivismo e suas críticas ao
jusnaturalismo.Lex Humana, dez 2009.
3 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1986. Dedica os quatro primeiros capítulos a criticar e desqualificar a
teoria de J. Austin ; reserva os capítulos 5, 6 e 7 para a exposição de sua teoria e os capítulos
8 e 9 a questões complementares e pertinentes ás indagações do pensamento do S.XX e/ou
resultantes de questionamentos de outros autores.
10 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

com o pensamento de Fuller, entre outras razões, por destacar o caráter


técnico-funcional do direito, em sua dimensão instrumental, vinculado à
concretização de expectativas de certeza e segurança na preservação de certos
bens ou valores básicos.4 3º A dimensão técnico funcional e instrumental
do direito constitui-se em aspecto fundamental para a conexão do aspecto
formal da validade com o operacional, razão porque a existência implica em
garantir os cânones configuradores da moral interna; 4º o pensamento de
Lon Fuller é construído, a partir de uma perspectiva pragmática, no contexto
do instrumentalismo.5
Segundo SCHIAVELLO, até a década de 70, existe uma

4 A escola analítica do Direito ou jurisprudência analítica, configura-se como


positivismo analítico e teve origem na tradição da semântica empirista desenvolvida por
Benthan e Austin. Hart, é o principal representante contemporâneo da escola analítica e ponto
de referência para a análise do pensamento, tanto positivista [J. Raz], como não positivista
[R. Dworkin, J.Finnis e L.Fuller]. Nesta escola merecem destacar-se:(a) as características
básicas: 1ª separação entre direito e moral, com exceção de alguns autores, especialmente, J.
Bentham e J. Austin; 2ª redução do conhecimento, e em especial da ciência do direito, à análise
da linguagem jurídica positiva; 3ª empirismo noético e semântico com suas conseqüências de
radical ceticismo moral; (b) sua vinculação à linguagem e à concepção analítica da filosofia
cujas características são: 1º primazia ao estudo da linguagem, como lugar filosófico; 2º uso de
métodos de caráter analítico e decompositivo no estudo dessa linguagem; (c) sua concentração
nas problemáticas lógicas, metaéticas e da ação humana, podendo distinguir-se duas grandes
correntes: 1ª identificada com o positivismo lógico, com ênfase no empirismo e toma as
ciências positivas, a lógica formal e matemática como modelo de análises lingüísticos. A
2ª que procede de G.E. Moore, que considera a linguagem ordinária e os juízos de sentido
comum como o ponto de partida da filosofia.Cf. MASSINI CORREAS,Carlos I. Positivimo,
Ética y Derecho: Aportaciones al Debate Atual entre Iuspositivismo y Iusnaturalismo. http://
www.humanitas.cl/biblioteca/articulos/d0337.
5 Cabe destacar que Fuller não integra a Escola Analítica, mas o instrumentalismo
pragmático. A este respeito, informa ARJONA que o instrumentalismo pragmático é seu
entorno natural: 1º porque é teoria original dos Estados Unidos e, sob sua inspiração, além
de formou-se, Fuller formulou seu pensamento tendo como referência a escola de Harvard;
2º porque o fato de ter escrito contra o positivismo analítico é sinal de que se identifica mais
com o instrumentalismo; 3º porque, segundo Robert SUMMERS, seu biógrafo, Fuller aceitou
muitos dos postulados instrumentalistas e sua obra pode ser lida como uma sofisticação dos
mesmos. ARJONA, César. Médios, Fines y Pluralidad de Procesos en el Pensamiento de Lon
Fuller. Doxa, 25, 2002, p. 702.
Direito e Moral em Lon Fuller 11

indiscutível hegemonia cultural da perspectiva juspositivista centrada


em três assuntos metateóricos: (i) que é possível e oportuno distinguir de
modo claro entre o direito de fato e o direito que deveria ser, o que fica
evidenciado no enunciado de John Austin: “a existência do direito é uma
coisa, seu mérito ou demérito, outra. Se existe ou não, é uma questão; se se
acomoda ou não a um pressuposto modelo, é uma questão diferente”, o que,
segundo a tese positivista , implica em reconhecer que, obedecido o processo
de produção, a lei existe independentemente de ser conforme ou não com o
padrão desejado.6 (ii) Que o objeto da ciência do direito é constituído pelo
direito como de fato é. Com efeito, na formulação de Kelsen: “ A teoria
Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo”. “Como teoria, quer única
e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta
questão: o que é e como é o Direito”.7 (iii) A tese metodológica, segundo
a qual o conhecimento do direito positivo é uma questão de fato. Noutros
termos, não é necessário fazer referência à justiça ou a outros valores para
definir ou individualizar o direito.8
Em contraposição, na perspectiva jusnaturalista destacavam-se
quatro assuntos fundamentais e não separáveis: (i) a existência de um direito
meta-positivo;(ii) que é intrinsecamente válido e prescinde do eventual
reconhecimento por parte do legislador;(iii) que é axiologicamente superior
ao direito positivo; (iv) que é dotado de uma força obrigatória superior à do

6 AUSTIN,John. El objeto de la Jurisprudencia.Trad. Juan Ramón de Páramo


Argüelles.Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. 2002, p. 188.
7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad.. João Baptista Machado.
Coimbra:Armênio Amado Editor,1979, p.17.
8 SCHIAVELLO, Aldo. SCHIAVELLO, Aldo. L’eterno ritorno della contrapposizione
tra giuspositivismo e giudnaturalismo.Una replica a Salvatore Amato.
http://www.Uilpadirigentiministeriali.com/Documentazione/Articoli,20%interventi,20%cont
ributi/2-Windows inter... p.3.
12 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

direito positivo.9
De forma sintética e precisa, ARAUJO afirma que “o jusnaturalismo
pode ser caracterizado como um tipo de teoria jurídica que se compromete
com a verdade de, pelo menos uma das seguintes teses”: primeira, “a tese da
inseparabilidade” segundo a qual o conceito de lei envolve necessariamente
o de justiça e o de direito é inseparável do conceito de moral, e segunda,
a “tese metafísica” contida na afirmação de que, além das leis positivas,
produto das instituições humanas, existem as leis naturais que são critério
de avaliação da qualidade moral das leis positivas.10 Esclarece: que as duas
teses são logicamente independentes entre si, razão porque pode admitir-se a
tese da inseparabilidade, sem implicar, na afirmação de que os princípios de
justiça ou moral sejam derivados da natureza. De toda forma, a elaboração
ou identificação de um tipo de moral que não deriva da natureza e que
necessariamente informa o direito positivo, não implica em excluir qualquer
lei natural.11 Em relação à segunda tese, formulada independentemente
da primeira, afirma a existência de normas morais independentemente de
instituições humanas, razão porque tais normas seriam naturais. Portanto,
conclui, a segunda tese, “não é uma tese que diga respeito a uma concepção
especifica de direito[...mas] é constitutiva de uma teoria jurídica apenas na
medida em que se assume que podemos recorrer a uma determinada lei moral,

9 SCHIAVELLO, Aldo.Ob.cit. p 4.Cita D’AGOSTINO, um dos representantes do


jusnaturalismo atual.Cf. D’AGOSTINO,F. Filosofia del diritto. Torino: Giappichelli, 2000.
10 ARAUJO, Marcelo de. Contratualismo e Disposições morais:uma crítica à tese
da inseparabilidade do Direito e da moral e à tese sobre a existência de leis naturais..Veritas.
Porto Alegre, vol.54,n.1, jan/mar 2009,p.161-184.
11 Neste sentido afirma ARAUJO, citando Brian BIX “Lon Fuller, Dworkin ou
Robert Alexy foram ocasionalmente denominados como representantes do jusnaturalismo
por se comprometerem com a tese de que algum tipo de ideia moral deve ser pressuposta
na elucidação do que é a lei. Mas eles não se comprometem com a suposição de que tais
idéias morais devem ser compreendidas em termos de as leis naturais” ARAUJO, Marcelo de.
Ob.cit. p. 162.
Direito e Moral em Lon Fuller 13

não positiva, para avaliarmos moralmente a lei positiva” o que contraria a


tese das fontes sociais, razão porque, sob a ótica positivista, é falsa.12 A
este respeito, cabe ponderar que a desqualificação da teoria de direito natural
que entende serem os princípios do direito natural derivados da natureza,
racional ou não, tampouco implica em negar o direito natural.13
Este trabalho é parte integrante de um projeto mais abrangente que
inclui: (i) As teses básicas do juspositivismo e suas criticas ao jusnaturalismo
(ii) Reequacionamento da concepção de natureza humana, sua concepção
dinâmica, racionalidade e autonomia, bem como o resgate da razão prática
formuladora e explicitadora do direito natural como critério do agir correto e
(iii) A reabilitação da Teoria do Direito Natural em John M. Finnis, destacando
a perspectiva de análise e a inovação metodológica e epistemológica.14
Desta forma, fixadas as teses básicas do juspositivismo, entre as
quais, se incluem as de H.L.A.Hart, sob o aspecto operacional, pretende-se:
(i) fixar a tensão entre a separabilidade e o conteúdo mínimo em Hart;(ii)
traçar um perfil da conformação da Moral Interna de Lon Fuller, incluindo:
a contextualização de seu pensamento, as teses básicas de Lon Fuller e a
correspondente avaliação crítica.

12 ARAUJO, Marcelo de. Ob.cit. p. 162.


13 Esta ideia fica evidenciada a partir do pensamento de Finnis e do reequacionamento
da natureza humana como fundamento do direito natural, o que, por sua vez, indica que a
desqualificação de um enunciado mesmo configurador de uma determinada concepção do
direito natural, não implica na desqualificação do direito natural.
14 ALVAREZ,Alejandro, B. Reabilitação da Teoria do Direito Natural em John
M. Finnis: pressupostos e implicações.. Lumen Juris, 2009; ALVAREZ,Alejandro B.
Reequacionamento da concepção de natureza humana como fundamento do direito natural.
Synesis, dez. 2009.ALVAREZ,Alejandro B. Teses básicas do juspositivismo e suas c ríticas ao
jusnaturalismo.Lex Humana, dez 2009.
14 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

II. A tensão entre a tese da separabilidade e o conteúdo mínimo de Hart15

Hart, com o objetivo de delimitar o direito positivo como objeto


da ciência jurídica, diferencia um conceito de direito em sentido amplo de
um conceito em sentido restringido. Em sentido amplo, entende-se como
direito “todas as regras que são válidas conforme aos critérios formais de um
sistema de regras primarias e secundárias, mesmo que algumas delas atentem
contra a moralidade própria da sociedade ou contra o que podemos sustentar
que é uma moral ilustrada ou verdadeira”. Num sentido mais restringido,
exclui-se do conceito de direito, “as regras moralmente ofensivas”. Não
parece, afirma Hart, que o conceito restringido traga vantagens para o estudo
teórico ou científico, porque implicaria em excluir certas regras, mesmo
que preenchessem os requisitos característicos de validade. Pelo contrário,
adotando o conceito amplo, que inclui também o restringido, pode realizar-
se o estudo de “quaisquer características especiais que tenham as regras
moralmente iníquas, e da reação às mesmas por parte da sociedade”.16
Por outro lado, entende que a ciência jurídica, é ciência do direito
justo, ou injusto, no que convergem, tanto a sociologia e história do direito,
como inclusive a visão jusnaturalista.17 A este respeito pondera ORREGO

15 A formulação do enunciado justifica-se porque Hart, além da tese das fontes


sociais, em contraposição a uma concepção metafísica, também defende a tese da separação
conceitual necessária, contrapondo-se à tese da conexão necessária entre direito e moral. Por
outro lado, sustenta a tese do conteúdo mínimo do direito natural e, portanto, aberto a uma
reflexão moral.
16 HART. H.A.L. Ob.cit. pp 201-228.ORREGO,S.Cristóbal. El Valor Científico del
Positivismo Jurídico:un argumento de H.L.A. Hart. Revista Chilena de Derecho.Vol.22,Nº 1
1995, p.24.
17 Afirma Hart, na formulação de ORREGO, que a teoria clássica do direito- a
metafísica clássica em geral- inclui sob a mesma disciplina o estudo dos objetos contrários,
porque ao definir corretamente uma coisa se define também a contrária. A moral, por exemplo
ocupa-se dos vícios e das virtudes; a história, dos documentos verdadeiros e falsos . Da
mesma forma, o direito, como arte ou ciência, tem por objeto tanto o justo como o injusto”.
Direito e Moral em Lon Fuller 15

que Hart ao argumentar que a ciência do direito, assim como, as outras


disciplinas, podem realizar “o estudo das características especiais das regras
injustas enquanto injustas”, além do caráter retórico da expressão: 1ºdá a
entender que “o positivismo jurídico não seria insensível às preocupações
valorativas”, assunto da preocupação dos jusnaturalistas; 2º ao destacar a
capacidade do positivismo para “distinguir entre regras justas e injutas e
estudar as características especiais de umas e outras, faz depender a teoria
jurídica da moral”, o que também acontece em relação à distinção entre uso
e abuso, porquanto “desde o ponto de vista do direito positivo, tudo o que
há, é uso”.18 Os critérios de validade estão na regra de reconhecimento. Ora
a regra de reconhecimento consiste na aceitação dos Tribunais, que, por sua
vez, está em consonância com o sentido histórico e social, daí a referencia
à história e sociologia. Mas a prática dos Tribunais, não se justifica por si
mesma, implica que a prática e aceitação dos tribunais, sejam consideradas
razoáveis pelos operadores jurídicos e cada cidadão.19 Neste sentido, a rigor,
segundo ORREGO, “os sentidos múltiplos em que se diz que algo é direito
não podem ser reduzidos a um só, sem assumir o compromisso de ser um
mesmo, não outros, quem decide qual é esse sentido, e isto implica também
em aceitar as conseqüências dessa decisão livre. Esse compromisso livre
é, por isso mesmo, moral; de modo que a soma das concepções pessoais-
morais- sobre o sentido do direito determinam a concepção culturalmente
vigente sobre quê há de aceitar-se como pauta pública comum do devido
pelos cidadãos e autoridades públicas. Hart refere a fórmula pública comum

Mais ainda, que “o estudo do seu uso implica no estudo do seu abuso”.ORREGO,S. Cristóbal.
Ob.cit. p. 25.
18 ORREGO,S.Cristóbal. Ob.cit. p. 26.
19 Para um estudo sobre a Regra de reconhecimento: PASCUA,José Antonio Ramos.
La Regla de Reconocimiento en la Teoria Jurídica de H.L.A.HART.Madrid:Tecnos,1989.
DE PARAMO,Juan.R.A. H.L.A.Hart y la Teoria Analítica del Derecho. Madrid:Centro de
Estúdios Constitucionales,1984.
16 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

à regra de reconhecimento”.20
Aparentemente a tese de um “conteúdo mínimo do direito natural”
formulada por um positivista, sob o aspecto conceitual parece uma contradição
porquanto o positivismo jurídico assume como tese central a teoria das fontes
sociais: o direito é produto humano, e portanto, não natural ou derivado
logicamente do natural. A teoria do conteúdo mínimo do direito natural, foi
formulada por Hart em diversas épocas e fases do desenvolvimento da sua
teoria jurídica.
A primeira referência à teoria, consoante RIVAYA,21 surgiu no texto
e contexto da formulação da teoria da separação conceitual entre direito e
moral. Com efeito, em Positivism and the Separation of Law and Morals
(1958), reconheceu que “certas normas jurídicas eram necessárias” por se
constituírem em condições da preservação e garantia de determinados bens
ou aspirações, mantidas as características e percepções adquiridas sobre os
seres humanos, razão porque nenhum direito poderia prescindir das mesmas.
Por outro lado, se não fossem preservados tais bens, o direito perderia sua
razão de ser.22 Por serem necessárias e imprescindíveis para a garantia dos
referidos bens, relacionados com a dimensão humana, tais normas integram
o conteúdo mínimo.23
Na obra “O Conceito de Direito” desenvolveu o tema como item
específico do Capitulo IX que trata do Direito e Moral. Pressupostos da

20 ORREGO,S.Cristóbal, Ob. Cit. p. 26.


21 RIVAYA, Benjamin. Teorias sobre la teoria del contenido mínimo del Derecho
Natural.Boletin de la Facultad de Derecho,Num.15, 2000.
22 Parte-se do pressuposto de que “uma característica humana de especial
importância” é o fato de que os homens mantenham o firme propósito de “sobreviver em
estreita proximidade com os seus semelhantes”e por considerar a vida e a subsistência bens
a serem preservados, em razão da sua vulnerabilidade, isto é, em razão do risco a que cada
ser humano está submetido permanentemente, é inevitável que se proíba o homicídio e a
violência.
23 RIVAYA,Benmjamin. Ob. Cit.pp. 39-40.
Direito e Moral em Lon Fuller 17

análise, na formulação de RIVAYA são: 1º a evidência de que o homem


inevitavelmente tem necessidades a satisfazer e que é bom satisfazê-las; 2º a
evidência, salvo raras exceções, de que os homens querem viver e, portanto,
consideram bom continuar vivendo e satisfazer as necessidades tendentes a
esse fim; 3ºa conexão da dimensão teleológica com a natureza prática do direito
e da sociedade, o que implica medidas para a existência continuada, por quanto
a sociedade não é um clube de suicidas, razão porque “a convivência humana
não está destinada à destruição” e “todo grupo social[...] é uma comunidade
moral”, o que exige uma estrutura de direitos e obrigações recíprocos”. Do
que se infere que “há certas regras de conduta que toda organização tem que
conter para ser viável” e que podem explicitar-se com base nos seguintes
referenciais: (i) Regras limitativas do uso da violência, tendo como objeto a
proteção da vida e integridade, em razão de os homens serem vulneráveis.
Portanto, mantida a vulnerabilidade, não teria sentido um ordenamento sem
tais limitações ,isto é, seria um absurdo;24(ii) dado o pressuposto de que os
homens são mais ou menos iguais, na medida em que não há um que tenha
capacidade de subjugar todos os demais, impõem-se regras de coordenação,
otimizadoras tanto da autonomia como do respeito aos demais;(iii) altruísmo
limitado, porquanto não sendo os homens demônios nem anjos, torna-se
necessário fixar regras de equilíbrio. Na expressão de Hart, “sendo as coisas
como são, o altruísmo humano é limitado no seu âmbito e intermitente, e as
tendências para a agressão são suficientemente freqüentes para serem fatais
relativamente à vida social, se não forem controladas”.(iv) Embora resulte
óbvio que os recursos são limitados, impõe-se a definição de regras básicas
sobre a propriedade e sua abrangência, isto é, algum tipo de propriedade, e
alguma regra sobre o trabalho e a distribuição de bens e seu comércio, base
da regra de que as promessas geram obrigações;(v) a exigência inevitável

24 HART.H.L.A. Ob.cit. p. 210.


18 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de um mínimo de cooperação,como resultado da vida em sociedade, ou na


expressão de Hart, “compromisso e força de vontade limitados”.25
Na apreciação de RIVAYA verifica-se: 1ºque Hart “responde à teoria
da indeterminação, porquanto em termos gerais não é certo que o Direito
possa ter qualquer conteúdo”; 2º operacionalmente, dada a existência de
certas necessidades dos homens e das sociedades, o direito tem que servir
à sua satisfação, através de normas; 3º assim mesmo, sob a perspectiva
operacional, independentemente da denominação que Hart atribua aos
enunciados referentes ao conteúdo mínimo, a verificação “depende de que
os seres humanos e o mundo em que vivem conservem as características
que atualmente têm”. Hart não quer que as teses sobre o conteúdo mínimo,
impliquem na revisão de sua posição positivista.26 Verifica-se, porém, que
algumas explicitações do conteúdo mínimo são necessárias para a realização
humana e fundamentais para a existência e viabilidade da sociedade e têm
conteúdo moral, porque dizem respeito à vida do homem em sociedade e
à realização humana. Isto posto, indaga-se: tais razões não implicam em
conexão necessária entre direito e moral, ao menos no grau mínimo?.
Finalmente , em 1967, retomou o tema do Conteúdo Mínimo do
Direito Natural, em trabalho titulado “Problems of the Philosophy of Law”,
destacando a necessidade de que todo Direito contenha certas normas
substantivas, advertindo, porém: 1º que tal pretensão não era equiparável à
das clássicas teorias do Direito Natural, em razão dos postulados metafísicos
de muitas delas “inaceitáveis para o pensamento moderno” e porque
acostumavam, introduzir alguma referência à moralidade na definição do
Direito; 2º que embora reconhece que a sua também é uma teoria do Direito
Natural, trata-se de “versão empírica” e “modesta”; 3º que não se refere a

25 RIVAYA,Benjamin. Ob.cit. pp. 40-42. HART,Hebert L.A. Ob. Cit. p. 213.


26 RIVAYA, Benjamin. Ob.cit. p. 43.
Direito e Moral em Lon Fuller 19

nenhum telos superior, mas a “certas condições básicas da vida social”,


fazendo referencia , novamente, às normas de restrição ao uso da violência,
às de proteção de algum tipo de propriedade ou que asseguravam contratos.
Portanto, conclui RIVAYA parece que, sem as normas que garantam essas
condições básicas, a vida social seria impossível, razão porque a dispensa
de igual garantia a todos, constitui o Conteúdo Mínimo do Direito Natural.27

III. A Moral interna de Lon Fuller

3.1. Contextualização e equacionamento

As teses configuradoras da teoria normativista de Hart, são: 1º a


tese das fontes sociais; 2º a tese conceitual da separação necessária entre
direito e moral; 3º a regra de reconhecimento, único critério supremo de
validade; 4º a tese da neutralidade, relacionada à questão metodológica.
Após, e concomitantemente à discussão com Fuller, surgiram: a tese do
mínimo conteúdo do direito natural e a tese da possibilidade de a regra de
reconhecimento incorporar valores morais configuradores do critério de
validade.
O pensamento de Fuller desenvolve-se em torno de Harvard e embora
sua figura aparece unida à tese da Moral Interna do Direito, como indicado
acima, o instrumentalismo pragmático configura seu entorno natural. A
este respeito é oportuno trazer algumas informações, especialmente porque
podem contribuir para a compreensão da tese da conexão entre a Moral e o
Direito, em contraposição ao positivismo analítico.
Na obra The Principles of Social Order, desenvolve duas teses:
a primeira constitui o núcleo da teoria de eunomics , que trata relação

27 RIVAYA, Benjamin. Ob. Cit. p. 44.


20 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

entre meios e fins, e a segunda, destaca a existência de uma pluralidade de


processos para a consecução dos fins, a partir da compreensão do jurista
como arquiteto da ordem social.28
A respeito da relação entre meios e fins, no âmbito das instituições
sociais, em contraposição ao que denomina pensamento comum, formula
as seguintes proposições básicas: 1ª conceitualmente, os fins são separados
das instituições sociais a que servem; são entidades distintas que podem
ser objeto de apreciação isolada; 2ª é preciso determinar o fim antes de
selecionar o meio apropriado para alcançá-lo, razão porque a principal
tarefa da filosofia social é estabelecer a organização hierárquica de fins; 3ª as
instituições sociais são absolutamente flexíveis e a forma de conexão entre
meios e fins é uma questão meramente técnica; 4ª somente nos meios e não
nos fins, encontramos elementos de estrutura formal; 5ª os meios são males
necessários e seria melhor se seus custos pudessem ser evitados.29
Da análise de The Principles of Social Order, especialmente
da primeira e segunda parte, consoante ARJONA, podem identificar-se
contribuições em dois aspectos:
1º no metodológico: a elaboração e operacionalização dos processos

28 Consoante ARJONA:: 1º Trata-se de obra planejada por FULLER mas cuja


organização dos materiais e elaboração, exceção feita da introdução, foi feita por Winston;
2º sua estrutura está integrada por três partes: a primeira, dedicada ao trabalho: Means and
Ends, introdução escrita por Fuller, e peça fundamental de eunomics, onde se desenha
a linha teórica; a segunda trata da aplicação dos princípios ao direito dando destaque aos
processos, formas ou princípios da ordem social, tais como adjudicação, mediação, contrato,
direito costumeiro, direção gerencial; a terceira, denominada de Legal philosophy: legal
Education and the Practice of Law , é dedicada a moralização e profissionalização dos
operadores jurídicos.Cf.ARJONA, César. Ob.cit. pp. 703-705.
29 ARJONA,César. Ob.cit. p. 706. A conexão técnico funcional entre meios e fins,
bem como a dimensão valorativa dos fins, mesmo dentro da lógica instrumentalista, implica
em conexão necessária, uma vez feita a escolha dos meios. Por outro lado, em relação ao
complexo social, a legislação constitui-se em instrumento, porquanto é um processo de
controle social, razão porque para Fuller, a conexão entre direito e moral, parece inerente a
natureza técnica funcional do direito.
Direito e Moral em Lon Fuller 21

sociais a partir de modelos abstratos ou tipos ideais, no sentido weberiano ou


em sentido moral; a surpreendente habilidade para mover-se entre distintos
planos disciplinares, o enfoque instrumentalista e a dimensão essencialmente
empírica do método e finalmente a relativização de toda afirmação sobre o
direito, que deve circunscrever-se a circunstancia específicas, tomando como
referencial a antropologia.; 2º no relacionado com os fins do direito. “Para
Fuller, esse fim forma parte do mesmo Direito, as normas, os processos ou os
sistemas têm um fim, um propósito sem o qual não podem ser entendidos”.
Ao destacar as finalidades, insere-se na tradição de Holmes e Pound, razão
porque enfatiza que “estudar o Direito em termo de suas finalidades implica
em contemplá-lo como atividade e empresa, e não como resultado” ao estilo
do positivismo analítico; 3º e “finalmente, a concepção do direito como
atividade dirigida à consecução de fins conduz a reflexão de Fuller em duas
dimensões. Por uma parte a dimensão tecnológica, que se refere á escolha
e ao desenho dos processos adequados para a obtenção de determinados
resultados. Esses processos constituem uma pluralidade aberta. Por outra
parte, uma dimensão moral ou valorativa, isto é, como também já se afirmou,
“todos os processos jurídicos ou de ordem social tem um componente moral,
uma moral íntegra que, em cada um deles se concreta em uns requisitos ou
cânones particulares”.30

3.2. As teses de Lon Fuller sobre a moral interna

3,2.1. considerações preliminares

Na comunidade jurídica L.Fuller aparece relacionado com o


pensamento analítico e vinculado á tese da Moral Interna do Direito, um

30 ARJONA,César. Ob.cit. pp. 713-714.


22 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

dos pontos mais importantes do pensamento anglo-americano do século


XX, numa referência objetiva porquanto resultante da análise funcional e
finalista dos sistemas jurídicos através do método empírico e na perspectiva
humanista antropológica. Na apreciação de RAMIREZ, com a defesa da
Moral Interna do Direito, Fuller parece estar convencido de ter encontrado
nos princípios do rule of law um ponto de integração entre ser e dever ser
jurídico e de crítica contra a tese da separação entre direito e moral, que
passou a ocupar um lugar de destaque na literatura jurídica, ao mesmo tempo
em que se constituiu em fator de revitalização do pensamento jurídico e do
próprio positivismo jurídico.31 Segundo SILVEIRA, o objetivo de Fuller
foi demonstrar que a moral interna é uma exigência necessária, embora não
suficiente para uma completa e viável concepção do direito, com argumentos
construídos a partir de categorias formuladas ou reconhecidas por Hart, tais
como, entre outras, generalidade, claridade, inteligibilidade, permanência.
Noutros termos, os requisitos que configuram o direito numa sociedade
moderna e complexa e integram o principio da legalidade, garantindo certeza,
segurança e estabilidade, constituem elementos da moral interna.32
Segundo ARJONA, os fatores que determinaram a polarização da
polêmica de Fuller com o positivismo analítico, e especialmente com Hart,
podem sintetizar-se nas seguintes razões: 1ª porque o positivismo analítico
constituiu o modelo de pensamento dominante do S. XX, em franca oposição
às perspectivas de análise e resultados do instrumentalismo pragmático,
matriz do pensamento de Fuller; 2ª o fato de o debate ter-se iniciado num
confronto pessoal entre Hart e Fuller com a publicação de dois artigos por

31 RAMIREZ, Frederico Arcos. Una Defensa de la “Moral Interna del Derecho”.,


p.1.http://e-archivo.uc3m.es/dspace/bitstream/10016/1394/1/Dyl-200-V-9-Arcos.pdf
32 SILVEIRA, Sheila Stolz de. Âmbito Jurídico.p.1.. http://www.ambito-juridico.com.
br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artig... Acesso: 25/07/2008.
.
Direito e Moral em Lon Fuller 23

cada um dos autores na Harvard Law Review em 1958, constituindo-se num


dos debates mais famosos da filosofia jurídica do S.XX, além da relevância
teórica e prática das questões em discussão.33

3.2.2. As teses de Lon Fuller

O ponto de partida para o autor formular suas teses, foi a tese


defendida por H.L.A.Hart em 1958 sustentando a separação entre direito e
moral, fundamentalmente em razão do pluralismo de valores e conseqüente
relativismo axiológico, em contraposição ao monismo do jusnaturalismo.
Justifica-se a discussão sobre a moral interna do direito, porque a polêmica
continua. Na apreciação de SILVEIRA, as teses de Fuller são: 1ª A moral
interna do Direito é a moral que torna possível o direito e é configurada
por cânones que introduzem dimensões de moralidade na estrutura do
ordenamento; 2ª Através da moral interna do Direito Fuller alcança seu
objetivo: conectar o direito com a moral. 3ª É uma moral procedimental e,
neste ponto, o pensamento de Fuller, segundo CAMPBELL, correlaciona-
se com alguns matizes que correspondem ao modelo teórico ideal do
positivismo, qual seja , a identificação e aplicação do direito sem recorrer às
opiniões morais dos envolvidos, o que implica em normas claras, objetivas e
gerais;34 4ª Trata-se de moral procedimental porque os elementos, requisitos
ou cânones são predominantemente formais, isto é, requisitos dirigidos
ás normas, embora seja inviável a distinção radical entre regras formais e
materiais porque, segundo SUMMERS, algumas características sistemáticas
do direito são, em certo sentido, independentes do conteúdo.35

33 ARJONA, César. Ob.cit. p.702.


34 CAMPBELL,Tom.The Legal Theory of Ethical Positivism.Daetmouth;
Aldershot,1996.
35 SILVEIRA, Sheila Stolz de. Ob.cit. p. 2.Cf. SUMMERS.R.S.The Formal
24 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

ESCUDERO ALDAY, autor de Positivismo y Moral Interna del


Derecho, fixa como objetivo identificar no pensamento de Fuller:
(i) o lugar da moral interna do direito na configuração do sistema
jurídico, concluindo parecer ser claro para Fuller, que os elementos da moral
interna do Direito são “necessários para que funcione todo esse complexo
jurídico-normativo denominado Direito” razão porque “precisa de um
mínimo de publicidade, claridade e coerência nos enunciados” para que
possam ser entendidos, aplicados e obedecidos,36 entre outros motivos: 1º
porque a imperiosa necessidade da eficácia, não se coaduna com o exercício
totalmente livre da atividade de criação e aplicação das normas; 2º porque
a complexidade social exige racionalidade e organização tanto em razão da
própria ordenação interna das instituições quanto em razão dos cidadãos,
últimos destinatários, aos que se dirige a atividade;37
(ii) o lugar da moral interna do Direito na valoração do
sistema jurídico, indagando se a presença dos requisitos da moral interna
incorpora parâmetros de justiça. A este respeito, ESCUDERO ALDAY,
afirma que na concepção sistêmica, constata-se: 1º “que os sujeitos que o
Direito considera iguais são tratados como tais e que os órgãos de criação e
aplicação atuam não com plena liberdade, mas submetidos e limitados em
sua atuação pelas próprias normas jurídicas”;2º “que os sujeitos gozam da
possibilidade de conhecimento das normas e, portanto, de capacidade de

Characther of Law.Cambridge Law Journal, Vol.51,nº 2,jul, 1992 pp 242-262.


36 ESCUDERO ALDAY,Rafael. La Moral Interna del Derecho como Objeto de
Debate (respuesta a Joaquin Rodriguez-Toubes y Ricardo Garcia Manrique). Derechos y
Libertades. Revista del Instituto Barolomé de las Casas, p. 234.
http://e-archivo.uc3m.es/dspace/bitstream/10016/15/1/Dyl.2001-VI-10.Escudero Alday.pdf.
Microsof.Internet Explorer
37 ESCUDERO ALDAY,Rafael.Ob.cit. pp 235-236.
Direito e Moral em Lon Fuller 25

predição das conseqüências jurídicas das ações”38 Ressalta ESCUDERO


que estas práticas tradicionalmente são “identificadas com os conceitos de
igualdade formal, império da lei e certeza do Direito” e que para os filósofos
do Direito “não resultam neutros neste sentido, mas fortemente carregados
de valor moral” razão porque “ afirmar que o Direito respeita estas práticas
implica em afirmar que o Direito está satisfazendo[...] certas dimensões
da justiça”.Da mesma forma, sob o aspecto teórico, a introdução de tais
conceitos na estrutura do sistema, implica em “predicar um certo valor moral
da referida estrutura”.39
(iii) aferir se, em razão das conclusões da investigação titulada
“Positivismo e Moral Interna do Direito” pode haver necessidade de corrigir
o axioma positivista da separação conceitual entre o direito e a moral.
A indagação, afirma ESCUDERO ALDAY, não parece infundada
ou sem sentido porque ao reconhecer-se que a configuração sistemática
do Direito produz uma série de conseqüências valoráveis positivamente
em termos morais, estar-se-ia admitindo conexão entre ambas dimensões
normativas. Desta forma, sustenta que “a separação conceitual entre direito e
Moral, entre existência e justiça dos sistemas jurídicos, permanece inalterada,
sem que por isso se tenha que desvirtuar a pretensão descritiva do fenômeno
jurídico que proclama o positivismo jurídico”.40
Por um lado reconhece: 1º a pertinência da idéia de “que toda teoria
do Direito que pretenda merecer o qualificativo de descritiva necessita
oferecer uma resposta o suficientemente fiel sobre a existência e o
funcionamento do Direito”; 2º “que para alcançar tal objetivo, o positivismo
escolheu a construção teórica de um conceito, o de sistema jurídico, como

38 ESCUDERO ALDAY,Rafael.Ob.cit.p.242.
39 ESCUDERO ALDAY,Rafael. Ibidem.
40 ESCUDERO ALDAY,Rafael.Ob.cit.p. 251.
26 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

ponto de partida para estruturar todo o material normativo e assim poder


entender e explicar sua existência e funcionamento”.41 Reconhece, ainda
com CALSAMIGLIA que o melhor positivismo- o de Hart- admitiu que
existia um mínimo de moralidade no direito,42 razão porque a questão
consiste em “determinar se esse mínimo é contingente ou necessário, porque
só a primeira resposta é a que um positivista estaria disposto a aceitar, ou,
no que agora importa e afeta, se sua presença é compatível com a presença
simultânea de dimensões de imoralidade ou injustiça”. Todavia, continua
ESCUDERO ALDAY, “o fato de que um determinado Direito se articule
com o que se entende por sistema jurídico, o que implica no respeito aos
conhecidos elementos da moral interna do Direito, não permite outorgar-lhe,
sem mais, o qualificativo de justo.Com efeito, é compatível com a injustiça ou
com a presença, no referido Direito, de aspectos ou dimensões que merecem
ser qualificadas de imoralidade. Assim, a justiça formal, o império da lei e
a certeza do Direito podem coexistir com normas materialmente injustas”.
Desta forma, conclui seu raciocínio, afirmando que a admissão por parte
de Hart do mínimo de moralidade no Direito, para ser considerado como
uma teoria correta, não implica em renunciar ou negar a tese da separação
conceitual.43

3.2.3. Algumas reflexões sobre as teses de Lon Fuller

O objetivo deste item é contribuir a explicitar aspectos das teses


de Fuller, utilizando como base, especialmente, as reflexões de RAMIREZ
que, no artigo, “Una Defensa de la Moral Interna del Derecho” fixa como

41 ESCUDERO ALDAY,Rafael.Ob.cit.p 250.


42 CALSAMIGLIA, A. Postpositivismo. DOXA,núm.21,1998,p. 215.
43 ESCUDERO ALDAY,Rafael.Ob.cit.p. 251.
Direito e Moral em Lon Fuller 27

objetivos: (i) identificar “razões para sustentar que a presença das dimensões
de moralidade poderia permitir defender a existência de certa conexão
necessária entre Direito e justiça”; (ii) aquilatar o nível dessa conexão que
“não seria tão forte como a de Fuller nem, tão fraca como a de Hart, mas o
suficiente como para defender que a Moral interna poderia ser qualificada,
em certo sentido, como moralidade”; (iii) “oferecer bases políticas e jurídicas
para contextualizar e intentar melhorar a compreensão de alguns aspectos
centrais da dita teoria”.44
Cabe destacar que a pretensão de RAMIREZ é superar as conclusões
de ESCUDERO ALDAY. Com efeito, afirma que o autor, não obstante
analisar a necessidade ou não do concurso da moral interna para sustentar a
existência de um sistema jurídico, conclui que a moral interna é compatível
com o positivismo jurídico porque, não obstante apresentar a existência
de uma mínima eticidade de todo o sistema jurídico, não é suficiente para
sustentar a conexão necessária entre o Direito e a Moral. RAMIREZ, porém,
questiona que isso não obsta que se reconheça que a presença de elementos
da Moral Interna do Direito proporciona uma série de dimensões a valorar
e levar em consideração no momento de predicar a moralidade dos sistemas
jurídicos. Especificamente: constituição de justiça formal, limitação do
poder, respeito á autonomia individual.45 Isto posto, passa a analisar os
principais pontos de destaque no pensamento de Fuller:

3.2.3.1.A moral que torna possível o Direito

Em “Positivism and Fidelity”, Fuller, não apenas destaca que


existe conexão entre direito e moral, mas também que a moral é condição da

44 RAMIREZ,Frederico Arcos. Ob.cit.., p.2.


45 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. ibidem.
28 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

existência do direito, tomando como base de análise os argumentos que usa


Hart para superar o modelo de concepção de Austin.
Com efeito, na formulação de RAMIREZ, a concepção do direito
como ordens emanadas do soberano baseadas em ameaças e habitualmente
obedecidas, segundo Hart, não explica a diversidade “de regras aceitas sobre
a produção jurídica” que devem ser observadas pelo legislador. Estas normas,
que estão na raiz de todo o sistema jurídico, “não são ordens habitualmente
obedecidas, nem podem expressar-se como hábitos de obediência em
relação a pessoas”. Por outro lado, “as regras e sua aceitação não implicam
necessariamente que tenham um caráter moral, nem que o fundamento de um
sistema jurídico deva ser a moral, mas simplesmente, uma espécie de prática
ou costume que pode sustentar-se no simples hábito, a inércia e inclusive a
comodidade”.46
Na percepção de Fuller, da mesma forma que todos os positivistas
e não obstante trabalhar com a idéia de aceitação das normas de produção
jurídica, Hart foi incapaz de reconhecer que o direito se torna possível
em virtude de atitudes, práticas e/ou normas que não integram o processo
fático da produção, mas que integram o fenômeno jurídico. Verifica-se que
tal aceitação é fundamental e necessária na própria concepção da Regra de
Reconhecimento, daí a referência de Hart ao ponto de vista interno. Por
este motivo, na formulação de RAMIREZ “surpreende a Fuller que Hart,
não questione a tese da separação entre o direito e a moral nem chegue a
reconhecer que tais regras não parecem jurídicas, mas morais, dado que
derivam sua eficácia de uma aceitação geral, que, afinal de contas, descansa

46 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit p.2. Trata-se de conceitos desenvolvidos por Hart


ao discorrer sobre a definição (Cap.I) e sobre leis, comandos e ordens (Cap. II) demonstrando
a insuficiência da caracterização do direito como “ordens baseadas em ameaças”, bem como
de “soberano” e “hábito de obediência”.
Direito e Moral em Lon Fuller 29

na percepção de que são corretas e necessárias”,47 o que, segundo DE


PÁRAMO, seria coerente, porquanto, ao abandonar a teoria imperativa, não
pode manter a separação é/deve no funcionamento do ordenamento.48
Na exposição de RAMIREZ, com as expressões: “a moralidade
interna do mesmo direito”, “a moralidade do direito mesmo”, “a moralidade
da ordem”, Fuller “pretende enfatizar que tanto essas normas como a
atividade dirigida a estabelecê-las e aplicá-las, ultrapassam as coordenadas
do direito para adentrar-se nas da moral, derrubando-se, assim, a separação
entre ser e dever ser jurídicos, que tão convencidamente defende Hart. Isto
acontece porque, consoante Fuller, há vários motivos em razão dos quais
o direito não pode ser construído apenas por critérios contidos no próprio
direito. Em primeiro lugar, a autoridade para criá-lo deve ser sustentada por
atitudes morais que lhe atribuem a competência que reclama. Aqui estaríamos
tratando com a moral externa ao direito, que torna possível o direito. Mas
isto não é suficiente. Também é necessário que a norma básica do sistema
designe a referida autoridade, como a única fonte possível de direito, e que
o legislador esteja disposto a aceitar a moral interna do próprio direito”.49
Em “Fidelity to Law” menciona algumas das exigências integrantes
da moral interna do direito, especialmente a irretroatividade e a publicidade,
com o objetivo de tornar evidente o deterioro patológico ocorrido na
Alemanha nazista e demonstrar que o desvirtuamento das exigências da rule

47 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit p.3.


48 DE PARAMO,J.R. H.L.Hart y la teoria analítica del derecho. Madrid: Centro
de Estúdios Constitucionales, 1984. A respeito da polêmica de Hart com Fuller destaca: 1º
que “alguns críticos do positivismo jurídico entenderam que os defeitos e insuuficiências da
teoria imperativista do Direito bastavam para demonstrar a falsidade da tese da separação
conceitual entre o Direito e a Moral”; 2º que “ a crítica e abandono da teoria imperativista,
e a fundamentação do Ordenamento Jurídico na aceitação de certas regras fundamentais que
especificam o procedimento legislativo, implica uma conexão conceitual entre o Direito e a
Moral”. pp.340;342.
49 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. ibidem.
30 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

of Law vai indissociavelmente “unido a uma perversão dos fins e conteúdos


materiais do sistema jurídico”. Em “The Morality of Law”50 fixa o elenco e
explicita as exigências inerentes aos idos cânones51, como condições que
tornam possível o direito.52
Desta exposição infere-se que “por um lado, fica claro que os oito
cânones em questão representam condições de validade e possuem, portanto,
caráter jurídico constitutivo. Por outro, ressalta que tem um valor moral
intrínseco. Fuller conectará ambas dimensões qualificando os princípios da
moral interna do direito como uma versão processual do Direito Natural”.
Segundo RAMIREZ, Fuller utiliza essa linguagem jusnaturalista com a
intenção de “sustentar que o ser [a validade] e o dever ser[ a moralidade] tem
um ponto de confluência nos princípios indicados e no fim perseguidos pelo

50 FULLER,L.La moral del derecho.trad.de F.Navarro,México:Trillas, 1964.


51 São exigências ideais das normas (1) a generalidade:a) para diferenciar as normas
das ordens particulares; b) para indicar o caráter impessoal; c) as pautas públicas de orientação
de conduta;d) o respeito a autonomia pessoal; (2) estabilidaade e perdurabilidade no tempo
porque:juntamente com publicidade e promulgação, possibilitam, além do conhecimento,
planejar estratégias e garantem certeza e segurança; (3) clareza e inteligibilidade, o que torna
o direito acessível e transparente; (4) clareza e inteligibilidade que implica na limitação
ao poder, porquanto o próprio poder produtor do direito está subordinado a regras; (5) não
retroatividade, o que implica, além da limitação do poder, no respeito à liberdade dos cidadãos;
(6) exigibilidade do possível porque: a) exigir o impossível, representa um sem sentido,
porquanto irrealizável; b) exigir o impossível atenta contra a sobrevivência e a dignidade
humana, no que converge com o conteúdo mínimo de Hart; (7) coerência e não contradição
porque a) a unidade, plenitude e coerência são considerados requisitos necessários dos
sistemas normativos e na esfera penal, a plenitude, dará prioridade à legalidade e segurança
jurídica; b) o ideal da coerência,não apenas respeita o princípio da não contradição, como
reduz a incerteza e arbitrariedade; (8) congruência na aplicação que se explicita: a) na
correlação entre o declarado na lei e a atuação do Estado(legislador, gestor e juiz); b) num
conjunto estratégico de relações recíprocas e estáveis entre os poderes públicos e os cidadãos..
Para exposição detalhada,ver. SILVEIRA Sheila Stolz de. Ob.cit.pp 3-11.
52 No contexto da teoria de Hart, as condições ou cânones elencados por Fuller,
são compreensíveis porque sem aceitação, não tem sentido um sistema de normas a longo
prazo, e para se processar tal aceitação é imprescindível a verificação ou verificabilidade dos
referidos cânones.
Direito e Moral em Lon Fuller 31

direito. Este último é um elemento chave da proposta de Fuller, dado que não
se limita a postular o valor constitutivo, ao mesmo tempo em que moral dos
oito cânones, mas vincula ambas dimensões a um conceito teleológico de
ordenamento jurídico”[...] que define como “a empresa de sujeitar a conduta
humana ao governo de regras”.53

3.2.3.2. O valor moral dos princípios da legalidade

Enquanto para ESCUDERO ALDAY, o primeiro argumento de


Fuller para qualificar o caráter moral dos princípios da legalidade consiste
em considerá-los uma versão processual do Direito Natural, para RAMIREZ
“a qualificação dos cânones em função de uma versão procedimental do
jusnaturalismo vem mais a constatar do que a explicar sua consideração
como exigência moral” porquanto apenas “está pressupondo sua pertença ao
âmbito da moralidade, sem oferecer nenhuma razão”. Desta forma conclui,
que o melhor e primeiro argumento parece ser o da reciprocidade, na medida
em que os cânones, por parte do legislador “são o resultado de um pacto
entre este e os cidadãos em que ambos assumem suas respectivas obrigações
morais: o cidadão, obedecer às leis e o legislador, obedecer à moral interna
do direito”.54
O segundo argumento de Fuller para defender a conexão necessária
entre a moral interna do direito e a justiça substantiva é a afinidade entre as
exigências de ambas moralidades:

53 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. p. 4. Faz referência e cita “La moral interna


del derecho” p.110-111, para destacar, ainda, que Fuller não aceita a separação entre fins e
meios das diferentes formas de regulação , porque ambos possuem uma conexão interna na
regulação jurídica.
54 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit.p.5. Citando o texto de Fuller “La moral interna
del derecho”, pp. 49-50.. e ESCUDERO ALDAY,R.Positivismo y Moral Interna del Derecho,
p.341.
32 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

O professor Hart parece assumir que os fins maus podem ter tanta
coerência e lógica interna como os bons. Pelo menos eu, me recuso
a aceitar esta presunção[...]. Terei que apoiar-me na afirmação de
uma crença que pode parecer ingênua, a saber, que a coerência e o
bem tem mais afinidade que aquela e o mal. Aceitando esta crença,
também creio que quando os homens são compelidos a explicar e
justificar suas decisões, o efeito será o de arrastar essas decisões para
o bem.55

No entendimento de SARTORIUS, segundo RAMIREZ, o nexo


desta afinidade está na publicidade, porquanto o respeito da moral interna do
direito garante certeza para os cidadãos e condição para qualificar suas ações
e julgar a equidade das mesmas. Mas a razão porque o respeito aos princípios
da legalidade é incompatível com a elaboração de leis injustas está no
contexto em que a observância daqueles coloca os poderes públicos, porque
como destaca Fuller,“embora o homem seja responsável unicamente perante
sua própria consciência, agirá de forma mais responsável se for obrigado
a enunciar os princípios em razão dos quais age” porque “ o mal não pode
suportar a luz do dia”, razão porque a justificação das leis é a explicação mais
profunda da afinidade entre a moralidade interna e a justiça.56
Finalmente não poderia omitir-se o argumento recolhido por
KRAMMER, com base no pensamento de Fuller, segundo o qual, o valor
moral dos princípios de legalidade está relacionado com o reconhecimento
e preservação da dignidade de todo ser humano como agente dotado de

55 Texto referente à polêmica: FULLER/HART: “Positivism and fidelity to Law..”


p.636 e “La moral interna del derecho”,p.176 e reproduzido em RAMIREZ,Frederico Arcos.
pp. 5-6.
56 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. p. 6.
Direito e Moral em Lon Fuller 33

autonomia, baseado em dois indicadores: 1º se o tratamento jurídico que o


governo dirige aos cidadãos é regular e previsível, estes gozarão de certeza
jurídica necessária para atingir seus próprios planos de vida; 2º se bem pode
admitir-se que a moral legal é neutral em relação a um amplo campo de
problemas éticos não o é, pelo contrário, em relação à concepção do homem
que nela está implícita, o reconhecimento e preservação da dignidade e
autonomia de todo ser humano. Portanto, a moral interna pressupõe a
consideração do ser um humano como um sujeito racional, autônomo, e por
isso, dotado de dignidade, razão porque “todo desvio de seus princípios seja
uma afronta á dignidade do homem como sujeito responsável”.57

3.2.3.3. Críticas a Lon Fuller

A crítica a Fuller não está na tese que afirma que os oito cânones
constituem condições de existência de um sistema jurídico, existindo
unanimidade em admitir que sem um mínimo respeito às diretivas do rule of
Law não pode afirmar-se a existência de um sistema jurídico. Todavia, alguns
autores consideram inaceitável a tese da conexão necessária sustentando que
nem os princípios da moral interna, nem seu seguimento possuem nenhuma
dimensão ética, razão porque não há conexão necessária entre o direito e a
moral58. Especificamente, 1º porque os princípios da moral interna fazem
referência a uma estrutura formal e funcional, razão porque não conduzem
a um critério material e 2º porque nem a observância da moralidade interna
se traduz necessariamente em justiça, nem a adesão á mesma, por parte do

57 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit ibidem. Enfatizar que a idéia de prospecção


através de planos de vida está contida em The Morality of Law mencionada acima e a
responsabilidade em “La moral interna del derecho” pp 179-180.
58 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. p.7. No texto, RAMIREZ faz referência
consistente a HART, Dworkin, Cohen e posteriormente, a Sartorius e Raz., especificamente
nas notas 27, 28, 29 e 30.
34 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

legislador, há de ser necessariamente moral.59

3.2.3.4. Réplica às críticas: Fuller e seus defensores

As teses de Fuller não têm suscitado muita atração, após as críticas,


quer pelo prestigio dos opositores, quer pela unanimidade das criticas, quer
finalmente em razão da escassa consistência das defesas de Fuller, que mais
parecem intuições. De toda forma, nos últimos anos tem-se perfilado novos
e melhores argumentos, referentes às teses centrais de Fuller. RAMIREZ,
organiza a réplica em torno de duas linhas de raciocínio: a prioridade do
razoável e o valor autônomo da certeza jurídica.

3.2.3.4.1. Prioridade do razoável.

A primeira defesa do referido valor moral do princípio da legalidade


é resultado de combinação dos argumentos da afinidade e reciprocidade
já comentados. A combinação levou a autores como Finnis, Summers e
Simmonds a considerar que a rejeição do valor moral da legalidade não pode
apoiar-se no fato de que a adesão aos princípios do rule of law, seja neutra em
relação à moralidade dos fins, de um ponto de vista lógico. Embora procede
que a satisfação dos requisitos do rule of law é conceitualmente compatível
com a elaboração de leis injustas em seus conteúdos, enquadrar esta questão
como uma questão lógica representa, um erro. “Nosso interesse não deve
centrar-se no logicamente possível, senão no que é razoável que aconteça”. E
sendo razoáveis, e não puramente lógicos, “devemos pensar que uma tirania
dedicada a fins perniciosos não tem suficientes razões para submeter-se por
si mesma à disciplina de agir de um modo consistente através do exigente

59 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. pp.8-9.


Direito e Moral em Lon Fuller 35

processo jurídico, admitindo que o aspecto racional de tal autodisciplina é


o mesmo valor da reciprocidade, da imparcialidade e do respeito às pessoas
que o tirano, ex-hipótese despreza”. Nenhuma espécie de tirania pode
encontrar em seus objetivos racionalidade alguma para aderir (a não ser
tática e superficialmente) aos princípios da legalidade, porque tais regimes
visam resultados, e não ajudar as pessoas a constituir-se em comunidade.60
A prioridade do razoável já tinha sido defendido por Fuller, que na
formulação de RAMIREZ,

reconhece que não existe contradição lógica na idéia de perseguir


fins perniciosos, ou ao menos certos fins deste tipo, através de meios
que respeitem plenamente as exigências da legalidade.Contudo,
considera que este tipo de possibilidade lógica não merece nosso
interesse, nem supõe na prática a negação do valor moral da Rule of
Law. O verdadeiramente interessante não é o logicamente possível
mas o que é razoável que suceda no mundo em que vivemos, pois, a
final só podemos viver neste mundo e, no mesmo, o direito sempre
apresenta um valor moral. É tal seu ceticismo perante a possibilidade
lógica de uma tirania que respeite os oito cânones da legalidade, que
o qualifica de uma verdadeira situação de ficção, em nada parecida
a dos fatos possíveis da vida humana nos que deveríamos centrar-
nos.61

60 FINNIS,J.M. Natural Law and Natural Rights.Oxford:Clarendon Press, 1980,pp


273-274.
61 RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit 10.. Na nota 42, cita FULLER,L. “A reply to
professors Cohen and Dworkin”,Villanova Law Review, 10, Summer,1965, p.664.
36 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

3.2.3.4.2. valor autônomo da certeza jurídica

Mercê aos valores da segurança e certeza, resultantes da existência


e efetividade das normas e, especialmente, da fidelidade ao princípio da
legalidade, na formulação de Fuller, os indivíduos contam com referenciais
para seus planos de vida formulados e exercitados na liberdade e igualdade.
Esta é a via que desenvolve ESCUDERO ALDAY como alegação “a
favor da conexão entre a moral interna do direito e a justiça dos sistemas
jurídicos”, destacando três conseqüências derivadas do respeito ao princípio
da legalidade: a criação da justiça formal, a limitação do poder e o respeito
à autonomia individual. Todavia, esta conexão em ESCUDERO, conforme
entendimento de RAMIREZ, não é baseada em critério conceitual, mas
empírico e contingente, e não necessário, no que acompanha HART.
Desta forma, segundo RAMIREZ, restam duas alternativas para
fundamentar uma conexão necessária: a primeira, já analisada, que afirma,
ser improvável, que um regime dedicado a fins iníquos, encontre razões
para respeitar a moral interna. A segunda, consistente em admitir, que o fato
de ser compatível com a injustiça, não significa que a segurança jurídica
inerente a moral interna possa desempenhar algumas funções morais
autônomas. Neste sentido, a segurança perante o direito e o poder resultante
dos princípios do rule of law, sempre representaria um valor moral, mesmo
no caso de conteúdos iníquos do sistema jurídico. O que conduz a apostar
que a segurança jurídica, possa funcionar, ao mesmo tempo que, como
condição da justiça, como um valor independente desta”, o que evidenciaria
que “a moralidade intrínseca dos princípios da legalidade não tome como
referência a justiça material das leis, mas a existência de algum tipo de
função que possa qualificar-se, por si mesma, como moral. O fato de que este
valor possa ser superado por uma maior ou menor iniqüidade não significa,
Direito e Moral em Lon Fuller 37

tal como indica S.Harwood, que quando é superado desapareça”62. Uma das
melhores respostas para identificar esse valor moral, afirma RAMIREZ, é
oferecida por R. SUMMERS nos seguintes termos:

O cumprimento, num grau suficiente, dos princípios da


legalidade, garante necessariamente, e na medida de tal
cumprimento, a realização de um valor moral, inclusive quando
o conteúdo da lei em questão resulte ser mau. Esse valor
moral é o seguinte:os princípios de generalidade, claridade,
irretroatividade, etc., asseguram que o cidadão possa ter uma
oportunidade justa de obedecer a uma lei injusta. Embora deva
admitir-se que a escolha consista em obedecer ou não uma lei
injusta, o cidadão terá ao menos uma oportunidade justa de
decidir a respeito e para agir em consonância. Isto possui, em si
mesmo, valor moral ainda quando o conteúdo do que o Estado
faz ao cidadão por meio do direito seja imoral”.63

Como resultado, pode concluir-se com RAMIREZ que:


1º “Nesta oportunidade, obedecer a uma lei injusta de que fala
Summers, haveria uma mínima, embora rudimentar noção de justiça,64 um

62 RAMIREZ,Frederico Arcos. Ob.cit. p. 11. Referência a : HARWOOD,S.”


Conceptually necessary links between law and morality”.In: W.KRAWIETZ,N.
MAcCORMICK & G.H.WRIGHT(eds).Prescriptive formality and normative rationality in
modern legal systems, Duncker and Humboldt, Berlin,1994,p.152.
63 HARWOOD,S... Lon Fuller.Eduard Arnold, London.1984,p.37. Apud:
RAMIREZ,Frederico Arcos. Ob.cit. pp.11-12.
64 Lembra RAMIREZ, que segundo Waldron, “nada impediria sustentar que,
inclusive sob o domínio de um poder tirânico, que, por qualquer motivo, proceda dentro do
rule of law, existem algumas vantagens enquadráveis numa noção de justiça, porquanto, pelo
menos haveria alguns valores e princípios na cultura oficial, aos que os cidadãos poderiam
apelar em suas reclamações contra a injustiça e algumas tensões que podem explorar para
38 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

valor parcialmente redentor,65 dado que ao menos possibilita conhecer a


priori o limite até onde se pode avançar sem sofrer sanções ou restrições da
liberdade pessoal66 e, defender-se, portanto da “iniqüidade”67;
2º “Esta eticidade, independente ou autônoma, da segurança jurídica68,

derrocar o regime” Cita: J. WALDRON, The Rule of Law in the Contemporary Liberal
Theory”, Ratio Júris, Nº 1, vol.2, Março, 1989, pp 93-94. RAMIREZ, Frederico Arcos.
Ob.cit. p. 12, nota 48.
65 MAcCORMICK, afirma RAMIREZ, “defende o valor independente do rule
of law indicando que tratar as pessoas como agentes racionais e aplicar-lhes com justiça
qualquer padrão de conduta é um valor real e um valor independente, inclusive onde o
conteúdo das leis se aproxime pouco a qualquer ideal relevante de justiça substantiva. É um
sinal de um mundo que caminha para a loucura que alguém possa dar boas-vindas a algo
que em si mesmo é perverso (a arbitrariedade é a maior das crueldades) como mitigação
parcial de um mal maior. Contudo, é nos casos de manifesta injustiça onde resulta mais
fácil apreciar que a imparcialidade através da legalidade pode ser um valor particularmente
redentor, inclusive quando a ordem jurídica em seu conjunto deve considerar-se injusta”. N.
MAcCORMICK.”The Separation of Law and Morals”.In: R.P. GEORGE,(ed),Natural Law
Theory. P. 147. Apud:RAMIREZ,Frederico Arcos. Ob.cit. p.12, nota 49.
66 G. CONSO, “ La certeza del diritto:ieri,oggi,domani”, Rivista di Diritto Procesuale,
1970, p.547.
67 Dada a contraposição hipotética, de dois regimes A e B, ambos igualmente
violadores de distintos tipos de direitos humanos, em que o regime A opera mediante leis
públicas e claras, aplicadas consistente e escrupulosamente, enquanto o regime B, com leis
retroativas, atos ilegais e violência pública, juízos e leis secretas, etc., Sismmonds indaga:
“Existe algum valor moral no respeito por parte de A do rule of law?”.A este respeito afirma
que “quando os poderes públicos agem em conformidade com os oito princípios, fazem com
que sua conduta seja publica e previsível”, o que possibilita que os cidadãos possam agir com
estratégia evitando as interferências oficiais, e “proporciona certo grau de ordem e regularidade
necessário para o desenvolvimento da atividade criativa e empreendedora”.N.SIMMONDS.
Central Issues in Jurisprudence, Sweet &Mawelt,London,1986,p.123..No mesmo sentido
RAWLS: mesmo tratando-se de leis e instituições injustas, “às vezes é melhor que sejam
aplicadas de maneira consistente”.As pessoas nessas condições, “ao menos sabem o que se lhes
exige e podem, nessa medida, proteger-se a si mesmos”; ao contrário, “haveria maior injustiça
se os que estão numa situação desvantajosa forem também tratados arbitrariamente em casos
particulares nos quais as normas lhes dessem alguma segurança”.RAWLS,J. Teoria de la
Justicia.trad. Mª Dolores González, Fondo de Cultura Econômica,México,1978,pp.80-81.Cf.
RAMIREZ,Frederico Arcos. Ob.cit. p. 12-13, nota 51.
68 Pela referência e importância do pensamento de diversos autores contemporâneos
,em castelhano, passo a reproduzir o teor da nota 52 do texto de RAMIREZ. Segundo Garzón
Direito e Moral em Lon Fuller 39

na realidade, expressa a moralidade intrínseca e específica de toda ordem que


possa ser qualificada como um sistema jurídico.69
O que diferencia a esta de qualquer outra forma de controle social,
é precisamente, que torna possível a obediência de suas diretivas. Sem o
respeito ao elenco de princípios indicados por Fuller, se bem ainda não
se pode falar de uma oportunidade justa de obedecer ao direito, ao menos
pode falar-se de uma oportunidade. De existir, como defendem os autores
indicados, razões para perceber, na concorrência da mesma, uma dimensão
ética, então não haveria dúvida da presença de uma conexão necessária entre
a moralidade interna e a justiça.

IV. Conclusão

O caráter institucional do direito faz com que a funcionalidade


se constitua em elemento necessário de sua existência, razão porque para
Fuller, o importante é a funcionalidade e seu significado vem dado pela
operacionalidade.
Existe correlação e convergência entre Fuller e Finnis, embora
partindo de perspectivas e pontos de vista diferentes, na medida em que a

Valdés, o valor da segurança jurídica, deve ser respeitado por todo sistema jurídico. De
fato a historia registra variedade de sistemas em que o respeito pela dignidade humana teve
variedade de intensidade, sem não obstante ter sido afetada a segurança jurídica. E. GARZÓN
VALDÉS, “Derecho y Moral”,em E.GARZÓN VALDÉS y F.LAPORTA(eds).El Derecho
y la Justicia.Enciclopedia Iberoamericana de Ciencias Sociales.Madrid: Trotta, 1996,
p.402 Pensam em sentido contrário, considerando absurdo e incompatível com o Estado
de Direito, denominar “segurança jurídica” esse tipo de predição perante a iniqüidade:A.E.
PÉREZ LUÑO.La seguridad jurídica; A. PECZENICK.Derecho y razón, trad. E.Garzón
Valdés,Fontanara,México,2000..Apud:RAMIREZ,Frederico Arcos.Ob.cit. p. 13,nota 52
69 Lembra RAMIREZ que Flávio López de Oñate, descrevia a segurança jurídica
como “ a especifica eticidade do direito” LOPEZ DE OÑATE, Flávio .La certeza del derecho.
Trad. de M.Ayurro y Sentís, Ediciones Jurídicas Europa -América, 1953. RAMIREZ,
Frederico Arcos. Ob. Cit. p. 13, nota 53
40 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

concepção do direito natural em Finnis parte do pressuposto de bens básicos


para a existência e realização humanas e o conteúdo mínimo do direito
em Fuller explicita-se em função da garantia de aspirações e satisfação de
necessidades básicas.
Os valores básicos de Fuller não são apriorísticos, mas ao contrário,
enunciações genéricas que condensam conquistas históricas cristalizadas em
processos, por si mesmos garantidores de valores ou tendentes a garantir
valores. Não há procedimentalismo puro.
A conexão entre direito e moral é inerente à concepção do direito
como técnica de organização social e instrumento de realização humana,
equacionada na relação meio-fim, que por tratar-se de relação logicamente
causal é necessária, não contingente. A contingencialidade está nos fins,
porque mutáveis e variáveis, não na relação entre meios e fins.
Os oito cânones representam condições de validade e possuem
caráter constitutivo, razão porque têm valor moral intrínseco. O respeito aos
cânones da moral interna garante aos cidadãos um mínimo de certeza jurídica
porque pode conhecer antecipadamente o padrão de atuação do Poder e a
posterior analisar criticamente sua atuação efetiva.
Não obstante a possibilidade de compatibilidade lógica entre direito
válido e injusto, não parece provável que um regime dedicado a leis iníquas
encontre razões para respeitar a moral interna, todavia, entendida esta como
exigência de justificar publicamente os motivos e conteúdos das leis, unida
a publicidade, pode ser a explicação mais profunda da afinidade entre a
moralidade interna e a justiça substantiva.
Finalmente, uma das razões para defender o valor moral dos princípios da
legalidade consiste em que os mesmos reconhecem e preservam a dignidade de
todo ser humano como agente dotado de autonomia, criando condições em razão
da regularidade e previsibilidade de formular os próprios planos de vida.
Direito e Moral em Lon Fuller 41

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44 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II
Cap. 2: A justiça segundo
Santo Tomás de Aquino

Carlos Frederico da Silveira1

I. A estrutura do tratado da justiça na Suma Teológica

Santo Tomás trata da virtude da justiça da questão 57 à 122 da


segunda seção da segunda parte da Suma Teológica2. São mais de trezentos
artigos que vão desde a justiça em geral a certas virtudes a ela conexas, como
a religião e a epiquéia. Na última edição brasileira da Suma3, esse tratado
encontra-se integralmente no volume sexto.
O tratado aborda as questões e os temas da justiça fundando-se na
sua divisão4 segundo as suas partes subjetivas, integrantes e potenciais. As
partes subjetivas são as espécies de justiça propriamente ditas, a saber, a
justiça distributiva e a justiça comutativa; as partes integrantes são como
que as “partes físicas” da justiça, ou seja, fazer o bem e evitar o mal a outro;

1 Doutor (1997) em Filosofia pela Pontificia Università San Tommaso (Roma),


com revalidação do diploma pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005, processo
23079.001260/04-64). Com graduação e mestrado em Filosofia. Atualmente é professor
adjunto da Universidade Católica de Petrópolis, professor do Instituto de Filosofia João Paulo
II e professor da Faculdade de São Bento, Rio de Janeiro.
2 Santo Tomás trata do tema da justiça em outras obras, como: In decem libros
Etilicorum Aristotelis ad Nicomachum expositio, especialmente no comentário ao livro V.
3 Suma Teológica. Vol. VI. São Paulo: Loyola, 2005.
4 A lógica escolástica admite três tipos fundamentais de divisão de um todo: em
suas partes integrais; em suas partes subjetivas; e em suas partes potenciais. A primeira é a
divisão quantitativa, conforme o exemplo de no artigo que se segue, como quando se divide
uma casa em paredes, teto e fundamento; na segunda; tem-se a divisão de gênero e espécies,
que são as partes subjetivas de um todo; e, finalmente, as faculdades de colaboram para a
atualização plena de alguma virtude ou potencialidade: “Respondeo dicendum quod triplex
est pars, scilicet integralis, ut paries, tectum et fundamentum sunt partes domus; subiectiva,
sicut bos et leo sunt partes animalis; et potentialis, sicut nutritivum et sensitivum sunt partes
animae”. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 48, a. 1 c.
46 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

as partes potenciais são as virtudes conexas à justiça, que a potencializam.


Essa parte central do tratado é precedida por uma abordagem geral da justiça
em quatro questões que versam sobre o direito, a justiça, a injustiça e o
julgamento, respectivamente.

II. O objeto da justiça

O tratado tomista inicia-se na questão 57 da Suma com a investigação


sobre o objeto da justiça, que é o direito. Trata do direito em quatro artigos,
que versam sobre o conceito de direito, sua fonte, sua divisão e sua relação
com a justiça.
É próprio à justiça ordenar os atos que relativos a outros, de modo
que haja certa igualdade entre os semelhantes. Diferentemente das outras
virtudes que aperfeiçoam o homem em relação a si próprio, o que especifica
a justiça é a relação correta com o outro. Essa igualdade ou correção entre
semelhantes é o direito, o justo. Assim, é justa uma ação quando corresponde,
segundo certa igualdade, a uma ação de outrem. E, por isso, a justiça tem por
objeto o que é chamado de justo, e este é o direito.
A partir dessas considerações iniciais, Santo Tomás divide, sempre
seguindo Aristóteles, o direito entre natural e positivo. Como o que se está
chamando de reto, de justo, é relativo ao homem, o fundamento metafísico do
direito é a essência humana. E é a partir da conformidade com essa natureza
que nasce o direito; e isso de dois modos: pela sua própria natureza, o direito
natural; e em virtude de uma convenção, eis o direito positivo.
Embora o tratado da lei não pertença ao tratado que ora se expõe, o
conceito de direito está intrinsecamente ligado ao de lei, seja à lei natural, seja
à lei positiva. Por isso é importante ter presente que Tomás pensa a justiça
consoante uma gradação de participação na perfeita justiça divina. Assim, a
A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 47

lei, na definição de Santo Tomás, é “uma certa ordenação da razão em prol


do bem comum, promulgada por quem tem o encargo da comunidade5”. Esta
definição tem aqui a função de estabelecer as relações entre lei e direito.
Dessa forma, é a lei que funda o direito, se se tomar a lei no seu sentido mais
amplo ou na seguinte ordem: lei eterna − direito divino − lei natural − direito
natural − lei positiva − direito positivo, o que na verdade significa que o
fundamento do direito é a lei que emana da autoridade divina e da autoridade
humana, sempre como participação naquela.

III. As partes da justiça

O bem deve ser feito, o mal, evitado, bonum faciendum, malum


vitandum. Admitido esse princípio primeiro da moralidade, Santo Tomás aí
funda o seu tratado da justiça, acrescentando-lhe sua diferença específica: a
relação a outro. Destarte, a definição de justiça poderia ser “habitus faciendum
bonum alteri debitum et declinandi a malo alteri nocivo”. Esta formulação,
na verdade, basear-se-ia em uma das divisões da justiça, a divisão em suas
partes integrais. Ora, como a divisão deve vir depois da definição, parece
que aquela supõe uma definição anterior, que é a seguinte: disposição firme
e constante da vontade em dar a cada um o que é seu, “perpetua et constans
voluntas, ius suum unicuique tribuens6”. Com efeito, a divisão da justiça em
suas partes integrais indica como se estrutura materialiter a justiça, ou seja,
as partes que estão presentes em cada uma de suas espécies. De modo que,
há dois elementos em qualquer espécie, tipo ou subtipo de justiça: 1) fazer o
bem a outro; 2) evitar o que possa prejudicar o outro. Em esquema:

5 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 90, a. 4: “quaedam rationis


ordinatio ad bonum commune, ab eo, curam communitatis habet, promulgata”.

6 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 58, a. 1.


48 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II


Partes integrais da justiça
{ fazer o bem a outro

evitar o prejuízo de outro

Há, contudo, outras duas divisões da justiça, conforme a forma


clássica das divisões lógicas: a divisão em partes subjetivas, que são as
espécies de justiça; e a divisão em partes potenciais, aquilo que corrobora
ou plenifica a virtude em questão. Quanto à primeira, Santo Tomás segue a
divisão clássica entre justiça comutativa e justiça distributiva. Em síntese:

{
justiça comutativa
Partes subjetivas da justiça
justiça distributiva

IV. As partes subjetivas da justiça


4.1. A justiça comutativa

A justiça comutativa (justitia commutativa) é a que regula as


relações entre pessoas na vida privada e é definida como aquela virtude em
que se visa ao intercâmbio mútuo entre duas pessoas “in his quae mutuo fiunt
inter duas personas ad invicem7”. Sob certo aspecto, a justiça comutativa
é um contrato a ser respeitado consoante a igualdade aritmética. Ou seja,
o meio-termo, que é o critério aristotélico de virtude, é alcançado por uma
média matemática, enquanto, na justiça distributiva, isso se dá por média
proporcional ou geométrica. No artigo 2 da questão 61, depois de explicar

7 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 61, a. 1.


A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 49

essa proporcionalidade, apresenta a média aritmética da justiça comutativa:

Assim, na justiça distributiva, o meio-termo não


se considera por uma igualdade de coisa a coisa, porém
segundo uma proporção das coisas às pessoas; de tal sorte
que, se uma pessoa é superior à outra, assim também o que
lhe é dado excederá o que é dado à outra. Por isso, o Filósofo
declara que esse meio termo se considera segundo uma
‘proporcionalidade geométrica’, em que a igualdade não
é de quantidade mas de proporção. (...). Ao contrário, nas
comutações, dá-se algo a uma pessoa particular, por causa
de uma coisa que dela se recebeu, o que é da maior evidência
nas compras e nas vendas, nas quais primeiro se manifesta
a noção de comutação. É, então, necessário igualar uma
coisa à outra. E, assim, se alguém guarda, além do que é
seu, um tanto de outrem, deve restituir-lhe exatamente essa
diferença. Dessa forma, se realiza a igualdade segundo uma
média ‘aritmética’...8”

4.2. A justiça distributiva

A justiça distributiva (justitia distributiva) é a justiça que trata da

8 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 61, a. 2: Et ideo in iustitia


distributiva non accipitur medium secundum aequalitatem rei ad rem, sed secundum
proportionem rerum ad personas, ut scilicet, sicut una persona excedit aliam, ita etiam res quae
datur uni personae excedit rem quae datur alii. Et ideo dicit philosophus quod tale medium
est secundum geometricam proportionalitatem, in qua attenditur aequale non secundum
quantitatem, sed secundum proportionem. (..). Sed in commutationibus redditur aliquid
alicui singulari personae propter rem eius quae accepta est, ut maxime patet in emptione et
venditione, in quibus primo invenitur ratio commutationis. Et ideo oportet adaequare rem rei,
ut quanto iste plus habet quam suum sit de eo quod est alterius, tantundem restituat ei cuius
est. Et sic fit aequalitas secundum arithmeticam medietatem, quae attenditur secundum parem
quantitatis excessum, sicut quinque est medium inter sex et quatuor, in unitate enim excedit et
exceditur.
50 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

distribuição das vantagens e dos ônus entre os membros de uma sociedade.


Compete à autoridade constituída proceder a essa distribuição.
A justiça distributiva, como se disse, segue um critério geométrico,
isto é, proporcional, na aplicação de seus princípios, o que depende da
função do indivíduo ou de um grupo na comunidade: “eis por quê, em justiça
distributiva, se dá a alguém tantos mais dos bens comuns, quanto maior for
sua preeminência na comunidade9”. Dentre as muitas faltas contra a justiça
distributiva, está a acepção de pessoas.

V. A acepção ou favorecimento de pessoas

O favorecimento de pessoas é considerada falta grave contra a justiça


distributiva, porque beneficia alguém não porque a coisa lhe seja devida mas
por ser tal pessoa. Este vício, oposto à justiça, é tratado em quatro artigos
em que o princípio geral aqui enunciado se aplica perfeitamente a esse tipo
de falta cometido por quem tem a autoridade para exercer a distribuição
dos benefícios advindos da comunidade. O favorecimento de pessoas pode
acontecer nas mais distintas instituições, religiosas ou civis.
Nas coisas da religião, contudo, é falta mais grave ainda, pois se deve
considerar que as coisas da fé têm maior valor do que as coisas temporais.
Por conseguinte, maior é a falta quando se favorece alguém nas coisas mais
elevadas. De igual modo, na vida civil, o juiz cai em tal falta ao proferir sua
sentença tocado por tais preferências. Ou, ainda, um governante distribuir
cargos por razões de seu interesse pessoal.
As motivações para a acepção de pessoas são variadas, contudo, o
parentesco e as razões pecuniárias são as mais freqüentes; deve-se lembrar

9 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 61, a. 2: “Et ideo in distributiva


iustitia tanto plus alicui de bonis communibus datur quanto illa persona maiorem
principalitatem habet in communitate”.
A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 51

que a única motivação válida para se honrar alguém é a sua virtude.


Gilson comenta esse grupo de artigos da Suma Teológica e introduz
um exemplo sugestivo:

Suponhamos, por exemplo, que se tratasse de


conferir a alguém a dignidade e as funções de professor; do
ponto de vista da justiça distributiva, este homem não teria
esse direito senão na proporção exata de sua ciência, pois é
a sua ciência que define seu lugar na hierarquia social em
relação à ordem do ensino. Agir com justiça, em tal caso, é
levar em conta somente a ciência do candidato; fazer acepção
de pessoa, ao contrário, seria considerar a sua pessoa, isto é,
tudo aquilo que não é a causa legítima única que se possa ter
para lhe conferir essa dignidade: suas riquezas, por exemplo,
ou o parentesco que nos une a ela10.

VI. Virtudes conexas à justiça: as partes potenciais da justiça

Outra divisão leva Santo Tomás a estabelecer nove virtudes conexas


à justiça. São as chamadas partes potenciais da justiça. Eis a sua distribuição
segundo o critério da deficiência e da superação do que se deve: a) virtudes
em que se oferece menos do que é devido: religião (religio); piedade (pietas);

10 GILSON, Étienne. Saint Thomas moraliste. Paris: J. Vrin, 1974, pp. 288-289:
“Supposons par exemple qu’il s’agisse de conférer à quelqu’un la dignité et les fonctions du
professeur ; du point de vue de la justice distributive, cet homme n’y a droit qu’en proportion
exacte de sa science, car c’est sa science, qui définit sa place dans la hiérarchie sociale par
rapport à l’ordre de l’enseignement. Agir justement, en pareil cas, c’est donc ne tenir compte
que de la science du candidat ; faire acception de personne, au contraire, c’est considerer sa
personne, c’est-à-dire tout ce qui n’est pas la seule cause légitime que l’on puísse avoir de lui
conférer cette dignité: ses richesses, par exemple, ou la parenté qui nous unit à lui”. Tradução
livre do autor
52 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

observância (observantia); a) virtudes em que se retribui mais do que se


deve: gratidão (gratitudo); castigo (vindicatio); liberalidade (liberalitas);
afabilidade (afabilitas); equidade ou epiquéia (equitas sive epieikeia).
Quanto ao primeiro grupo, a religião exprime de modo excelente o
que se entende por essa deficiência em relação ao objeto da justiça. De fato,
o que é próprio da religião, a saber, o culto, dever de justiça que cada homem
para com Deus, é sempre menos do que o próprio Deus concede a cada um.
Presta-se reverência a Deus, não por si mesmo, mas por causa do próprio
crente, afirma Santo Tomás, pois, ao reverenciar a Deus, a inteligência
humana se lhe submete, e esta é a sua perfeição11. Em esquema, esta última
divisão da justiça:

{{ {

religião
para menos piedade
observância
Partes potenciais da justiça
gratidão
castigo
para mais liberalidade
afabilidade
epiquéia

VII. Justiça Social

Pode-se admitir que as virtudes tratadas até aqui são virtudes


particulares da justiça e que, por conseguinte, há de se admitir também uma

11 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 81, a. 7.


A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 53

abordagem geral da mesma. Seguindo tal distinção, aplica-se perfeitamente


a esse tratado geral da justiça o conceito de justiça legal (justitia legalis),
que aparece seja em Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, seja nas obras
de Santo Tomás. Contudo, uma aplicação melhor para o termo parece ser a
atribuição desse conceito ao conjunto de virtudes potenciais que ordenam a
vida em sociedade. Então, deixando de lado a virtude da religião, as outras
virtudes potenciais poderiam ser classificadas sob o conceito de justiça legal
ou social. Assim é para alguns intérpretes e para a nova edição brasileira da
Suma, já indicada. O argumento central que favorece essa atribuição é que
todas essas virtudes conexas à justiça visam ao próximo, o que é a diferença
específica da justiça. Assim, pode-se ter uma divisão mais genérica e anterior
às que foram apresentadas até agora:

{ { {
geral ou legal (trata da teoria geral da justiça)
Justiça

partes integrais
particular partes subjetivas
partes potenciais religião
justiça social
(as potenciais
restantes)

Ao discutir a superioridade da justiça em relação às outras virtudes,


Santo Tomás afirma claramente: “Se falamos da justiça legal, é manifesto
que ela excede em valor todas as virtudes morais; pois o bem comum tem a
preeminência sobre o bem particular de uma pessoa12”. Ora, ao tratar do bem
comum, fica claro que a justiça legal é o mesmo que a justiça social.

12 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 58, a. 12: “...si loquamur de justitia
legali, manifestum est quod ipsa est praeclarior inter omnes virtutes Morales: inquantum
bonum commune praeeminet bono singulari unius personae”.
54 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Tome-se como exemplo a equidade13 ou epiquéia, conforme a


expressão grega de Aristóteles. A virtude em pauta trata de uma questão
muito contemporânea que afetou tanto jusnaturalistas quanto positivistas,
que é o problema das lacunas na lei escrita. Aristóteles previra tal dificuldade
e elaborou a sua famosa teoria da equidade. Em linhas gerais, Tomás segue
Aristóteles.
A equidade é, pois, uma virtude que faz parte da virtude da justiça
e consiste em seguir o espírito da lei, ou seja, a equidade procura promover
a justiça mesmo quando a lei escrita falha ou falta. Nesse sentido, ela é tão
geral que se pode identificar com a justiça legal tomada no primeiro sentido,
pois busca o seguimento da lei conforme o espírito do legislador. Por isso
é considerada como a regra superior dos atos humanos: “E ela pode ser
chamada de justiça por prioridade (...). Desta forma ela se comporta como
uma espécie de regra superior dos atos humanos14”.

VIII. O advogado na ordem da justiça

A respeito do exercício da justiça, Santo Tomás considera não


somente o que é virtuoso, mas também o que lhe é contrário. É o que acontece
ao tratar do papel do advogado, objeto de quatro artigos sugestivos, sob o
tema geral “da injustiça cometida em juízo por parte dos advogados15”: 1.º
Tomás investiga se o advogado está obrigado a patrocinar a causa dos pobres;

13 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 120, que constra de dois artigos:
o primeiro discute se a equidade é virtude; o segundo, se ela é parte da justiça.
14 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 120, a. 2: “Et de ea iustitia per
prius dicitur (...). Unde epieikeia est quase superior regula humanorum actuum”.
15 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 71.
A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 55

2.º se se deve impedir alguém do ofício de advogado; 3.º se o advogado pode


defender uma causa injusta; 4.º e, finalmente, se pode receber dinheiro pelo
seu patrocínio.

Quanto a defender o pobre às suas expensas, Tomás explica que isso


é obra de misericórdia, ou seja, é um ato livre que emana do amor ao próximo
e, nesse sentido, não é obrigatório. Contudo, se o pobre que necessitar de tal
auxílio estiver em condição tal de indigência que não tenha outro recurso
senão o patrocínio do advogado, então é obrigatória a defesa.

O segundo artigo considera que algumas pessoas se devem manter


afastadas do ofício de advogar por duas razões basicamente: ou porque
não está bem com outro cargo que exerçam, tal é o caso, por exemplo, dos
monges; ou porque tenham algum impedimento de ordem física ou espiritual,
por exemplo, os condenados por crimes graves.

Quanto às causas injustas, o advogado está moralmente impedido de


as defender, pois seria uma colaboração com a injustiça. Santo Tomás toma
o conceito de causa injusta formalmente, isto é, no sentido estrito. Em outras
palavras, os acusados são defendidos não enquanto suas ações são injustas,
mas naquilo que lhe é possível aplicar justiça e a retidão, e reconhecendo
seus delitos.

Sobre a remuneração dos advogados, deve-se dizer que o advogado


tem direito à justa recompensa em dinheiro pelo seu trabalho. Tudo dentro
da justa medida e de acordo com os costumes do país e as condições das
pessoas, pois “se, porém, faltando à probidade, extorquir um pagamento
excessivo, peca contra a justiça16”.

16 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 71, a. 4: “Si autem per improbitatem
aliquid immoderate extorqueat, peccat contra iustitiam”.
56 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

IX. Conclusão

A amplitude do tratado de Santo Tomás, assim como o conjunto


extenso das virtudes conexas à justiça, indicam que a prática do que é justo
exige um alto grau de conhecimento e de virtude. Não se pode pensar que a
justiça possa ser aplicada levando-se em conta somente algumas regras ou
mesmo observando uma ou outra de suas partes. A integridade dessa virtude
exige uma totalidade de ações e hábitos, como as aqui apontadas, que são as
únicas a qualificar alguém de justo.
Em poucas palavras, pode-se dizer que o critério fundamental para
se atingir a justiça é a própria conformidade com seu objeto, que, em última
instância, é o direito que decorre da natureza humana, isto é, o direito natural.
E a natureza humana, embora se mantenha imutável na riqueza inefável
de seu ser, revela-se sempre nova nos diferentes momentos da história do
homem.
A atualização do direito deve ser feita tendo em vista esse
referencial, a natureza humana, que só muda no sentido de sua profundidade,
nunca no sentido de substituição do que o homem é em sua essência. Ao
contrário, as descobertas sobre a multifacetada essência humana exigem
também uma complexidade e uma abrangência de visão e de ações. Mesmo
passados muitos séculos do tratado que aqui foi exposto, essas descobertas
contemporâneas sobre o homem, em lugar de aboli-lo, revelam a excelência
da reflexão tomista sobre a justiça.
A Justiça segundo Santo Tomás de Aquino 57

Referência Bibliográfica

ARISTÓTELES. Etica Nicomachea. Milão: Rusconi, 1993.

GILSON, Étienne. Saint Thomas moraliste. Paris: J. Vrin, 1974.

GONZÁLEZ MORAL, Irenaeus. Philosophia Moralis. Santander: Sal


Terrae, 1960.

LYONS. La Somme de Saint Thomas d’Aquin résumée em tableaux


synoptiques. Nice: Imprimerie Industrielle des Ateliers, 1901.

SIGNORIELLO, Nuntio. Lexicon


peripateticum philosophico-theologicum in quo
scholasticorum distinctiones et effata explicantur. 5ªed. Romae: Fridericus
Pustet, 1931.

TOMÁS DE AQUINO. Do governo dos príncipes; Do governo dos Judeus.


São Paulo: Anchieta, 1946.

______. In decem libros Etilicorum Aristotelis ad Nicomachum expositio.


Turim: Marietti, 1964.

______. In libros politicorum expositio. Turim: Marietti, 1951.

______. Suma Teológica. Vol. VI. São Paulo: Loyola, 2005.

VALADIER, Paul. Maritain à contre-temps. Paris: Desclée de Brouwer,


2007.
58 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II
Cap. 3: Novos caminhos para o acesso
à Justiça: reflexões sobre a inclusão da
Defensoria Pública dentre os
legitimados para a ação civil pública

Cleber Alves1 &


Isabela Esteves2

I. Introdução

Um dos fenômenos marcantes dos tempos contemporâneos,


especialmente nas sociedades democráticas que adotam o sistema
capitalista, consiste no protagonismo, cada vez mais destacado, que vem
sendo desempenhado pelas instâncias judiciais. Tal fenômeno vem sendo
objeto de muitos estudos e reflexões, que buscam compreender suas
possíveis causas e efeitos. A complexidade das relações estabelecidas no
âmbito das sociedades de massa, a fragmentação de instituições tradicionais
que filtravam os litígios na esfera dos grupos sociais primários, a elevação
do nível educacional dos indivíduos que desperta sua consciência acerca
dos seus direitos – especialmente os direitos econômico-sociais e políticos,
o avanço da ciência e da tecnologia que descortinam novos cenários de
convivência e, portanto, de conflitos, enfim, uma série de situações –
inclusive a denominada globalização – contribuem sobremaneira para o
aumento da litigiosidade, no anseio de acesso à justiça.
A tutela jurisdicional dos direitos e interesses, nesse contexto,

1 Graduado em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (1990), mestrado em


Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005). Atualmente é defensor público
- Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro e professor adjunto da Universidade
Católica de Petrópolis e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado)
da Universidade Gama Filho.
2 Graduada em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (2009).
60 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

exige ruptura de paradigmas que se faziam adequados no passado, mas que


diante das novas demandas e expectativas devem ser redimensionados.
São necessárias novas formas de tutela de direitos e o emprego de novas
técnicas processuais capazes de atender as necessidades do presente e do
futuro.
Assim, embora ainda seja indispensável o manejo de
mecanismos consagrados na experiência jurídica do Estado liberal para a
tutela dos interesses individuais, revela-se inexorável o aprimoramento e
fortalecimento de novas técnicas e mecanismos destinados à tutela coletiva
dos direitos, de modo a produzir efeitos multiplicadores cujo alcance
exigiria enorme desperdício de energias e recursos sociais escassos e
custosos.
Tendo em conta essas considerações, o presente artigo tem
por objetivo suscitar reflexões sobre recentes alterações havidas no
ordenamento jurídico positivo nacional, com a expressa inclusão da
Defensoria Pública dentre os legitimados para propositura da chamada
Ação Civil Pública, o que se deu, primeiramente, através da Lei 11.448 de
15 de janeiro de 20073, e – mais recentemente – confirmada com a edição
da Lei Complementar 132, de 07 de outubro de 20094.
Verifica-se, com a entrada em vigor destas Leis, a plena integração
no nosso ordenamento de duas das ondas renovatórias, segundo conhecida
expressão de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 31) para que
seja solucionado o problema do acesso à justiça5. Com efeito, ao falarmos

3 Esta Lei aparece em nosso ordenamento jurídico como diploma alterador do


artigo 5º da Lei 7.347/1985 e veio para outorgar, expressamente, legitimidade para a
Defensoria Pública propor a ação civil pública.
4 Trata-se da Lei Complementar que alterou significativamente a Lei Complementar
80/1994, estabelecendo nova estatura jurídica à instituição da Defensoria Pública, em harmonia
com o que defluiu dos preceitos estabelecidos pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
5 Para os autores, os principais obstáculos que devem ser transpostos, são as
Acesso à Justiça 61

sobre legitimidade da Defensoria Pública, fala-se em assistência judiciária,


e falar sobre ação civil pública remete à defesa dos interesses difusos.
Logo, quando o tema abordado gira em torno de Leis que legitimam a
Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública, conjugamos
em um só dispositivo, duas das ondas renovatórias de Cappelletti e Garth.
Pode-se, portanto, utilizar aqui, a expressão de Adriana Silva de Britto,
“o encontro das ondas renovatórias” (2006, p. 02), para demonstrar
o que representam a Lei 11.448/2007 e a Lei Complementar 132/2009
relativamente à legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da
ação civil pública.
Todavia essas mudanças legislativas vêm suscitando acalorados
debates nos meios acadêmicos, judiciais e até legislativo em nosso país.
Inúmeros são os trabalhos escritos por juristas e profissionais do direito
discutindo a compatibilidade dessas alterações legislativas com os preceitos
constitucionais. Essa controvérsia também vem sendo submetida ao crivo
dos órgãos judiciários, seja pelo controle difuso de constitucionalidade, seja
pelo controle concentrado, através da ADI 3943, proposta pela CONAMP
- Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP,
que se encontra em andamento no Supremo Tribunal Federal. Finalmente,
no âmbito do Poder Legislativo, está em discussão um Projeto de Lei
nº 5.139/09 que se propõe a consolidar e sistematizar a normatização da
Ação Civil Pública, sendo certo que – mesmo já tendo sido objeto de duas
precedentes deliberações parlamentares – há propostas no sentido de se
suprimir formalmente a legitimação da Defensoria Pública – assim como

custas judiciais, a possibilidade das partes, os problemas especiais dos interesses difusos
e as barreiras ao acesso. Como solução para tais obstáculos, enumeram “a assistência
judiciária” (primeira onda renovatória), a “representação jurídica para os interesses
difusos” (segunda onda) e a terceira onda, que conjugaria as duas primeiras, indo além
delas, qual seja o “enfoque de acesso à justiça”.
62 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de outros entes públicos e privados – para a propositura de ações coletivas,


em especial no que tange aos casos de defesa de interesses difusos.
Um dos argumentos dos que pugnam pelo retrocesso consiste
no temor de que ampliação dos legitimados à ação civil publica pode
causar “um inchaço de processos nos tribunais e um vazio nos pequenos
escritórios de advocacia, que atendem pessoas físicas”. Há ainda as
críticas que partem, sobretudo, de representantes do Ministério Público,
no sentido de que tal ampliação levaria “à insegurança jurídica, além de
aumentar assustadoramente o número de processos” além da alegação de
que outras entidades “não teriam o comprometimento social e político
do Ministério Público, que é o único órgão que tem como instaurar o
inquérito civil, e apurar os casos com profundidade” 6.
A fragilidade desse tipo de argumentos é evidente. O
fortalecimento dos mecanismos de tutela coletiva obviamente terá
como efeito não a ampliação do número de processos que chegam
aos tribunais, mas sua redução, em virtude do efeito multiplicador
que dispensará o ajuizamento de milhares de ações individuais. Por
outro lado, transparecem, à toda evidência, preocupações de ordem
corporativa e ideológica, seja relativamente à diminuição do número de
causas individuais para os advogados privados ou à quebra de um certo
monopólio detido pelo Ministério Público no manejo das ações coletivas.
Refutando esses argumentos, o representante da AMB, juiz João Ricardo
dos Santos Costa, salienta que a ampliação do rol dos legitimados às ações
coletivas implicará em redução das ações individuais, destacando ainda

6 Esses comentários teriam sido feitos, respectivamente, pelo Desembargador


Aposentado Vladimir de Passos Freitas, e pelo Presidente da CONAMP, José Carlos Cosenzo,
segundo consta do artigo “Projeto sobre Ação Civil Pública provoca racha”, escrito por
Fabiana Schiavon, publicado em 26 de dezembro de 2009 no site “Consultor Jurídico” (www.
conjur.com.br).
Acesso à Justiça 63

que “na democracia, todo monopólio é negativo”7.


Tendo presente a controvérsia acima indicada, procuraremos
demonstrar no presente artigo que as alterações legislativas que
atribuíram legitimidade à Defensoria Pública para ajuizamento de ações
civis públicas estão em perfeita sintonia com os princípios constitucionais
da Carta de 1988. Para tanto, analisaremos, num primeiro momento,
questões conceituais e terminológicas acerca da ação civil pública, sua
evolução histórica no ordenamento jurídico brasileiro, os direitos por ela
tutelados e seus legitimados até o momento da entrada em vigor da Lei
11.448/2007.
Num segundo momento trataremos da Defensoria Pública, e de
seu papel para assegurar o acesso dos necessitados à justiça, na perspectiva
dos preceitos normativos constitucionais e infraconstitucionais e dos
limites que a ela são impostos.
Finalmente, analisaremos a inovação legislativa introduzida
pela Lei 11.448/2007 (que alterou o texto da Lei 7.347/85), ratificada e
consolidada pela Lei Complementar 132/2009 (que alterou o texto da Lei
Complementar 80/1994), pela qual se consagrou definitivamente que na
atribuição da Defensoria Pública para prestar assistência jurídica integral
e gratuita aos necessitados está incluída a prerrogativa de manejo dos
instrumentos destinados à tutela dos direitos individuais e coletivos,
incluída a ação civil pública.

7 Comentários extraídos do mesmo artigo indicado na nota anterior.


64 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

II. Ação Civil Pública como instrumento de tutela coletiva dos direitos
2.1. Questões conceituais e terminológicas

O primeiro ponto a ser abordado neste estudo diz respeito à


Ação Civil Pública, a qual aparece como objeto de reiteradas discussões
acerca de seu real conceito e de sua classificação. Em geral, quando se
fala em ação civil pública, refere-se às ações por danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, ao patrimônio cultural, entre outros, como se vê
do disposto na ementa da Lei 7.347/1985, que introduziu expressamente
no ordenamento jurídico positivo brasileiro essa nova modalidade de ação
judicial. O conceito desenvolvido pela doutrina, porém, não se restringiu
a tal definição.
Rodolfo de Camargo Mancuso (1989. p. 15) transcreveu em
sua obra o conceito formado pelos representantes do Ministério Público,
Antônio Augusto de Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery
Júnior, através do qual, a ação civil pública se define como “o direito
conferido ao Ministério Público de fazer atuar, na esfera civil, a função
jurisdicional”.
Como se vê, este conceito se limita à questão da legitimação
ativa, afirmando que o Ministério Público seria o titular da função, sem,
em qualquer momento, definir o objeto e o fim deste tipo de ação. É,
então, justamente neste ponto que surgem as críticas no sentido de que
houve um grande equívoco terminológico ao qualificar as ações previstas
na Lei 7.347/85 como “ação civil pública”, eis que esta, por se contrapor
à ação penal pública, será pública por ter como legitimado o Ministério
Público e será, penal ou civil, de acordo com a natureza jurídica de seu
objeto.
Assim, pode-se concluir, nas palavras de Pedro Lenza (2005.
Acesso à Justiça 65

p.162), que “a terminologia ‘ação civil pública’ seria inadequada já que


não houve atribuição de legitimidade exclusiva a órgãos públicos”.
Neste passo, Ada Pellegrini Grinover, em citação constante da
referida obra de Pedro Lenza (2005. p.163) afirma que:
o texto legal fala impropriamente em ‘ação
civil pública’. Impropriamente, porque nem a
titularidade da ação é deferida exclusivamente
a órgãos públicos (Ministério Público, União,
Estados e Municípios), nem é objeto do processo
a tutela do interesse público (...) Prefere-se no
trabalho, a denominação ‘ações coletivas’, por
atender à legitimação para a causa (também
atribuída, pela lei, às formações sociais) e
aos bens protegidos (interesses de dimensão
coletiva).

Deste modo, pode-se verificar com clareza que, por mais que a
denominação “ação civil pública” seja compreendida, na prática, como o
meio adequado para a propositura de ações que visem à responsabilização
pelos danos elencados na Lei 7.347/1985, e todos os demais direitos
difusos e coletivos, entenda-se aqui direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos, esta denominação é considerada um grande equívoco,
devendo-se, em seu lugar, ser utilizada a expressão “ações coletivas”
como se vê da seguinte colocação do doutrinador Pedro Lenza, já citado
(2005. p. 163).
Desta feita, propõe-se a utilização da terminologia
ação coletiva como gênero, abrangendo a tutela
dos interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos. No entanto, na medida em que
os interesses difusos e coletivos só podem ser
tutelados coletivamente, poder-se-ia falar em
ação coletiva típica, ou ação coletiva strictu
66 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

sensu. Por outro lado, como a tutela coletiva


dos interesses individuais decorre de construção
legal, artificial (são interesses acidentalmente
coletivos), o uso da terminologia ação coletiva
deve ser tomado em sentido lato.

Analisando sob outro aspecto, e procurando adequar a


denominação “ação civil pública”, José dos Santos Carvalho Filho (2004.
p. 3) procura justificar esta nomenclatura afirmando que é utilizada pelo
fato de que este tipo de ação tem natureza “não-penal, não se voltando,
portanto, a pedidos condenatórios decorrentes da prática de ilícitos
penais.” E, quanto ao fato de ser pública, completa:

Já o adjetivo pública deve ser visto como


antagônico à ação privada, de modo a indicar
que a ação pode ser deflagrada por órgão do
próprio Estado, como é o caso especial do
Ministério Público, na defesa de interesses de
natureza coletiva e com vistas ao bem-estar da
comunidade, ao contrário da ação, de sentido
clássico, só permitida, em regra, ao indivíduo que
fosse realmente o titular do direito a ser tutelado.
Poder-se-á, pois, afirmar que se trata de ação
pública porque não cinge a esfera restrita dos
interesses singulares, consagrada pela doutrina
individualista das ações, mas, ao contrário, visa
a alcançar interesses grupais da sociedade, que,
como se verá adiante, têm contornos e condições
diversos dos interesses individuais.

Enfim, apesar da fragilidade dos argumentos utilizados para


justificar a terminologia empregada para designar essa forma de tutela dos
interesses metaindividuais, revelando-se mais apropriada a denominação
Acesso à Justiça 67

ação coletiva, utilizaremos no presente artigo a terminologia que ficou


consagrada na literatura e na legislação pátria, ou seja, ação civil pública,
a qual, segundo José Marcelo Menezes Vigliar (2001. p. 21), “nada mais é
que o instrumento processual criado pela Lei nº 7.347/85 para se postular
a tutela jurisdicional dos interesses transindividuais.”

2.2. A tutela judicial dos interesses metaindividuais: evolução


legislativa até o advento da Lei 7347/85

Inicialmente, para que se tenha a real compreensão em relação


ao conteúdo da Lei 11.448 de 15 de janeiro de 2007, que introduziu
expressamente a Defensoria Pública dentre os legitimados para propositura
da ação civil pública, parece oportuno discorrer sobre a trajetória histórica
dos mecanismos de tutela judicial dos interesses metaindividuais.
Quanto à sua origem, mesmo antes da edição da Lei 7.347/1985
já havia no ordenamento jurídico, alguns precedentes em defesa dos
interesses coletivos. Seguindo a segunda onda renovatória de Cappelletti,
começaram a surgir algumas previsões legislativas e doutrinárias em
relação à defesa por entidades associativas dos interesses de seus membros,
no sentido da substituição processual tal como ficou consagrado no artigo
6º do atual Código de Processo Civil.
Como exemplo, podemos citar a Lei 4.215 de 27.04.1963
(Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), atualmente revogada pela
lei 8.906 de 04.07.1994, cujo art. 1º, parágrafo único, afirmava que caberia
à Ordem representar em juízo ou fora dele, os interesses gerais da classe
dos advogados; a Lei 1.134 de 14.06.1950, que ainda está em vigor, dispõe
68 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

que é facultada a representação coletiva ou individual de seus associados


pelas respectivas associações de classes, sem nenhum caráter político,
que congreguem funcionários ou empregados de empresas industriais da
União, administradas ou não por ela, dos Estados, dos Municípios e de
entidades autárquicas de modo geral. Todavia, nenhuma dessas previsões
legislativas mostrava-se eficiente.
O único meio que realmente produzia alguns efeitos, para a
tutela dos interesses difusos existente à época era, pois, a ação popular
que, mesmo já existindo desde 1965 através da Lei 4.717/1965, não se
mostrava suficiente para alcançar o pleno acesso à ordem jurídica justa.
Isto porque, a ação popular tinha como foco, apenas, alguns
interesses metaindividuais, como a anulação de atos lesivos ao patrimônio
público, à moralidade administrativa, e ao patrimônio histórico e cultural,
omitindo-se em relação a outros direitos, tais como os interesses dos
consumidores. Além disso, tinha como único legitimado o cidadão8, o
qual, muitas vezes, ficava desencorajado em razão da necessidade de
realizar despesas vinculadas à causa e da força política e econômica de
seus adversários.
Em 1981, através da Lei 6.938, em seu artigo 14, § 1º, um
primeiro passo foi dado para a regulamentação da ação civil pública,
tendo sido atribuída legitimidade ao Ministério Público da União e dos
Estados para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos
causados ao meio ambiente. No mesmo ano, através da Lei Orgânica do
Ministério Público, LC 40/81, em seu art. 3º, III, falou-se especificamente
na propositura da ação civil pública como função institucional do Parquet.
Foi então, seguindo essa linha em busca do acesso à ordem

8 Importante notar que atualmente vem se fortalecendo cada vez mais uma corrente
que propõe a ampliação da legitimidade para propositura da ação civil pública ao cidadão, tal
como já ocorre na ação popular.
Acesso à Justiça 69

jurídica justa, em relação aos direitos difusos, até aquele momento


não efetivamente defendidos e regulamentados, que na década de 80
os professores paulistas Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel
Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior
elaboraram um anteprojeto de lei para a proteção dos interesses difusos,
o qual foi apresentado à Câmara dos Deputados pelo Deputado Federal
Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, sob o nº 3.034 de 19849.
Assim, tomando como base o projeto de lei citado, os Promotores
de Justiça Antônio Augusto de Mello de Camargo Ferraz, Edis Milaré e
Nelson Nery Jr, elaboraram a tese “Ação Civil Pública”, apresentada e
aprovada no XI Seminário Jurídico dos Grupos de Estudos do Ministério
Público de São Paulo. Esta tese tornou-se, então, o projeto de lei nº
4.984/8510, na Câmara dos Deputados e transformou-se na Lei 7.347/1985,
que passou a disciplinar a ação civil pública.
A partir de então, com a entrada em vigor da referida Lei, e
principalmente com o advento da Constituição de 1988, que em seu
artigo 129, III declarou a propositura da ação civil pública como função
institucional do Ministério Público, a ação civil pública passou a ser o
instrumento adequado para a defesa dos interesses transindividuais. De
se notar, todavia que, diferentemente do que foi estabelecido para a ação
penal pública, a Constituição Federal não conferiu ao Ministério Público o
status de privatividade relativamente a tal função institucional, nos termos

9 A íntegra deste projeto pode ser conferida no Anexo A do trabalho de conclusão de


curso de Isabela Rampini Esteves, cujo título é “A Lei 11.448/2007 e a inclusão da Defensoria
Pública entre os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública”, disponível para
consulta na Biblioteca Central da Universidade Católica de Petrópolis.
10 A íntegra deste projeto pode ser conferida no Anexo B do trabalho de conclusão de
curso de Isabela Rampini Esteves, cujo título é “A Lei 11.448/2007 e a inclusão da Defensoria
Pública entre os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública”, disponível para
consulta na Biblioteca Central da Universidade Católica de Petrópolis.
70 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

do § 1º, desse mesmo art. 129. E nem seria razoável que o fizesse, pois não
seria razoável que a nova Carta Constitucional, ostensivamente marcada
pela abertura e ampliação dos espaços de participação democrática e de
efetivação dos direitos humanos, criasse restrição para o acesso à justiça
retrocedendo em conquistas que já haviam sido alcançadas no âmbito
infraconstitucional, como era o caso da Lei 7347/85.
Importante ainda ressaltar, que a Constituição veio também
aumentando a incidência destas ações, uma vez que se refere no artigo 129
supracitado a “outros direitos difusos e coletivos”, redação que à época
da entrada em vigor da Lei 7347/85, comporia seu inciso IV, mas acabou
sendo vetada, dentre outros dispositivos, pelo então Presidente Sarney,
sob o argumento de que a questão dos direitos difusos demandava ainda,
naquela época, maior reflexão e análise cujos pressupostos conceituais
deveriam ser objeto de um processo de elaboração doutrinária, com uma
discussão mais abrangente em todas as esferas da vida social11.
Após a Constituição, como se verá adiante, foram editadas
inúmeras leis disciplinando a tutela dos interesses difusos e coletivos em
áreas específicas do direito.
Já em 1989 foram editadas duas leis tratando sobre o tema, a
primeira foi a Lei 7.853/89 em relação às pessoas portadoras de deficiências
e a outra, Lei 7.913/89, que prevê a ação civil pública de responsabilidade
por danos causados a investidores no mercado de valores imobiliários,
esta considerada o primeiro diploma a tutelar de forma coletiva os direitos
individuais homogêneos.

11 A íntegra das razões de veto pode ser conferida no Anexo C do trabalho de


conclusão de curso de Isabela Rampini Esteves, cujo título é “A Lei 11.448/2007 e a inclusão
da Defensoria Pública entre os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública”,
disponível para consulta na Biblioteca Central da Universidade Católica de Petrópolis
Acesso à Justiça 71

No ano seguinte, através do Estatuto da Criança e do Adolescente


(Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990), a ação civil pública por ofensas a
direitos da criança e do adolescente se tornou viável.
Logo após, com a edição do Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990), diversos dispositivos da
lei da Ação Civil Pública foram alterados. Nos artigos 91 a 100, foi
regulamentada, a ação coletiva.
Em razão da criação de uma nova categoria de interesses tuteláveis
pela via da ação civil pública, os direitos individuais homogêneos,
constantes do artigo 81, parágrafo único, III e da inclusão formal do
inciso IV que havia sido objeto de veto do Presidente José Sarney à época
da entrada em vigor da Lei 7.347/1985, o instituto da ação civil pública
ganhou ainda maior amplitude.
Foram editadas, ainda, a Lei 8.429/1992 (Lei da Improbidade
Administrativa) visando o combate dos atos ilícitos praticados por
funcionários públicos no exercício de suas funções, criando mecanismos
para a repressão a esses atos e a devolução aos cofres públicos das quantias
desviadas de suas finalidades originais, a Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste),
que dispõe sobre a prevenção e a repressão de infrações econômicas e
acrescentou o inciso V ao artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública, e da
Lei 8.974/1995, que estabelece normas de proteção à vida e à saúde do
homem, dos animais, das plantas, bem como do meio ambiente.
Em 2001, entrou em vigor o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001), que em seu artigo 54 (que remete à Lei nº 7.347/1985)
contemplou a defesa coletiva da ordem urbana. Em 2003, através do
Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003), foi criada uma
série de normas protetivas às pessoas maiores de sessenta anos, bem como
foi regulamentado o uso da ação civil pública para a defesa dos interesses
72 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

desses indivíduos.
Finalmente, a Lei Maria da Penha (Lei nº 10.340/2006), que visa
coibir a violência doméstica, também contemplou a tutela coletiva em
seus artigos 26, inciso II e 37.

2.3. Direitos e interesses jurídicos suscetíveis de proteção através


da ação civil pública

A ação civil pública tem sua aplicação, principalmente em relação


à tutela dos bens e interesses constantes do artigo 1º da Lei 7.347/85,
quais sejam o meio ambiente, o consumidor, o patrimônio cultural (bens
e valores artísticos, estéticos, históricos, turísticos, paisagísticos, etc.), a
ordem econômica, a economia popular, a ordem urbanística e qualquer
outro direito difuso, coletivo, ou individual homogêneo.
Importante observar que se aplica também, à defesa coletiva
das pessoas portadoras de deficiência, dos investidores do mercado de
valores mobiliários, das crianças e adolescentes, dos idosos, entre outros,
na forma da legislação abordada acima.
Como é possível perceber, cada bem jurídico tutelado pela
ação civil pública possui natureza diversa entre si, o que, para que fosse
abordado de forma mais profunda cada um deles, seria necessário um
trabalho exclusivamente com esse fim.
Desta maneira, tratando-se o foco do presente estudo, a
questão da legitimidade, acredita-se ser indispensável, apenas, que
seja melhor esclarecida a questão da classificação em direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos, eis que, como se verá mais a frente,
tal classificação, em muito influencia a crítica quanto à legitimidade da
Acesso à Justiça 73

Defensoria Pública.
Para um melhor entendimento, as classificações e os conceitos
em relação aos interesses transindividuais a serem usados aqui serão os
que estão presentes no Código de Defesa do Consumidor. Assim, pode-se
dizer que os direitos transindividuais classificam-se em difusos, coletivos
e individuais homogêneos. Sabendo-se que cada uma dessas classificações
possui suas particularidades, necessário se faz, para um claro entendimento,
explicar detalhadamente suas características e diferenças.
Entende-se por interesse difuso uma espécie do gênero
dos interesses coletivos lato sensu, que ocupa o topo da escala de
indivisibilidade e falta de atributividade a um determinado indivíduo ou
grupo determinado, sendo a mais ampla síntese dos interesses de uma
coletividade, possui como características básicas a indeterminação de
sujeitos, a indivisibilidade do objeto, a intensa conflituosidade, uma
vez que deriva de situações de fato, contingentes e algumas vezes até
ocasionais e a sua duração efêmera. De acordo com o Código de Defesa
do Consumidor, em seu artigo 81, parágrafo único, I, os interesses difusos
são “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Quanto aos interesses coletivos em sentido estrito, são a espécie
de interesse meta-individual referente a um grupo ou coletividade com um
mínimo de organização, sendo que o caráter organizativo é traço básico
distintivo desta espécie de interesse. Como se verifica da leitura do art. 81,
II, da lei 8.078/90, estes interesses são definidos como “os transindividuais
de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica
básica”.
Em relação a esses interesses ensina Kazuo Watanabe (1992.
74 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

p.17), que “com o uso da expressão transindividual de natureza indivisível


se destacou, antes de mais nada, a idéia de interesses individuais da
totalidade dos membros de uma entidade ou de parte deles”.
Os interesses individuais homogêneos, por sua vez, são assim
definidos por Luis Roberto Barroso (2006. p. 218).

Trata-se de interesses referíveis individualmente


aos vários membros da coletividade atingida.
Havendo divisibilidade relativamente ao objeto
de tais interesses, não fica excluída a priori a
eventualidade de desembocar o processo na
vitória de um ou de alguns e, simultaneamente,
na derrota de outro ou de outros.

Importante observar que esses interesses não possuem natureza


eminentemente coletiva, sendo abrangidos pela ação civil pública para
“propiciar uma maior efetividade no acesso à justiça, tendo em vista a
ineficácia dos meios até bem pouco tempo atrás existentes no processo
civil brasileiro” como o afirmado por Tycho Brahe Fernandes e Ângela
Silva Guimarães (2004. p. 05), que mais a frente completam:

podemos dizer que a função teleológica dos


direitos individuais homogêneos é, em si, a mesma
dos direitos difusos e coletivos: propiciar uma
maior efetividade no acesso à justiça, considerando
para tal as dificuldades relacionadas ao valor das
custas judiciais, às possibilidades econômico-
financeira ou às dificuldades de ordem educacional
e cultural das partes e à lentidão dos processos,
ocasionada pelas demandas individualizadas que
sobrecarregam o sistema judiciário e contribuem
Acesso à Justiça 75

para a demora da prestação jurisdicional.

Toda essa informação doutrinária busca qualificar de forma mais


abrangente o instituto que no inciso III do parágrafo único do art. 81 do
CDC, aparece somente como “os decorrentes de origem comum”.
O autor Hugo Nigro Mazzilli em seu artigo “Aspectos Polêmicos
da Ação Civil Pública”, (2005. p. 03) formula um quadro em que é possível
verificar, com facilidade, as diferenças entre os interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos.

Interesses Grupo Objeto Origem

Difusos indeterminável indivisível situação de fato

Coletivos Determinável indivisível relação jurídica

Ind. Homog. Determinável divisível origem comum

Assim, tomando como base as definições e o quadro apresentado


alhures já é possível seguir para outro ponto de fundamental importância
para o tema em questão: Quais eram, até a edição da Lei 11.448/2007, os
legitimados ativamente neste tipo de demanda?

2.4. A legitimação ativa para a ação civil pública antes da lei


11.448/2007

O artigo 5º da Lei 7.347/1985 determina quais são os entes


76 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

que possuem legitimidade ativa para a propositura das ações coletivas.


Anteriormente à vigência da Lei 11.448/2007, eram eles, notadamente,
o Ministério Público, União, Estados-membros, Municípios, Distrito
Federal, autarquias, empresas de economia mista, fundações e as
associações civis. O Código de Defesa do Consumidor, no inciso IV do
art. 82 institui também os órgãos públicos ainda que sem personalidade
jurídica, mas destinados à defesa do respectivo interesse transindividual.
Os artigos 5º, LXX, b e 8º, III, da Constituição Federal indicaram, ainda,
os sindicatos e através do artigo 232 da Constituição foram instituídas
também as comunidades indígenas entre os legitimados.
Como visto, foram legitimadas diversas instituições, públicas
e privadas, adotando-se uma solução pluralista para a questão da
representação dos interesses transindividuais em juízo.
Esta legitimação pluralista foi denominada por Pedro Lenza
(2005. p. 176) como concorrente e disjuntiva, sendo certo que como
afirma o autor:

a legitimidade de um não exclui a do outro,


podendo um co-legitimado agir sozinho, sem
a anuência, intervenção ou autorização dos
demais. Todos concorrem em igualdade para a
propositura da ação e, desde que preenchidos
os requisitos legais, qualquer deles poderá
intentá-la. Não há exclusividade nem atribuição
privativa de legitimidade. Nesse sentido,
eventual litisconsórcio que se forme será sempre
facultativo.
Acesso à Justiça 77

Ainda com relação à legitimidade, surge outra questão como


discussão que versa sobre o fato de se a natureza jurídica desta legitimação
é ordinária ou extraordinária.
Entenda-se legitimação ordinária como aquela em que a ação é
ajuizada pelo titular da pretensão, exatamente porque, como ensina José
dos Santos Carvalho Filho (2004. p.136), “esse é o fundamento do direito
de ação: se eu sou o titular da pretensão, devo ser a parte legítima para
figurar no mecanismo de deflagração da causa”.
Em contraposição a este conceito, a legitimação extraordinária é
justamente aquela em que “a lei, em algumas ocasiões, confere o direito
de ação a quem não é o titular do interesse material afirmado na pretensão,
dando-se, então, o que os doutrinadores denominam de substituição
processual”. (CARVALHO FILHO, 2004. p. 136)
Neste passo, existem autores que afirmam ser a legitimação
para a ação civil pública ordinária, afirmando que os legitimados, ao
proporem as ações estão defendendo interesse próprio. Há ainda, autores
que afirmam ser esta natureza mista, uma vez que os legitimados não só
defendem interesse próprio, mas também defendem interesses individuais
de cada um dos os integrantes do grupo lesado (MAZZILLI, 2005. p.04).
Para Hugo Nigro Mazzilli (2005. p. 04).

trata-se predominantemente de legitimação


extraordinária, por meio de substituição
processual. De um lado, o Direito brasileiro
não exige, para a configuração da substituição
processual, que o substituído seja pessoa
determinada. Basta que alguém, em nome
próprio, defenda interesse alheio, para que
78 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

tenhamos hipótese de legitimação extraordinária,


por substituição processual (CPC, art. 6º). Por
outro lado, ainda que os co-legitimados à ação
civil pública também compartilhem o interesse
pela reintegração do direito violado, na verdade
estão pedindo muito mais que direito próprio:
estão pedindo a reintegração do direito lesado
em proveito de todo o grupo lesado, tanto que,
em caso de procedência, a imutabilidade da
coisa julgada ultrapassará as partes(LACP, art.
16; CDC, art. 103).

Classifica-se, portanto no presente trabalho a legitimação para


a ação civil pública como sendo legitimação extraordinária, concorrente
e disjuntiva. Entretanto, parece oportuno consignar que todas essas
classificações doutrinárias relativas à legitimação consistem em meros
modelos teóricos que não podem ser admitidos de modo inflexível e
ortodoxo, sob pena de comprometer o sentido finalístico e prático que
deve ser buscado na perspectiva da ampliação do acesso à justiça. Por esse
motivo, às vezes pode ser necessário romper com modelos tradicionais
utilizados para classificar a legitimação processual, hipótese que não pode
ser desconsiderada no desenvolvimento dos argumentos aqui expendidos.

III. A Defensoria Pública e o acesso dos necessitados à Justiça

Já tendo abordado, então, a questão da ação civil pública, para


que se possa chegar à questão final estudada neste trabalho, é indispensável
falar sobre a Defensoria Pública. Afinal, é justamente esta a Instituição
Acesso à Justiça 79

que passou a fazer parte do rol de legitimados para a propositura de tal


ação, e é em torno dela que gira toda a questão.
Instituída oficialmente, apenas com o advento da Constituição de
1988, a Defensoria Pública foi declarada como função essencial à justiça,
aparecendo no artigo 134 da Carta Constitucional, como “instituição
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação
jurídica e a defesa, em todos os graus dos necessitados na forma do art.
5º, LXXIV”.
Antes disso, porém, já havia sinais no ordenamento jurídico
pátrio que objetivavam a assistência jurídica gratuita. Como exemplo, em
1930, com a criação da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil – o Brasil
passou a aderir o sistema de imposição aos advogados do patrocínio das
causas dos pobres. O artigo 26 do seu antigo regulamento dispunha que
era dever de cada advogado “aceitar e exercer, com desvelo, os encargos
cometidos pela Ordem, pela Assistência Judiciária ou pelos Juízes
competentes”.
Mais tarde, com a Carta Política de 1934, foi reconhecido como
princípio constitucional, a assistência judiciária ao cidadão juridicamente
necessitado, e mesmo tendo a Constituição de 1937, nada declarado a
respeito, na Constituição de 1946, 1967 e na atual Constituição de 1988,
a assistência judiciária foi novamente consagrada.12
Voltando à definição dada à Defensoria Pública pela Constituição
de 1988, pode-se dizer que a Defensoria é função estatal, oficial, essencial
à justiça que tem como dever orientar e defender juridicamente os
economicamente necessitados que comprovarem insuficiência de recursos.

12 Para um melhor esclarecimento sobre a evolução da assistência judiciária no Brasil,


ver o livro de Cleber Francisco Alves, “Justiça para todos! A assistência jurídica gratuita
nos Estados Unidos, na França e no Brasil”, publicado pela Editora Lumen Juris, do Rio de
Janeiro, em 2006.
80 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Essa essencialidade atribuída pela Constituição à Defensoria Pública,


como afirma Carlos Eduardo Roboredo (1992, p.115), se justificaria no
fato de representar o elo entre a sociedade e o Estado, sem qualquer
compromisso com o interesse estatal, “(...) sendo certo que a assistência
jurídica por ela ministrada serve de instrumento na defesa de um regime
socialmente mais justo”.
Assim, tendo em conta a clara noção de que a Defensoria tem como
função a neutralização dos abusos e arbitrariedades que surgem entre as
diversas pessoas, que se passa agora a avaliar a sua função, constitucional
e infra-constitucional. Procurar-se-á refletir, principalmente, sobre o que
significa a palavra “necessitados” constante do art. 134 da Constituição
Federal.

3.1. Funções Institucionais da Defensoria Pública: perspectiva


constitucional e infraconstitucional

Para se identificar a missão própria e o perfil constitucional da


Defensoria Pública, toma-se como base o conceito abordado acima, de
que é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-
lhe a assistência jurídica integral, que abrange orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos interesses juridicamente relevantes dos
necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV. Como se vê, na segunda parte
do art. 134, a Constituição atribuiu à Defensoria, a função de orientar
juridicamente e defender os necessitados que comprovarem insuficiência
de recursos.
Em âmbito infra-constitucional, a Lei Complementar nº 80
de 1994, com a nova redação atribuída pela Lei Complementar nº 132,
de 2009, em seu artigo 1º estabelece expressamente que a Defensoria
Acesso à Justiça 81

Pública é instituição permanente encarregada de promover “... a defesa


(...) dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados”. No que se refere às funções institucionais, a nova redação
do art. 4º, totalmente reformulada de acordo com a Lei Complementar
132/2009, passa a consignar expressamente nos incisos VII, VIII e X,
a legitimidade da Defensoria Pública para “promover ação civil pública
e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos
direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, quando o resultado
da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes”.
Parece oportuno, igualmente, uma breve análise de Constituições
e Leis Complementares Estaduais, que tratam de maneira mais profunda
sobre as funções institucionais da Defensoria, reservando parágrafos ou,
em outros casos, artigos dispondo sobre a matéria. Optamos por focar o
Estado do Rio de Janeiro, cuja Defensoria Pública é reconhecidamente
uma das mais bem estruturadas do país, e o Estado de São Paulo, que
possui a legislação mais recente, visto que somente foi implantada em
2006.
A Constituição Estadual do Rio de Janeiro, na Seção III,
que trata da Advocacia e da Defensoria Pública, traz em seu art. 179,
um conceito de Defensoria como sendo “instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento
do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica integral
e gratuita, a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias, judicial
e extrajudicialmente, dos direitos e interesses individuais e coletivos dos
necessitados na forma da lei”. De imediato, verifica-se que esse texto
teve grande influência na nova redação do Art. 1º da Lei Complementar
Federal 80/1994, conferida pela Lei Complementar 132/2009.
Como se pode observar, a Constituição Estadual do Rio
82 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de Janeiro, de forma pioneira, interpretando o conceito do art. 134 da


Constituição da República, incluiu como defesa dos necessitados a defesa
dos interesses coletivos. E, no parágrafo 3º do artigo 179, ao exemplificar
as funções institucionais da Defensoria Pública, apresenta, além das
citadas na Lei Complementar 80 de 1994 no inciso V, ‘e’, o patrocínio
da “ação civil pública em favor das associações necessitadas que incluam
entre as suas finalidades estatutárias a proteção ao meio ambiente e a de
outros interesses difusos e coletivos”13.
No Estado de São Paulo, a Lei Complementar nº 988 de 2006
que regulamenta a Defensoria Pública, estabelece também a legitimidade
da Defensoria para a ação civil pública e em seu art. 5 ºdispõe da seguinte
forma:
Artigo 5º - São atribuições institucionais
da Defensoria Pública do Estado, dentre outras:
( . . . )
III - representar em juízo os necessitados,
na tutela de seus interesses individuais ou
coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante
os órgãos jurisdicionais do Estado e em todas
as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores;
(...)
VI - promover:
(...)

13 Observe-se que este dispositivo da Constituição do Estado do Rio de Janeiro foi


objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 558-8/600, de 1991, no STF. Embora
ainda esteja pendente de julgamento a ação principal, em sede de Medida Cautelar a
questão foi apreciada pelo STF que proferiu decisão julgando parcialmente procedente,
até que seja decidido o mérito, apenas para reduzir a aplicação do dispositivo em relação
aos direitos coletivos, exigindo neste caso a observância do requisito da necessidade dos
titulares do direito ou interesse coletivo ou individual patrocinado.
Acesso à Justiça 83

c) a tutela individual e coletiva dos interesses


e direitos da criança e do adolescente, do
idoso, das pessoas com necessidades especiais
e das minorias submetidas a tratamento
discriminatório;
d) a tutela individual e coletiva dos interesses e
direitos do consumidor necessitado;
e) a tutela do meio ambiente, no âmbito de suas
finalidades institucionais;
g) ação civil pública para tutela de interesse
difuso, coletivo ou individual homogêneo.

No que se refere às funções institucionais da Defensoria Pública,
especialmente no âmbito da tutela judicial dos interesses coletivos, subsiste
no direito brasileiro uma séria polêmica acerca de uma suposta invasão das
atribuições que seriam próprias do Ministério Público. Tal polêmica aparece
de modo explícito em inúmeros casos submetidos à jurisdição constitucional
concentrada, perante o Supremo Tribunal Federal, desde os primeiros anos
de vigência da atual Constituição. Por trás de argumentos apresentados sob
a perspectiva técnico-jurídica, há, no fundo, uma questão corporativa, de
disputa de espaço que em nada contribui para a ampliação do acesso à justiça
no Brasil. É preciso ter presente que os contornos das instituições públicas,
especialmente daquelas consideradas “essenciais à função jurisdicional
do Estado”, definidos pela Constituição consistem em decisões de ordem
eminentemente política. E à luz da evolução do direito constitucional,
especialmente no campo da hermenêutica e interpretação dos preceitos da
Carta Magna, podemos perceber que o próprio texto literal dos dispositivos
constitucionais comporta mutações que devem acompanhar as mudanças da
vida cotidiana e responder às demandas e expectativas que se apresentam
na realidade social. Assim, mesmo o sentido literal de certos dispositivos
constitucionais muitas vezes precisa estar aberto a novas interpretações,
84 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

que sejam capazes de ampliar sua eficácia social, de modo a permitir o


pleno alcance dos fins almejados pela ordem constitucional. A configuração
institucional das funções essenciais à Justiça, prevista na Constituição, e
seu perfil institucional próprio, precisam ser compreendidos e interpretados
tendo como referência esses postulados.
Destarte, parece-nos que a adequada compreensão do perfil
institucional da Defensoria Pública não é compatível com uma interpretação
restritiva, de cunho estritamente literal, focada apenas numa perspectiva de
superação das limitações de ordem econômico-financeiras que representam
uma das barreiras para o acesso à justiça. Nesta linha de pensamento, procurar-
se-á, agora, definir qual o real conceito de “necessitados” que é a expressão
utilizada pelo texto constitucional para delimitação dos destinatários da
atuação institucional da Defensoria Pública.

3.2. Necessitados ou hipossuficientes: os destinatários dos serviços

prestados pela Defensoria Pública

A Constituição de 1988 refere-se aos necessitados na forma do


art. 5º, LXXIV, que por sua vez, dispõe que “o Estado prestará assistência
jurídica integral aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
A partir desses dispositivos, seria possível afirmar que
necessitados são aqueles que não possuem recursos (econômico-
financeiros) suficientes para ingressar em juízo, ou tomar assistência
jurídica, sem prejuízo do seu próprio sustento ou de sua família.
Hoje, porém, verifica-se uma ampliação no conceito de
necessitados. A Defensora Pública Adriana Britto em seu artigo “A
Evolução da Defensoria Pública em Direção à Tutela Coletiva”, (2008, p.
Acesso à Justiça 85

17) tratando a este respeito, assim dispõe:

De acordo com José Augusto Garcia de Souza,


o dispositivo constitucional em comento, que
fala em ‘necessitados’, constitui ‘uma cláusula
constitucional dotada de razoável largueza e
indeterminação, tanto que já está consagrada a
tese de que a carência jurídica não se confunde
com a carência econômica’. Isso porque a conexão
com a situação econômica do assistido seria
relativa em razão do ‘sem prejuízo próprio ou de
sua família’, sobre o que deveria ser construído
o conceito de necessitado juridicamente, que não
guardaria correspondência rígida com o conceito
de necessitado economicamente, mas deveria ser
definido sob o aspecto axiológico, lastreado no
parâmetro da relevância social.

A relativização de tal conceito não deve acontecer somente em


relação ao fato de que além dos miseráveis, outros também poderão ser
beneficiados com a gratuidade de justiça e com o serviços da Defensoria
Pública. Ada Pellegrini Grinover (1990, p. 247), há dezoito anos atrás, já
falava desta relativização, mesmo em outros aspectos, como se verifica do
trecho abaixo:

Imensa é, pois, a tarefa do Estado na obrigação


de possibilitar, a todos, igual acesso à justiça.
E nessa visão parece necessário rever o
antigo conceito de assistência judiciária aos
necessitados, porque, de um lado, assistência
judiciária não significa apenas assistência
processual, e porque de outro lado, necessitados
não são apenas os economicamente pobres, mas
todos aqueles que necessitam de tutela jurídica: o
86 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

réu revel no processo crime, o pequeno litigante


nos novos conflitos que surgem numa sociedade
de massa, e outros mais que podem emergir em
nossas rápidas transformações sociais”.

Seria, pois, através desta relativização do conceito de


necessitados, que se poderia afirmar que os reais necessitados são aqueles
que possuem algum tipo de carência, seja ela qual for, para que, ao final
lhe seja garantido direitos fundamentais, como o contraditório, a ampla
defesa e o acesso à justiça.
Se no campo da defesa dos direitos individuais tradicionais a
questão da definição do universo dos destinatários do serviço da Defensoria
Pública, que possam ser qualificados como “necessitados” já apresenta
uma grande dificuldade, essa questão é ainda mais polêmica no campo da
defesa dos direitos coletivos e difusos. Com efeito, parece inequívoco que
a aplicação do termo “insuficiência de recursos”, principalmente porque a
defesa dos direitos transindividuais não se assemelha no seu todo à defesa
de interesses individuais.
Ainda que determinada pessoa, sem qualquer envolvimento com
associações ou com os entes públicos e com recursos suficientes para o
ingresso em juízo, considere que sua coletividade vem sendo prejudicada,
ela não possuirá recursos jurídicos para promover a ação.
Alexandre Freitas Câmara (2008, P. 48), asseverando a questão
de que para alcançar efetivo acesso à justiça nas relações de interesses
transindividuais não é possível se aplicar as regras restritas do direito
individual, disserta da seguinte maneira:

Ora, este pleno acesso à tutela jurisdicional


efetiva não existirá se o sistema processual ficar
Acesso à Justiça 87

limitado às técnicas de proteção dos interesses


individuais, razão pela qual, há já muito tempo
são construídos instrumentos de proteção dos
interesses que, em sentido amplo, podem ser
chamados de coletivos. Daí porque, na clássica
formulação de Cappelletti, uma das ondas
reformadoras do direito processual é a da tutela
dos interesses transindividuais.

O que se deve principalmente observar, então, é a questão do


efetivo acesso à justiça, resguardado pela Carta Constitucional e que deve
ser, sem qualquer dúvida, o maior foco da discussão, como demonstra a
seguinte citação de Adriana Britto (2008, p. 19)

Dessa forma, verifica-se que, dentro do conceito


de assistência jurídica integral, torna-se
imperioso o desenvolvimento da tutela coletiva
como forma de possibilitar o efetivo acesso à
justiça, a qual deve ser manejada pela Defensoria
Pública.

Os recentes trabalhos que tratam a este respeito já demonstram


largamente o fato de que, em se tratando de ação civil pública, não é
possível considerar somente o aspecto financeiro para auferir quem são
os necessitados. É necessário, também, garantir o pleno acesso à justiça
àqueles que, mesmo não sendo hipossuficientes econômicos, sejam
hipossuficientes jurídicos ou também os necessitados do ponto de vista
organizacional, segundo expressão que vem sendo correntemente utilizada
88 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

nos dias atuais.

IV. A Lei 11.448/2007 e o novo rol de legitimados para a ação civil


pública

No dia 15 de janeiro de 2007, entrou em vigor a Lei 11.448/2007


alterando, tão somente, o rol dos legitimados previsto no artigo 5º da Lei
7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública). No artigo primeiro, inciso II da
nova Lei foi expressamente outorgado à Defensoria Pública, legitimidade
para a propositura das ações civis públicas sem que fosse apresentada
qualquer limitação.
Essa importante inovação legislativa expressa foi objeto de nova
deliberação pelo Congresso Nacional que a ratificou ao aprovar o projeto
de lei de autoria do Poder Executivo,c que veio a ser sancionado pelo
Presidente da República em 07 de outubro de 2009, tornando-se a Lei
Complementar nº 132, que deu nova redação a inúmeros dispositivos da
lei orgânica da Defensoria Pública (LC 80/1994).
Embora alguns autores afirmem que a legitimidade da Defensoria
Pública para a propositura das ações civis públicas já existisse muito antes
da edição da Lei 11.448 de 15 de janeiro de 2007, como sé verá mais
adiante, esta nova lei tem uma importância marcante visto que conferiu
formalmente este direito/dever a tal Instituição.
Fala-se em direito porque finalmente é garantido em Lei a plena
possibilidade de a Defensoria Pública ingressar em juízo objetivando a
tutela dos direitos difusos e coletivos dos juridicamente necessitados, sem
que seja necessária qualquer discussão a respeito de sua legitimidade. E
em dever, uma vez que a legitimação não é apenas para declarar que pode
defender, mas também que deve fazê-lo, para que assim possa cumprir
Acesso à Justiça 89

integralmente a sua função constitucional, qual seja, “a assistência jurídica


integral e gratuita”, nos termos do artigo 5º, LXXIV da Constituição
Federal.
Historicamente, como dito, mesmo antes da entrada em vigor da
Lei 11.448/2007, a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura
das ações civis públicas já era amplamente discutida, sendo possível se
verificar muitas dessas ações em que a Defensoria aparecia como autora.
É certo, porém, que em todas elas, a legitimidade ativa era objeto de larga
discussão. Tal é o que nos informam as Defensoras Públicas Adriana
Burger e Christine Balbinot (2008, p. 36/37):

Não que a Defensoria Pública, antes da publicação


da Lei 11.448, já não estivesse atuando de forma
significativa na esfera coletiva. Ao contrário,
inúmeras Defensorias Públicas Estaduais do
País já se destacavam na matéria, muitas delas
tendo, inclusive, um Núcleo de Defesa do
Consumidor especializado no ajuizamento de
ações em defesa dos direitos transindividuais,
tais como as Defensorias Públicas dos Estados
do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Distrito
Federal. Nessas demandas, a legitimidade da
Defensoria Pública sempre foi tema de debate,
tendo o judiciário reconhecido, inúmeras vezes,
a legitimidade da Instituição para o ajuizamento
das demandas, de forma que mencionada lei
positivou uma tendência jurisprudencial que se
sedimentava em nosso país.
90 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Essa legitimidade anterior à norma de 2007 encontrava


fundamento na Lei 8.078 de 1990. O Código de Defesa do Consumidor, em
seu artigo 82, III, determina como legitimados concorrentemente, além de
outros, “as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta,
ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa
dos interesses e dos direitos protegidos por este Código”.
Foi, pois, com base neste dispositivo, que a Defensoria Pública
começou a lutar em defesa dos direitos transindividuais, adotando a
interpretação de que tal norma teria aplicação não restrita ao âmbito da
proteção do consumidor. Assim, analisando este dispositivo do CDC
Adriana Silva de Britto (2006 p. 62) explicitou o seguinte entendimento.

A partir deste dispositivo, que devido à sua


interação com a Lei da Ação Civil Pública é
aplicável ao microssistema das ações coletivas,
poder-se-ia admitir a possibilidade de um
órgão administrativo despersonalizado de ter
legitimidade para propor ação civil pública a
respeito de qualquer assunto (...)

Deste modo, não seria possível restringir esta atuação somente


ao campo do Direito do Consumidor.
Neste passo, entendendo-se como legitimada ativamente para a
propositura da ação civil pública, mesmo antes da positivação ocorrida
através da Lei 11.448 de 2007, a Defensoria Pública veio demonstrando
claramente que sua missão não se restringe à tutela dos interesses
individuais e passou a lutar pelo reconhecimento dessa legitimidade e dos
Acesso à Justiça 91

direitos de seus assistidos.


Como demonstração deste intuito, pode-se falar em diversas
medidas tomadas pela Instituição. A criação do Núcleo de Defesa do
Consumidor (NUDECON), pela Defensoria Pública do Estado do Rio
de Janeiro, para atender os hipossuficientes não somente em relação à
tutela individual, mas também à coletiva, em casos relativos ao Direito do
Consumidor, é uma delas.
Outra situação que demonstra tal fato, é que, como visto no tópico
3.1 supra, nas Leis Orgânicas de algumas Defensorias Públicas estaduais,
já se falava na ação civil pública como função institucional daquele órgão.
Inclusive, como já visto, o dispositivo da Constituição do Estado do Rio
de Janeiro que legitima a Defensoria para a propositura da ação civil
pública, art. 179, § 3º foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 558-8/600, de 1991, no STF, a qual, foi parcialmente concedida, porém,
somente para reduzir a sua aplicação em relação aos direitos coletivos,
no sentido de exigir a demonstração do requisito de necessidade do
interessado, tendo sido afastada qualquer hipótese de limitação em relação
aos direitos difusos.
Com base nessa norma da Constituição do Estado do Rio de
Janeiro (art. 179) e em decorrência da legitimidade atribuída às associações
no art. 5º da Lei da Ação Civil Pública e no art. 82, IV, do Código de
Defesa do Consumidor, a Defensoria passou, então, a realizar importante
papel representando e orientando juridicamente as associações. Através
do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH), que tem como foco de atuação a
tutela coletiva, passou a trabalhar com a sociedade civil, orientando as
comunidades a se organizarem em associações.
Como exemplo desta atuação, Adriana Silva de Britto (2006, p.
92 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

110) cita a ação civil pública que foi ajuizada em 11.11.2005 em nome
da Associação das Vítimas de Derramamento de Óleo da Ferrovia Centro
Atlântica S/A. destinada à reparação dos danos decorrentes do vazamento
de óleo na comunidade de Porto das Caxias, em que foi requerida, em
antecipação de tutela, a remoção total do óleo no local, e, como pedido
principal, o custeio do tratamento de desintoxicação, além da condenação
em danos materiais e morais causados.
Buscando a defesa dos direitos do consumidor, através do
NUDECON, e baseando-se no dispositivo do CDC, a Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro, como ente público autônomo sem
personalidade jurídica, propôs diversas ações civis públicas e em muitas
delas obteve resultado positivo, como se verifica dos seguintes acórdãos:

Direito Constitucional. Ação Civil Pública. Tutela


de interesses consumeiristas. Legitimidade ad
causum do Núcleo de Defesa do Consumidor –
Defensoria Pública para a propositura da ação.
A Legitimidade da defensoria Pública, com
órgão público, para a defesa dos direitos dos
hipossuficientes é atribuição legal, tendo o
Código de Defesa do Consumidor, no seu
artigo 82, III, ampliando o rol de legitimados
para a propositura da ação civil pública àqueles
especificamente destinados à defesa dos
interesses e dos direitos protegidos pelo Código.
Constituiria intolerável discriminação negar
a legitimidade ativa de órgão estatal – como a
Defensoria Pública – as ações coletivas, se tal
Acesso à Justiça 93

legitimidade é tranqüilamente reconhecida a


órgãos executivos e legislativos (como entidades
do Poder Legislativo de defesa do consumidor).
Provimento do Recurso para reconhecer a
legitimidade ativa ad causum da apelante.
(Apelação Cível nº2003.001.04832, Sexta
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do estado
do Rio de Janeiro, Relator:Nagib Slaib Filho.
Julgado em 03/06/2003)

EMENTA:  PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL


PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS
CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA
DA DEFENSORIA PÚBLICA. 1. A Defensoria
Pública tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da
Lei 8.078/90 (Cód. de Defesa do Consumidor), para
propor ação coletiva visando à defesa dos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos dos
consumidores necessitados. A disposição legal
não exige que o órgão da Administração Pública
tenha atribuição exclusiva para promover a defesa
do consumidor, mas específica, e o art. 4.°, XI, da
LC 80/94, bem como o art. 3.°, parágrafo único,
da LC 11.795/02-RS, estabelecem como dever
institucional da Defensoria Pública a defesa
dos consumidores. 2. APELAÇÃO PROVIDA.
(Apelação Cível Nº 70014404784, Quarta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken
94 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de Assis, Julgado em 12/04/2006)

Como se pôde observar, ainda antes da entrada em vigor da Lei


11.448/2007, a Defensoria Pública já vinha atuando de forma sutil no
campo dos direitos coletivos. Essa atuação, com a entrada em vigor da
referida Lei, devidamente consolidada com as mais recentes alterações
no bojo da lei orgânica nacional (ou seja, a LC 80/1994, alterada pela LC
132/2009) passará a ser muito mais intensa e certamente, em um futuro
bem próximo a tendência da relação da Defensoria Pública com as ações
de defesa dos interesses coletivos é de se tornar ainda maior.
Resta claro, desta maneira, que a inclusão da Defensoria Pública
pela Lei 11.448/2007, efetivamente foi o que Alexandre Freitas Câmara
denominou de “um possível primeiro pequeno passo em direção a uma
grande reforma” (2008, p. 45). Reforma, essa que se mostra essencial para
o processo coletivo brasileiro, sendo certo que cada vez mais questões
relativas à direitos transindividuais surgem em nosso país e que somente
sendo plenamente garantido tais direitos, alcançaremos a segunda onda
renovatória de Cappellletti e Garth (1988. p. 49) em busca do efetivo
acesso à justiça.

V. Conclusão

Após a avaliação de pontos relevantes à questão da legitimidade


da Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública, a partir
da compreensão do que é a ação civil pública, a que ela se destina, quem
são seus legitimados, passando pela análise da instituição Defensoria
Pública, e finalmente, analisando a Lei 11.448 de 2007 e seus pontos
controvertidos, pode-se afirmar que a Defensoria Pública está plenamente
Acesso à Justiça 95

legitimada para a propositura de tal ação.


São muitos os entendimentos de que, por ter como função
constitucional a assistência jurídica aos necessitados que comprovarem
insuficiência de recursos, deve, a própria Defensoria Pública, avaliar as
condições financeiras daqueles que são interessados na ação.
E, para muitos, principalmente nos casos em que se pleiteiam
direitos homogêneos, deve verificar se efetivamente são hipossuficientes
econômicos os sujeitos do direito, ou se ao menos a maioria deles se
enquadram entre os que comprovam insuficiência de recursos.
Além disso, há uma corrente que sustenta que não seria possível
também, a propositura pela Defensoria Pública de ação civil pública
objetivando a tutela de interesses difusos, pelo fato de não ser possível a
identificação de seus interessados.
O fato, todavia, é que embora a Lei 11.4448/2007 em nada
restringiu a atuação da Defensoria Pública, na propositura da Ação Civil
Pública, os dispositivos da Lei Complementar nº 132/2009 estabelecem
como condição de atuação da Defensoria Pública para a promoção de ação
civil publica a circunstância de que o resultado da demanda potencialmente
venha a beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes. Não se delimitou
porém esse conceito de hipossuficiência à escassez de recursos econômico-
financeiros. Isto quer dizer, portanto, que a Instituição não poderá negar
assistência judiciária àqueles que mesmo com recursos econômicos
suficientes não estão tendo seu direito garantido e não possuem meios
para propor uma ação civil pública, até porque, para a propositura de uma
ação desta natureza não basta que as partes sejam titulares do direito,
96 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

sejam capazes e estejam bem representadas.


Aqui, a legitimidade, condição da ação, não é somente em
relação à titularidade do direito, mas necessariamente se vincula ao rol
apresentado no art. 5º da Lei 7.347/1985 e assim, o critério base não se
refere à hipossuficiência de recursos, mas sim a hipossuficiência jurídica,
que foi devidamente discutida neste artigo14.
Como afirma Felipe Caldas (2007. p. 20):

(...) para que se amplie o acesso da população


carente à justiça, na já mencionada concepção
de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, é imperioso
que se reconheça a ampla legitimação da
Instituição para a propositura de ações coletivas
em prol dos necessitados.

Muitas vezes, por mais que existam recursos financeiros, o


grupo de pessoas envolvidas na questão não se vincula a uma associação
na maneira exigida pela Lei da Ação Civil Pública.
Não há na Lei 7.347/1985 a possibilidade de que o grupo lesado
ingresse através da ação civil pública representado por advogado, pagando

14 Cabe destacar que essa linha de interpretação já estava implícita na decisão do STF
em que foi discutida a constitucionalidade de dispositivos da Carta Constitucional do Estado
do Rio de Janeiro. No voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, na ADI 558-8/600,
de 1991, acompanhado pelos demais membros do colegiado, foi consignado que a assistência
jurídica aos necessitados consiste em “atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública”
que não exclui a possibilidade “de outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse
social que justifique esse subsídio estatal”. Mais adiante, no bojo do mesmo voto, fica patente
que a preocupação a ser levada em conta diz respeito apenas a se evitar que a atuação da
Defensoria Pública acarrete violação à isonomia das partes no processo. Isto quer dizer que
não é necessariamente o aspecto econômico que deve ser levado em conta, pois a denegação
de justiça por insuficiência organizacional também representaria violação do principio da
isonomia jurídica.
Acesso à Justiça 97

honorários, e nem ao menos a Lei afirma que somente serão beneficiados


dos efeitos da ACP os que comprovarem insuficiência de recursos.
Desta maneira, fica demonstrado que este critério implicaria em
restrição de diretos. A limitação à Defensoria Pública para a propositura
da Ação Civil Pública, tendo em vista o critério econômico, pode até, em
um primeiro momento ser observada, porém somente se os interesses do
grupo puderem ser postulados através de algum dos legitimados constantes
do inciso V do art. 5º da Lei 7.347/1985.
O que a Ação Civil Pública busca é o pleno acesso à justiça
e o maior alcance possível das decisões relativas a um mesmo direito,
com o estabelecimento de limitações à atuação da Defensoria Pública
à propositura desta ação, certamente o pleno acesso à justiça não será
alcançado.

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Cap. 4: Notas sobre a questão da verdade no
Direito Processual

Flávio Mirza Maduro1

1) Introdução

Os estudos acerca da questão da verdade, ou de sua busca, no


Direito Processual (penal, civil, trabalhista etc), comportam uma séria de
variáveis de impossível cobertura nos limites exíguos deste trabalho.
A intenção é, tão somente, fomentar o debate acerca desse
importante aspecto que, não raro, é tratado sem maior rigor.

2) Considerações teóricas

Tão conhecido quanto vetusto, o antagonismo entre a verdade


real (ou material) e a dita verdade formal, embora desprezado pela melhor
doutrina2, parece ainda encontrar eco3.

1 Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1999),


mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2002), doutorado em Direito pela
Universidade Gama Filho (2007). Atualmente é professor adjunto da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, professor adjunto do Centro Universitário da Cidade, professor adjunto
permanente da Universidade Católica de Petrópolis, advogado da Wilson Mirza e Advogados
e professor adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.
2 Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente
obtidas. In: ____. Temas de Direito Processual. 6. série. São Paulo: Saraiva, 1997. p.118,
onde se lê: “Dizer que o processo penal persegue a chamada ‘verdade real’, ao passo que
o processo civil se satisfaz com a denominada ‘verdade formal’, é repetir qual papagaio
tolices mil vezes desmentidas.” No mesmo sentido, consulte-se GRINOVER, Ada Pellegrini.
A Marcha do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 83.
3 Tourinho Filho, após mencionar objeções à verdade real, conclui assim seu
pensamento: “Por isso, pode-se afirmar que, embora o princípio da verdade real não vigore
em toda sua pureza no Processo Penal, aqui ela é mais intensa que no cível.” TOURINHO
102 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Tal concepção deriva, indiscutivelmente, de premissas equivocadas


acerca do fenômeno processual. Uma das mais equivocadas é a que vincula
o processo civil a litígios de natureza privada e o processo penal aos de
pública4. Assim, o primeiro contentar-se-ia com uma verdade formal, ao
passo que o segundo exigiria uma verdade real.
Tal assertiva é falsa.
Não podem existir duas verdades. Se possível alcançar uma,
haverá de ser a única (sem adjetivações), sob pena de o processo refletir uma
mentira.
Igualmente, é incorreto afirmar que o processo civil trata tão
somente de questões privadas, patrimoniais. Basta lembrar, p. ex., das relações
tributárias, entre Fisco e contribuinte, quando se discute o pagamento de um
tributo qualquer. Ou, ainda, das relações de filiação, reguladas pelo Direito
de Família. Quanto as primeiras, são, notoriamente, de natureza pública, já
as questões familiares, por seu turno, não se resumem, nem se resolvem, em
aspectos patrimoniais.

FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2000. v. I, p. 42. Na doutrina
estrangeira, Eugênio Florian também distingue a verdade material da formal, in verbis: “En
este lugar podemos aludir al hecho de que la investigación de la verdad que tiene lugar en el
proceso penal es distinta de la que se lleva a cabo en el civil.” E termina por concluir, inclusive
fazendo menção a julgado da Suprema Corte italiana, que: “En el sistema de nuestro derecho
procesal penal rige el principio de la verdad efectiva o material.” FLORIAN, Eugênio.
Elementos de Derecho procesal penal. Tradução de L.Prieto Castro, Barcelona: BOSCH-
casa editorial, s/d. p. 59-60. Vale mencionar a posição, no mesmo sentido, de Jorge A. Clariá
Olmedo, embora referindo-se à verdade material como principio de investigación integral.
Cf. OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni
Editores, s/d, t. I, p.236-240.
4 Essa é a lição de Pasquale Gianniti: “ Il giudice, sia civile che penale, per accertare
una situazione giuridica, deve risolvere un conflitto di interessi. Tuttavia, tale conflitto, in
materia civile, è una ‘lite’, cioè una controversia tra interessi privati, che, nella maggior parte
dei casi, concerne il patrimonio e comporta una sanzione meramente risarcitoria del danno
cagionato; mentre, in materia criminale, il conflitto stesso, da un lato, concerne l’interesse
pubblico all’accertamento del reato e allá punizione del colpevole, e [...]” Cf. GIANNITI,
Pasquale. Processo civile e penale a confronto. Padova: Cedam, 2003, p. 5.
Notas sobre a questão da verdade 103

Ocorre que, no processo civil, tratando-se de direitos


transacionáveis, o juiz pode contentar-se com presunções, ficções etc. Já
no processo penal, para que se possa condenar o réu, é necessário que se
demonstre ter o mesmo cometido um fato típico, antijurídico e culpável5. A
dúvida impõe a absolvição em virtude do in dubio pro reo.
A rigor, é pressuposto de uma decisão acertada o maior e, por que
não dizer, o melhor, conhecimento dos fatos relevantes para o julgamento.6
Contudo, como mencionado alhures, e não obstante o desacerto, é
possível encontrar manifestações doutrinárias7, valendo-se de tais expressões.
Ressalte-se, outrossim, a existência de autores que se utilizam do
termo verdade real, porém com outra conotação que, em nosso sentir, mais se
assemelha ao conceito que se convencionou denominar verdade processual8.
A falta de rigor científico não nos parece despicienda de importância

5 Em que pese alguma controvérsia doutrinária sobre o conceito (analítico) de crime,


ficamos com a posição majoritária que entende ser este um fato típico, antijurídico e culpável.
Por todos, e para uma completa análise da moderna teoria do delito, consulte-se: TAVARES,
Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
6 Na lição de Barbosa Moreira: “Bem vistas as coisas, em qualquer processo constitui
pressuposto de boa decisão, em linha de princípio, o melhor conhecimento possível dos
fatos relevantes, embora razões de política legislativa nos imponham, aqui e ali, a renúncia
ao integral esgotamento das fontes de informação.” BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Processo Civil e Penal: Mão e Contramão? Revista de Processo, São Paulo, n. 24, p.18, abr./
jun.1999.
7 Manzini assim se manifesta: “Sin embargo, a veces, por necesidad u oportunidad,
en el proceso civil la verdad real queda dominada por la verdad formal, mediante reglas
especiales, positivas o negativas, que directa o indirectamente suplen o impiden la prueba
de la verdad; presunciones, ficciones, preclusiones, transacciones, etc. (4); elementos todos
eventualmente contrários a la declaración de certeza de verdad material (5). Esta encuentra, en
cambio, en el proceso penal, el máximo respeto, con ocasión del interés público que determina
el proceso mismo y del elemento ético, que, de ordinario, entra en la formación de las normas
de derecho penal.” Cf. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tradução
de Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas
Europa-América, 1951. t. I, p. 260-261.
8 A questão será tratada mais a fundo quando do estudo da chamada verdade
processual.
104 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

prática.
Com efeito, qualquer ciência (e o Direito há de estar incluído9
enquanto ciência normativa) deve, sob pena de infindáveis percalços, primar
pelo uso de um vocabulário adequado a descrever seus fenômenos. Ou seja,
a precisão terminológica, no que tange a questões técnicas, longe de ser uma
filigrana, precisa ser observada. Não se trata de apego a futilidades, mas da
necessidade de fixação conceitual, sem a qual nenhuma ciência avança.10
Falar em verdade real e formal, indiscriminadamente, pode, dentre
outros problemas, conduzir à aplicação errônea de regras processuais penais.
Isso poderia resultar em invasões agressivas, e quiçá ilegais, por parte do
Estado, na esfera de direitos individuais do réu. Ou seja, na busca de uma
verdade real, o Estado poderia desrespeitar direitos e garantias fundamentais11
que custaram tão caro à humanidade.12
Rogério Lauria Tucci usa as expressões “verdade material” e

9 Não entraremos na discussão sobre ser (ou não) o Direito uma ciência. Ainda que
fascinante, não é o escopo do trabalho. Assumimos, pois, que o Direito é uma ciência: ciência
do dever-ser (normativa).
10 Barbosa Moreira já deixou assentado que: “Renegar a técnica decididamente não é
o melhor caminho para fazer avançar a nossa ciência, nem para converter o avanço científico
em fermento da Justiça.” BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Efetividade do processo e
técnica processual. In: ____. Temas de Direito Processual. 6. série. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 23. E, mais à frente (p. 27), arremata: “Nenhum processualista que preze a sua ciência
tem o direito de desinteressar-se pura e simplesmente das questões técnicas.”
11 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: Teoria del garantismo penale. 7. ed. Roma:
Laterza, 2002, p. 82. Confira-se, ainda, a lição de Agostino De Caro: “Nel versante probatorio,
il sistema previgente era ancorato alla ricerca della verità, affidata al giudice (art.299 c.p.p.
1930) il quale poteva e doveva porre in essere ogni iniziativa per trovare la corrispondenza
col fatto storico. Questa ‘missione’ riusciva a giustificare l’utilizzazione di ogni mezzo capace
di raggiungere l’obiettivo tanto che, nel passato, fondava anche la predisposizione di mezzi
violenti (come la tortura) ma capaci (cioè, idonei) a centrare il bersaglio: la verità.” Cf.
CARO, Agostino De. Poteri Probatori del Giudice e Diritto alla Prova. Napoli: Edizioni
Scientifiche Italiane, 2003, p.52-53.
12 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
Notas sobre a questão da verdade 105

“verdade atingível” como sinônimas, o que nos parece equivocado. É certo,


contudo, que o paulista vislumbra limitações na busca desse desiderato. Isso
encerra, sem dúvida, uma perspectiva garantista, na medida em que impede
o Estado-Juiz de, por quaisquer meios, chegar a essa verdade.13 Assim,
as limitações concernentes à dignidade da pessoa humana14 norteariam a
atuação estatal.
A rigor, a verdade, se possível de ser alcançada, há de ser uma só,
sendo certo que qualquer processo (civil, penal, trabalhista ou administrativo)
almeja atingi-la.
Não há duvida de que é pressuposto do ideal de justiça chegar à
real ocorrência dos fatos. Assim, parece-nos impróprio falar em verdade real
e formal.
Avançando na discussão, passou-se a considerar uma verdade
processual, ou seja, aquela que emerge dos autos. O convencimento do juiz

13 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e


processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 177-179.
14 Karl Larenz sustenta que: “Entre os princípios ético-jurídicos, aos quais
a interpretação deve orientar-se, cabe uma importância acrescida aos princípios
elevados a nível constitucional. Estas são, sobretudo, os princípios e decisões
valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da
Constituição, quer dizer, a prevalência da dignidade da pessoa humana (art.º 1º da
Lei Fundamental), [...]”. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.
Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997,
p.479. No Brasil, nos parece que o princípio não é visto em toda sua inteireza, pois
o ser humano é visto (tratado) pelo ordenamento jurídico-positivo como meio, e não
como fim. Assim, estamos com Luís Roberto Barroso ao sustentar que o princípio da
dignidade da pessoa humana “[...] ainda vive, no Brasil e no mundo, um momento de
elaboração doutrinária e de busca de maior densidade jurídica. Procura-se estabelecer
os contornos de uma objetividade possível, que permita ao princípio transitar de sua
dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões
judiciais.” Cf. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo
direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo).
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 358, p. 91-114, nov./dez. 2001, p.109.
106 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

haveria de subsumir-se ao provado, chegando-se, então, à verdade. A verdade


processual, como afirma Badaró, seria uma verdade judicial, aproximada
tanto quanto possível da realidade, detendo-se a pesquisa sobre a mesma ao
que está nos autos.15 Assim, teríamos uma verdade possível ou processual,
reflexo de um elevadíssimo grau de probabilidade de que os fatos tivessem
ocorrido da forma alegada pelas partes.
As regras do jogo16 processual, no que pertine à instrução probatória,
estabeleceriam a viabilidade do diálogo, sem desprezar a existência de um
método, um procedimento probatório, corroborando a maior ou menor
aproximação da verdade. Até porque se é certo que o direito nasce dos fatos,
estes precisam ser minuciosamente reconstruídos.
Os mais céticos, como Nietzsche na filosofia e Calamandrei no direito
processual, preconizam o abandono da busca da verdade. Especificamente,
no que concerne ao processo (penal, civil, ou qualquer outro), o italiano
aponta falhas no processo de reconstrução da verdade, mormente em virtude
do princípio dispositivo. Sustenta, ainda, a impossibilidade do processo em
produzir uma verdade que se projete para fora de si. Ou seja, como o juízo
acerca dos fatos é relativo, pois os processos de investigação são falhos,

15 Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no


processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 37: “[...] a verdade
judicial, necessariamente relativa, deve ser entendida como uma ‘verdade’ que o
juiz busca nas provas existentes nos autos e que seja a ‘maior aproximação possível’
daquilo que se denomina verdade, tout court”. Essa também parece ser a visão de
Ferrajoli (op. cit., p. 24) , in verbis: “Tutto questo vale a maggior ragione per la verità
processuale, che può essere anch’essa concepita come uma verità approssimativa
[...].” Na doutrina nacional lê-se: “No processo, penal ou civil que seja, o juiz só
pode buscar uma verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo
possível da certeza.” GRINOVER, op. cit., p.83.
16 Já se afirmou em prestigiosa sede doutrinária que o processo é um jogo. É certo
que tal jogo deve respeitar os direitos e as garantias fundamentais, assegurando tratamento
paritário aos litigantes, bem como um diálogo humano visando o acertamento da decisão a ser
proferida.
Notas sobre a questão da verdade 107

na medida em que as partes só trazem para os autos o que as interessa, sua


credibilidade jamais poderia passar do próprio processo.17 Ainda na mesma
obra, porém em outro artigo, Calamandrei, com base na doutrina alemã, volta
a reafirmar sua descrença na busca da verdade, concordando com Voltaire no
sentido de que as verdades históricas esgotar-se-iam em probabilidades.18
Mais uma vez citando o pensador o francês, aduz que mesmo o depoimento de
doze mil testemunhas poderia significar doze mil versões ou probabilidades
para o mesmo fato.19
No direito processual pátrio, Aury Lopes Jr., parecendo assumir a
prevalência da função persuasiva da prova, em detrimento da demonstrativa20,

17 Tratando, em excelente artigo, sobre o uso de sentença como meio de prova, conclui:
“Dato che in ogni processo le parti hanno il potere di rappresentare al giudice soltanto alcuni
aspetti della realtà, il valore storico dei giudizi di fatto enunciati dal giudice è in funzione di
quella rappresentazione: il giudice, nel processo a tipo dispositivo, non aspira ad accertare
la verità coll’iniziale maiuscola, che sia destinata a valere in eterno oltre le contingenze, ma
più modestamente si contenta di chiamar verità la somma logica di quelle allegazioni e di
quelle prove che quel processo gli offre, senza escludere che domani, se sugli stessi fatti le
allegazioni e le prove utilizzabili fossero diverse, la verità potrebbe apparirgli tutt’altra, com’è
nel travestimento francese di un titolo pirandelliano, che par fatto apposta per servir da motto
al processo dispositivo: ‘chacun sa vérité’.” Cf. CALAMANDREI, Piero. La sentenza civile
come mezzo di prova. In: ___. Opere Giuridiche. Napoli: Morano, 1972. v. V, p. 571.
18 Cf. CALAMANDREI, Verità e verosimiglianza nel processo civile, op.cit., p. 615-
616: “1. – Aller Beweis ist richtig verstanden nur Wahrscheinlichkeitsbeweis: tutte le prove,
a ben guardare, non sono che prove di verosimiglianza. Questa affermazione di relativismo
processuale, fatta per il processo civile da un grande giurista (1), può valere ugualmente non
solo per il processo penale, ma, anche fuori dal campo più direttamente processuale, per ogni
giudizio storico su fatti che si dicono accaduti: quando si dice che un fatto è vero, si vuol dire
in sostanza che esso ha raggiunto, nella coscienza di chi tale lo giudica, quel grado massimo di
verosimiglianza che, in relazione ai limitati mezzi di conoscenza di cui il giudicante dispone,
basta a dargli la certezza soggettiva che quel fatto è avvenuto. Parlo, si intende, non delle
verità logiche o morali, ma delle verità dei fatti accaduti, delle verità cosiddette storiche, per
le quali già Voltaire avvertiva che ‘les vérités historiques ne sont que des probabilités’ (2).”
19 Ibid., p. 616.
20 Para um visão sobre as funções persuasiva e demonstrativa da prova, confira-se
TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. 2. ed. Tradução de Jordi Ferrer Beltrán.
Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 349-357
108 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

nega importância à verdade (e à sua busca). Para o referido processualista, o


que importa é convencer o julgador.21
Realmente, tem razão Calamandrei ao afirmar que a quantidade das
provas não pressupõe que se consiga chegar à verdade.22 Entretanto, há nas
outras ponderações acima uma dose exagerada de ceticismo.
É certo que não perdemos de vista a advertência de Leonardo
Greco, quando aduz que:

Uma das maiores ilusões que a consciência


democrática contemporânea difunde na sociedade
é a de que, no Estado de Direito, todo aquele que
tiver um direito lesado ou ameaçado vai receber do
Estado a mais ampla e eficaz tutela jurisdicional
que lhe assegurará o pleno gozo desse direito.23
Contudo, é cediço que justiça24 e verdade devam andar juntas, pois

21 “No processo acusatório, a “verdade” dos fatos não é elemento fundamente do


sistema. O poder do julgador não se legitima pela verdade, tendo em vista que o poder contido
na sentença é validado pela versão mais convincente sobre o fato, seja a da acusação ou da
defesa. O que importa é o convencimento do julgador.” E, afirma: “Parte-se, portanto, do
abandono da idéia de verdade como escopo do processo, devido a seu excesso epistêmico,
(...)”. Cf. LOPES JR., Aury; DI GESU, Cristina Carla. Falsas Memórias e Prova Testemunhal
no Processo Penal: em busca da redução de danos. Revista de Estudos Criminais, Porto
Alegre: ITEC, v. 25, p.59-69, Abr./Jun. 2007.
22 Nesse sentido é também a conclusão de William T. Pizzi, que, após interessante
comparação entre o sistema norte-americano e outros, filiados a civil law, utilizando-se
de metáfora futebolística (futebol americano e soccer, jogado, p.ex., no Brasil) anui que a
quantidade das provas não é um critério seguro para se chegar à verdade. Cf. PIZZI, William
T. Juicios y Mentiras: crónica de la crisis del proceso penal estadonidense. Tradução de
Carlos Fidalgo Gallardo. Madrid: Tecnos, 2004, p. 35-96.
23 GRECO, Leonardo. O Conceito de Prova. In: ___. Estudos de Direito Processual.
Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 423.
24 Michele Taruffo já afirmava que: “La ideología de los objetivos del proceso que
aquí se destaca sostiene que éste debe tender a producir decisiones justas.” TARUFFO,
Michele. La Prueba de los Hechos. 2. ed. Tradução de Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Editorial
Notas sobre a questão da verdade 109

a primeira pressupõe que se chegue à segunda. Ou seja, far-se-á justiça –


sem dúvida um dos principais escopos do processo (penal) – chegando-se
à verdade.25 Sendo assim, se doze mil testemunhas, de livre e espontânea
vontade, relatassem a mesma versão, seria bastante difícil falar em mera
probabilidade.
A rigor, as construções acerca das verdades real e formal prestam-
se, tão somente, a encobrir abusos processuais, bem como dar margem a
intromissões indevidas do Estado na vida privada.
Ainda no campo do ceticismo, poder-se-ia sustentar que admitir
uma verdade processual implicaria na afirmação da existência de uma outra,
porém inalcançável. Isso reduziria a eficácia científica da questão, além de
sempre ensejar verdadeira angústia, qual seja: Será que essa é a verdade?
Será que fiz justiça? Será que o réu é culpado (ou inocente)?
É preciso ter em mente que o processo, enquanto instrumento
de reconstrução de um fato histórico, possui limitações gnosiológicas
intrínsecas. Estas, diga-se de passagem, são inerentes a qualquer método
que pretenda tal reconstrução.26 Some-se a isso as limitações concernentes à
dignidade da pessoa humana, como, p. ex., a prova obtida mediante tortura

Trotta, 2005, p. 63.


25 Alfredo Buzaid retrata que os ideais acima expostos já andam juntos há tempos:
“Há dois milênios se estatuiu que os princípios superiores do Direito são: viver honestamente,
não prejudicar aos outros e dar a cada um o que é seu.” E conclui, após excelente resenha
histórica, bem como exame do direito objetivo que: “De todo o exposto resulta que, por
tradição imemorial na História do universo, se impôs sempre aos homens o dizerem a verdade
como uma obrigação e se condenou sempre a mentira como uma manifestação torpe. Não se
trata de um dever moral destituído de sanção. É um imperativo legal, que atende à condição
da própria existência dos homens em sociedade. Por isso ele figura na legislação dos povos
civilizados.” BUZAID, Alfredo. Processo e Verdade no Direito Brasileiro. Revista de
Processo, São Paulo, n. 47, p. 92-98, jul./set. 1987.
26 Um historiador, ao estudar determinado evento, jamais conseguirá saber como as
coisas realmente aconteceram, mormente pelos condicionantes sociais, políticos, psicológicos
etc que, com certeza, influirão na escolha de suas premissas.
110 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

(ilícita).27
No processo (penal), busca-se convencer o juiz de que os fatos
se passaram de uma forma e não de outra. Embora, em linha de princípio28,
admita-se que a alegação das partes seja condizente com a verdade, jamais
saberemos se o é. Assim, o réu, v.g, tenta mostrar que matou em legítima
defesa, logo não cometeu crime, já o Ministério Público deseja convencer os
jurados de que não havia tal excludente de ilicitude. Saber como as coisas
se passaram, nos seus mínimos detalhes, se não for tarefa para os deuses,
com certeza seria hercúlea. É bem provável que não nos lembremos do que
almoçamos, ou do que jantamos. Ou, ainda, que roupa usávamos ontem.
Jamais lembraremos como as coisas ocorreram no dia anterior em seus
detalhes. Como então reconstruir algo que está tão longe? Como ser fiel a
fatos que não nos recordamos mais?
Valendo-nos da lição de Francisco das Neves Baptista, a busca
da verdade diz respeito à concordância do pensamento com o objeto, ou
com nós mesmos. E mais, será imutável ou tão somente útil e oportuna29 a
resolver a questão colocada a exame.

27 Não pode um médico, a pretexto de propiciar condições à evolução científica (da


medicina), fazer amputações, com a respectiva transferência de membros, pois pretende
estudar alguma particularidade de sua ciência. As limitações à busca da verdade, que qualquer
ciência encontra, não diminuem a necessidade de se continuar a buscá-la, como sendo a única,
pois possível de ser aferida com todas as técnicas e saberes de determinado tempo histórico.
28 Por mais ética que seja a parte em sua exposição, é certo que expressa uma visão
parcial da causa.
29 São essas as palavras do autor: “Já se vê que a busca da verdade, em qualquer terreno,
supõe duas tomadas de posições apriorísticas, consciente ou inconscientemente assumidas,
mas inevitáveis: primeiro, quanto à natureza dessa verdade, decidindo-se se ela consiste numa
‘concordância do pensamento com o objeto’, ou se deve entender-se como ‘concordância
do pensamento consigo mesmo’ – por outras palavras, se tal verdade será reputada atingível
no exterior ou no interior da razão; segundo, quanto à extensão temporal e espacial dessa
verdade, isto é, crendo-se na sua imutabilidade ou, tão-só, na sua oportunidade ou utilidade.”
Cf. NEVES BAPTISTA, Francisco das. O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo
Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 32.
Notas sobre a questão da verdade 111

Assim, já que as partes devem fornecer ao juiz elementos visando


influenciar na formação de seu convencimento, é preciso também que a
certeza do magistrado coincida com a alegação dos litigantes. Note-se que a
certeza é subjetiva, formando-se, exclusivamente, na mente do magistrado.
Isso poderia suscitar objeções.
A primeira diz respeito à exagerada subjetividade30 na tomada da
decisão. O juiz, chegando a um estágio de certeza, decidiria da maneira que
quisesse. Embora se saiba que isso não está longe de ser o que acontece
na prática judiciária31, não é o que sustentamos. O Direito é uma ciência
normativa (dever-ser), sendo assim, faz-se necessário buscar critérios lógico-
racionais a embasar os provimentos estatais. Assim, as decisões judiciais
precisam estar pautadas em premissas verificáveis. E, o convencimento do
magistrado deve coincidir com a verdade.
A segunda objeção diz respeito a eventual visão utilitarista
do processo. Assim, na medida em que cada parte buscasse de modo
egoísta, e quiçá antiético, a solução da causa, seriam ignorados os escopos
sociais, políticos e jurídicos, que permeiam a função jurisdicional, e,
consequentemente, o processo enquanto seu instrumento de atuação.

Tal crítica também improcede. A atuação dos personagens do


processo deve pautar-se pela ética32, preocupação constante, como bem
salientou Paulo Cezar Pinheiro Carneiro.33 Querer alcançar um resultado

30 A subjetividade pode ser vista como “[...] as diferentes formas através das quais o
sujeito pensa, sente, deseja e representa a si mesmo e ao mundo que o cerca”. Cf. SOUZA,
Mériti de. A Experiência da Lei e a Lei da Experiência. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 18.
31 É comum, nos meios forenses, a afirmação de que o juiz decide primeiro e julga
depois, ou seja, busca meios de explicitar o que já tinha em mente.
32 Para um aprofundamento da interpenetração entre a ética e a justiça, cf.
PEGORARO, Olinto A. Ética é justiça. Petrópolis: Vozes, 1995.
33 Para um aprofundamento da ética e da atuação dos personagens do processo,
112 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

positivo, vendo acolhida sua pretensão, passa longe da violação a preceitos


éticos.
Demais disso, mesmo que uma das partes cometa algum “exagero”,
a relação processual, pautada no contraditório e na ampla defesa, dá ao juiz,
meios de, dialogando com elas, corrigir eventuais “deslizes”. Como se não
bastasse, a vigilância recíproca também inibiria tal prática.

3) Delineando os contornos da verdade no processo.

Superado o ceticismo, que findaria por levar a uma postura niilista,


tentaremos delinear os contornos da verdade.34
Devis Echandía e Guinchard e Buisson35, embora sustentem
a existência de uma verdade processual, consideram que esta pode não
corresponder à verdade do mundo real. O processualista colombiano vai
mais além e afirma que o mais importante é convencer o juiz36 das alegações

cf. PINHEIRO CARNEIRO, Paulo Cezar. A Ética e os personagens do processo. Revista


do Ministério Público, Rio de Janeiro, n.13, p. 241-248, jan./jun. 2001. Confira-se, ainda,
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 6. ed. ver. atua. ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008.
34 Não custa repisar a necessidade de manter certa dose de ceticismo (em relação a
tudo), pois a dúvida, o questionamento, leva ao aprimoramento, ao avanço.
35 Essa a lição de Guinchard e Buisson: “En outre, la décision ne peut plus être mise
en cause, quand bien même elle ne serait pas conforme à la réalité (345): sa vérite s’impose
comme vérité légale; son contenu est tenu pour vrai”. GUINCHARD, Serge; BUISSON,
Jacques. Procédure Pénale. 2. ed. Paris: Litec, 2002, p. 1193.
36 Cf. ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoría General del Processo. Buenos Aires:
Editorial Universidad, 1997, p. 59, onde se lê: “Entiéndese por la verdad procesal la que surge
del proceso, es decir, la que consta en los elementos probatorios y de convicción allegados a
los autos. Ésta puede ser diferente de la verdad real. Significa este principio que para el juez
lo importante y único es la verdad procesal, que su decisión tendrá que ceñirse a ella y que
entonces será recta y legal, aunque en ocasiones la realidad sea diferente. Nos lleva lo anterior
a concluir que no siempre la justicia procesal está acorde con la realidad de los hechos y com
los derechos y responsabilidades penales o de otra clase que realmente la ley consagra.”
Notas sobre a questão da verdade 113

acerca dos fatos. Quanto à primeira afirmação, concordamos, mas isso


não impede que se busquem critérios empíricos, para fazer com que essa
seja a verdade construída. No que tange ao segundo aspecto, é realmente
importante convencer o juiz, entretanto tal convencimento não pode basear-
se em premissas arbitrárias, conhecidas só pelo magistrado.
A busca da verdade está, indubitavelmente, ligada a ideais
humanitários e políticos orientadores do Estado Democrático de Direito.
Ocorre que, o Estado-juiz, ao formar seu convencimento, deve abstrair, por
absoluta impossibilidade37, a ideia de chegar a uma verdade real.
Isso de modo algum infirma, ou diminui, a eficácia da busca
da verdade, como mencionou Gössel. Com efeito, após afirmar que seria
impossível, a ele ou a qualquer pessoa, dizer o que é verdadeiro ou falso,
conclui que a busca da verdade é necessária, ainda que não se possa alcançá-
la plenamente.38

37 No sentido do texto, Ferrajoli (op. cit., p. 23): “L’impossibilità di formulare


un sicuro criterio di verità delle tesi giudiziare dipende dal fatto che la verità “certa”, o
‘oggettiva’ o ‘assoluta’ rappresenta sempre un ‘limite ideale’ irraggiungibile. L’idea contraria
che si possa raggiungere ed asserire una verità oggettivamente o assolutamente certa è infatti
un’ingenuità epistemológica, che le dottrine giuridiche illuministiche del giudizio come
applicazione meccanica della legge condividono con il realismo gnoseologico volgare.”
38 Eis as palavras do alemão: “Qué es verdad? Qué es falsedad? No se debe
esperar una respuesta mía a estas cuestiones. Y quizá nadie en el mundo pueda darla. Por
eso no me planteo este dilema. Trataré en cambio de conseguir algo distinto: mostrar que
es necesaria la búsqueda de esta cuestión, como es necesaria la búsqueda de verdad en el
proceso penal.” O autor, após tecer uma série de considerações, inclusive fazendo menção a
possível desconformidade entre a ”imagem judicial” da verdade, a real ocorrência dos fatos e
a imagem do juiz sobre a causa, entende ser sempre necessária a busca da verdade, ainda que
se não a alcance, in verbis: “a) En el proceso penal se elabora en todo caso una determinada
imagem judicial de la verdad. b) Junto a esta imagem judicial, es de reconocer la existencia
de un acontecimiento real, del que puede desviarse la imagem del juez, afortunadamente
susceptible de verificación por medio de recurso.(...)” “(...) en el proceso penal, tenemos que
buscar la verdad a pesar de que jamás podamos alcanzarla plenamente.”. Cf. GÖSSEL, Karl
Heinz. El derecho procesal penal en el estado de derecho: obras completas. Tradução de
Edgardo Alberto Donna. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007, p.101, 117 e 118.
114 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

É certo que a maioria (senão todos) dos fatos alegados pelas partes
no processo ocorreu no passado e que sua reconstrução é extremamente
difícil. Assim a verdade há de ser uma verdade aproximada, o que, de forma
alguma, pressupõe sua fragilidade. Deve-se buscar uma correspondência,
infensa à metafísica, entre a verdade e a realidade39, no acertamento da
decisão.
Cabe, neste ponto, fazer uma breve correlação entre certeza e
verdade.
Revisitando a doutrina clássica (Malatesta e Mittermaier),
percebemos algumas incongruências.
Com efeito, a verdade, segundo Mittermaier, “[...] é a concordância
entre um fato real e a ideia que dele forma o espírito.”40 Interessa ao juiz, mais
precisamente, estabelecer a verdade histórica, “[...] que procuramos alcançar,
sempre que temos de nos certificar da realidade de certos acontecimentos, e
de certos atos passados no tempo e no espaço.”41 Diverso da verdade é a
convicção com a qual o juiz é instado a decidir. A convicção, propriamente
dita, nas palavras de Mittermaier, é um estado “[...] em que o espírito tem
os fatos por verdadeiros, apoiando-se em motivos plenamente sólidos.”42
Demais disso,

[...] chegada ao momento em que

39 Cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 22-23: “Una volta stabilito che il termine ‘vero’
può essere impiegato senza implicazioni metafisiche nel senso di ‘corrispondeza’, è infatti
possibile parlare dell’indagine giudiziaria come della ricerca della verità intorno ai fatti
e alle norme menzionati nel processo ed usare i termini ‘vero’ e ‘falso’ per designare la
conformità o la difformità da essi delle proposizioni giurisdizionali.”
40 MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Tradução de
Herbert Wüntzel Heinrich. Campinas: Bookseller, 1997, p. 59.
41 Ibid., p. 60.
42 Ibid., p. 63.
Notas sobre a questão da verdade 115

vitoriosamente repele todos os motivos contrários,


e em que estes não podem mais abalar a imponente
massa dos motivos afirmativos, toma a convicção
o nome de certeza.43

Logo, a certeza resulta em exercício de dúvida, na qual as


proposições devem ser testadas, o máximo possível, pelas razões contrárias.
As fontes da certeza e motivos da convicção são, em princípio,
os testemunhos dos sentidos e a evidência material dos fatos. Contudo,
desempenham papel importante as afirmações do raciocínio, que, por vezes,
nos fazem descrer das próprias percepções dos sentidos.44
Mittermaier observa que, por evidente, a certeza não escapa ao
vício da imperfeição humana, de sorte que sempre é lícito supor o contrário
daquilo que consideramos verdadeiro. Percebe-se, assim, a inviabilidade de
o legislador exigir uma certeza absoluta, inalcançável diante da falibilidade
humana.45 Ainda que discordemos, é importante observar que o autor
desenvolve seu raciocínio mantendo-se coerente com a defesa que faz do
sistema da prova legal, em resposta aos que repudiam tal sistema de valoração
da prova.
Diverso é o pensamento de Malatesta. Para ele, o juiz é o sujeito da
certeza, um estado de sua alma. No entanto, vale ressaltar que usa o termo
(certeza) em sentido diverso do exposto. Em sua concepção, tal é empregado
como sendo a crença na conformidade entre a noção ideológica e a realidade

43 Ibid., p. 64-65.
44 Ibid., p. 107.
45 Ibid., p. 66. Conclui que: “[...] se a legislação recusasse sistematicamente admitir
a certeza todas as vezes que uma das hipóteses contrárias pudesse ser imaginada, se veriam
impunes os maiores criminosos, e, por conseguinte, a anarquia fatalmente introduzida na
sociedade.”
116 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

ontológica. O convencimento, por seu turno, mais que a certeza e resultante


da vontade, é a reavaliação dos motivos da certeza. O convencimento racional
ou judicial é, assim, um juízo sucessivo.46
O convencimento judicial guarda certas peculiaridades.
Primeiramente, cabe dizer que não é possível a sua gradação, de sorte que,
ou o juiz está convencido ou não está. Além disso, o convencimento é algo
natural no juiz, não artificial, por razões estranhas à verdade enquanto meta
do espírito.47 Entretanto, a razão de seu convencimento deve atingir terceiros.
Este último requisito é o que chama de sociabilidade do convencimento. O ius
puniendi é exercido em nome da consciência social que reage à perturbação
causada pelo delito. Assim, o fundamento de uma decisão condenatória deve
ser amparado por essa mesma consciência.48

Em vista dessas ideias, indaga-se se é racionalmente possível


uma certeza legal. A resposta será evidentemente negativa, de acordo com
a doutrina de Malatesta, porquanto tal só existe diante de uma realidade
objetiva e percebida. Assim como os delitos são realidades múltiplas e
imprevisíveis, as provas não podem ter a capacidade de infundir a certeza no

46 Cf. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria


criminal. Tradução de Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2001, p. 52,
in verbis: “O convencimento racional, em suma, não é senão um juízo sucessivo,
determinando e aperfeiçoando o primeiro, que constitui a certeza; ela é a opinião da
verdade; o convencimento, por sua vez, é a opinião da certeza, como legítima”.
47 Ibid., p. 53. Assim, atentam contra o convencimento racional do juiz a determinação
prévia do valor das provas, como no sistema da prova tarifada; os preconceitos da alma do
magistrado; bem como o exame indireto das provas, em que o juiz formasse seu convencimento,
não pelo contato com as fontes de prova, mas pelo relato do juiz instrutor.
48 Destarte, arremata Malatesta (Ibid., p. 55): “[...] se o juiz, embora pessoalmente
sentindo-se convicto da culpabilidade do acusado, sente que suas razões não são tais que
possam gerar igual convicção em qualquer outro cidadão racional e desinteressado, deve
absolver.”
Notas sobre a questão da verdade 117

juiz de forma prévia e arbitrada, abstratamente, pelo legislador.49


Noutro giro, a ideia de certeza (em Mittermaier) funciona como
um aspecto restritivo do conceito de verdade, pois pode representar uma
visão subjetiva, proveniente de mera retórica. Isso não parece aceitável, pois
a verdade deve ser controlável, verificável, enfim, aferível, sendo assim, não
seria possível contentar-se com a certeza ou com o simples convencimento
judicial (que mais se assemelharia a um convencimento/saber divino).

4) Conclusão

Em suma, superada a crença numa verdade objetiva, tão ao gosto


dos iluministas50, urge que num processo de modelo garantista se busque, por
meio das provas, a verdade com o maior grau de certeza possível51. Essa há de
espelhar a mais fiel reconstrução dos fatos, possível à luz dos conhecimentos
de determinada época, sem descuidar de aspectos ligados à sua relatividade,
como quer Taruffo52.

49 Ibid,, p. 50: “Mas, se as realidades contingentes que funcionam como prova,


são consideradas quanto à sua individualidade, não são mais predetermináveis, pois
sua individualidade, como toda realidade contingente, é infinitamente variável em sua
concretização. Ora, surgindo a certeza, não da prova específica, mas individual, é, portanto,
indeterminável como a prova de que origina. Também, o sujeito da prova leva, por isso, a
concluir contra a certeza legal”.
50 FERRAJOLI, op.cit., p. 36-37.
51 No sentido é a lição de Taruffo, in verbis: “Posto quindi che non si possa parlare
di giustizia sostanziale della decisione, taluni propongono la nozione di giustizia procedurale
come unico criterio di valutazione.” Cf. TARUFFO, Michele. Idee per una teoria della
decisione giusta. In: ____. Sui Confini. Bologna: Società editrice il Mulino, 2002, p. 220.
52 Michele Taruffo, após profícua análise sobre a possibilidade de se buscar a verdade
com base nas provas dos autos, conclui: ”En resumen: la regulación legal del proceso y de
las pruebas no es de por sí un obstáculo para que se determine la verdad de los hechos en el
proceso, supuesto que se trata inevitablemente de una verdad relativa y ligada al contexto en
el que es establecida.” TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. 2. ed. Tradução de
118 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Não há que se falar numa verdade processual. Não há necessidade


de adjetivação. Ou será que existe uma “verdade física”? Ou uma “verdade
química”? Ou, ainda, uma “verdade médica”?
Certamente que não.
A verdade é aquela que qualquer ciência consegue chegar, guardadas
suas limitações inerentes, com todos os recursos e meios disponíveis em
determinado período histórico-temporal. Não há outra, não há uma verdade
tout court.
A verdade (ou sua busca), enquanto valor humanitário53, não
precisa ser adjetivada, uma vez que ligada à atuação da lei, no que concerne
a sua aplicação, à realidade dos fatos.

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122 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II
Cap. 5: A dimensão dialógica e institucional
na concepção do justo de Paul Ricoeur
Hilda Bentes1

I. Introdução

O propósito desta reflexão é buscar subsídios teóricos no pensamento


de Paul Ricoeur no que concerne à estrutura relacional constitutiva do conceito
filosófico de justiça. Cuida-se de enveredar por um percurso conceitual
profícuo2, construído sobre um rico manancial de referências filosóficas. Em
especial, nosso olhar irá investigar o sujeito do direito, detentor de plena
capacidade seja pelo ângulo moral seja pelo jurídico, modelo a ser firmado e
reconhecido como um dos direitos do homem neste século.
As terríveis experiências da guerra e a crise das democracias
liberais proporcionam a Ricoeur uma profunda meditação sobre a fragilidade
dos seres humanos e das instituições, o que o conduz inapelavelmente aos
fundamentos da Justiça e ao resgate do político como forma de superar os
paradoxos observados nos planos político e jurídico3.
Trata-se, sobremaneira, de reabilitar o sentido ético da existência,
o sujeito capaz de pleno direito, a palavra tantas vezes silenciada pela

1 Graduada em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Candido Mendes


(1991), graduada em letras pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (1977), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (1995) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2000). Atualmente é professora adjunta da Universidade Candido Mendes (licenciada), e da
Universidade Católica de Petrópolis.
2 A escolha da palavra “percurso” foi sugerida pelo título empregado por Ricoeur
em Percurso do reconhecimento, p. 11, em que o autor manifesta sua preferência pela palavra
“percurso” sobre “teoria”.
3 Ver também a Introdução à obra de Olivier Abel, denominada Paul Ricoeur – a
promessa e a regra, pp. 12-15.
124 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

imposição da força, e de banir todas as estratégias de exclusão do homem.


E esse caminho implica pensar filosoficamente o conceito de Justiça, que se
alicerça na noção clássica de bilateralidade.

II. Desenvolvimento

Convém citar, inicialmente, as ponderações feitas por Georgio Del


Vecchio a respeito da noção de bilateralidade ou alteridade, principalmente
no que tange à questão da justiça. Ressalte-se, consoante leciona
preliminarmente Miguel Reale, que “a afirmação do ‘alter’ é uma necessidade
inerente ao próprio desenvolvimento de nosso espírito, no dizer de Del
Vecchio”4, o que nos remete ao conceito de bilateralidade desenvolvido no
pensamento delvecchiano, vale dizer, no Direito, diferentemente da Moral,
estabelece-se sempre uma relação objetiva e bilateral, fonte de faculdades e
deveres jurídicos recíprocos. A bilateralidade constitui a nota distintiva da
juridicidade, inerente a toda experiência jurídica.
Após a tentativa de elaborar a especificidade do direito de forma
racional, encontrando no conceito de bilateralidade o seu elemento
caracterizador, Del Vecchio define-o como sendo “a coordenação objectiva
das acções possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que
as determina, excluindo qualquer impedimento”5. Importa enfatizar que a
noção de bilateralidade, considerada “a pedra angular do edifício jurídico”6,
representa a ideia diretriz que fundamenta todo o sistema jurídico filosófico
do mestre bolonhês.
Miguel Reale explicita que “a ‘bilateralidade’, considerada em sua

4 Miguel REALE, Fundamentos do direito, p.28.


5 Giorgio DEL VECCHIO, Lições de filosofia do direito, p.363.
6 Ibid, p.372. Consultar igualmente do mesmo autor A justiça, pp. 1-2.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 125

pura validade lógico-formal, permite-nos determinar o conceito de Direito;


vista, no entanto, como norma diretora, ou seja, em seu sentido deontológico,
possibilita-nos a compreensão da idéia do Direito, isto é, da justiça.”7 A
segunda função será o campo privilegiado de investigação correspondente
à parte deontológica, elaborada magistralmente por Giorgio Del Vecchio,
fundada na conceituação do justo. Em A justiça ele frisa a relevância da noção
de justiça para a construção do direito e sublinha o caráter intersubjetivo
ínsito no conceito examinado:

Contudo, no que fica exposto, a noção do justo


carece daquele elemento específico, que lhe
confere verdadeiro caráter filosófico e a converte
em pedra angular de todo edifício jurídico. Se
bem repararmos, não é qualquer congruência ou
correspondência que torna pròpriamente verdadeira
a idéia de justiça, mas tão-sòmente aquela que se
verifica ou é susceptível de se verificar nas relações
entre mais de uma pessoa; não toda proporção entre
objetos, sejam eles quais forem, mas justamente a
que, segundo a expressão de Dante, é “hominis ad
hominem proportio”. Justiça, no sentido próprio, é
princípio de coordenação entre seres subjetivos...
(grifado no original)8

Nesse aspecto, ao remontar a Aristóteles, observa-se a importância


da estrutura relacional como elemento configurador do justo, conforme
afirmado no Livro V da Ética a Nicômaco. De fato, trata-se de parte
constitutiva da concepção de justiça o elo vinculativo que se estabelece com
o outro, na medida em que se aspira, segundo a perspectiva teleológica de

7 Filosofia do direito, p.348.


8 Pp. 1-2.
126 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Aristóteles, à virtude moral de desejar o bem ao próximo, como se constata


na seguinte passagem:

Por essa mesma razão se diz que somente a justiça,


entre todas as virtudes, é o “bem de um outro”
visto que se relaciona com o nosso próximo,
fazendo o que é vantajoso a um outro, seja
um governante, seja um associado. Ora, o pior
dos homens é aquele que exerce a sua maldade
tanto para consigo mesmo quanto para com os
seus amigos, e o melhor não é o que exerce a sua
virtude para consigo mesmo, mas para com um
outro; pois que difícil tarefa é essa.9 (grifamos).

A evocação do outro é reproduzida com fidelidade por São Tomás de


Aquino, firmando-se o entendimento de justiça como alteridade. A resposta
categórica do Aquinate à indagação proposta na questão 58, artigo 2, da
Suma teológica, que versa sobre a justiça, consolida a noção de Justiça como
relação primordial com outrem, nela contida a ideia de igualdade:

RESPONDO. Como já se disse, o nome de justiça


implica igualdade; por isso, em seu conceito
mesmo, a justiça comporta relação com outrem.
Pois, nada é igual a si mesmo, mas a um outro.
Ora, uma vez que compete à justiça retificar os
atos humanos, como já foi explicado, é necessário,
que essa alteridade, por ela exigida, exista entre
agentes diferentes. (...) A justiça, propriamente
dita, exige a diversidade das pessoas, portanto
só pode ser de um homem em relação a outro.10

9 1130 a.
10 Pp. 58-59 da tradução brasileira da Suma teológica: justiça-religião- virtudes
sociais, vol. 6, II Seção da II Parte – Questões 57-122.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 127

(grifamos).

Paul Ricoeur aborda a questão da justiça na tradição desse entendimento
calcado na intersubjetividade, na consideração essencial do outro. No prefácio
a O justo, volume 1, Ricoeur assinala que “o lugar filosófico do justo situa-
se, assim, em Soi-même comme un autre, no ponto de intersecção desses
dois eixos ortogonais e dos percursos de leitura que eles demarcam.”11 Com
efeito, a estrutura teórica esboçada em Soi-même comme un autre pressupõe
a compreensão de um eixo horizontal, que corresponde à dimensão dialógica
do si (soi), ou seja da ipseidade perante a mesmidade; e de um eixo vertical,
que estabelece a hierarquização dos predicados identificadores da ação
humana ao nível da moralidade12.
Segundo o itinerário delineado por Ricoeur, o eixo horizontal
representa a predominância da ética sobre a moral, vale dizer, da
intencionalidade da vida boa sobre a norma. No sétimo estudo do Soi-même
comme un autre, denominado “Le soi et la visée éthique”, Ricoeur explica
essa supremacia com o aporte de um terceiro elemento – o justo – para a
caracterização de intencionalidade ética: “chamamos ‘intencionalidade
ética’ à intencionalidade da ‘vida boa’ com e para outro em instituições
justas”13 Nessa afirmação sobressai o reconhecimento do outro e a mediação
de instituições, formando-se o primeiro estágio para uma conceituação
filosófica sobre a Justiça baseada principalmente na superioridade da
dimensão dialógica sobre a monológica. Ricoeur demonstra no Prefácio ao

11 P. 7. Na mesma direção ver o artigo Justiça e verdade, incluso no livro O justo,


parte 2, p.65, em que Ricoeur tece as mesmas considerações.
12 Cf. o capítulo O justo: entre a ética e a hermenêutica, do livro Paul Ricoeur - a
força da razão compartida, de Marcelíno Agís Villaverde, em particular pp. 143-149.
13 P. 202. Cf a tradução feita na obra de Marcelíno Agís Villaverde, acima citada, p.
144.
128 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

O justo, parte 1, a estrutura relacional como componente fundamental da


virtude da justiça :

Para começar, adotemos a leitura “horizontal” cuja


temática, como acabamos de dizer, é a constituição
dialógica do si. Uma teoria filosófica do justo
encontra, assim, sua primeira base na asserção
segundo a qual o si só constitui sua identidade
numa estrutura relacional que faz a dimensão
dialógica prevalecer à dimensão monológica,
que um pensamento herdeiro da grande tradição
da filosofia reflexiva seria tentado a privilegiar.
Mas essa menção do outro, já no limiar de uma
reflexão sobre a constituição do si, continuaria
sendo uma grande banalidade e, sobretudo, não
bastaria para marcar o lugar onde a questão da
justiça pode ser encontrada, se, já de saída, não
distinguíssemos duas acepções distintas da noção
de outro ou outrem. O primeiro outro, se assim
se pode dizer, oferta-se em seu rosto, em sua
voz, com os quais se dirige a mim, interpelando-
me na segunda pessoa do singular. Esse outro é
o das relações interpessoais. E a amizade, oposta
nesse contexto à justiça, é a virtude emblemática,
dessa relação imediata que realiza o milagre de um
intercâmbio de papéis entre seres insubstituíveis.
(...) No entanto, por mais maravilhosa que seja, a
virtude da amizade não poderia cumprir as tarefas
da justiça, nem sequer engendrá-la como virtude
distinta. A virtude da justiça se estabelece com
base numa relação de distância com o outro, tão
originária quanto a relação de proximidade com
outrem ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa
relação com o outro é, ouso dizer, imediatamente
mediada pela instituição. O outro, segundo a
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 129

amizade, é o tu; o outro, segundo a justiça, é o


cada um, conforme indica o adágio latino : suum
cuique tribuere, a cada um o que é seu.14

De fato, qualificadores essenciais na análise do justo encontrados


no eixo horizontal despontam da citação acima transcrita: a asseveração da
dimensão dialógica sobre a monológica, com a distinção estabelecida entre
amizade e justiça; a diferenciação entre o conceito de “outro”, peculiar da
dimensão monológica, e de “outrem”, que exige uma distância com cada um,
configurando a dimensão social e dialógica do justo; e, a mediação operada
pelas instituições, afirmando a estrutura relacional e projetando a distribuição
equitativa de bens.15 Nesse último aspecto, Ricoeur lembra John Rawls no
capítulo introdutório de sua Teoria da Justiça, ao delinear o papel da justiça:
“a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é
dos sistemas de pensamento.”16
No percurso conceitual proposto por Paul Ricoeur, é importante
destacar o eixo vertical na apreensão do justo. Como visto anteriormente,
o segundo eixo descrito em Soi-même comme un autre constitui estágio
significativo para a representação da filosofia moral proposta por Ricoeur,
que está fundada na constituição hierárquica dos predicados que qualificam
a Filosofia Moral. No primeiro nível, Ricoeur apresenta a abordagem
teleológica, caracterizada pelo desejo de conduzir uma vida boa; sinaliza, no
segundo nível, para a visão deontológica, com fulcro na obediência à norma,
à obrigação; e culmina, no terceiro nível, na sabedoria prática, ou seja, na
prudência, etapa em que a equidade desponta como condição necessária

14 Pp.7-8. Ver igualmente a análise de Marcelíno Agís VILLAVERDE, op. cit.,


pp.146-149.
15 Cf. Marcelíno Agís VILLAVERDE, op. cit., pp 147-148.
16 P. 3.
130 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

para uma deliberação justa em circunstâncias marcadas pelo conflito e pela


insegurança.17
Ricoeur questiona a importância em proceder a uma análise do
predicado bom no que se refere à investigação sobre a justiça. Com efeito,
o seu trajeto intelectual inicia-se na proposição extraída do eixo horizontal
no aspecto da mediação de instituições justas como terceiro elemento
constitutivo da dimensão dialógica do justo. De fato, a conexão com o eixo
examinado leva à conclusão de que a justiça constitui uma aspiração legítima
de viver bem em instituições justas. Sublinha-se a necessidade de percorrer a
vida em todas as dimensões que ela descortina visando à plena realização do
indivíduo. A essa “fórmula desiderativa”18, no dizer de Villaverde, soma-se
o componente político que alicerça a construção ética da vida boa segundo
Ricoeur, o qual descreve com clareza o primeiro nível do eixo vertical:

... Retomo aqui a fórmula que proponho em Soi-


même comme un autre: querer uma vida realizada
com e para os outros em instituições justas. A
justiça, segundo essa leitura, faz parte integrante
do querer viver bem. Em outras palavras, o querer
viver em instituições justas situa-se no mesmo
nível de moralidade que a vontade de realização
pessoal e que a de reciprocidade na amizade. O
justo é, em primeiro lugar, objeto de desejo,
carência, querer. Enuncia-se num modo optativo
antes de se enunciar no imperativo. Essa é a
marcada seu enraizamento na vida (na vida como
bíos, e não como zoé). (...) Que a questão do justo
pertence a essa interrogação é coisa que Aristóteles
já atestava no início de Ética nicomaquéia, ao

17 Cf. Paul RICOEUR, O justo, parte 1, pp. 9-20; Marcelíno Agís VILLAVERDE, op.
cit., pp 149-152.
18 Op. cit., p. 150.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 131

afirmar que a pretensão à felicidade não detém sua


trajetória na solidão – e, acrescentarei, na amizade
–, mas no meio da cidade. A política, tomada em
sentido amplo, constituía então a arquitetônica da
ética...19

No plano deontológico, regido pelo signo da proibição e pelo


predicado obrigatório, aparecem as normas e os deveres estatuídos. Destacam-
se aqui com mais contundência o ato imperativo e o fato de os agentes
exercerem o poder sobre os demais. Para coibir a violência desenfreada faz-
se necessário conceder validade universal à ideia de lei, em que está ínsita
a vinculação ao bem na configuração do estatuto jurídico. Ricoeur renuncia
a uma teoria puramente procedimental de justiça, despontando o sentido
de justiça da interseção entre o formalismo deontológico e a referência ao
bem.20
O pensamento ricoeuriano atinge o terceiro nível do eixo vertical
direcionado pelo enfoque da sabedoria prática. Nesse plano a consciência
moral é defrontada com situações singulares caracterizadas por conflitos
agudos, tendo que tomar a decisão mais justa. Nesse momento aponta como
solução para superar a ação trágica dividida entre pólos contrastantes o
conceito de equidade elaborado por Aristóteles na Ética a Nicômaco. Assim,
procede Ricoeur a uma tentativa de reconciliar posições aparentemente
irredutíveis, criando uma síntese para a qual o justo emerge de circunstâncias
opacas, porém conduzido por um procedimento metodológico que une
invariavelmente as exigências de persecução de uma vida boa em instituições
justas com os estatutos legais ordenadores da vida em sociedade. Ricoeur
refaz o caminho filosófico que o conduziu à essência da justiça, localizada

19 Paul RICOEUR, O justo, parte 1, pp. 10-11.


20 Cf. Marcelíno Agís VILLAVERDE, op. cit., pp 150-151.
132 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

na intersecção dos dois eixos explicativos, como se pode deduzir do seguinte


trecho:
Nesse ponto termina o percurso da idéia de justiça.
Ela pode ser considerada como a regra prática mais
elevada por ser ao mesmo tempo o último termo da
tríade iniciada pelo querer viver bem e o último
termo do percurso de nível em nível que termina
na sabedoria prática. Quanto à relação com o bom,
resume-se na fórmula proposta já no exame da
tríade básica: o bom designa o enraizamento da
justiça no querer viver bem, mas é o justo que,
desdobrando a dupla dialética, horizontal e vertical,
do querer viver bem, põe o selo da prudência na
bondade.21

Neste percurso para uma hermenêutica do justo, deve-se considerar


a constituição do juízo que pressupõe o reconhecimento de um sujeito capaz,
digno de estima e respeito. Atinge-se, assim, o cerne da discussão da justiça
como dimensão dialógica. Dito de outra forma, o sujeito capaz provém da
dimensão ética e moral do si-mesmo, o que torna o homem suscetível de
imputação ético-jurídica.

Em segundo lugar, gostaria de dizer que a estima e o


respeito por si mesmo não se somam simplesmente
à formas de designação consideradas acima, mas
as incluem e, de alguma maneira, as recapitulam.
Por isso, pode-se perguntar: na qualidade de quê
podemos nos estimar ou respeitar? Primeiramente,
por sermos capazes de nos designarmos como
locutores de nossas enunciações, agentes de
nossas ações, heróis e narradores das histórias que

21 Justiça e verdade, capítulo do livro O justo, parte 2, p. 69. Consultar também


Marcelíno Agís VILLAVERDE, op. cit., pp. 151-152.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 133

contamos sobre nós mesmos. A essas capacidades


se somam as que consistem em avaliar nossas
ações em termos de “bom” e “obrigatório”.
Estimamo-nos como capazes de estimar nossas
próprias ações, respeitamo-nos por sermos capazes
de julgar imparcialmente nossas próprias ações.
Assim, auto-estima e auto-respeito dirigem-se
reflexivamente a um sujeito capaz.22

Com efeito, vimos que a noção de justiça pressupõe o outro, a assunção


da alteridade. Por conseguinte, Ricoeur, ao investigar quem é o sujeito do
direito, está levando a discussão para o grau de reconhecimento ético, meio
de identificar o outro – a despeito das idiossincrasias e das características
étnicas e culturais – como uma pessoa digna de ser considerada. Ricoeur
analisa as implicações linguísticas próprias a esse enfoque, sublinhando o
papel de protagonista que o sujeito capaz desempenha na narrativa de sua
estória. Assim, em Quem é o sujeito do direito?, Ricoeur amplia o espectro
das relações interpessoais para um plano cada vez mais abrangente:

A mesma relação triádica eu/tu/terceiro é


encontrada no plano que distinguimos pela
pergunta quem age?, quem é o autor da ação? A
capacidade de alguém se designar como autor
de suas próprias ações está de fato inserida num
contexto de interação no qual o outro figura
como meu antagonista ou meu coadjuvante, em
relações que oscilam entre o conflito e a interação.
Mas inúmeros outros estão implicados em toda
empresa. Cada agente está interligado a esses
outros pela intermediação de sistemas sociais de

22 Paul RICOEUR, Quem é o sujeito do direito? In: O justo, parte 1, pp. 24-25. Cf.
Olivier ABEL, Paul Ricoeur – a promessa e a regra, pp. 106-110.
134 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

diversas ordens...23

Ínsita ao reconhecimento do outro está presente o princípio da


reciprocidade, compreendido no pensamento ricoeuriano como a aplicação
da regra jurídica, a qual se expande além da mera legalidade e aplica-se às
relações entre os sujeitos assim como às relações sociais e às instituições,
conforme explicita Olivier Abel24. Na hipótese de essa regra não ser
observada, a violência triunfará, com o consequente aniquilamento da auto-
estima do outro. A passagem colhida em Soi-même comme un autre, abaixo
transcrita, é reveladora do efeito devastador que o “poder-sobre”25, de acordo
com a terminologia de Ricoeur, é capaz de produzir sobre a mente da vítima
da violência, nas múltiplas gradações em que esse mal se manifesta:

A ocasião da violência, para não dizer a tendência


para a violência, reside no poder exercido sobre
uma vontade por uma vontade. [...] O poder-sobre,
implantado na dissimetria inicial entre o que um
faz e o que é feito ao outro – por outras palavras,
o que este outro sofre –, pode ser tomado, por
excelência, pela ocasião do mal da violência.
O sentido descendente faz passar facilmente da
influência, forma suave do poder-sobre, à tortura,
forma extrema do abuso. No próprio domínio
da violência física, enquanto utilização abusiva
da força contra outrem, as imagens do mal são
inúmeras, desde a simples utilização da ameaça,
passando por todos os níveis do constrangimento,
até ao homicídio. Sob estas formas diversas, a
violência equivale à diminuição ou à destruição

23 Quem é o sujeito do direito? In: O justo, parte 1, p. 27.


24 Op. cit., p. 72.
25 P. 256.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 135

do poder-agir de outrem. Mas pior ainda: na


tortura, o que o executor procura atingir e por
vezes – enfim – consegue destruir, é a auto-
estima da sua vítima, estima que a passagem
pela norma elevou à categoria de respeito por si
mesmo... (grifamos)26

Deparamo-nos também com a dimensão política, em que Ricoeur
reforça a idea de reconhecimento no intercâmbio plural com os outros. E
considera a justiça como o valor que deve prevalecer no espaço público,
seguindo as conclusões de John Rawls enunciadas em Uma teoria de justiça.
Na fórmula “cada qual” está implícita o sujeito digno de respeito, pronto a
deliberar e a ser estimado no processo de distribuição da justiça:

Agora é possível indagar quais valores éticos


específicos pertencem a esse nível propriamente
político da instituição. Pode-se dizer, sem hesitar,
a justiça. “A justiça – escreve Rawls, no início
de Théorie de la justice – é a primeira virtude
das instituições sociais, assim como a verdade é
a primeira virtude dos sistemas de pensamento”.
Ora, quem é o defrontante da justiça? Não o
tu identificável por teu rosto, mas cada um na
qualidade de terceiro. “A cada um o que lhe cabe”,
esse é seu lema. A aplicação da regra de justiça
às interações humanas supõe a possibilidade de
considerar a sociedade como um vasto sistema de

26 Pp. 256-257. Tradução utilizada do livro de Olivier Abel, Paul Ricoeur – a


promessa e a regra, pp. 72-73.
136 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

distribuição, ou seja, de partilha de papéis, encargos


e tarefas, muito além da simples distribuição de
valores mercantis no plano econômico. A justiça,
nesse aspecto, tem a mesma extensão das “ordens
do reconhecimento” de que falamos acima.27

Pretende-se ressaltar o entrelaçamento da justiça com a formação


de um sujeito capaz de reconhecimento, tendo Ricoeur rechaçado as
concepções de um Estado autoritário meramente protetoras, e os expedientes
infantilizantes promovidos por um Estado-providência. Como asssevera
Olivier Abel, “Ricoeur fala, então, do papel tutelar do Estado e do Direito na
restauração desse sujeito na estima e no respeito de si próprio e dos outros,
responsável mesmo na sua própria fragilidade e irresponsabilidade.”28
Com efeito, a referência a Rawls apresenta-se apropriada no sentido
de que questões de filosofia moral são freqüentes no debate contemporâneo
no que tange à Política, ao Direito e à Justiça. Importa destacar que o
pensamento rawlsiano parte do pressuposto de que os agentes na posição
originária são pessoas racionais, morais, aptas a deliberar e a subscrever o
pacto político calcado em princípios morais. Rawls afirma no artigo, A teoria
da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica, que “uma
concepção política de justiça é uma concepção moral”29, capaz, assim, ser o
cimento teórico da democracia constitucional. Essa premissa considera os
sujeitos credenciados a participar de uma discussão política razoável, tendo
como base o senso de justiça e a concepção do bem, o que é explicado por
Rawls na mesma passagem:
... Podemos explicar essa concepção da pessoa

27 Quem é o sujeito do direito? In: O justo, parte 1, pp. 29-30.


28 Op. cit., p. 110.
29 In: Justiça e democracia, p.203.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 137

da seguinte maneira: como as pessoas podem ser


membros integrais de um sistema eqüitativo de
cooperação social, nós lhes atribuímos as duas
faculdades morais que correspondem à idéia de
cooperação social tal como ela foi descrita mais
acima, a saber, ser capaz de um senso da justiça
e de uma concepção do bem. O senso da justiça é
a capacidade de compreender, aplicar e respeitar
nos seus atos a concepção pública da justiça
que caracteriza os termos de uma cooperação
eqüitativa. E ser capaz de uma concepção do bem é
poder formar, revisar e buscar racionalmente uma
concepção de nossa vantagem ou bem. No caso da
cooperação social, é preciso não tomar esse bem
no sentido estreito, mas concebê-lo como tudo o
que tem valor na vida humana.”30

Paul Ricoeur tem por finalidade igualmente a constituição de um


sujeito plenamente habilitado a assumir o seu papel na sociedade, vale dizer,
a exercer a cidadania, como condição imprescindível para o desabrochar
completo de seu intelecto e para o exercício do jogo político. Ser reconhecido
e, da mesma forma, reconhecer o outro, o igual, o diferente, o exótico,
conferindo com consciência o que é de “cada qual”. Ser justo na esfera
pessoal, social e política, alcançando o nível de humanidade que o tornará
digno de estima e de respeito. Ricoeur conclui:
... Sem a mediação institucional, o indivíduo é
apenas um esboço de homem; para sua realização
humana é necessário que ele pertença a um corpo
político; nesse sentido, essa pertença não é passível
de revogação. Ao contrário. O cidadão oriundo
dessa mediação institucional só pode querer que

30 Ibid, p. 216.
138 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

todos os humanos gozem como ele essa mediação


política que, somando-se às condições necessárias
pertinentes a uma antropologia filosófica, se torna
uma condição suficiente de transição do homem
capaz ao cidadão real. 31

Nesse diapasão, Rawls afirma que os direitos humanos constituem


uma categoria especial de direitos, em especial por promoverem a decência
das instituições políticas e sociais. Não se pode projetar uma sociedade de
sujeitos emancipados a menos que a educação lhes aperfeiçoe sentimentos
de respeito e de estima própria; caso contrário, os homens estarão sempre
condenados a viver sob a tutela de governos autocráticos. Rawls explicita:

Os direitos humanos são distintos dos direitos


constitucionais ou dos direitos da cidadania
democrática liberal, ou de outros direitos que são
próprios de certos tipos de instituições políticas,
individualistas e associativas. Eles estabelecem
um padrão necessário, mas não suficiente, para a
decência das instituições políticas e sociais. Ao
fazê-lo, limitam o Direito nacional admissível de
sociedades com boa reputação em uma Sociedade
dos Povos razoavelmente justa [...] (grifamos)32

Decorre dessas reflexões a necessidade de modelagem de um sujeito


de direito plenamente capaz, para a plena concretização dos Direitos do
Homem neste século que inicia. A indispensabilidade da solidificação do

31 Quem é o sujeito do direito? In: O justo, parte 1, pp. 29-30.


32 O direito dos povos: seguido de “A idéia de razão pública revista”, p.104.
Dimensão Dialógica e Institucional do Justo 139

sujeito de direito, que não se esgota no mero conceito jurídico de ser titular
de direitos e obrigações, mas pressupõe o emprego da liberdade, conforme
analisa Stephan Kirste, para quem o sujeito de direito assume a titularidade
de atribuições morais e jurídicas e, portanto, torna-se detentor de dignidade
humana. Assim sintetiza Kirste:

... Ser sujeito de direito é possuir a maior dignidade


que o Direito proporciona; significa ter a capacidade
de fazer uso jurídico da própria liberdade. Essa
capacidade é concretizada quando se atribuem
certos direitos ao sujeito. O direito que a dignidade
humana proporciona é o da reivindicação do
reconhecimento da capacidade jurídica de cada ser
humano. Se ter capacidade jurídica significa ser
sujeito de direito, esta reivindicação é satisfeita tão
logo um ser humano seja sujeito da atribuição de
direitos, e não mero objeto de direitos.33

Cuida-se, sem dúvida, do ponto nuclear a partir do qual o debate


sobre a justiça e os direitos do homem devem gravitar, visando a gerar
sociedades mais decentes.

III. Conclusão

O detalhamento do roteiro apresentado por Paul Ricoeur remete-nos
à busca de um ponto intermédio em que a justiça localiza-se no cruzamento
de eixos permeados por considerações filosófico-jurídicas. É importante

33 A dignidade humana e o conceito de pessoa de direito. In: MAURER, Béatrice et


al. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, p. 194.
Ver também as esclarecedoras informações dadas pelos revisores na nota de rodapé de nº 24
do mesmo artigo, pp. 178-179.
140 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

salientar o aspecto da intersubjetividade inerente à definição da justiça,


conceito tradicional no pensamento jusfilosófico ocidental.
Com efeito, o marco teórico trazido para uma investigação sobre
a justiça analisada pelo ângulo da alteridade demonstrou a sua perfeita
adequação. Ricoeur reforça a dimensão dialógica das etapas de constituição
do justo, acrescida com a intermediação de instituições justas no plano
político.
Sobretudo, o aporte ricoeuriano permite dar visibilidade ao sujeito
de direito, apto a ser estimado e respeitado, e, portanto, a constituir-se em
agente ético na reflexão e construção da legalidade e das decisões judiciais,
e sobretudo, na formação de sociedades mais justas.

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Cap. 6: Reflexões sobre a hipertrofia
do poder executivo
Marco Aurélio Casamasso1

Se a atividade governamental do líder


e dos Executivos é uma condição
para um bom governo, também é
necessário seu controle político.
É preciso recordar que o governo
efetivo e o governo controlado são
duas faces da mesma moeda.  
Sergio Fabbrini,
O Príncipe democrático.


Face mais proeminente do panorama político, o poder executivo
carrega a fardo existencial da ambivalência: incumbido de agir por meio
da virtude política que propicia a direção, a prosperidade e a segurança da
sociedade, não raro subverte as noções de justo e injusto, violando direitos e
liberdades em nome de um bem maior que julga proteger.
Essa duplicidade no agir não cessa de manifestar-se ao longo da
história. As lições extraídas das experiências políticas mais traumáticas – o
autoritarismo e o totalitarismo – são logo esquecidas, quando, por exemplo,
diante da pobreza endêmica ou da crise econômica, surge o líder carismático,
ou o chefe empreendedor, que clama por mais poder, a fim de levar a cabo
um projeto de transformação da sociedade.
A moderna teoria da separação de poderes procurou aplacar os riscos

1 Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e Mestre em Teoria do Estado e da


Constituição pela PUC-RIO. Atualmente é Professor dos Cursos de Direito da UCAM, do
IBMEC e professor adjunto da Universidade Católica de Petrópolis.
144 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

inerentes à atividade de governar, propondo mecanismos para o controle do


poder executivo. O surgimento dos modernos Estados constitucionais, a partir
do final do século XVIII, foi o primeiro passo na institucionalização daqueles
mecanismos. Neste sentido, ao condicionar a existência da Constituição à
adoção do princípio da separação de poderes, o célebre art. 16 da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, constitui o corolário de uma
conquista política sem precedentes na história da humanidade, capitaneada
pelos revolucionários norte-americanos e franceses.
A disseminação do ideal de limitação do poder político, contudo,
alcançou um sucesso apenas tímido e parcial na dura realidade política. De
fato, a evolução das instituições políticas e a crescente complexidade dos
problemas submetidos aos governantes, parecem querer ridicularizar as
tentativas de se conter no perímetro da lei o cada vez mais atarefado poder
executivo. Mais importante, argumentarão alguns políticos, é apresentar
soluções e concretizar políticas públicas. Se necessário for, dirão eles,
deverão os rigores da lei ser abrandados e as exigências dos organismos
de fiscalização contornadas, a fim de que o líder possa consumar a sua
obra política. E caso haja uma oposição partidária atuante, esta deverá ser
prontamente cooptada com favores e benesses governamentais.
Ora, diante de um cenário tão familiar aos brasileiros e à grande
maioria dos latino-americanos, torna-se recomendável reexaminar o papel
e as dimensões do poder executivo, levando-se em consideração o fato de
que a existência do Estado democrático de direito e da efetiva proteção dos
direitos humanos está associada essencialmente à prática institucional da
limitação do poder político.

1. Revisitando o poder executivo na moderna teoria da separação de


poderes
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 145

A moderna teoria da separação de poderes foi concebida como


remédio contra os males decorrentes do absolutismo monárquico. Urgia
combater a descomunal pujança do monarca, cuja figura sagrada e soberana
– por definição refratária ao efetivo controle da lei – manifestava-se por
meio de vontades e atos incontrastáveis. Entre os seus múltiplos poderes,
sobressaia aquele que executava as decisões soberanas, convertendo-as em
ações concretas e tangíveis. De fato, o poder de executar impunha-se como
a própria força capaz de materializar a obediência, ainda que à custa do
sacrifício da fé, da riqueza ou da vida, como ordinariamente ocorria quando
os súditos viam-se obrigados a comungar uma religião, a pagar pesados
tributos ou a participar das corriqueiras guerras em nome da Coroa. Para
os primeiros teóricos modernos da separação de poderes, o grande desafio
consistia em conter, controlar e domesticar o poder absoluto do monarca,
submetendo-o ao direito. Do contrário, não haveria liberdade.
No cerne das propostas políticas de Locke e de Montesquieu pode-
se encontrar a celebração do princípio da supremacia da lei, expressa na
aguerrida defesa de um governo despojado de vontade livre e arbitrária,
que age de forma programada e previsível, com base em regras jurídicas
objetivas e estáveis. O desígnio dos autores, in nuce, era promover o triunfo
do antigo ideal do governo das leis sobre o governo dos homens.
Eis a razão pela qual encontramos no Segundo Tratado sobre o
Governo, de Locke, o legislativo caracterizado como um poder supremo,
a ser estabelecido pela “primeira lei positiva e fundamental” da sociedade
política.2 Por seu turno, o executivo, exercido pelo monarca e apartado do

2 John Locke, Segundo tratado sobre o governo, 2.ed., São Paulo: Abril Cultural,
1978, cap. XI, § 134, p.86.
146 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

legislativo, apresenta-se como um poder “visivelmente subordinado”.3


Na obra Do Espírito das Leis, Montesquieu alerta para a relação que
se inicia com a concentração dos poderes legislativo e executivo “na mesma
pessoa ou no mesmo corpo de magistratura”, e que culmina, inevitavelmente,
na perda da liberdade dos indivíduos submetidos aos governantes.4 O autor
corrobora a constatação com exemplos extraídos da realidade européia do
seu tempo, concluindo que os príncipes despóticos “começaram sempre
reunindo em sua pessoa todas as magistraturas; e vários reis da Europa, todos
os grandes cargos do seu Estado”.5 Como fizera Locke, Montesquieu propõe
que se distinga o detentor do poder executivo da autoridade encarregada da
elaboração da lei.
Mas a submissão do monarca – ou de qualquer outro que venha
exercer o executivo – à lei não supera todos os obstáculos concernentes
à compatibilização do poder político com a liberdade. Certamente,
a institucionalização de um Estado de direito a partir do controle e

3 Idem, cap. XIII, § 152, p. 94. Grifo nosso.


4 Montesquieu, Do espírito das leis, 2.ed., São Paulo: Abril Cultural, 1979, Livro XI,
cap. VI, p. 149.
5 Idem, ibidem. A proposta de limitação do poder político de Montesquieu contempla,
além do legislativo e do executivo, o poder judiciário. Locke, por seu turno, menciona os
poderes legislativo, executivo e federativo (este, atrelado ao executivo). Kiyoshi Simokawa
demonstra estranheza perante o fato de o judiciário, na teoria de Locke, ser considerado uma
função intrínseca ao legislativo, mas que, “historicamente falando”, o Parlamento inglês
exerceu funções judiciárias, funcionando, também, como a “Alta Corte do Parlamento”.
Entretanto, o mais convincente, segundo ele, é considerar que Locke “não colocou o poder
judiciário em um ramo fixo do governo”. Kiyoshi Simokawa, Locke’s concept of justice, in
Peter Anstey The Philosophy of John Locke: new perspectives, New York: Routledge, 2006,
p. 73. Igualmente, Jean-Jacques Chevallier observa: “pode-se raciocinar em função apenas
de dois poderes, uma vez que o judiciário não tem lugar à parte e constitui “o atributo
geral do Estado””. História do pensamento político, tomo 2: o declínio do Estado-nação
monárquico, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983, p. 47.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 147

abrandamento do poder monárquico configura uma das maiores conquistas


da moderna teoria da separação de poderes. Contudo, não se deve olvidar
que, além de comprometer-se a preservar a liberdade, o governo limitado e
legítimo, no sentido liberal que lhe foi atribuído por Locke e Montesquieu,
deverá igualmente distinguir-se pela eficiência e capacidade de garantir a
estabilidade política.
De fato, o imperativo do sucesso no que se refere ao cumprimento
das tarefas administrativas e às conquistas sociais e econômicas almejadas
pela parcela majoritária de uma sociedade surge, mais cedo ou mais tarde,
como requisito incontornável para a manutenção da paz e a garantia da
governabilidade. Dessa implacável exigência repetida à exaustão ao longo da
história, pode-se extrair uma fórmula política, que, em termos simplificados,
condiciona a legitimidade – aqui entendida como fator indispensável à
permanência e à durabilidade das sociedades políticas – dos que exercem o
poder executivo, à eficiência estatal e governamental.
O problema é que a busca pela eficiência por parte dos governantes
amiúde alimenta uma tensa relação com as liberdades e os direitos dos
governados. Para aqueles que estão à frente do Estado, não é incomum que as
limitações impostas pelo direito – em especial as limitações constitucionais
e administrativas – se mostrem inconciliáveis com as únicas soluções tidas
por satisfatórias e exeqüíveis em face das crises e dos grandes problemas
sociais e econômicos que afligem a sociedade. Não é infreqüente, também,
que, do ponto de vista dos cidadãos, a promoção de políticas públicas
acarrete sensíveis perdas de direitos e liberdades, independentemente de ser
ou não conduzida de acordo com a lei, como ilustram as medidas adotadas
contra a desigualdade social e a pobreza, que, não raro, são criticadas por
grandes proprietários, e até por trabalhadores assalariados, sob a acusação de
violarem o direito de propriedade e a capacidade tributária dos contribuintes.
148 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Igualmente, na luta contra a criminalidade, o Estado poderá diminuir o campo


da autonomia individual, impedindo que pessoas pratiquem determinadas
ações, como a de portar armas para a autodefesa. O mesmo poderá ocorrer
por ocasião do combate a uma epidemia, ou da adoção de políticas sanitárias
de prevenção contra moléstias, quando hábitos e costumes arraigados
poderão sofrer severas restrições por parte do Poder Público, como é o caso
da proibição do consumo de tabaco e bebidas alcoólicas em determinadas
circunstâncias.
Esse breve rol exemplificativo nos permite antever, no cenário
realista das sociedades, a difícil tarefa de se ajustar o exercício limitado do
poder político à prova da eficiência governamental. Assim, para um governo
comprometido com políticas progressistas, é bem provável que as limitações
impingidas ao poder político pelo direito representem um obstáculo para a
execução do seu projeto de transformação social. Não surpreenderá, neste
caso, o reclame do governante pela diminuição das restrições jurídicas no
que concerne ao exercício do poder, a fim de obter os instrumentos e recursos
que julga necessários à realização das suas políticas.
Mas afinal, como conciliar, no âmbito da moderna teoria da separação
de poderes, as duas exigências potencialmente antagônicas e, em princípio,
reciprocamente excludentes: a limitação do poder político e a eficiência na
solução dos inúmeros problemas que afligem a sociedade?
Locke e Montesquieu não ignoraram a difícil compatibilização
do projeto que propugnavam – o da limitação do poder político – com as
exigências relativas à governabilidade e à eficiência. E mesmo que não
tenham, em nenhum momento, deixado de advogar em favor de um Estado
baseado na prevalência da lei e no respeito aos direitos e às liberdades
dos cidadãos, eles terminaram, em alguma medida, por ceder em prol do
poder. Com efeito, não é exagero afirmar que, nas suas teorias políticas, o
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 149

instrumental oferecido para o arrefecimento e o controle do poder executivo


é paradoxalmente contrabalançado pela prescrição de mecanismos que
visam a robustecê-lo – o próprio executivo –, conferindo-lhe maior liberdade
e agilidade em face dos outros poderes.
No Segundo Tratado sobre o Governo, a preocupação de Locke com
a eficiência salta aos olhos. Segundo o autor, nos casos em que a integridade
do bem comum estiver em risco, o detentor do poder executivo deverá
ter a possibilidade e a capacidade de agir com mais liberdade. Trata-se da
prerrogativa – espécie de “permissão” 6 conferida pelo povo ao governante–,
que implica “o poder de agir de acordo com a descrição a favor do bem
público, sem a prescrição da lei e muita vez mesmo contra ela...”.7 Ou
seja, “a prerrogativa não é senão o poder de fazer o bem público sem se
subordinar a regras”.8 Mas a quem caberá avaliar se o bem comum encontra-
se ou não em risco? Locke responde: “o bem da sociedade exige que várias
questões fiquem entregues à discrição de quem dispõe do poder executivo”.9
Eventuais abusos poderão ser julgados pelo povo, que, em última instância,
poderá destituir o governante até mesmo com o uso da força.10 Entretanto,
essa solução para frear o governante no caso de abuso da prerrogativa nos
parece pouco convincente, porquanto o direito de insurreição do povo contra
a tirania, tal como propugnado por Locke, é de difícil exercício,11 mais se
assemelhando a uma reminiscência do direito natural do que, propriamente,
a um direito institucionalizado.

6 John Locke, Segundo Tratado sobre o governo, cap. XIV, § 164, p. 99.
7 Idem cap. XIV, § 159, p. 98.
8 Idem, cap. XIV, § 166, p. 100. Grifo do autor.
9 Idem, XIV, § 159, p. 98.
10 Idem, XVIII, § 204, p. 115.
11 O próprio Locke reconhece as dificuldades para o exercício do direito de insurreição.
Veja-se, neste sentido, idem, cap. XIX, §§ 224, 225 e 226, pp. 122 e 123.
150 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Além da prerrogativa, a distinção de poderes proposta no Segundo


Tratado abrange outras características que parecem favorecer a preservação
de resquícios da força e da grandeza do antigo poder monárquico. Assim, a
recomendação para que o executivo atue permanentemente, sem interrupções,
é seguida da advertência de que será inconveniente e perigosa a atuação
ininterrupta do legislativo, que, contrariamente àquele poder, não deverá
estar sempre a postos. 12 Por essa razão, caberá ao poder executivo convocá-
lo e dispensá-lo, conforme julgar conveniente para o bem público.13 Sem
embargo da distinção de poderes por ele proposta, Locke não desconhece
o direito de o detentor do poder executivo participar do poder legislativo. 14
Em Do Espírito das Leis também se encontram exemplos que atenuam
o objetivo de se enfraquecer o poder do monarca. É assim que Montesquieu
confere ao executivo o direito ao veto, o que lhe permitirá “participar da
legislação”,15 interrompendo o processo legislativo. Por sua vez, o legislativo
não poderá “participar da execução”, pois, neste caso, o executivo estaria

12 Idem, cap. XII, § 143, p. 91: “... não há necessidade de manter-se tal poder [o
legislativo] permanentemente em exercício, pois que nem sempre teria no que se ocupar”.
Passagem semelhante pode ser encontrada no cap. XIII, § 153, p. 94: “não é necessário,
tampouco conveniente, que o poder legislativo esteja sempre reunido; mas é absolutamente
necessário que o poder executivo seja permanente... (...) O mesmo se aplica ao poder
federativo...”.
13 Idem, cap. XIII, § 156, p. 95: “Reuniões constantes e freqüentes do legislativo, e
longa permanência das assembléias quando não fossem necessárias, só poderiam tornar-se
pesadas para o povo, devendo necessariamente com o tempo produzir transtornos perigosos
e contudo a mudança rápida dos negócios poderia muita vez ser de tal ordem que exigisse
imediato auxílio por parte do legislativo”.
14 Idem, cap. XIII, § 151, p. 93: “em algumas comunidades, em que o legislativo
não está sempre reunido, e o executivo está investido em uma única pessoa que também
toma parte no legislativo, esta pessoa única também pode chamar-se suprema, em sentido mui
tolerável...”.
15 Montesquieu, Do espírito das leis, livro XI, cap. VI, p. 153.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 151

“perdido”.16 E como a pessoa do monarca “deve ser sagrada”,17 quaisquer que


sejam os resultados do seu governo, nem a sua pessoa, nem a sua conduta,
poderão ser julgados pelo Legislativo.18 Ao executivo caberá convocar e
determinar a duração das assembléias do legislativo.19 E, ainda, é outorgado
ao executivo o controle do exército, uma vez estabelecido pelo legislativo.20
Esses exemplos revelam o cuidado de Montesquieu em preservar
um espaço para a atuação mais livre e desembaraçada do poder executivo,
a fim de se evitar a usurpação da liberdade dos cidadãos pelo legislativo, e,
principalmente, de se impedir o emperramento da máquina estatal. São essas
concessões feitas ao monarca que levam Jean-Claude Colliard a concluir
que, na prática, a combinação ideal de poderes pretendida Montesquieu
implicava o domínio do legislativo pelo executivo.21
O arrefecimento do controle do poder executivo em Locke e
Montesquieu põe a descoberto, na moderna teoria da separação de poderes,
um duplo esforço: o primeiro, objetivando a limitação do poder político,
volta-se para a liberdade; o segundo, visando à garantia da governabilidade
e da eficiência estatal, procura garantir a preservação de algumas das velhas
prerrogativas monárquicas, com inclinação mais absolutista do que liberal,
em benefício do poder executivo.

16 Idem, ibidem.
17 Conforme Montesquieu, “Sua pessoa deve ser sagrada porque, sendo necessária
ao Estado a fim de que o corpo legislativo não se torne tirânico, desde o momento em que for
acusada ou julgada, a liberdade desapareceria”. Idem, p. 152.
18 O que, segundo Montesquieu, não impede que os conselheiros do monarca possam
ser julgados: “Mas, como quem executa não pode executar mal sem ter maus conselheiros,
que, como ministros, odeiam as leis, apesar de favorecê-las como homens, estes últimos
podem ser perseguidos e punidos”. Idem, ibidem.
19 Idem, pp. 151 e 152.
20 Idem, p. 153
21 Jean-Claude Colliard, Séparation des pouvoirs, in Olivier Duhamel e Yves Mény
(dirs.), Dictionnaire Constitutionnel, Paris: PUF, 1992, p. 973.
152 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

A dificuldade inerente a esse duplo esforço procede, sobretudo,


do seu caráter paradoxal. A contradição evidencia-se porque a teoria da
separação de poderes vê-se obrigada, em última instância, a promover uma
harmonia em princípio irrealizável: a conciliação da defesa da liberdade
dos indivíduos com o extenso e tentacular poder corporificado pelo Estado
Moderno.

2. O vício essencial do poder executivo

A menção ao nome Jean-Jacques Rousseau poder soar estranha


no contexto da moderna teoria da separação de poderes. Afinal, o filósofo
genebrino defendeu, em oposição a Locke e a Montesquieu, um modelo de
soberania popular refratário a limitações. Nada obstante, pode-se encontrar
na obra Do contrato social uma análise original e percuciente do governo,
na qual são expostas, com rara obstinação, as perigosas potencialidades
inerentes ao exercício do poder executivo.
O autor estabelece uma diferença radical entre soberano e governo
que será de fundamental importância para a compreensão da essência
do seu projeto político. Por soberano,22 deve-se entender, em síntese, o
conjunto dos indivíduos que, por intermédio de um pacto, se uniram para

22 No repertório conceitual de Rousseau, corpo político, república, Estado, potência,


soberano e povo apresentam-se como termos que designam um mesmo objeto, tomado a partir
de perspectivas diversas: “Essa pessoa pública que se forma [após a celebração do contrato
social], desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e,
hoje república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando
passivo, soberano quando ativo e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto
aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular,
cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às
leis do Estado”. Segundo observa o próprio autor, “esses termos, no entanto, confundem-se
freqüentemente e são usados indistintamente”. Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social,
2.ed., São Paulo : Abril Cultural, 1978, livro I, cap. VI, pp. 33 e 34. Grifos do autor.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 153

formar uma associação política, tornando-se cidadãos. Ou seja, trata-se do


povo incorporado, que, na sua inteireza, como soberano, possui um poder
absoluto.23 Cabe ao soberano – ao conjunto dos cidadãos – aprovar as leis,24
que nada mais são do que a expressão da vontade geral, isto é, da vontade do
próprio povo enquanto corpo político.25
Com o objetivo de preservar a integridade e a prevalência da vontade
geral no seio da sociedade política, Rousseau propõe a existência de um
governo que, instituído pelo povo por meio da lei, terá a incumbência de
executar as leis em relação aos indivíduos em particular, e de garantir a
manutenção da liberdade civil e política.26 O governo surge, por conseguinte,
como um “corpo intermediário”, disposto entre o soberano e os súditos.27
Sem ele, a execução das leis ficaria nas mãos do próprio soberano, que
passaria a atuar tanto em função do geral – da sociedade política como um
todo –, por ocasião da elaboração da lei, quanto do particular – dos súditos
destinatários da lei –, quando da aplicação da legislação ao caso concreto. Ora,

23 De acordo com Rousseau, “assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto
sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre
todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse, o
nome de soberania”. Idem, livro II, cap. IV, p. 48.
24 De forma pragmática, Rousseau propõe a existência de um legislador, espécie de
homem extraordinário, a quem caberia a redação das leis. Não se trata, porém, do autêntico
legislador que faz aprovar as leis: “Aquele, pois, que redige as leis, não tem nem deve ter
qualquer direito legislativo. O próprio povo não poderia, se o desejasse, despojar-se desse
direito incomunicável, porque, segundo o pacto fundamental, só a vontade geral obriga os
particulares e só podemos estar certos de que uma vontade particular é conforme à vontade
geral depois de submetê-la ao sufrágio livre do povo”. Idem, livro II, cap. VII, p. 58.
25 Para Rousseau, a vontade geral é distinta da vontade de todos: “há comumente
muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao interesse
comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das vontades particulares.
Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que nela se
destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral”. Idem, livro II, cap.
III, pp. 46 e 47.
26 Idem, livro III, cap. I, p. 74.
27 Idem, ibidem.
154 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

para Rousseau, a figura do soberano híbrido – simultaneamente legislador


e executor da lei – constitui anomalia inconciliável com o regime político
baseado na igualdade e na liberdade, visto que o lidar com os particulares,
irremediavelmente o levaria a afastar-se do interesse geral, favorecendo os
interesses particulares.28
A grande inovação em Rousseau está no fato de que o governo –
quer seja monárquico, aristocrático ou democrático29 – age como se fosse
um particular perante o soberano, que, vale repetir, não é o governante,
mas o povo. É na ânsia de querer sobreviver, que o governo “despende um
esforço contínuo contra a soberania”,30 isto é, contra o povo, residindo “aí
o vício inerente e inevitável” 31 do executivo. Trata-se de um vício que não
é específico de um governo em especial, mas de todas e quaisquer formas
de governo, indistintamente. Em condição análoga à universal e inexorável
regra da sobrevivência que rege o universo dos seres vivos, os governos já
surgem, de acordo com o autor, com uma disposição vital, qual seja a de lutar
pela sobrevivência ainda que à custa do sacrifício dos direitos e da liberdade
do povo. Daí o vício essencial, que, quando manifesto, tornará o governo
ilegítimo.
As reflexões de Rousseau sobre o vício essencial do governo nos
alerta para o inevitável risco que representa o executivo em face do povo

28 Ensina Rousseau que “... o poder executivo não pode pertencer à generalidade
como legisladora ou soberana, porque esse poder só consiste em atos particulares que não são
absolutamente de alçada da Lei, nem conseqüentemente da do soberano, cujos atos todos só
podem ser leis”. Idem, ibidem.
29 Sobre as formas de governo em Rousseau, vide livro III, caps. II a IX. Como afirma
o autor, “quando, pois, se pergunta, de modo absoluto, qual é o melhor governo, faz-se uma
pergunta tão insolúvel quanto indeterminada ou, em outras palavras, ela tem tantas obas
soluções quantas combinações possíveis há nas posições absolutas e relativas dos povos”.
Idem, livro III, cap. IX.
30 Idem, livro II, cap. X, p. 99
31 Idem, ibidem.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 155

e dos próprios indivíduos, considerados isoladamente. Todavia, Rousseau


não propõe um sucedâneo capaz de tornar dispensável o governo, mas sim a
presença de mecanismos – alguns ilustrados a partir da experiência da antiga
Roma – que garantam o efetivo controle daqueles que executam a lei.32 Mais
importante, para Rousseau, é saber conviver com esse risco, sem permitir
que o vício essencial do Executivo destrua o Estado, “assim como a velhice
e a morte destroem, por fim, o corpo do homem”.33
Locke e Montesquieu não chegaram a tratar do abuso do poder
político da perspectiva de um vício, nos moldes da formulação rousseauniana,
o que no entanto não os impediu de considerar o problema a partir de uma
espécie de fatalidade antropológica: os homens tendem a abusar do poder,
quando concentrado em suas mãos.34

3. O poder executivo: o ator principal do universo político

A despeito das sensíveis diferenças, as análises de Locke,


Montesquieu e Rousseau convergem para o reconhecimento da grandeza
e indispensabilidade do poder executivo. Malgrado os riscos de desvios,
arbitrariedades e abusos, a atuação do governo – aqui entendido como restrito
ao executivo – mostra-se necessária e insubstituível, qual uma fatalidade
política, a ser concretamente vivenciada pela totalidade das associações

32 Um dos exemplos é o que Rousseau denomina tribunato, incumbido da “conservação


das leis e do poder legislativo”. Idem, livro IV, cap. V, p. 131.
33 Idem, livro III, cap. X, p. 99.
34 Locke associa o apelo ao abuso do poder presente nas sociedades políticas a uma
“tentação demasiado grande para a fraqueza humana”. John Locke, Segundo tratado sobre o
governo, cap. XII, § 143, p. 91. Montesquieu, por sua vez, afirma que “... a experiência eterna
mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites”.
Do espírito das leis, livro II, cap. IV, p. 148.
156 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

políticas.
Esse reconhecimento guarda, por sua vez, estreita relação com a
apreciação do lugar e da importância do poder executivo, quando confrontado
com os outros poderes estatais. Em que pesem as diligências da moderna teoria
da separação de poderes em prestigiar o legislativo e em alçar o judiciário à
posição de poder capaz de frear os outros poderes, o executivo acaba sempre
por despontar, no seu horizonte, como o centro político por excelência:
gravitam ao seu redor a eficiência governamental e a estabilidade política,
ou / e, inversamente, a ineficiência governamental e a instabilidade política.
Essa duplicidade governamental é explicada por Sergio Fabbrini a partir
da hercúlea tarefa do líder que precisa fazer promessas de mudanças aos
cidadãos e, simultaneamente, garantir, à frente do executivo, a segurança:
ele “deve ter um pé na desordem da descontinuidade e outro na ordem da
continuidade”.35
Sem se afastar do propósito da limitação do poder político, autores
contemporâneos não deixaram de expor os aspectos menos convencionais
do poder executivo, quando considerado da perspectiva da separação e do
equilíbrio entre os poderes. Ao examiná-lo, Jean Blondel põe em relevo
duas das suas características históricas que o distinguem vantajosamente
em face dos poderes legislativo e judiciário. Segundo ele, o governo36 – o

35 Sergio Fabbrini, El ascenso del Príncipe democrático: quién gobierna y cómo se


gobiernan las democracias, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009, p. 253.
36 O autor não desconhece o fato de os diversos governos existentes na história
apresentarem profundas diferenças. Quanto à dificuldade de se oferecer um conceito
referencial de governo, ele destaca a falta de nitidez no que se refere à sua extensão: “Se o
governo é um conjunto de indivíduos (não é, com efeito, necessariamente uma ‘equipe’ no
sentido forte do termo, pois esta palavra sugere um caráter coletivo nem sempre têm), não se
pode sempre determinar facilmente os limites deste conjunto”. E termina por concluir que,
“um exame, mesmo rápido, sugere que se a noção de governo tem talvez um núcleo ‘duro’
composto de líderes e de certos ministros ao menos, ela comporta uma zona mais vaga, uma
pequena nebulosa...”. Jean Blondel, Gouvernements et exécutifs parlements et législatifs, in
Madeleine Grawitz e Jean Leca (dirs.), Traité de Science Politique: Les régimes politiques
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 157

executivo – possui o caráter de centralidade, situando-se “no coração mesmo


da organização política”, sendo, “manifestamente um elemento importante,
e mesmo o mais importante da vida política”.37 Ainda nas ocasiões em que
o governo se encontre em dificuldades para exercer o pleno domínio sobre
uma determinada situação, ele permanece como o “órgão essencial da vida
política”.38 Além da centralidade, mas seguramente em decorrência dela, a
universalidade é outra característica distintiva do governo, cuja existência
manifesta-se em todos os quadrantes do universo político, inclusive naqueles
onde não se encontram assembléias ou partidos políticos, erigindo-se como
“entidade reconhecida, visível”, não raro com “aparência fisicamente
definida”.39 Nos termos da universalidade referida pelo autor, o executivo
tem precedência histórica em relação aos outros poderes.
A par dessas características, o governo possui, de acordo com Jean
Blondel, funções específicas que o definem e o diferenciam perante os outros
poderes estatais: 40

– a função de concepção, que consiste basicamente em um “esforço


de imaginação”, focado na descoberta de soluções para os diversos
problemas enfrentados pela sociedade, expressas na formulação de políticas
agrárias, econômicas, industriais, educacionais, de transporte, de saúde, de
combate à desigualdade etc.;
– a função de execução, que exige o controle de uma administração,
e o acesso a recursos financeiros, tecnológicos e de pessoal, para a
concretização das políticas concebidas pelo governo;

contemporains, v. 2, Paris : Puf, 1985, p. 356.


37 Idem, p. 355.
38 Idem, ibidem.
39 Idem, ibidem.
40 Idem, p. 358.
158 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

– a função de coordenação, incumbida de harmonizar as diversas


políticas governamentais, de forma a impedi-las de conflitar entre si,
estipulando prioridades e estabelecendo o cronograma de suas realizações;

O autor identifica ainda uma quarta função – por ele considerada


preliminar –, expressa por meio da atuação do líder. Diferentemente do
que ocorre com as outras funções já referidas, que em regra demandam a
participação de um conjunto numericamente mais amplo dos integrantes do
executivo, a atividade da liderança restringe-se ao círculo mais íntimo do
governo, compreendendo aí o “chefe ou chefes de governo”: 41

– a função de impulsão, que, conexa à legitimidade, implica, em


termos gerais, a capacidade de o líder motivar a população a abandonar
impressões e juízos pessimistas, de modo a fazê-la pensar que as ações e
políticas governamentais darão resultados positivos.

Josep Vallès também procede a uma análise do poder executivo pouco


ou nada condizente com um cenário de equilíbrio entre os poderes. O autor
identifica no executivo “o núcleo histórico essencial da atividade política, na
sua expressão mais elementar”.42 Soma-se ao caráter da centralidade, o da
precedência: “não é concebível uma organização política sem a existência
de uma instituição executiva, conquanto tenham sido possíveis organizações
políticas que não contavam com parlamentos e tribunais”.43 Pela forte
similitude, as características assinaladas por Josep Vallès coincidem com
aquelas identificadas por Jean Blondel. Com efeito, a primazia histórica

41 Idem, p. 357.
42 Josep M. Vallès, Ciencia Política: una introducción, 4.ed., Barcelona: Ariel, 2004,
p. 187
43 Idem, ibidem.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 159

do executivo o torna universal, revelando sua imprescindibilidade política


espaço-temporal.
Ao considerar a hegemonia do executivo, Josep Vallès explica que
o fenômeno não pode ser considerado como “fato excepcional ou singular”,
pois, “na história das formas políticas, os executivos – em suas diversas
variantes – sempre ocuparam uma posição dominante”.44
Cinco funções fundamentais concorrem para a superioridade do
executivo, de acordo com Josep Vallès: 45

– A função de assumir a iniciativa política principal e de tomar a
frente na adoção de soluções políticas, no sentido de promover intervenções
globais nos conflitos coletivos, aplicando e executando as medidas adotadas;
– A função de exercer a direção, a coordenação e a supervisão do
conjunto dos serviços e agências ligados à administração pública, incluindo
a execução direta das medidas políticas assinaladas no item anterior;
– A função de assumir a representação simbólica da continuidade da
comunidade política, amiúde identificada mais com os órgãos do executivo
– com a chefia de Estado, de governo –, do que com os titulares de órgãos
colegiados – parlamentos, assembléias;
– A função de gerir crises de qualquer tipo – econômicas, sociais,
militares –, dificilmente assumidas por órgãos colegiados mais amplos,
tomando decisões com respostas imediatas a fim de superar os desafios;
– A função de desempenhar certa liderança social, estabelecendo
a agenda ou a seleção dos assuntos de interesse geral a serem submetidos à

44 Idem, p. 193. Segundo o autor, “uma relativa hegemonia parlamentar – que se


situa entre meados do século XIX e o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – não
parece ter sido mais do que um parêntesis de duração relativamente curto em alguns países
de tradição liberal na Europa ocidental e na América do Norte (Canadá e Estados Unidos)”.
Idem, ibidem.
45 Josep Vallès, Ciencia Política: una introducción, p.192.
160 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

decisão política, e mobilizado o apoio popular a determinadas alternativas


de ação política.

Diversamente do que poderia sugerir uma primeira impressão, as
apreciações do poder executivo oferecidas por Jean Blondel e Josep Vallès
não são incompatíveis com os traços mais profundos da moderna teoria da
separação de poderes. De fato, e sem nenhuma pretensão de ineditismo,
elas proporcionam uma perspectiva analítica realista, capaz de dar conta
dos aspectos mais recônditos dos ideais políticos de Locke e Montesquieu.
Tampouco tais apreciações se mostram deslocadas quando submetidas
aos parâmetros delineados por Rousseau, já que expõem as características
e funções do governo que, quando não controladas, concorrerão para a
deflagração do seu vício essencial.

4. A hipertrofia do poder executivo

A solução baseada na submissão do poder executivo à lei, com a


distribuição das várias funções estatais por órgãos distintos e especializados,
conjugada com certo grau de flexibilidade de ação por parte do governante
incumbido diretamente da administração, não chegou a afastar definitivamente
os riscos de arbitrariedade e de ilegalidade, mormente manifestos em Estados
de direito precários e fragilizados. Ao contrário, no decorrer do século XX, as
demandas por eficiência e governabilidade convergiram para o fortalecimento
desproporcional do poder executivo, confirmando e acentuando a sua
natural tendência a ocupar, em todo o mundo politizado, e em detrimento do
legislativo e do judiciário, o centro da cena política. Ocorridas naquele século,
as duas Grandes Guerras Mundiais, a disseminação de regimes autoritários e
totalitários, bem como a grave crise econômica irrompida pela queda bolsa
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 161

de Nova York, em 1929, mostraram-se decisivas no processo que resultou na


corrosão da política liberal clássica, precipitando a formação de novo formato
na acomodação dos poderes estatais que, apesar das diversas transformações
políticas ocorridas nas últimas décadas, permanece referencial. No rastro das
profundas transformações políticas daí advindas, sobrevém o fenômeno do
fortalecimento e hipertrofia do executivo, poder que se vê alçado, na alusão
metafórica de Rosah Russomano, à condição de “coração das instituições
políticas”.46
Esse fenômeno é o resultado da ocorrência de um complexo de
fatores que parece estar em franco processo de intensificação, e que pode
ser resumido, a partir do diagnóstico de Josep Vallès, em cinco pontos
principais:47

– O aumento da dimensão e complexidade das tarefas a serem


desempenhadas pelo Estado, o que as coloca cada vez mais fora do alcance
dos órgãos colegiados;
– A urgência das demandas oriundas da sociedade, e a necessidade
da tomada de decisões com rapidez e eficiência, o que se mostra incompatível
com um processo decisório mais lento e complexo, típico dos legislativos
contemporâneos;
– O controle, por parte do executivo, dos recursos de conhecimento
e de tecnologia, e, não raro, do rápido acesso aos recursos financeiros
disponíveis, bem como a experiência acumulada em administrações
anteriores e o acesso exclusivo a um corpo de técnicos e funcionários
altamente especializados;

46 Rosah Russomano, Dos Poderes Legislativo e Executivo, Rio de Janeiro: Freitas


Bastos, 1976, p. 173.
47 Idem, ibidem.
162 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

– A estruturação e o funcionamento dos partidos políticos como


organizações de apoio parlamentar aos governos e seus líderes;
– A personalização, muitas vezes extremada, da liderança política,
motivada pelas exigências audiovisuais dos meios de comunicação.

Verifica-se a hipertrofia do poder executivo nos diversos tipos de
Estados contemporâneos. No âmbito das experiências do Estado social
emergente do colapso liberal, observa-se o incremento das atividades
estatais, com a exigência de maior celeridade e intensidade na atuação do
executivo.48 Tendo alcançado significativo sucesso na Europa Ocidental,
esse modelo estatal procurou promover, em resposta aos programas políticos
de viés fascista e marxista,49 de um lado, a conciliação entre as soluções para
as crescentes demandas sociais, econômicas e políticas, com, de outro, os
princípios liberais da separação de poderes e dos direitos fundamentais.
Diversamente, nos Estados periféricos, de tradição democrática ainda
incipiente, as iniciativas para a adoção de medidas capazes de promover o
desenvolvimento econômico e enfrentar os profundos desníveis sociais, com
freqüência provocaram o incremento desmesurado do poder executivo, cuja
atuação não raro assumiu um indisfarçável matiz autoritário, em detrimento
da separação de poderes e da democracia.50

48 Afirma Clèmerson Cléve, que o Estado social é um “Estado de serviços”, e, “por


esse motivo, dos três poderes, o Executivo é aquele que tem ampliada a sua atuação. Esse tipo
de Estado, aliás, como pretende Forsthoff, com imensa dificuldade concilia-se com o Estado
de Direito, e sabe-se que a separação de poderes só tem sentido em um Estado de Direito”.
Atividade Legislativa do Poder Executivo,2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.
41.
49 Paulo Bonavides, Formas de Estado e forma de governo, in Norberto Bobbio et al.
Curso de introdução à Ciência Política, unidade III, 2.ed., Brasília: UNB, 1984, p. 23.
50 Como observa Paulo Bonavides, “do ponto de vista político, o problema
da instauração de um Estado social em sociedades subdesenvolvidas ou em vias de
desenvolvimento constitui, todavia, um delicado problema de sobrevivência das instituições
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 163

Os Estados que abraçaram as ideologias socialistas e fascistas


caracterizaram-se pelo mesmo fenômeno, mas com intensidade muito
superior àquela verificada nos Estados sociais europeus. Ainda que naqueles
regimes autoritários e totalitários tenha sido prática comum a promoção
de partidos únicos ao patamar de instâncias soberanas de decisão, o fato é
que, sob a vigência de tais regimes, ocorreu incontestável fortalecimento da
atividade executiva, avessa a qualquer compromisso com os mecanismos
de freios e contrapesos preconizados pela clássica teoria da separação dos
poderes.
As duas últimas décadas do século XX parecem ter querido apregoar,
no Brasil, o fim do período áureo do poder executivo. O arrefecimento dos
conflitos ideológicos, como resultado do fim da Guerra Fria, e a onda de
redemocratização que alcançou vários Estados na América Latina, fizeram
repercutir no País a promessa de um resgate da autoridade dos poderes
legislativo e judiciário.
Os fatos, contudo, demonstram que, em termos de realidade política,
o início do século XXI tem sido muito pouco favorável a uma relação
mais equilibrada entre os três poderes. Ora, se tomarmos como referencial
a América Latina, o poder executivo aí não só permaneceu hipertrofiado,
como chegou a ganhar, em alguns Estados latino-americanos, uma energia
e robustez singulares, por meio de novos arquétipos constitucionais e
ideológicos no que concerne ao arranjo dos poderes e à repartição das
competências estatais.51 E a despeito dos papéis mais destacados exercidos
pelo Legislativo – exemplificado no marcante evento do impeachment do
Presidente Collor –, e pelo Judiciário – ilustrado pela expressão de alguma

democráticas pelo caminho da livre participação do respeito aos direitos humanos fundamentais
e da prática da liberdade”. Idem, p. 25.
51 Neste sentido, as novas Constituições da Venezuela, de 1999, do Equador, de 2008,
e da Bolívia, de 2009, representam os casos mais expressivos.
164 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

força institucional e política materializada no fenômeno que se convencionou


chamar de judicialização da política –, o Executivo brasileiro tem procurado
recompor sua velha hegemonia, envidando publicamente esforços e recursos,
para, por exemplo, impedir a ação fiscalizadora das comissões parlamentares
de inquérito e do Tribunal de Contas da União.

Ora, constata-se que o fenômeno do fortalecimento e da hipertrofia


do executivo não se restringe a um conjunto de Estados assemelhados pela
ideologia ou irmanados por uma cultura política, mas, ao contrário, se
manifesta ao longo de todo o espectro político – dos extremos da esquerda
e da direita, passando pela social-democracia. Conforme observa Nelson
Saldanha, trata-se de um “fenômeno genérico, visível por cima da diferença
dos regimes”,52 e que pode ser considerado como “o acintoso predomínio do
Executivo nos Estados de hoje”.53
O reconhecimento da importância da hipertrofia do poder executivo
como fenômeno regular nas sociedades hodiernas pode ser ilustrado por meio
de dois autores contemporâneos, cujos trabalhos54 abordam realidades que
envolvem tanto Estados de democracia consolidada quanto de democracia
incipiente.
De um lado, Sergio Fabbrini se volta para as sociedades democráticas
avançadas, focando os casos dos Estados Unidos e de alguns países europeus.
Para o autor, cuja obra traz, no original italiano, o sugestivo título Il Principe

52 Nelson Saldanha, O Estado moderno e a separação de poderes, São Paulo: Saraiva,


1987, p. 104.
53 Idem, p. 111.
54 Em relação aos dois trabalhos referidos a seguir, o objetivo não é apresentar uma
exposição pormenorizada do pensamento dos seus autores no que se refere ao poder executivo
– o que decerto demandaria um ou mais artigos à parte –, mas tão-somente oferecer, de forma
muito concisa, algumas das suas conclusões relativas ao fenômeno da hipertrofia do poder
executivo.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 165

democratico, “o poder executivo tornou-se, de uma maneira inequívoca,


o poder central nas democracias modernas”,55 possuindo, junto com seus
líderes, uma “proeminência decisiva (...) em detrimento dos legislativos e
das oposições”. Segundo ele, na sua evolução, “as democracias modernas
acabaram transferindo para o executivo expectativas imensas, talvez
exageradas”,56 o que certamente o estimulou a agir com maior ímpeto. Ora,
porque necessário – e cada vez mais indispensável na qualidade de depositário
das expectativas dos cidadãos –, aquele que detém o poder executivo “pode
carecer de escrúpulos e abusar dele [do poder] em nome da necessidade”.57
Vale enfatizar que as conclusões do autor acerca da ascensão do
príncipe democrático referem-se não apenas ao caso norte-americano –
de sistema de governo presidencialista –, em tese institucionalmente mais
adaptável à possibilidade de fortalecimento do líder do executivo, mas
igualmente aos casos analisados na Europa – de sistemas parlamentarista
(Grã-Bretanha e Itália) e semi-presidencialista (França). No âmbito desses
sistemas de governo europeus, observa-se a decadência dos partidos políticos
em favor do líder, isto é, do chefe do poder executivo. Segundo Sergio
Fabbrini, o fato de o executivo se distinguir a partir das “posições pessoais
da policy do líder, ou de as campanhas eleitorais se personalizarem”, seria o
sinal de uma “inevitável ‘norte-americanização’ da política européia”.58 Essa
política, de acordo com o autor, é indubitavelmente caracterizada “cada vez
mais por seus líderes, e não pelos partidos”.59 E as organizações partidárias
européias, por sua vez, apresentam-se “cada vez mais como organizações

55 Sergio Fabbrini, El ascenso del Príncipe democrático: quién gobierna y cómo se


gobiernan las democracias, p. 231.
56 Idem, p. 233.
57 Idem, ibidem.
58 Idem, p. 158.
59 Idem, p. 179.
166 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

dos candidatos, e não dos eleitores”.60


Enfoque diverso é o de Guillermo O’Donnell, que analisa o fenômeno
da hipertrofia do poder executivo a partir da perspectiva de histórias políticas
recentes, de países como Argentina – com Menem – , do Brasil – com Collor
–, e do Peru – com Alan García. No âmbito dessas experiências, o autor
identifica diversos traços comuns no que se refere ao alcance, ao exercício e
às características do poder executivo, o que o permitirá descrever, segundo
suas próprias palavras, “um novo animal”,61 isto é, um novo subtipo de
democracia, por ele denominada democracia delegativa.
A democracia delegativa é conexa à hegemonia do poder executivo
na arena política. Trata-se de uma democracia de perfil marcadamente
majoritário, com a maioria autorizando, por meio de eleições carregadas
de emotividade, “alguém a se tornar, por um determinado número de anos,
a encarnação e o intérprete dos altos interesses da nação”.62 O fato de o
eleito receber a incumbência de zelar pelos destinos da nação, torna essa
democracia “fortemente individualista”,63 fazendo do presidente e dos seus
auxiliares pessoais “o alfa e o ômega da política”.64 Neste cenário centrado
no executivo, desenrola-se uma política de tipo salvacionista, que tende a
reduzir os eleitores – os delegantes – “à condição de espectadores passivos,
mas quem sabe, animados, do que o presidente faz”.65 De fato, explica
Guillermo O’Donnell em artigo há pouco publicado no periódico argentino
La Nación, “para esta concepção supermajoritária e hiperpresidencialista do

60 Idem, ibidem.
61 Guillermo O’Donnell, Democracia delegativa?, Novos Estudos Cebrap, nº 31,
1991, p. 25.
62 Idem, p. 31.
63 Idem, ibidem.
64 Idem, ibidem.
65 Idem, ibidem.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 167

poder político, não é aceitável que existam interferências na livre vontade do


líder”.66
A democracia delegativa produz o isolamento institucional do chefe
do executivo, tornando-o o “único responsável”67 pela condução e pelos
resultados das políticas adotadas. Explica-se, assim, a perda do prestígio
e da autoridade dos partidos políticos e o amesquinhamento do legislativo,
que se vê desresponsabilizado em relação às políticas públicas. Como
conseqüência da sua solidão política, o presidente encontra-se vulnerável
a severas oscilações de popularidade, o que, na prática, pode estimulá-lo a
criar uma blindagem política em torno de si, por meio da ampliação dos seus
poderes e prerrogativas de governo.
Diferentemente da democracia representativa, que na sua fase
consolidada contempla mecanismos de prestações de contas que lhe conferem
uma dimensão republicana, permitindo a accountability tanto no sentido
vertical – do eleito em face do que os elegeram – quanto no horizontal – do
eleito em relação às outras instituições –, na democracia delegativa o chefe
do executivo encontra-se praticamente sem “nenhuma obrigatoriedade de
prestar contas horizontalmente”.68
Na democracia delegativa o chefe do executivo deve dispor de
meios e recursos para enfraquecer a capacidade de controle e fiscalização
das instituições. Em relação ao judiciário, ele poderá, por exemplo, exercer
cortes de orçamento e ampliar ou reduzir o número de membros da Suprema
Corte. Para ele, o ideal é que o Ministério Público, os tribunais de contas,
os auditores fiscais, e outros entes assemelhados, sejam “capturados”,

66 La democracia delegativa, La Nación, 28.05.2009. Disponível em: <http://www.


lanacion.com.ar/nota.asp?nota_id=1132901> Acesso em 20.06.2009.
67 Democracia delegativa?, p. 31
68 Idem, p. 33.
168 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

transformando-se em seus fiéis seguidores.69


Do ponto de vista da moderna teoria da separação de poderes, a
democracia delegativa descrita por Guillermo O’Donnel constitui, com
sua “vocação antiinstucional”,70 uma deturpação política autoritária
e inaceitável. Juízo semelhante se pode alcançar com base no critério de
legitimidade concebido por Rousseau a partir da sua concepção de vício
essencial do governo: trata-se, neste caso, de uma democracia ilegítima e,
portanto, paradoxal, porque usurpadora da vontade geral.
Sem embargo da sua intensidade e da sua força política avassaladora
nas sociedades atuais, a hipertrofia do poder executivo não implica, per
se, o nonsense de uma teoria da separação de poderes. Ao contrário, o seu
diagnóstico pode servir de inspiração para a elaboração de formas mais
sofisticadas de controle do poder político, capazes de aplacar, no interior dos
diversos sistemas de governo, o vigor do príncipe contemporâneo.
Decerto, não se pode esperar de uma teoria da separação de poderes
solução política equivalente à resposta ao problema da quadratura do círculo,
pois a tendência natural do poder executivo para dominar a cena política
tem se mostrado insuperável ao longo da história. Mas o reconhecimento
dessa natureza não deve implicar a resignação perante desvios e aberrações
políticas. Como afirma Sergio Fabbrini, “impedir a ascensão do Príncipe
representa uma falta de sentido da realidade”.71 É preciso, portanto, saber
lidar com o executivo, e neste sentido, “controlar a sua ascensão é uma tarefa
imprescindível”.72

69 La democracia delegativa.
70 Idem.
71 Sergio Fabbrini, El ascenso del Príncipe democrático: quién gobierna y cómo se
gobiernan las democracias, p. 234.
72 Idem, ibidem.
Reflexões sobre a hipertrofia do poder executivo 169

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Cap. 7: O sentido supra-ético da regra de
ouro em Paul Ricoeur

Sergio Salles1

I. Introdução

A regra de ouro é um tema transversal na vasta obra de Paul Ricoeur,


presente tanto em obras mais sistemáticas quanto em escritos ocasionais,
como são os artigos dedicados especificamente à hermenêutica bíblica.
Um olhar mais atento ao corpus ricoeuriano, em particular àquelas obras
publicadas nas décadas de 80 e 90, percebe que há uma dupla aproximação
hermenêutica à regra de ouro.
A primeira, desenvolve-se desde O Si-Mesmo como um outro até
O Justo, obras nas quais a regra de ouro é apresentada como uma fórmula
de transição entre a solicitude ética e a norma moral. No horizonte de
fundamentação racional, a regra de ouro é considerada como um princípio
ético-moral a serviço da justiça bilateral sem referências teológicas2.
A segunda, reúne artigos ocasionais nos quais seu autor aproxima-
se filosoficamente de ideias teológicas, ou seja, interpreta a regra de ouro
na perspectiva da religião cristã, mais especificamente do mandamento do
amor. É esse segundo horizonte hermenêutico que, segundo Paul Ricoeur,
manifesta o sentido supra-ético da regra de ouro e, ao mesmo tempo, o

1 Graduado em Filosofia (1998), mestrado em Filosofia (2000) e doutorado em


Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005). Atualmente é
professor adjunto da Universidade Católica de Petrópolis; professor do Instituto de Filosofia
João Paulo II, conveniado à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; professor do
Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José de Niterói; e professor do Instituto
Superior de Ensino La Salle.
2 Para uma primeira aproximação à hermenêutica filosófica da regra de ouro, confira:
SALLES, S.S. A regra de ouro e o sentido ético da justiça segundo Paul Ricoeur (mimeo).
172 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

sentido ético do mandamento do amor:

Desligado da Regra de Ouro, o mandamento de amar os


próprios inimigos não é ético, mas supra-ético, como toda
a economia do dom ao qual ele pertence. Para não tender
ao não-moral, até mesmo ao imoral, ele deve reinterpretar
a Regra de Ouro e, ao fazer isso, também ser reinterpretado
por ela3.

Apresentar essa sutil dialética4 entre a regra de ouro e o mandamento


evangélico é o principal objetivo deste ensaio5, que começa relembrando
algumas premissas e conclusões filosóficas de Paul Ricoeur sobre a
dimensão ética e moral da regra de ouro, antes de analisar propriamente a
sua hermenêutica bíblica e o sentido supra-ético da regra de ouro.
O valor desta exposição para o conjunto de ensaios aqui reunidos

3 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia I: a regra de ouro em questão. In:


RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 180.
4 Por “dialética”, Ricoeur entende, por um lado, a inicial desproporcionalidade
entre dois termos, neste caso, o amor e a regra de ouro (regra de justiça) e, por outro lado,
a busca de mediações práticas, frágeis e provisórias, entre os mesmos termos. A “dialética”
estabelecida por Ricoeur poderia também ser qualificada, em termos mais genéricos, como
a dialética entre a economia/a lógica da reciprocidade e a economia/a lógica do dom ou da
superabundância. Sobre a “economia do dom” em Paul Ricoeur, confira: WALL, John. The
economy of the gift. Paul Ricoeur’s significance for theological ethics. Journal of Religious
Ethics, 29, 2, 2001, p. 235-260; HALL, William D. The economy of the gift: Paul Ricoeur’s
poetic redescription of reality. Literature & Theology, v. 20, n. 2, 2006, p. 189-204. Sobre o
significado de “dialética”, confira: RICOEUR, P. Love and Justice. In: Figuring the sacred:
religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1995, p. 315.
5 Prevalece neste ensaio um objetivo mais descritivo/interpretativo do que
propriamente compreensivo. Para uma análise mais aprofundada da hermenêutica bíblica da
regra de ouro em Paul Ricoeur, confira: HALL, William D. The poetic imperative: Paul Ricoeur,
philosophy anthropology and theological ethics. 318 f. Tese (Doutorado). The University of Chicago,
2000; THOMASSET, A. Paul Ricoeur: une poétique de la morale. Leuven: Leuven University Press,
1996.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 173

pode ser reconhecido no contraste entre duas “lógicas”, a da reciprocidade,


que governa o sentido da medida própria da justiça, e a do dom6, que governa
a ausência de medida própria do amor. A discussão em torno do conflito
entre essas duas lógicas é, nos escritos de Ricoeur, contemporânea ao debate
sobre o amor (tal como expresso no mandamento evangélico) e a justiça (tal
como formulada na regra de ouro).
Neste horizonte, busca-se saber como Paul Ricoeur resolve a
aparente oposição entre o princípio de reciprocidade, inerente à regra de
ouro e à justiça, e o preceito evangélico do amor. Do entendimento desta
resolução, depende igualmente a compreensão do que o autor entende pelo
paradoxo ético da ética cristã, ou melhor, do que ele próprio denomina de
“ética comum em uma perspectiva religiosa”.

II. A Lógica da Reciprocidade



É importante recuperar as principais premissas e conclusões
filosóficas de Paul Ricoeur sobre a regra de ouro e a lógica da reciprocidade,
especialmente para o leitor ainda não habituado à sua filosofia.
A primeira distinção capital para Ricoeur é entre “ética” e “moral”.
A ética considera o que é estimado como bom, enquanto a moral o que se
impõe como obrigatório. Assim, a ética distingue-se da moral como o desejo
de viver bem não se identifica com o respeito devido às normas obrigatórias.
Em suma, a ética invoca a dimensão teleológica, enquanto a moral a dimensão
deontológica da ação humana.
Em O Si-Mesmo como um Outro, Paul Ricoeur defende que a regra

6 A “lógica do dom” recebe diversas denominações analógicas no corpus ricoeuriano,


a saber: lógica da superabundância, lógica da generosidade, lógica da não-reciprocidade,
lógica do excesso.
174 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de ouro é uma “estrutura” ou “fórmula de transição” entre o desejo de


viver bem e o respeito devido às normas obrigatórias. Há pelo menos três
momentos decisivos na reflexão filosófica de Ricoeur sobre a regra de ouro
em O Si-Mesmo como um Outro:

1) o primeiro é aquele em que qualifica a regra como parte das


éndoxa morais, no sentido aristotélico7;
2) o segundo, desenvolvido em debate com Kant, redefine o sentido
da universalidade da regra de ouro como princípio moral8;
3) o terceiro reconhece os limites da universalização da regra de
ouro nas situações morais concretas.

Quanto ao primeiro, Paul Ricoeur considera que a regra de ouro é


um éndoxon, ou seja, uma opinião estável, atestada pela experiência comum
e conservada pelas tradições, religiosas e filosóficas. Defende, assim, que a
tarefa da filosofia moral não é construir a moralidade, mas sim refletir e, se
possível, formalizar aquelas normas, regras e princípios que são reconhecidos
e adotados pelas pessoas ou, ao menos, pelas mais sábias9. Com efeito, a
crítica filosófica pressupõe uma experiência moral comum ou ainda as
opiniões atestadas (éndoxa) sobre as regras e as normas morais10.

7 Cf. RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como um Outro. São Paulo: Papirus, p. 256. O valor da
regra de ouro como parte das éndoxa, reaparece em: RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia
I: a regra de ouro em questão. In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São
Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 174.
8 Para uma síntese da crítica de Paul Ricoeur a Kant em torno do problema da regra de
ouro, confira: THEOBALD, Christoph. La règle d’or chez Paul Ricoeur. Une interpretation théologique.
Recherches de Science Religieuse. 83, 1, 1995, p. 43-59.
9 Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 293.
10 É por essa razão que Paul Ricoeur frequentemente afirma que o filósofo não deve
A regra de ouro em Paul Ricoeur 175

A regra de ouro, dentre as éndoxa, é a mais compartilhada das


máximas morais na cultura ocidental e oriental. O sentido positivo da regra
de ouro pode ser encontrado nos evangelhos do seguinte modo: “Assim
como desejais que os outros vos tratem, tratai-os do mesmo modo” (Lc 6,
31); “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós
também, a eles.” (Mt 7,12). Já a versão negativa da regra pode ser encontrada
em Hillel, mestre judeu de São Paulo, nos seguintes termos: “Não fazes a teu
próximo o que tu detestarias que te fosse feito”11.
Em linhas gerais, a regra de ouro propõe que se deve fazer ao outro
aquilo que se deseja/quer receber dele. Não há na cultura humana uma única
formulação da regra, mas, com certeza, há nela a expectativa da reciprocidade
nas relações humanas. Abstraída de sua inserção num contexto cultural e
textual, ou ainda, pensada por si mesma, a regra de ouro não impede que essa
expectativa seja proveniente do desejo passional ou do interesse utilitário
dos agentes morais12.
Por essa razão, são significativas as críticas dos filósofos modernos,
em particular Kant, em relação à tentativa de erigí-la em princípio supremo e
único da moralidade. Sem entrar no mérito dessa crítica, é mister reconhecer
que a regra de ouro, por si mesma, defende a lógica da reciprocidade nas
relações humanas, ou seja, uma economia de relações em que há uma busca
de simetria e de equivalência.

demonstrar a regra de ouro, mas refletir sobre o que precede ao próprio filosofar e, se possível,
formalizá-lo. Cf. RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 174.
11 O mais extenso trabalho sobre a história da regra de ouro é a obra de Jeffrey Wattles,
The Golden Rule.
12 Essa interpretação contextualizada da regra de ouro é defendida por P. Ricoeur e
por outros autores, especialmente os que vinculam a interpretação da regra de reciprocidade
ao mandamento do amor. Cf. STANGLIN, Keith D. The historical connection between the
golden rule and the greatest love command. Journal of Religious Ethics, 33, 2, 2005, p. 357-
371.
176 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Mais adiante, será necessário esclarecer o sentido da regra de ouro no


contexto evangélico, em particluar, à luz do mandamento do amor13. Agora,
basta frisar uma vez mais que a regra de ouro precede a crítica filosófica
por sua prévia pertença à cultura humana — o que não foi devidamente
reconhecido pelos filósofos modernos que a criticaram. Caberá, porém, à
crítica filosófica considerar se a regra de ouro funciona como um princípio
universal para o ideal de reciprocidade que governa as relações humanas.
Paul Ricoeur, seguindo as reflexões de Alan Donagan em The Theory
of Morality, entende que as formulações negativas e positivas da regra de
ouro são, em verdade, equivalentes. Para além da questão da distinção entre
as formulações e da possível supremacia de uma sobre a outra, interessa a
Paul Ricoeur entender os pressupostos antropológicos e o valor ético e moral
da regra de ouro à luz do imperativo categórico kantiano. Com efeito, por
que deveríamos preferir a regra de ouro como princípio da moralidade no
lugar do imperativo categórico?
Paul Ricoeur oferece, desde O Si Mesmo como um Outro, pelo
menos três razões para adotar a regra de ouro como princípio da moralidade.
A primeira consiste no privilégio concedido pela regra de ouro ao
aspecto intersubjetivo da ação humana, o que é pressuposto, em particular,
pela segunda formulação do imperativo categórico14.
A segunda razão consiste no fato da regra de ouro pressupor na
interação humana a fundamental dissimetria entre o que um faz e o que o

13 Para uma visão mais ampla do vínculo histórico entre a regra de ouro e o mandamento
do amor na tradição cristã, confira: STANGLIN, Keith D. The historical connection between
the golden rule and the greatest love command. Journal of Religious Ethics, 33, 2, 2005, p.
357-371.
14 Para Paul Ricoeur, Kant subordina a intersubjetividade humana ao princípio da
autonomia, que sustenta de forma monológica a regra de universalização das máximas morais,
desconsiderando a fundamental e concreta relação entre as pessoas.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 177

outro sofre15.
A terceira razão, proposta nos termos kantianos, fundamenta-se no
fato de que a regra de ouro é formal sem ser vazia, ou seja, diz respeito aos
bens que não são postos arbitrariamente pelo exercício da ação de um agente
racional e responsável16. Nesta perspectiva, o próprio exercício da liberdade
fica condicionado à disposição de certos bens fundamentais e frágeis, cuja
obtenção depende do outro. A regra de ouro alude, assim, aos bens que cada
um desejaria ou não que lhe fossem proporcionados17.
Essa terceira razão, aliás, é o que permite Ricoeur sugerir, em
breve nota, que o momento teleológico da regra de ouro, representado pela
consideração racional dos bens, presidi a reconciliação por ele proposta entre
a ética de Aristóteles e a moral de Kant18.
As três razões aduzidas por Ricoeur lançam luz sobre a lógica da
reciprocidade que governa a regra de ouro, ao mesmo tempo que esclarecem
o seu afastamento da moral kantiana do imperativo categórico. Afinal,
nem a primeira nem a segunda formulação do imperativo categórico fazem
inteiramente justiça à riqueza de sentido da regra de ouro.
Embora não seja possível discutir aqui toda a sua argumentação
sobre esse tópico, é importante destacar a base antropológica da crítica

15 Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 294; Id. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 175.
16 Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 295.
17 Cf. RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 175.
18 Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 296, n. 5.
178 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

ricoeuriana a Kant. Com efeito, se toda reciprocidade humana pressupõe


inicialmente uma dissimetria entre os protagonistas da ação, então toda regra
de reciprocidade pressupõe a realidade de um agente e de um paciente, ou
seja, de um sujeito que é capaz de agir e de outro que é capaz de sofrer.
Nessa perspectiva, toda ação é interação, mas também pode ser
uma violência, em razão da relação assimétrica de poder existente entre os
protagonistas da ação19. A regra de ouro põe justamente em evidência que o
sujeito capaz de agir é potencialmente um agressor20, ou seja, é alguém capaz
de tratar o outro como meio e não como fim21. “Para dramatizar essa inicial
dissimetria, direi que o outro é potencialmente a vítima de minha ação tanto
quanto seu adversário”, ressalta Paul Ricoeur22.
Em contraste com Kant, o problema moral da regra de ouro é
entendido como contemporâneo ao problema multiforme da violência e,
portanto, não pode ser resolvido simplesmente pelo princípio da autonomia.

Nisso reside a principal diferença entre Kant e a regra de


ouro: ao pôr a violência no mesmo lugar que Kant pôs o
desejo, a regra de ouro incorpora um aspecto fundamental da
ação humana, o poder exercido em e sobre outro, e, assim,
recusa delimitar uma linha entre o a priori e o empírico23.

19 Cf. RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 176
20 Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 295.
21 Cf. RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 176.
22 RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 294.
23 RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
A regra de ouro em Paul Ricoeur 179


É aqui que emerge a força do não expresso paradigmaticamente na
formulação negativa da regra de ouro para evitar todas as formas de violência.
Se a principal tarefa moral (deontológica) da regra de ouro
é restabelecer a obrigatoriedade da simetria nas situações em que há
inicialmente uma dissimetria e potencialmente uma violência, a sua principal
tarefa ética (teleológica) consiste em antecipar, nas disposições interiores e
nas intenções dos agentes, a promoção de bens recíprocos. Ora, os problemas
decorrentes da dissimetria do poder dos agentes e a busca da simetria entre
os mesmos governa toda lógica da reciprocidade.
Não obstante, é preciso distinguir duas formas distintas de
entendimento e aplicação desta lógica. Para tanto, vale recordar a comparação
estabelecida por Paul Ricoeur entre a regra de ouro e o lex talionis24.
Por um lado, tanto a regra de ouro quanto a lex talionis pressupõem
uma regra de equivalência no plano da obrigação e, portanto, são devedores
da mesma lógica da reciprocidade. Por mais que se possa questionar a lex
talionis como princípio válido universalmente, é preciso reconhecer que se
trata de uma estratégia da lógica humana para impedir a vingança desmedida
ao impor ao agressor uma medida de justiça. Toda lógica da punição está
aqui de certo modo contida na própria origem da lógica da reciprocidade.
Por outro lado, em via oposta à da lex talionis, a regra de ouro
promove uma reciprocidade ativa, enquanto o direito de retaliação fomenta a
reciprocidade reativa ao garantir o direito da vítima à punição e à vingança,
ainda que limitada. Em outros termos, a lex talionis não garante a promoção
antecipada de bens recíprocos e não garante a simetria entre os protagonistas

Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 296.
24 Cf. RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 394.
180 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

na ordem da deliberação25. Em contraste, a regra de ouro promove na


ordem moral a reciprocidade ativa ao antecipar nas disposições morais e na
deliberação dos protagonistas da ação a promoção de bens recíprocos26.
Posta a distinção entre as duas formas de entendimento e de aplicação
da lógica da reciprocidade, uma reativa (lex talionis) e outra ativa (regra de
ouro), é preciso ainda recordar que a filosofia moral ricoeuriana reconhece
na universalização da regra de ouro uma das razões fundamentais para sua
adoção como princípio moralmente válido.
Entretanto, discorda fundamentalmente de Kant, ao considerar
que a moral concreta nunca é meramente formal, ou seja, todo dever de
reciprocidade diante de uma relação assimétrica só se torna efetivo numa
situação concreta, ou seja, numa situação que pressupõe a real e irredutível
alteridade das pessoas e a escolha racional dos bens a promover. É essa
situação concreta, aliás, que desafia a justiça.
Retornando a Aristóteles e em debate com John Rawls, Paul Ricoeur
reconhece que a regra de reciprocidade tem seu corolário principal no
contexto da justiça comutativa, que procura estabelecer uma equidade entre
distintos participantes que contribuem diversamente para o mesmo sistema
de distribuição27.
É evidente que, nesse sistema, a divisão meramente aritmética dos
bens é inadequada em razão das diferenças entre as pessoas participantes.
Por essa razão, uma justa distribuição só pode ocorrer pela adoção de um
princípio de equidade, que guia a aplicação da regra da justiça às situações

25 Além disso, a regra de ouro em relação à lex talionis tem a vantagem de permitir
que os agentes morais reconheçam-se como potenciais agressores e potenciais vítimas em
situações diversas.
26 Cf. RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 394.
27 RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008, p. 15.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 181

concretas. Ao mesmo tempo, a equidade exige que as situações concretas


sejam a medida da regra de reciprocidade entre os participantes do mesmo
sistema, e não o inverso28.
Por essa razão, o sentido ético-moral da justiça encontra-se na
própria regra de ouro, que detém o primado sobre os princípios da justiça29.
Isso conduz Paul Ricoeur a considerar o valor da sabedoria prática, ou seja,
o valor da prudência ligada às circunstâncias de cada ação e de cada pessoa
em situação.
É justamente a dimensão prudencial da aplicação da regra de ouro
que conduz Paul Ricoeur a refletir sobre as convicções dos agentes, que
são enraizadas em tradições particulares, tais como a tradição religiosa.
Contra Kant e Rawls, Ricoeur sustenta que “é nossa compreensão prévia
de injusto e justo que garante a visão deontológica”30. Afinal, a visão moral
e jurídica pressupõe uma pré-compreensão do justo e do injusto, expressa
sapiencialmente na regra de ouro.
Se é verdade que a dimensão sapiencial antecede a crítica, então
nem a regra de ouro nem o senso ético da justiça pertencem originalmente
ao âmbito das intuições filosóficas bem fundadas, ou seja, ao âmbito dos
fundamentos e princípios racionais. Ao contrário, a regra de ouro e o senso
ético da justiça “resultam de uma longa Bildung oriunda da tradição judaico-
cristã e greco-romana”31.
Assim, deve-se reconhecer, por um lado, que a regra de ouro indica

28 Cf. HALL, W.D. D. The poetic imperative: Paul Ricoeur, philosophy anthropology and
theological ethics. 318 f. Tese (Doutorado). The University of Chicago, 2000, p. 258-259.
29 RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008, p. 65.
30 RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008, p. 87.
31 RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008, p. 87.
182 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

um projeto de reciprocidade a ser realizado seja no âmbito das relações


interpessoais ou institucionais. Por outro lado, tal projeto de reciprocidade
pertence à memória das tradições, daí a necessidade de interpretar a regra
de ouro também na perspectiva religiosa e não somente na perspectiva da
fundamentação filosófica.

III. A Lógica do Dom

Distanciada e separada do seu devido enraizamento na tradição


judaico-cristã, a regra de ouro e, com ela, os princípios da justiça perderiam
sua dimensão sapiencial, resultado de um longo processo de formação
espiritual (Bildung) da cultura humana.
Os símbolos, as metáforas e as narrativas bíblicas oferecem ao
filósofo uma perspectiva ulterior àquela alcançada pela filosofia. Neste novo
horizonte, as aproximações filosóficas ao corpo bíblico e às ideais teológicas
permitem resolver poeticamente32 o que filosoficamente é aporético. Para
Ricoeur, a resolução poética da regra de ouro depende, por sua vez, da
compreensão de uma nova lógica subjacente às narrativas bíblicas sobre o
amor e a justiça.
Como se sabe, a regra de ouro é uma máxima enunciada tanto no
Sermão da Montanha (Mt 7, 12) quanto no Sermão da Planície (Lc 6, 31)33.
No primeiro sermão, observa Ricoeur, a regra de ouro é assumida como um

32 A “resolução poética” define a natureza do discurso teológico e bíblico na medida


em que se trata de um discurso figurativo. Para Ricoeur, os textos bíblicos são textos poéticos,
ou seja, são estruturas linguísticas figurativas que, ao mesmo tempo, expressam e produzem
significados.
33 “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a
eles.” (Mt 7,12); “Assim como desejais que os outros vos tratem, tratai-os do mesmo modo”
(Lc 6, 31).
A regra de ouro em Paul Ricoeur 183

patrimônio da cultura judaica, enquanto no segundo da cultura helenística34.


O que gera a perplexidade no leitor dessas narrativas não é, continua Ricoeur,
a simples presença da regra de ouro, mas “o efeito sobre ela de um contexto
que parece contradizê-la”35. Esse contexto é justamente o do excesso e da
abundância36, que dá sentido ao mandamento do amor aos próprios inimigos.
O discurso de Jesus no Sermão da Montanha serve como um caso
paradigmático da lógica do excesso e da superabundância que constitui o que
Ricoeur qualifica como a perspectiva religiosa da “economia do dom”. Trata-
se de um discurso paradigmático recorrente em várias parábolas, como são
as parábolas do crescimento (p.ex., do grão de trigo e do grão de mostarda).
Essa lógica evangélica do excesso e da abundância não pode ser situada no
mesmo plano da lógica da reciprocidade, que governa a regra de ouro e da
justiça.
Se é essencial conceber a lógica evangélica em horizonte diverso da
lógica da reciprocidade, não é menos significativo que Paul Ricoeur evite
uma concepção dicotômica, que oporia irremediavelmente uma lógica à

34 RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In:
Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress
Publishers, 1995, p. 299; RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em
questão. In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola,
1996, p. 178;
35 RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 178;
Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In: Figuring
the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers,
1995, p. 300.
36 É evidente a dívida de Paul Ricoeur com a interpretação do apóstolo Paulo da história
da salvação nos termos de uma lógica do excesso e da abundância. Aliás, é o próprio Ricoeur
que sugere essa ligação com o trecho de Rm 5, 17-20. Cf. RICOEUR, Paul. Entre teologia
e filosofia I: a regra de ouro em questão. In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da
filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 178, n. 1; RICOEUR, Paul. The Logic of Jesus, the
Logic of God. In: Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis:
Augsburg Fortress Publishers, 1995, p. 282-283.
184 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

outra. Procura, sob outro prisma, estabelecer o sentido novo da regra de ouro
no contexto do mandamento do amor aos inimigos.
Antes, porém, recorda que há dois fortes37 argumentos em favor da
tese segundo a qual a lógica evangélica do amor não só supera, mas também
abole porque contradiz a lógica da regra de ouro e da justiça. O primeiro é
um argumento exegético, enquanto o segundo é um argumento histórico-
doutrinal que deriva a regra de ouro da lex talionis.
O argumento exegético assumiria que, no Sermão da Planície, a
regra de ouro é apresentada em Lc 6, 31, imediatamente antes das radicais
exigências de Lc 6, 32-35. Desta forma, a regra de ouro seria suplantada
pelas novas exigências de Jesus para os seus discípulos, agora movidos por
uma nova lógica da não-reciprocidade que supera por negação a medida
própria da regra de ouro e da justiça.
O segundo argumento vincula o sentido da regra de ouro ao da lex
talionis. Lida sob essa ótica, a regra de ouro limitar-se-ia a sustentar uma
troca de favores, classicamente definida na fórmula latina “quid pro quo”,
ou seja, “eu dou com o fim de que dês”38.
Para Ricoeur, o que esses argumentos subestimam é a ampla margem
de interpretações que a regra de ouro está sujeita. Contra uma interpretação
unívoca da regra, Paul Ricoeur recorda que a recepção da Torah “ensina
que a mesma regra pode ser entendida literalmente ou de acordo com seu

37 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 393.

38 RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:


RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 179;
Cf. RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In: Figuring
the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers,
1995, p. 300.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 185

conteúdo”39. Ao invés de ser negada a partir de uma pré-compreensão


unívoca, a regra de ouro deveria ser reinterpretada, tanto em relação à sua
potencial intenção quanto em relação ao novo enfoque da regra no contexto
da lógica do dom40.
Para evitar a interpretação unívoca e utilitarista da regra de ouro,
pressuposta tanto pela crítica exegética quanto pela crítica histórica, Ricoeur
volta à narrativa do Sermão da Planície, que vale a pena recordar aqui:

A vós, porém, que me escutais, eu digo: amai os vossos


inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam. Falai bem dos
que falam mal de vós e orai por aqueles que vos caluniam.
Se alguém te bater numa face, oferece também a outra. E se
alguém tomar o teu manto, deixa levar também a túnica.. Dá
a quem te pedir e, se alguém tirar do que é teu, não peças
de volta. Assim como desejais que os outros vos tratem,
tratai-os do mesmo modo. Se amais somente aqueles que
vos amam, que generosidade é essa? Até os pecadores amam
aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que
vos fazem o bem, que generosidade é essa? Os pecadores
também agem assim. E se prestais ajuda somente àqueles
de quem esperais receber, que generosidade é essa? Até os
pecadores prestam ajuda aos pecadores, para receberem o
equivalente. Amai os vossos inimigos, fazei o bem e prestai
ajuda sem esperar coisa alguma em troca 41.

39 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 395.
40 Id., idbid. Cf. RICOEUR, Paul. Love and Justice. In: Figuring the sacred: religion,
narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1995.
41 Lc 6, 32-35.
186 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

É importante destacar que a regra de ouro é enunciada no meio


do Sermão da Planície e não somente antes do mandamento do amor aos
inimigos. Ela está no centro de uma série de exigências de atitudes e ações
extremas, que se fundamentam na lógica do dom e, por isso, não pressupõem
a reciprocidade. Paul Ricoeur sublinha que a citação de Lucas da regra de
ouro é, em verdade, um desafio para se ir além da regra de ouro em seu sentido
literal. Para o filósofo, a regra de ouro é integrada plenamente na narrativa
evangélica à nova ética, à nova lógica de Jesus, que seria inconcebível sem
uma nova economia das relações humanas, a economia do dom.
Contra as interpretações unívocas da regra de ouro, Paul Ricoeur
questiona se as palavras de Jesus não são justamente opostas à adoção
utilitarista e interesseira da regra, sem serem contra a regra em si mesma. Em
outros termos, abstraída de seu contexto evangélico, nada impede que a regra
de ouro seja criticável por sua inclinação passional e interesseira. “Entretanto,
o uso da regra em favor do interesse de si já não seria um desvio da genuína
reciprocidade, da autêntica equivalência?” — questiona Ricoeur42.
Ademais, à luz do contexto evangélico, Paul Ricoeur convida o leitor
a reinterpretar a regra de ouro de acordo com seu conteúdo contextualizado,
ou ainda, em conformidade com sua intenção evangélica. A lógica do dom,
defendida em Lc 6, 32-35, resgataria a verdadeira reciprocidade pressuposta
pela regra de ouro, evitando ao mesmo tempo a sua caricatura e perversão. A
lógica do dom, embora distinta da lógica da reciprocidade, não criticaria essa
última em si mesma, mas sim a sua interpretação e aplicação inautêntica,
caricata e perversa do ponto de vista ético e moral.
Para explicar como a regra de ouro é redimida de um uso inautêntico,

42 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 395.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 187

Ricoeur recorre à tese segundo a qual toda a economia do dom, pressuposta


pela perspectiva religiosa, é construída em torno de um porque e não em
torno de um com o fim de que43. Nessa reinterpretação, as palavras de Jesus
supõem a conversão da regra de ouro de sua direção interesseira e utilitária
para uma atitude desinteressada em relação ao outro, uma atitude fundada no
dom e não no egoísmo, no interesse de si.
Em outros termos, para que a regra de ouro não justifique as
inclinações interesseiras e passionais, que compremetem a sua atenticidade
ética e moral, a mesma precisa do amor para converter-se em dom, ou seja,
em atitude desinteressada de acolhimento do outro. Ao invés do “quid pro
quo” (“faço X com o fim de que receba X”), o mandamento corrige a regra
de ouro ao acrescentar o porquê da economia do dom: “porque me foi dado,
dou também”44.
A reinterpretação da regra de ouro nos termos da economia do dom
só é possível graças à analogia operada pelo porquê, ou seja, “porque lhe foi
dado, vá e dê de forma semelhante”. Para Ricoeur, a analogia proposta pelo
porque da economia do dom gera o “topos” da “imitatio Dei”45.

A resposta de um si responsável é governada por essa regra

43 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 395; RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I:
a regra de ouro em questão. In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São
Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 179; RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on
the golden rule. In: Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis:
Augsburg Fortress Publishers, 1995, p. 300.
44 Cf. RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 179;
RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on the golden rule. In: Figuring
the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers,
1995, p. 300.
45 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 396.
188 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de analogia que invoca a regra de moralidade no âmbito


da perspectiva religiosa. Este link analógico é o que torna
possível a reinterpretação da regra de ouro nos termos da
economia do dom.46

O que chama atenção na interpretação de Ricoeur é não só a


concepção do mandamento do amor como um corretivo supra-ético da regra
de ouro, mas também a concepção da regra de ouro como um auxílio ético
para a aplicação prática do mandamento do amor.
Essa segunda dimensão da dialética entre a regra de ouro e o
mandamento do amor torna-se explícita na reflexão de Ricoeur a partir da
consideração das consequências paradoxais do sermão de Jesus. Com efeito,
as exigências evangélicas, por sua própria natureza supra-ética no sentido
kierkegaardiano, poderiam conduzir a uma atitude paradoxal do ponto de
vista ético e jurídico sem o socorro da regra de ouro.
É suficiente recordar, como o faz Ricoeur, das consequências que
Jesus tira do novo mandamento: “Se alguém te bater numa face, oferece
também a outra. E se alguém tomar o teu manto, deixa levar também a
túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar do que é teu, não peças de
volta”47. Paul Ricoeur expressa a dimensão paradoxal dessas palavras com
uma perplexidade sobre seu impacto sobre a lei penal, a justiça comutativa e
a equidade:

De fato, que lei penal — e em geral que regra de justiça—


poderia proceder diretamente, sem desvio, da Regra de
Ouro, do mandamento nu de amar os próprios inimigos? Que

46 Id., ibid.
47 Lc 6, 29-30.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 189

distribuição de tarefas, de papéis, de vantagens e encargos,


de obrigações e de deveres ­— segundo o esquema rawlsiano
da idéia de justiça—, poderia resultar de um mandamento
do qual a reciprocidade parece excluída? Que eqüidade,
no plano econômico, poderia ser tirada do mandamento:
“Emprestem sem nada esperar em retorno”?48

Para Paul Ricoeur, entre o mandamento do amor e a regra de ouro


não subsiste qualquer relação de dedução. A fortiori, entre o mandamento
do amor e a lei penal, a justiça comutativa e a equidade não há qualquer
implicação diretamente dedutível.
Não obstante, no contexto evangélico, o mandamento do amor
e a regra de ouro implicam-se mutuamente. Isso exige do filósofo que
se aproxima da narrativa bíblica uma interpretação que, em espírito
gadameriano, poderia ser denominada de fusão de horizontes, alcançada
de forma exemplar por Ricoeur nos seguintes termos: “ele (o mandamento
do amor) deve reinterpretar a Regra de Ouro e, ao fazer isso, também ser
reinterpretado por ela”49.
A releitura da regra de ouro e do mandamento do amor nos termos
um do outro supõe o reconhecimento de que a tensão entre o amor unilateral e
a justiça bilateral exige, no plano teórico, uma reinterpretação contínua e, no
plano prático, “a incorporação tenaz, passo a passso, de um grau suplementar
de compaixão e generosidade em todos os Códigos —Código penal e Código

48 RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:


RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 179-
180.
49 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 180.
190 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

de justiça social”50.
Paul Ricoeur sugere que se trata de uma tarefa hermenêutica razoável,
difícil e interminável, pois a regra da reciprocidade, graças ao mandamento
do amor, está agora “situada de maneira concreta no centro de um conflito
incessante entre o interesse e o sacrifício de si mesmo”51.
A direção que a regra de ouro assumirá nesta tensão entre o interesse e
o sacrifício de si depende da resolução prática que lhe é dada — o que remete
à dimensão prudencial e sapiencial da ação humana, com a qual Ricoeur
havia terminado sua reflexão filosófica sobre os limites da universalização
formal da regra de ouro.

IV. O paradoxo ético

A primeira citação de Paul Ricoeur neste ensaio já deixou claro que


o preceito evangélico do amor é compreeendido como pertencente a uma
lógica distinta da reciprocidade. A raiz desta nova lógica é a perspectiva da
economia do dom, ou seja, da economia do excesso e da abundância. É essa
perspectiva, aliás, que define, no corpus ricoeuriano, a especificidade da
própria religião, que “visa situar toda experiência, inclusive a experiência
moral, mas não apenas ela, na perspectiva da economia do dom”52.
Assim como a lógica da reciprocidade define o sentido ético e moral
da regra de ouro, a lógica do dom define o seu sentido supra-ético. O encontro
e o confronto entre essas duas lógicas, a da reciprocidade e a do dom, permite
Paul Ricoeur esclarecer a novidade da ética cristã face à filosofia moral, que
consiste no reconhecimento de uma tensão entre o amor unilateral e a justiça

50 Id., ibidem.
51 Id., ibidem.
52 RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 177.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 191

bilateral e na exigência da reinterpretação de um nos termos do outro53.


Essa tensão entre as exigências de um amor, que desconhece
qualquer medida, e de uma justiça mensurada pela reciprocidade, encontra
no Sermão da Montanha e no Sermão da Planície o topos de um “paradoxo
ético”. Como todo paradoxo, explica Ricoeur, o paradoxo ético tem como
finalidade “desorientar a fim de reorientar”.
No primeiro momento de desorientação, a ética é suspensa ao
invés de ser fundamentada, ocasionando uma crise. A dúvida decorrente
desta crise incide sobre as pretensões da razão. A ética filosófica não é mais
vista, neste momento, como a última palavra para a resolução prática dos
problemas morais. É também na crise que toda interpretação unívoca, literal
e meramente racional da regra de ouro é posta em questão.
No segundo momento, porém, o novo mandamento reorienta pela
desorientação. Ele já supõe do ponto de vista existencial uma convicção e
uma atestação, semelhantes à fé bíblica, que tornam possíveis a reorientação.
“Mas, o que é reorientado em nós? E em que direção?”, pergunta Ricoeur54.
Para o filósofo, as palavras extremas dos evangelhos ao exigirem
igualmente atitudes e ações extremas reorientam mais a imaginação do que
a vontade. A vontade, esclarece Ricoeur, é “nossa capacidade para seguir
sem hesitação a via uma vez escolhida, para obedecer sem resistência a
lei uma vez conhecida”55. Já a imaginação é o poder de abertura às novas
possibilidades e, ao mesmo tempo, uma “intenção de direção dominante”56.
A lógica desorientadora de Jesus reorienta a imaginação ao nível da direção

53 Idem, ibidem.
54 RICOEUR, Paul. The Logic of Jesus, the Logic of God. In: Figuring the sacred:
religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1995, p.
281.
55 Id., ibidem.
56 Id., ibidem.
192 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

dominante.
A imaginação é reorientada na direção de uma abertura às respostas
extremas, que são exigidas por situações não menos extremas. De acordo com
Paul Ricoeur, da lógica de Jesus não é possível deduzir propriamente uma
“regra”, mas é possível reconhecer um “padrão” de excesso das respostas em
relação àquelas que são normalmente esperadas. Com efeito, cada resposta de
Jesus dá mais do que seria exigido pela prudência, em seu sentido ordinário.
É esse “ato de dar a mais” que constituiria, segundo Ricoeur, o ponto central
da lógica do dom, da lógica de Jesus57. É também esse ato de excesso que
confrontaria a natureza e os limites da lógica da equivalência, que governa
as trocas cotidianas, a economia e a lei penal.
É essa mesma lógica que reorienta poeticamente o sentido da regra
de ouro, graças ao discernimento das possibilidades do seu conteúdo não-
literal, analógico. Esse conteúdo analógico da regra de ouro exige o poder
da imaginação, a abertura a novas possibilidades de significados. De forma
mais específica, a resolução poética da regra de ouro torna-se possível pela
transposição do com o fim de que, pressuposta pela lógica da reciprocidade,
pelo porque da economia do dom.
Esse momento fecundo da ética cristã é sustentado por Ricoeur por
uma única razão: “porque uma desorientação sem uma reorientação conduziria
ao vazio ético”58. É esse vazio ético uma das principais consequências das
filosofias da suspeita no século vinte.
Contra o vazio ético dos filósofos da suspeita, Ricoeur sustenta a
reinterpretação da regra de ouro nos termos do mandamento do amor e vice-

57 RICOEUR, Paul. The Logic of Jesus, the Logic of God. In: Figuring the sacred:
religion, narrative and imagination. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1995, p.
281.
58 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 397.
A regra de ouro em Paul Ricoeur 193

versa. Isso não significa que a regra de ouro e qualquer outro princípio de
reciprocidade possam coincidir com o mandamento do amor. Para Ricoeur,
o primeiro exige a lógica da reciprocidade, enquanto o segundo a do dom; o
primeiro é bilateral, o segundo é unilateral; o primeiro espera algo em troca,
o segundo não. Enfim, no primeiro há uma clara linha divisória entre amigos
e inimigos, enquanto no segundo tal linha é abolida.
Não obstante a distinção entre as duas lógicas, a justaposição da regra
de ouro e do mandamento do amor na narrativa bíblica exige uma resolução
poética, que se desenvolve ao menos em dois planos. No plano simbólico,
tanto o Sermão da Montanha quanto o Sermão da Planície desenvolve-se o
“primado do dom sobre a obrigação”59. No plano teórico-prático, há uma
articulação da economia do dom com a economia da genuína reciprocidade,
graças à qual o “dom gera a obrigação”60.

V. Considerações finais

Ao concluir os seus artigos ocasionais sobre a regra de ouro, Paul


Ricoeur sempre retoma um versículo do Sermão da Planície, que vincularia
a ausência da medida do amor com a medida da justiça, a saber: “Dai e vos
será dado. Uma medida boa, socada, sacudida e transbordante será colocada
na dobra da vossa veste, pois a medida que usardes para os outros, servirá
também para vós”61.
Esse versículo realizaria, segundo Ricoeur, a transposição poética da
retórica do paradoxo, já que nele a lógica do dom torna-se a verdade oculta

59 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 397.
60 RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I: a regra de ouro em questão. In:
RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 178.
61 Lc 6, 38.
194 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

da lógica da reciprocidade. Graças à resolução poética, a regra de ouro é


mais uma vez repetida, mas sua repetição consiste numa transfiguração62.
Essa transfiguração poética só é possível pela transposição do a fim de da
lógica da reciprocidade pelo porquê da lógica do dom.
Uma última palavra merece ser dita sobre a lógica do dom, que,
pelos limites intrínsecos deste ensaio, ficou de fora até agora. A hermenêutica
ricoeuriana reconhece nos símbolos, nas metáforas e nas narrativas bíblicas
um conteúdo jamais irredutível à filosofia. Essa qualidade supra-racional da
mensagem bíblica é devedora de uma concepção de Deus “poeticamente
nomeado”, de modo especial nas narrativas da criação e da redenção.
O Deus “poeticamente nomeado” como criador é aquele com o qual
os homens não podem manter qualquer reciprocidade. Com efeito, há um
dom poeticamente descrito nos textos sagrados que não pode ser retribuído
por nenhum homem: o do ser. O dom do ser, o dom entendido por Ricoeur
como o dom da existência, não pode ser retribuído ao seu doador.
É esse dom original e originário, poeticamente narrado pela Bíblia,
que está na base da transfiguração da regra de ouro pelo mandamento do
amor, da lógica da reciprocidade pela lógica do dom.

62 RICOEUR, Paul. The golden rule: exegetical and theological perplexities. New
Testament Studies, v. 36, n. 126, 1990, p. 397; RICOEUR, Paul. Entre teologia e filosofia I:
a regra de ouro em questão. In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São
Paulo: Ed. Loyola, 1996, p. 180; RICOEUR, Paul. Ethical and theological considerations on
the golden rule. In: Figuring the sacred: religion, narrative and imagination. Minneapolis:
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A regra de ouro em Paul Ricoeur 195

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198 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II
Cap. 8: Aplicação do direito internacional
humanitário em Guantánamo ou a
institucionalização do desrespeito
à pessoa humana?

Sidney Guerra1

I. Introdução

A manutenção da prisão de segurança máxima pelos EUA em


Guantánamo representa uma afronta ostensiva às normas do Direito
Internacional Humanitário.2 Enquanto os detentos são torturados,
privados de um processo justo e do contato com seus familiares,
advogados, e, inclusive, com seus próprios pares, o mundo assiste
perplexo e inerte ao espetáculo de horror orquestrado pelos Estados
Unidos. O total descaso com as normas de proteção à pessoa humana
induz a inevitáveis questionamentos: até quando esta barbárie
materializada pelo presídio de segurança máxima de Guantánamo
irá perdurar? Qual a real aplicabilidade do Direito Internacional
Humanitário no caso em questão?
Para Valladares, o Direito Internacional Humanitário,
também conhecido como Direito da Guerra ou Direito Internacional

1 Pós-doutorado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pós-


doutorado pelo Programa Avançado em Cultura Contemporânea da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Doutorado e mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho. Atualmente
é professor adjunto da Universidade Católica de Petrópolis; professor adjunto da Universidade
Federal do Rio de Janeiro; professor titular da Universidade do Grande Rio, professor do
Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos e da Fundação Getúlio Vargas.
2 Para melhor compreensão do tema, vide GUERRA, Sidney. Curso de direito
internacional público. 4. ed. Rio de Janeiro: lúmen Júris, 2009, p. 374 - 376
200 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

dos Conflitos Armados, é parte do Direito Internacional Público.


É, definitivamente, um corpo de normas internacionais, de origem
convencional ou consuetudinária, destinado especificamente a ser
aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não internacionais,
que limita o direito das partes em conflito de escolher livremente os
métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas
e os bens atingidos, ou que possam ser atingidos pelo conflito. Este
Direito não tem a pretensão de proibir a guerra, nem a ambição de
definir sua legalidade ou legitimidade, mas de ser aplicado quando
o recurso à força foi infelizmente imposto e o que resta é reduzir
o sofrimento das pessoas que não participam ou que deixaram de
participar das hostilidades. Por isso sua aplicação de “jus in bello”
ou direito aplicável na guerra, um corpo jurídico de orientação
tipicamente humanitária, diferente do “jus ad bellum”, ou direito de
fazer a guerra. 3
Conflitos armados estão intimamente ligados ao Direito
Internacional Humanitário, que se apresenta como um conjunto de
normas internacionais de origem convencional e consuetudinária,
especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados,
internacionais ou não internacionais, e que limita, por razões
humanitárias, o direito das partes em conflito, escolherem livremente
os métodos e os meios utilizados na guerra (Direito da Haia), ou que
protege as pessoas e os bens afetados (Direito de Genebra). 4
Com efeito, a análise das violações perpetradas em

3 VALLADARES, Gabriel Pablo. Prefácio de PRONER, Carol; GUERRA, Sidney.


Direito internacional humanitário e a proteção internacional do indivíduo. Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 2008, p. 36
4 SWINARSKI, Christophe. Direito internacional humanitário. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1990, p.31
Direito Internacional Humanitário 201

Guantánamo não deve se limitar unicamente a apontar os Estados


Unidos como responsáveis pelas atrocidades cometidas. Faz-se
imperiosa uma abordagem mais ampla, objetivando questionar a
própria idoneidade dos instrumentos internacionais para a proteção
dos detentos. Nesse sentido, é passível de crítica a III Convenção de
Genebra, que dispõe acerca do tratamento conferido aos prisioneiros
de guerra.
O referido tratado internacional se manteve obsoleto, não
vislumbrando em seu conteúdo outras noções de guerra mais
atuais, deixando em situação de desalento os prisioneiros de guerra
que não integram os quadros das forças armadas convencionais de
Estados reconhecidos. O engessamento da III Convenção de Genebra
compromete a aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário
na medida em que constitui uma “brecha legal” para que sejam
realizadas interpretações legitimadoras de práticas arbitrárias e
atentatórias aos direitos humanos. Segundo Judith Butler:

O fato paradoxal é que o acordo da Convenção de Genebra sobre


prisioneiros de guerra, que visa proteger PGs de governos hostis que
podem muito bem se mostrar indispostos a reconhecer seus direitos
a tratamento justo, funciona também como discurso civilizacional
que favorece prisioneiros pertencentes a Estados-nação constituídos.
Assim, se é importante asseverar que o direito internacional deve ser
seguido nesse caso, também é preciso criticar e expandir esse direito.
E ele precisa ser transformado não apenas à luz do novo caráter
da guerra , mas também para assegurar que aqueles engajados em
ação militar em nome de organizações não vinculadas a Estados
recebam as mesmas proteções cabíveis aos que combatem por Estados
202 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

constituídos.5

Não obstante a pertinência das críticas, tal fato jamais


poderá se prestar à função de exculpar os Estados Unidos pelos atos
praticados contra os detentos sob sua custódia. Apesar de se mostrar
obsoleta em muitos aspectos, ainda existem muitos dispositivos
nas Convenções de Genebra que podem ser evocados tendo como
respaldo um padrão mínimo que deve ser observado no tratamento
dos prisioneiros em virtude da sua intrínseca condição humana.
Desde sua inauguração, em 2002, mais de 770 detentos já
passaram por Guantánamo. Atualmente, cerca de 270 prisioneiros
permanecem detidos. Muitos deles se encontram sob custódia do
governo americano por mais de seis anos, tendo recebido acusação
formal apenas 23 detentos. Em sete anos, apenas 3 homens foram
condenados, sendo que 1 deles confessou sua culpa. Os outros dois
homens condenados já se encontram em liberdade.

II. Autonomia do Direito Internacional Humanitário

O Direito Internacional Humanitário é uma disciplina que


faz parte do Direito Internacional Público, todavia, por ser a sua
abordagem peculiar e restrita e tendo a sua fundamentação axiológica
direcionada à dignidade da pessoa humana, lhe é conferida uma
autonomia de atuação em relação ao Direito Internacional.
O foco do Direito Internacional Humanitário é a limitação dos
meios e métodos utilizados durante o conflito. Entenda-se por meio,

5 BUTLER, Judith. O Limbo de Guantánamo. Novos Estudos 77. Março de 2007.


Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n77/a11n77.pdf
Direito Internacional Humanitário 203

o tipo de arma utilizada durante os atos de beligerância, enquanto o


método significa a maneira de utilizar tal arma.
Salienta-se que os beligerantes não têm o direito ilimitado e
aleatório de utilizar de forma arbitrária, cruel e desumana armas e
métodos que possam causar sofrimento desnecessário.
Valladares6 sustenta que o Direito Internacional Humanitário
convencional só é aplicável em caso de conflito armado. Não diz
respeito às situações de tensões internas nem aos distúrbios internos,
como são certos atos de violência isolados que podem acontecer
no território de um Estado sem constituir um conflito armado sem
caráter internacional. Só é aplicável quando um conflito armado foi
desencadeado e aplica-se igualmente a todas as partes envolvidas
sem levar em conta quem deu início às hostilidades.
Algumas normas fundamentais deste ordenamento jurídico
adquiriram o caráter obrigatório (jus cogens) em função de sua
aceitação e reconhecimento pelos Estados, já que são imprescindíveis
para a sobrevivência da comunidade internacional. A propósito, vale
trazer à colação o magistério de Celso Mello sobre a matéria:

O direito internacional humanitário integra o “jus cogens”, inclusive ele


só é aplicado quando a norma cogente, proibindo o uso do recurso à
força é violada. Ora as normas a serem aplicadas neste caso são também
de jus cogens, inclusive dois Estados não podem concluir acordos
para derrogar este direito. A própria denúncia de uma convenção de
direito humanitário não pode ser realizada durante o desenrolar de
um conflito armado. E mesmo quando há a possibilidade de denúncia

6 VALLADARES, Gabriel Pablo, op. cit., p. 38


204 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

o Estado se encontra obrigado ao princípio de humanidade.7

Sem embargo, o Direito Internacional Humanitário tem a


finalidade de amenizar o sofrimento alheio, buscando ainda que
em uma situação catastrófica e pavorosa, o mínimo que se possa
preservar em uma pessoa: a sua dignidade. O direito internacional
humanitário, na manifestação de Borges8, não tem a pretensão de
fazer da guerra uma situação humana, e, do mesmo modo, não
pretende que suas regras de caráter humanitário, que regem a
condução das hostilidades, sejam utilizadas pelos beligerantes como
um argumento para considerar sua causa como sendo uma guerra
justa, mas se propõe a impedir que as partes em um conflito armado
atuem com uma crueldade cega e implacável, proporcionando a
proteção fundamental que os mais diretamente afetados pelo conflito
necessitam, sem que a guerra deixe de seguir sendo o que sempre foi:
um fenômeno aterrador.
Para tanto, devem ser observados seus princípios norteadores
que têm origem nos tratados, costumes e princípios gerais do Direito:
humanidade, necessidade e proporcionalidade.
O princípio da humanidade se apresenta como “coluna

7 MELLO, Celso. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar,


1997, p. 143
8 BORGES, Leonardo Estrela, op. cit., p. 3: “A função do direito internacional
humanitário é regulamentar o direito de guerra (jus in bello), até mesmo porque regulamentar
a limitação e a proibição do direito de recorrer à guerra (jus ad bellum) é o grande objetivo
do direito internacional e do sistema das Nações Unidas, instituição criada para esse fim. E
mesmo no que se refere ao jus ad bellum, em casos excepcionais há a possibilidade de se
recorrer ao uso da força de maneira legítima. Dessa forma a Carta de São Francisco permite a
guerra em caso de legítima defesa individual ou coletiva ou quando o Conselho de Segurança
assim o considerar, tendo em vista a manutenção ou o restabelecimento da paz e segurança
internacionais.”
Direito Internacional Humanitário 205

vertebral” do direito internacional humanitário e estabelece que em


qualquer situação, ainda que degradante, deva-se buscar conservar a
dignidade da pessoa humana.
O princípio da necessidade determina que os bens civis não
podem ser alvo de campanha militar, nem tampouco objeto de ataques
e retaliações. Somente podem sê-lo, os alvos, efetivamente, militares.
O grande questionamento se apresenta em determinar quais são os
alvos militares?
Para ser considerado alvo militar devem ser observadas duas
características principais: a contribuição para a ação militar de uma
parte em conflito; e se, a sua sucumbência, captura ou neutralização
aufere vantagens para a parte adversa.
Cabe registrar que por necessidades imperiosas de natureza
militar podem permitir a derrogação desta proibição. Todavia,
sendo o princípio da humanidade o esteio do Direito Internacional
Humanitário, tal derrogação só poderá ser efetivamente executada
em casos expressamente previstos, devendo ainda ser analisada a sua
proporcionalidade.
Pelo princípio da proporcionalidade, verifica-se que as partes
devem aplicar efetivo bélico de forma proporcional ao recebido pela
parte adversa, ou seja, ainda que o objeto do ataque seja militar, não
se pode atacar de forma que o malefício e a ignomínia seja superior
aos ganhos militares pretendidos na ação.

III. Aplicabilidade da Convenção de Genebra9 em benefício dos

9 GUERRA, Sidney. Direitos Humanos na ordem jurídica internacional e reflexos


na ordem constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 25: “O Direito
de Genebra caracteriza-se pela proteção das vítimas dos conflitos armados, ou seja, dos não
combatentes e daqueles que não mais fazem parte das hostilidades (feridos, enfermos etc.).”
206 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

detentos de Guantánamo

Durante muito tempo foi sustentado que a Convenção de


Genebra sobre os Prisioneiros de Guerra não poderia ser utilizada
para beneficiar os detentos de Guantánamo. Além disso, também era
afastada a incidência das leis norte-americanas em favor dos detidos,
excluindo, desta forma, a possibilidade destes recorrerem perante a
Suprema Corte dos EUA. Tais alegações se apoiavam na afirmação de
que a base naval de Guantánamo se encontra localizada em território
cubano, e que, por isso, a jurisdição americana não alcançaria os
detentos.
A recusa à aplicação das Convenções de Genebra aos detentos
de Guantánamo materializou-se na criação de uma terminologia
diferenciada imputada aos presos, que afasta a incidência da
referida legislação internacional. O Governo Bush negou o status de
prisioneiros de guerra aos detentos, referindo-se aos mesmos de forma
vaga e imprecisa, valendo-se do termo “combatentes inimigos”.
Em um caso particular, se chegou a afirmar que o artigo
3º, comum às três Convenções de Genebra, não seria aplicado aos
detentos da al-Qaeda ou Taliban, uma vez que estes não se encaixam
no rol taxativo disposto no artigo 4º da Terceira Convenção de
Genebra, que define os requisitos que deverão ser observados para
o enquadramento dos mesmos como prisioneiros de guerra. Dentre
esses requisitos, elenca o referido dispositivo legal a necessidade
de “ter um sinal distintivo fixo que se reconheça à distância”.
Argumentou-se que os integrantes da Al-Qaeda e do Taliban não
usavam uniformes e nem ostentavam nenhum sinal distintivo, além
Direito Internacional Humanitário 207

de não respeitarem as leis e usos de guerra, condição esta que também


encontra previsão legal no artigo 4º.
No ano de 2004, a Suprema Corte dos Estados Unidos
reconheceu, no emblemático caso Rasul v. Bush, que um não-cidadão
americano detido sob a alegação de inimigo combatente tem o
direito de submeter o caso à apreciação de corte federal por meio
do habeas-corpus. O caso foi decidido mediante a aprovação de 6
votos a favor contra 3. O argumento central baseou-se na noção de
soberania, reconhecendo que, embora a base se encontre estabelecida
em território cubano, são os Estados Unidos que exercem a soberania
na área, possuindo completa jurisdição e controle sobre a Baía de
Guantánamo.
No entanto, tal decisão repercutiu de forma negativa no
Congresso Norte-americano, ensejando a elaboração de duas leis
com a intenção de remover o direito dos detentos de interpor habeas
corpus no âmbito das cortes federais a fim de questionar a legalidade
da detenção. Para este fim, foi criado o Detainee Treatment Act (2005) e
o Military Commissions Act ( 17 de outubro de 2006).

Military Commissions Act (MCA)

O MCA tem seu âmbito de aplicação restrito aos não-cidadãos


norte-americanos. Ao impor padrões no julgamento e condenação
destes não-cidadãos mais rigorosos do que àqueles que seriam
aplicados aos seus próprios nacionais, o referido ato transgride o
artigo 5º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação, na medida em que confere tratamento desigual e
discriminatório em relação aos estrangeiros.
208 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Ademais, o MCA que determinou a criação de Comissões


Militares ad-hoc para fins de julgamento dos detentos, se revelou um
verdadeiro despropósito, comprometendo a imparcialidade da qual
todo juízo deve ser revestido: os militares desempenham as funções
de juízes, promotores, defensores, e, por fim, carrascos. Além disso,
as comissões militares autorizam a obtenção de evidências mediante
coerção. 10
A existência de comissões militares não surgiu propriamente
com o advento deste ato. A primeira experiência nesse sentido remonta
ao dia 13 de novembro de 2001, quando o presidente Bush autorizou
a criação destas comissões para julgamento de estrangeiros. O MCA
só se incumbiu de regulamentar normativamente o funcionamento
dessas comissões em outubro de 2006, criando novos procedimentos.
Antes de ser submetido ao escrutínio de uma Comissão
Militar, os detentos devem passar pelo Tribunal de Revisão do Status
de Inimigo Combatente (Combatant Status Review Tribunal). Estes
tribunais foram criados no meio do ano de 2004 e são constituídos por
um quadro de três oficiais militares que são autorizados a empregar
técnicas de tortura para a obtenção de evidências como forma

10 Nesse sentido, AMNESTY INTERNATIONAL. United States of América. Trial


and error. A reflection on the first week of the first military commission trial at Guantánamo. 30
de Julho de 2008. Disponível em: http://freedetainees.org/resource-document-usa-trial-and-
error-a-reflection-on-the-first-week-of-the-first-military-commission-trial-at-guantanamo
:“In the USA, the selection of a jury as the trier of fact for a serious criminal offence in the
ordinary criminal courts begin with a pool of individuals randomly chosen from the local
population. In the special military tribunals established under the MCA, the selection of
members of the commission (as the triers of fact or jury in the trial) begins with a group of
members of the armed forces chosen by the US Secretary of Defense, or his designee, in a non
transparent process. The institutional character of the members and judge in the commission,
as they are all ultimately members and judge of the executive branch of government rather
than the judiciary or general population, also lack fundamental guarantees of independence
and impartiality that would apply in ordinary criminal trials”
Direito Internacional Humanitário 209

de se aferir o status de “unlawful enemy combatant” (pré-requisito


para julgamento em comissão militar). Os detentos são privados
de representação legal, além de lhes ser negada a possibilidade de
arrolarem as testemunhas que considerarem importantes para provar
o seu não-enquadramento no status de inimigo combatente.
A parcialidade deste tribunal não se esgota por aí. Há uma
violação clara ao princípio da presunção de inocência na medida em
que, antes mesmo de serem submetidos a julgamento nos CSRTs,
já paira previamente sobre os detentos a classificação de inimigo
combatente, sem ao menos terem sido produzidos os resultados das
investigações:

No Tribunal considered the extent to which any hearsay evidence


was obtained through coercion... The Tribunal usually makes note
of allegations of torture, and refers them to the convening authority.
This is less surprising than the fact that several Tribunals found a
detainee to be an enemy combatant before results from such an
investigation. While there is no way to ascertain the extent, if any,
that witness statements may have been affected by coercion, fully 18%
of the detainees alleged torture; in each case, the detainee volunteered
the information rather than being asked by the Tribunal… In each
case, the panel proceeded to decide the case before any investigation
was undertaken. (grifos nossos)11

Identificam-se, desta forma, violações aos artigos 84 e 105 da


III Convenção de Genebra. O primeiro dispositivo determina que “em

11 DENBEAUX, Mark; DENBEAUX, Joshua, apud AMNESTY INTERNATIONAL.


USA: Military commissions, like CSRTs, threaten to whitewash detainee abuse. 23 de março
de 2007. Disponível em: http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR51/046/2007/en
210 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

nenhum caso um prisioneiro de guerra será julgado por qualquer


tribunal que não ofereça as garantias essenciais de independência
e imparcialidade geralmente reconhecidas e, em especial, cujo
procedimento não lhe assegure os direitos e meios de defesa previstos
no art. 105”. Já o artigo 105 dispõe que “O prisioneiro de guerra terá
o direito de ser assistido por um dos seus camaradas prisioneiros,
de ser defendido por um advogado qualificado da sua escolha, de
apresentar testemunhas e de recorrer, se o julgar necessários, aos
serviços de um intérprete competente. (...)”.
O primeiro caso julgado em comissão militar após a criação
do MCA teve início no dia 21 de julho de 2008 e figurou como réu
Salim Ahmed Hamdan que se encontrava sob custódia do governo
norte-americano por mais de seis anos e meio após ter sido detido
no Afeganistão no dia 24 de novembro de 2001 e transferido para
Guantánamo em maio de 2002. Pairava sobre Hamdan a acusação
de que este praticara os crimes de conspiração e suporte material
ao terrorismo, pelo simples fato de ter sido motorista de Osama bin
Laden.
Salim Ahmed Hamdam já havia submetido demanda à
Suprema Corte norte-americana questionando a legalidade do sistema
de comissões militares que vigorava antes da criação do MCA, no
caso que ficou conhecido como Hamdan v. Rumsfeld.
O artigo 5º da III Convenção de Genebra dispõe que
“se existirem dúvidas na inclusão em qualquer das categorias
mencionadas de pessoas que tenham cometido actos de beligerância
e que caírem nas mãos do inimigo, estas pessoas beneficiarão da
proteção da presente Convenção, aguardando que o seu estatuto seja
fixado por um tribunal competente” (grifos nossos). Nesse sentido,
Direito Internacional Humanitário 211

visando atribuir ao texto legal interpretação conveniente a interesses


de ordem política, a Corte de Apelações do Distrito de Columbia
determinou, no dia 15 de julho de 2005, que as comissões militares
constituíam o tribunal competente para determinar a condição de
prisioneiro de guerra.
Contudo, no dia 29 de junho de 2006, a Suprema Corte
reconheceu, no caso Hamdam v. Rumsfeld, que as comissões militares
instituídas violavam as leis militares dos EUA e, inclusive, as normas
de direito internacional, sendo, por isso, reputadas inválidas. Além
disso, foi também reconhecida a aplicabilidade do artigo 3º das
Convenções de Genebra em benefício dos detentos.
Logo, fica claro que a criação do Military Commissions Act
guarda íntima relação com o conteúdo desta decisão, na medida em
que cria um novo procedimento para as comissões militares e afasta
a incidência das Convenções de Genebra, indo na contramão do
entendimento consolidado pela Suprema Corte.
Meses antes do julgamento de Salim, um juiz militar já havia
se pronunciado a favor da não-aplicabilidade da 3ª e da 4ª Convenção
de Genebra. Foi atribuído a Salim o status de inimigo combatente
(alien unlawful enemy combatant), cuja classificação constitui pré-
requisito para apreciação do caso no âmbito das comissões militares
e, ao mesmo tempo, exclui a aplicação da 3ª Convenção de Genebra.
Além disso, foi também negado a Salim o status de civil, como forma
de inviabilizar a aplicação da 4ª Convenção de Genebra.
O caso teve um deslinde insatisfatório. No dia 5 de agosto de
2008, Salim Hamdan foi considerado culpado pelo crime de suporte
ao terrorismo e inocentado das acusações de conspiração, tendo sido
sentenciada a pena de 66 meses de prisão, descontado o tempo em
212 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

que permaneceu detido.

Detainee Treatment Act (DTA)

O DTA, junto com o MCA, constituiu uma tentativa bem-


sucedida empreendida pelo Congresso no sentido de afastar a
ingerência da Suprema Corte por meio de interposição de habeas
corpus nos assuntos concernentes à legalidade do termo “alien unlawful
enemy combatant”. Apesar de estabelecer padrões uniformes no
tratamento dos detentos e nos interrogatórios, ainda é arbitrário em
muitos aspectos. O referido ato, por exemplo, veda o emprego de
tratamento cruel, desumano e degradante apenas aos prisioneiros que
se encontram sob custódia do Departamento de Defesa. Desta forma,
para que estes atos de tortura se revistam se legitimidade, basta que
seja realizada a transferência destes detentos para a custódia de outro
departamento, como a CIA.
Além disso, a rendição extraordinária também pode ser
utilizada como subterfúgio para se contornar a proibição de
aplicação de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Trata-se
de um procedimento altamente secreto que se opera às margens da
legalidade, no qual os serviços de inteligência dos Estados Unidos
transferem extrajudicialmente suspeitos de terrorismos para outros
países que admitem o emprego da tortura. Os detentos, desta forma,
ficam sem proteção legal e privados de direitos sob as leis americanas.

Boumediene v. Bush/ Al Odah v. U.S. – o direito de interpor
habeas corpus volta a ser questionado perante a Suprema Corte dos
Estados Unidos
Direito Internacional Humanitário 213

Não obstante o fato de o governo Bush ter impedido o direito


de interposição de habeas corpus, houve duas outras tentativas levadas
à apreciação da Suprema Corte dos Estados Unidos, onde novamente
foi questionado se os detentos têm o direito de ingressar com habeas
corpus para fins de revisão do status de inimigo combatente, assim
como no caso Rasul v. Bush.
O caso Boumediene v. Bush envolve cinco cidadãos da Bósnia
e um algeriano que foram presos na Bósnia em outubro de 2001.
Diante da falta de evidência contra eles, a Suprema Corte do país os
libertou. No entanto, contrariando as leis da Bósnia, os seis homens
foram transferidos para Guantánamo, ficando sob custódia dos EUA,
tendo sido detidos sem nenhuma acusação formal e lá mantidos por
situação indefinida.
Em decisão histórica, no dia 12 de junho de 2008, a Suprema
Corte dos Estados Unidos determinou que os detentos são
destinatários das normas de direito constitucional, devendo serem
submetidos a um juízo justo e neutro e em corte legítima. Nesse
sentido, foi reputado inconstitucional o Military Commissions Act, o
qual suspendeu o direito de os detentos impetrarem habeas corpus.
Apesar de a decisão da Suprema Corte ter como parâmetro as
leis constitucionais americanas e o princípio do habeas corpus, o seu
conteúdo encerra um consistente fundamento de leis internacionais
de proteção à pessoa humana. Vale ressaltar que a decisão não
representa uma garantia de que finalmente os detentos ficarão
imunes a derivas autoritárias do governo norte-americano. Contudo,
representa uma vitória na medida em que foram removidos os óbices
existentes para vindicar direitos básicos, suprindo o até então vazio
214 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

normativo existente. Os detentos não serão mais julgados por aqueles


que os capturam.12

IV. Emprego da coerção física e psicológica para a obtenção de


confissão dos detentos

O tratamento “stress and duress” conferido aos detidos de


Guantanamo têm recebido diversas críticas de organizações voltadas
à defesa dos direitos humanos, sendo, inclusive, objeto de demandas
judiciais perante a Suprema Corte. Os meios empregados para a
obtenção da confissão dos prisioneiros mediante tortura revelam
um descaso total ao Direito Internacional Humanitário. Em relatório
publicado pela Human Rights Watch (HRW), foi levantado que os
detentos são privados do sono, submetidos à violência/humilhação
sexual, expostos a temperaturas extremas, atacados por cachorros,
além de serem vítimas de abusos de ordem religiosa.
O caso Rasul v. Rumsfeld constituiu a primeira manifestação de
indignação contra as arbitrariedades cometidas pelos oficiais militares
em Guantánamo. Tratou-se de um caso levado ao conhecimento da
Corte Distrital de Washington D.C. em outubro de 2004, no qual se
procurou responsabilizar os oficiais norte-americanos pela tortura
física, psicológica e religiosa perpetrada contra quatro cidadãos

12 AMNESTY INTERNATIONAL. USA: Time for real change as Supreme Court


rules on Guantánamo detentions. 13 de junho de 2008. Disponível em: http://www.amnesty.
org/en/library/info/AMR51/061/2008/en “The judgment of the Supreme Court does not
itself guarantee that these men will finally have an opportunity to raise the abuses to some
authority other than their captors. Nor does the judgment mandate that such abuse be properly
investigated, examined, and remedied as international law requires. However, it removes a
key obstacle to vindicating basic rights ending the lawless environment of isolation, enforced
silence, invisibility, and unrestrained executive power in Guantánamo Bay.”
Direito Internacional Humanitário 215

britânicos que haviam sido presos injustamente por mais de três anos.
Embora a Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos
Prisioneiros de Guerra disponha no seu artigo 17, §3º que “Nenhuma
tortura física ou moral, nem qualquer outra medida coercitiva
poderá ser exercida sobre os prisioneiros de guerra para obter deles
informações de qualquer espécie (...)”, a Corte Distrital determinou
que os detentos de Guantánamo não poderiam se beneficiar das
garantias previstas no Ato de Restauração das Liberdades Religiosas
(Religious Freedom Restoration Act). Ademais, a Corte determinou que
os oficiais não poderiam ser responsabilizados por tal prática, uma vez
que a tortura é uma conseqüência previsível na detenção militar de
suspeitos combatentes inimigos. Não menos absurdo foi o argumento
levantado pela Corte de que ainda que fosse a tortura e a os abusos
religiosos considerados ilegais pelas leis norte-americanas, os oficiais
ainda não poderiam ser imputados pela prática desses atos uma vez
que as leis americanas não têm aplicabilidade em Guantánamo.
O governo Bush considerou legítima a obtenção da confissão
mediante coerção física e psicológica. As próprias Comissões Militares
autorizaram o emprego da tortura para esta finalidade. Contudo, no
dia 13 de Fevereiro de 2008, o Senado Norte-Americano votou projeto
de lei, proibindo as agências de inteligência dos EUA, incluindo a
CIA (Central Intelligence Agency) de utilizarem procedimentos para
obtenção de confissão que não estivessem previstos no manual de
procedimentos dos militares norte-americanos, o Army Field Manual.
Contudo, como era de se esperar, houve forte oposição do Governo
Bush a este projeto de lei, especialmente no que tange a uma técnica
de tortura que consiste na asfixia da vítima mediante sacos plásticos
– waterboarding. O veto, que ocorreu no dia 9 de março de 2008,
216 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

apoiou-se no frágil e duvidoso argumento de que o presidente possui


autoridade para permitir que a CIA utilize tais técnicas de tortura,
ignorando-se, desta forma, as proibições existentes na legislação
doméstica e nas normas internacionais.
O estado de incomunicabilidade em que se encontram os
detentos e a tortura a que são submetidos conduzem a inevitáveis
desordens de caráter psicológico, que, excepcionalmente, encorajam o
suicídio de detentos. Segundo relatório da HRW, os detentos passam
22 horas do dia confinados em celas mal iluminadas e pouco arejadas,
dispondo apenas de 2 horas diárias para se exercitarem, geralmente
à noite. Não há contato com outros detentos. Estudos concluídos
demonstraram que o confinamento em prisões de segurança máxima
pode acarretar significativos problemas psiquiátricos. A ausência de
interação social leva a alucinações, insônia e psicoses. Nesse contexto,
o Relatório das Nações Unidas sobre a Situação dos Detentos na Baía
de Guantánamo (2005) assim se manifestou sobre a questão:

Reports indicate that the treatment of detainees since their arrests, and
the conditions of their confinement, have had profound effects on the
mental health of many of them. The treatment and conditions include
the capture and transfer of detainees to an undisclosed overseas
location, sensory deprivation and other abusive treatment during
transfer; detention in cages without proper sanitation and exposure
to extreme temperatures; minimal exercise and hygiene; systematic
use of coercive interrogation techniques; long periods of solitary
confinement; cultural and religious harassment; denial of or severely
delayed communication with family; and the uncertainty generated
by the indeterminate nature of confinement and denial of access to
Direito Internacional Humanitário 217

independent tribunals. These conditions have led in some instances


to serious mental illness, over 350 acts of self-harm in 2003 alone,
individual and mass suicide attempts and widespread, prolonged
hunger strikes. The severe mental health consequences are likely to
be long term in many cases, creating health burdens on detainees and
their families for years to come.13

Trazendo a questão para o mundo dos fatos, um exemplo


que evidencia as consequências nefastas dos maus tratos praticados
contra os detentos é o caso do suicídio de três homens no dia 10 de
junho de 2006 – Saudis Yasser al-Zahrani, Mani al-Utaybi e Yemeni
Ali Abdullah Ahmed Naser al-Sulami. Antes da morte destes homens
foi constatado que os mesmos se encontravam em estado de total
incomunicabilidade por mais de 4 anos, sem acusação formal, além
de terem sido torturados e vítimas de tratamento cruel e desumano.
O governo Norte-americano não notificou diretamente as famílias
sobre o falecimento dos detentos. A família de Zahrani só tomou
conhecimento do fato por meio de noticiário televisivo.
Ademais, houve desrespeito às leis islâmicas na medida em
que estas determinam o enterro do corpo dentro do período de 24
horas após a morte. Os corpos só foram entregues aos seus países
de origem cinco dias após a data do suicídio, tendo sido removidos
alguns órgãos, além de estarem visíveis sinais de tortura, segundo
relatos dos familiares. Foram realizadas autópsias nos corpos sem o

13 UN Doc: E/CN.4/2006/120. Situation of detainees at Guantánamo Bay. Report


of the Chairperson-Rapporteur of the Working Group on Arbitrary Detention; the Special
Rapporteur on the independence of judges and lawyers; the Special Rapporteur on torture
and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment; the Special Rapporteur on
freedom of religion or belief; and the Special Rapporteur on the right of everyone to the
enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. 27 February 2006.
218 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

consentimento das famílias.


Confrontando o caso com o disposto na III Convenção de
Genebra, registram-se violações ao artigo 3º do referido documento
legal, no que concerne a integridade física dos detentos; ao artigo 13
que condena o tratamento desumano e degradante; ao artigo 15, que
enfatiza o compromisso da potência detentora em zelar pela saúde
dos detentos e, também, ao artigo 25 que determina que as instalações
de estabelecimentos presidiários não poderão prejudicar a saúde dos
detentos, devendo ser observados pela potência detentora padrões
razoáveis de superfície total e volume de ar mínimo. Por fim, o
artigo 120 determina que “as autoridades detentoras velarão por
que os prisioneiros de guerra mortos no cativeiro sejam enterrados
honrosamente, se possível seguindo os ritos da religião a que
pertencem (...)”.
Outro exemplo flagrante de violação das normas de Direito
Internacional Humanitário é a criação de entraves ao trânsito livre
da Cruz Vermelha para que esta possa desempenhar sua atividade
humanitária. No dia 16 de Novembro de 2003, foi publicado
anonimamente na internet o Manual de padrões de procedimentos
operacionais para o Campo Delta da Baía de Guantánamo (Standard
Operating Procedures Manual for Camp Delta at Guantánamo Bay Naval
Base).
O Manual fornece detalhes sobre o funcionamento da prisão
de segurança máxima, regulamentando o envio de correspondências,
os cuidados médicos, as práticas religiosas e os interrogatórios.
Constitui uma aberrante violação ao comum artigo 3º da Convenção
de Genebra de 1949, quando restringe o acesso da Cruz Vermelha aos
prisioneiros, determinando que as atividades do Comitê Internacional
Direito Internacional Humanitário 219

deverão obedecer a níveis pré-estabelecidos de contato, recebendo


estes a denominação de “No Acess” (acesso proibido), “Restricted”
(acesso restrito), “Unrestricted” (acesso livre) e “visual” (apenas
contato visual).
Em relatório publicado pela Human Rigths Watch em junho de
2008, o estado de incomunicabilidade também reflete negativamente
na própria administração da justiça, devido às dificuldades
encontradas pelos advogados para se comunicar com os detentos:
toda forma de comunicação se dá por cartas que têm a sua entrega
retardada com o manifesto propósito de criar entraves à própria
articulação da defesa. Isto sem falar que muitos dos prisioneiros são
iletrados e estão proibidos de utilizar o telefone, afora os obstáculos
logísticos para se chegar até Guantanamo, contribuindo ainda mais
para fragilizar a relação advogado-cliente.
Além disso, a própria comunicação com a família é precária, e,
em muitos casos, inexistente. Os detentos têm suas cartas censuradas
e com seu envio retardado e se vêem impossibilitados de realizarem
ligações telefônicas. Para se ter uma dimensão do quão devastador
este estado de incomunicabilidade representa nas relações familiares,
um dos detidos, Omar Khadr, só foi autorizado a falar com sua mãe
pelo telefone cinco anos após ter sido preso em Guantánamo, em
julho de 2002, época em que contava com apenas 16 anos de idade.

V. Considerações finais

Pelo exposto, fica evidente que o enquadramento de um


detento no status de inimigo combatente guarda íntima relação com
questões de ordem política, e não meramente legais.
220 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

A terminologia “unlawful enemy combatant” imputada aos


detentos como forma de escapar à incidência do Direito Internacional
Humanitário não inviabiliza a aplicação das outras vertentes de
proteção à pessoa humana. Antes de serem considerados prisioneiros
de guerra, suspeitos de terrorismo, inimigos combatentes ou qualquer
outra denominação que eventualmente possa surgir com a finalidade
de driblar a legislação internacional, os detentos possuem a intrínseca
condição humana, que deverá ser respeitada na sua integralidade.
Isto porque o Direito Internacional Humanitário não é um ramo
estanque, compartimentado. Assim como o Direito Internacional dos
Direitos Humanos, ambos gravitam em torno de um único propósito:
a proteção da pessoa humana.14
Apesar de pertinentes as críticas que apontam para uma
inadequação da III Convenção de Genebra frente às novas noções de
guerra atualmente existentes, uma interpretação extensiva do referido
tratado internacional se mostra perfeitamente cabível, ampliando
a proteção internacional para além dos prisioneiros de guerra que
integram os quadros das forças armadas de Estados reconhecidos.
Felizmente, o legado de Bush está com os seus dias contados
(Oxalá!). A eleição de Obama representa a retomada de um
compromisso com a proteção dos direitos humanos, que, durante

14 Como já tive a oportunidade de manifestar sobre o assunto em GUERRA, Sidney. As


três vertentes de proteção internacional da pessoa humana: Direito Internacional Humanitário,
Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito dos Refugiados. Direito internacional
humanitário e a proteção internacional do indivíduo. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor,
2008, p. 90: “Ao debruçar sobre o tema correspondente “As três grandes vertentes da proteção
internacional da pessoa humana: direito internacional humanitário, o direito internacional dos
direitos humanos e o direito dos refugiados” evidencia-se que o ponto central do estudo está
calcado no ser humano. Há, portanto, sem dúvida, um propósito comum: o da salvaguarda da
pessoa humana.”
Direito Internacional Humanitário 221

muito tempo, foi negligenciado e deixado ao talante de interesses


políticos.
No dia 22 de janeiro de 2009, o Presidente Obama inaugurou o
seu governo com uma série de ordens executivas, que determinavam
a desativação da prisão de Guantánamo e das prisões secretas
mantidas pela CIA no prazo de 1 ano. Foi também ordenado que
os interrogatórios fossem realizados com observância do Army Field
Manual. Ademais, as ordens executivas afirmaram o compromisso de
rever os arquivos de todos os detentos, assim como, de recorrer à
ajuda diplomática para libertação ou transferências dos encarcerados.
Embora louvável a iniciativa do Presidente Obama, há
questões mal-resolvidas e que carecem de solução urgente. Não se
pode ignorar que ainda existem detentos que se encontram presos
sob situação indefinida, sem terem recebido acusação formal. Não
seria justo fazê-los esperar amargamente por mais um ano até o
desmantelamento da prisão de Guantánamo.
Além disso, existem quatro entraves a serem sanados para
que a desativação desta prisão de segurança máxima se opere de
forma segura. São eles:
Repatriar todos os homens que podem retornar aos seus lares;
Encontrar um terceiro país para aqueles que não podem
retornar por questões de segurança, por temerem a tortura e a
perseguição. Frise-se, por oportuno, que atualmente, existem cerca
de 50 prisioneiros que temem serem repatriados para países que
conhecidamente possuem histórico de violações aos direitos humanos,
como por exemplo, o Uzbequistão, Líbia, Tunísia e Egito.
Realizar o julgamento daqueles detentos que ainda aguardam
serem julgados, dentro dos padrões das cortes federais criminais dos
222 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

EUA.
Pôr fim, dentro deste lapso temporal de um ano, ao estado de
incomunicabilidade a que estão submetidos os detentos, extinguindo
o confinamento solitário e outras condições cruéis e desumanas
imediatamente.
Obama mostrou que é possível a convergência entre temas
que, à primeira vista, parecem irreconciliáveis: Segurança Nacional
e Liberdade. A desativação da prisão de segurança máxima de
Guantánamo representa mais que uma simples observância e
adequação aos preceitos legais internacionais. Representou, sem o
menor exagero, uma vitória da humanidade.

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Arbitrary Detention; the Special Rapporteur on the independence
of judges and lawyers; the Special Rapporteur on torture and
other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment; the
Special Rapporteur on freedom of religion or belief; and the Special
Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest
attainable standard of physical and mental health. 27 February 2006.
Cap. 9: Ocupações urbanas informais no
Brasil: origens da falta de efetividade do
direito à moradia urbana

Waleska Rosa1

São 200, são 300


as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las é tempo
de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de 1 milhão?

Carlos Drummond de Andrade (1979)

Neste trabalho, pretende-se traçar um panorama da


ocupação urbana no Brasil. Dessa maneira, procura-se focalizar
o processo de urbanização2, para, a partir de suas características,
identificar os motivos que levaram à ocupação urbana informal
nas cidades do país. Ao mesmo tempo, procura-se verificar as
conseqüências trazidas pela informalidade na ocupação do meio
urbano e identificar os lugares onde freqüentemente a informalidade
ocorre.

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1994), mestrado


em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000) e doutorado em Direito pela
Universidade Gama Filho - RJ. É professora adjunta da Universidade Católica de Petrópolis e
professora titular do Centro Universitário Serra dos Órgãos (UNIFESO).
2 Procurou-se focar o processo de urbanização no Brasil. O processo brasileiro
se insere num contexto de urbanização mais geral que engloba os países dependentes,
especialmente na América Latina. Interessa apenas o processo brasileiro, tendo em vista os
objetivos desse capítulo. Para uma compreensão do processo de urbanização em geral e na
América Latina, ver CASTELLS, 2000, especialmente o capítulo I da obra. Ver também,
sobre a urbanização em países periféricos, SANTOS, 1980. Ver, ainda, ALMEIDA, 1978;
SANTOS, 1982. Sobre as questões urbanas, é importante, também, ver HARVEY, 1980.
228 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Para isso, partiu-se de um ponto de vista teórico, tentando


identificar a informalidade de modo mais geral. Porém, ao mesmo
tempo, essa verificação, com base na literatura existente sobre
o assunto, permite identificar os motivos pelos quais se torna
necessária uma política de regularização fundiária, já que se
pretende identificar como essa irregularidade surge.
Antes de iniciar a análise do processo de urbanização no
Brasil, é necessário definir algumas categorias utilizadas ao longo
deste trabalho. São noções importantes acerca da questão urbana,
especialmente no que se refere à urbanização e às irregularidades
que surgem ao longo desse processo. Espera-se, desse modo,
identificar as categorias trabalhadas ao longo do texto.
Inicialmente, para lidar com a questão da urbanização
no Brasil, é importante identificá-la como um processo. Mais
especificamente, a urbanização é um processo histórico que
ocorre de modo não meramente paralelo, mas imbricado a outros
processos, como o desenvolvimento econômico e a formação da
sociedade brasileira3. A urbanização é um processo social cujo
desenvolvimento provoca uma ampliação do número de urbes e
somente é possível graças à divisão social do trabalho que permite
que uma parcela importante da população deixe de se dedicar à
produção de alimentos e passe a depender, para sua subsistência,
dos produtos do trabalho de outra parcela da população (REIS
FILHO, 1968, p. 20). Em uma escala nacional, o processo de
urbanização não tem correspondência apenas nos centros urbanos,

3 A inter-relação entre esses diversos fatores pode ser verificada por meio de duas das
mais significativas e importantes obras a respeito da formação do Brasil. Remete-se o leitor a
PRADO JÚNIOR, 2000; HOLANDA, 1981. Ambas são obras fundamentais e clássicas para
a compreensão do processo de formação do país.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 229

mas em um nível organizatório mais complexo, que é denominado


rede urbana (REIS FILHO, 1968, p. 21).
Não se pode, então, nesse contexto, considerar cada uma
das cidades individualmente - os denominados núcleos ou centros
urbanos (REIS FILHO, 1968, p. 22) - , tendo em vista que o processo
de urbanização ocorre de modo cada vez mais ampliado, devido
aos motivos que serão verificados adiante. Deve-se, assim, utilizar
a noção de rede de cidades (ou rede urbana), que, nas palavras de
Milton Santos (1982, p. 12), nada mais é do que a “projeção espacial
de uma determinada forma de organização econômica e social”.
Sendo assim, fica evidente que as questões econômicas e sociais
influenciam diretamente na formação das cidades e nos meios
pelos quais elas irão se desenvolver.
No mesmo sentido, aponta-se o entendimento de rede
urbana expressado por Nestor Goulart Reis Filho (1968, p. 78),
segundo o qual, a rede urbana nada mais é que o conjunto de
respostas às solicitações do processo de urbanização. Entretanto,
esse processo se desenvolve de modo intimamente ligado às
questões econômicas e sociais.
Duas outras categorias cuja definição é necessária para
este trabalho são as noções de vila e de cidade. Tendo em vista que
o processo de urbanização no Brasil, na época colonial, se inicia
com a criação de vilas e cidades, torna-se necessário diferenciá-las.
Para tanto, é essencial a remissão ao próprio processo de ocupação
colonial.
A aglomeração de pessoas de forma tendente à
urbanização no Brasil Colonial se dá, fundamentalmente por meio
de povoados ou arraiais, vilas e cidades. Essas duas últimas ganham
230 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

reconhecimento oficial, sendo que os povoados e arraiais não


passam de aglomerações espontâneas, sem reconhecimento oficial
e sem investimento em infra-estrutura urbana. O que as diferencia,
em termos legais, a partir de 1940, é o fato de que as cidades são
sedes de municípios e as vilas, sedes de distritos4 (OLIVEN, 1980,
p. 69). Assim, as vilas são aglomerações intermediárias entre as
cidades e os povoados. Na história da colonização brasileira,
no século XVI, Portugal tinha como política para o Brasil uma
ocupação o menos dispendiosa possível para a Coroa. Dessa forma,
a Metrópole procurava, ao máximo, utilizar recursos particulares,
tendo em vista que não gostaria de prejudicar os programas de
investimento nas Índias. Assim, é possível afirmar que a ocupação
do território colonial pelo Regime das Capitanias era uma forma
também de urbanização do território, como meio mais eficaz de
colonização e domínio (REIS FILHO, 1968, p. 66).
Com essa política adotada por Portugal, procurava-se
deixar a cargo dos donatários as principais tarefas de urbanização,
sendo outorgado a eles o poder de criação das vilas (REIS FILHO,
1968, p. 66). Por esse motivo, das trinta e sete povoações, entre
vilas e cidades, fundadas entre 1532 e 1650, apenas sete haviam
sido criadas por conta da Coroa Portuguesa. Todas as outras foram
formadas por donatários e seus colonos (REIS FILHO, 1968, p. 67)5.
A Coroa criava cidades, núcleos populacionais de maior
importância, apenas nas capitanias que lhe pertenciam. Somente

4 Ver também a definição contida na Sinopse preliminar do Censo Demográfico de


2000 (IBGE, 2000, v. 7).
5 O ato de criação ou elevação de um povoado à condição de vila ou de cidade era
ato reservado ao rei. Os colonos poderiam fundar as vilas, mas seu reconhecimento era ato
reservado ao rei.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 231

nessas cidades, denominadas cidades reais, havia investimentos


de Portugal, que por sua vez, escolhia pontos especiais para a
criação das cidades, que ficavam diretamente subordinadas ao
Governo Geral (REIS FILHO, 1968, p. 67). Essa política se iniciou
com a fundação de Salvador, em 1549 e da cidade do Rio de Janeiro,
em 1565. No século XVII, foram fundadas as cidades de São Luís
do Maranhão, em 1612, e de Belém, em 1616. Todas elas tinham a
função de cabeças da rede urbana de suas regiões (REIS FILHO,
1968, p. 68).
Pode-se verificar, portanto, que, ao contrário do que
se poderia pensar, a ocupação do território brasileiro por parte
da Coroa Portuguesa não ocorreu de forma desregrada e sem a
existência de uma política de ocupação. Mais que isso, pode-se
afirmar que Portugal tinha uma política urbanizadora para o Brasil.
Deve-se entender como política urbanizadora “um esfôrço (sic)
para controlar ou influir sôbre (sic) as transformações que ocorrem
num processo de urbanização” (REIS FILHO, 1968, p. 66).
A Metrópole se preocupava com a urbanização da
Colônia fundamentalmente com o intuito de ocupação, pois sua
prioridade estava nas Índias. Entretanto, pode-se identificar um
processo crescente de investimento da Coroa no Brasil, à medida
que a Colônia se mostra uma boa fonte de produtos para abastecer
a Metrópole e permitir o comércio com outros países. Desse modo,
à medida que esse interesse pelo Brasil vai crescendo, pode-se
verificar, a partir da metade do século XVII, a necessidade de uma
ação urbanizadora mais ampliada por parte da Metrópole e do
Governo Geral6. Nestor Goulart Reis Filho (1968, p. 69) demonstra

6 Sobre essa ação centralizadora no que se refere aos municípios, ver FAORO,
232 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

esse crescente interesse da Coroa em participar de modo mais ativo


e centralizador da urbanização por intermédio de um levantamento
que faz sobre o número de engenheiros existentes na Colônia à
época. Durante o século XVI, o número de engenheiros presentes
nas colônias da Índia e da África oscilava entre cinco e dez (REIS
FILHO, 1968, p. 69). No Brasil, no mesmo século, o número de
engenheiros presentes corresponde à metade daquele existente na
Índia e na África. No início do século XVII, ocorre um incremento
desse número, sendo que, nessa época, o número de engenheiros
no Brasil já é maior do que aquele verificado na Índia. No final do
mesmo século, tem-se que o número de engenheiros no Brasil já
oscila entre 40 e 50% daquele encontrado na própria Metrópole. No
início do século XIX, antes da independência, esse percentual chega
a 60% (REIS FILHO, 1968, p. 70).
Foi no século XVII que começou a existir uma atuação
mais centralizadora da Metrópole que passou a chamar a si várias
responsabilidades da urbanização que, até então, eram deixadas
aos donatários. Ao fim da segunda década do século XVIII, estava
concluída e consolidada essa mudança político-administrativa,
apresentando-se, então, condições de se aplicar uma política
urbanizadora altamente centralizada, o que foi verificado durante
o período pombalino (REIS FILHO, 1968, p. 77).
As duas últimas categorias que devem ser definidas
para este trabalho são irregularidade urbanística e irregularidade
fundiária. Essas duas categorias de informalidade7 precisam ser

2000a, v. 1, p. 165-167.
7 Por informalidade nas ocupações urbanas, entendem-se aquelas ocupações que “se
originaram e se consolidaram por processos ‘espontâneos’, à margem das normas urbanísticas
e de edificações estabelecidas pelos códigos e leis” (SOUZA, 2003a, p. 415).
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 233

diferenciadas, tendo em vista que, embora suas origens na ocupação


urbana brasileira possam se encontrar, necessitam de atuação em
áreas diversas para solução das situações de informalidade.
Por irregularidade urbanística, deve-se entender o modo
de construir que não seguiu o padrão de urbanização previsto para
o local ocupado. Isso ocorre, por exemplo, nas favelas, com suas
estreitas vias que muitas vezes impedem o acesso de automóveis,
coleta de lixo, ambulâncias e táxis. Em caso de regularização, deve-
se atuar no local, de modo a resolver esse problema de acesso, além
de outros, como a inexistência de equipamentos urbanos e locais
públicos, como praças e jardins.
A irregularidade fundiária ocorre, tanto quando a
ocupação da terra urbana se dá sem controle municipal, quanto
quando os ocupantes não possuem título que lhes confere o direito
de usar o bem imóvel. Portanto, a ocupação ocorre de um modo não
previsto na legislação. De um modo geral, as áreas de favela (ou
aglomerados informais, ou assentamentos informais, ou ocupações
informais) são ocupações que padecem de vícios urbanísticos e
fundiários.
Segundo o relatório da ONU sobre o estado das cidades no
mundo (2006/2007), há cinco critérios para se considerar precária
uma ocupação de determinada área urbana. Dentre eles, encontra-
se a inexistência de posse segura o que permite as desocupações
forçadas da área8 (UN-HABITAT, 2006c, online).

8 Além do critério explicitado, que é jurídico, a UN-HABITAT considera


precários os assentamentos que carecem de uma ou mais das seguintes características: 1)
construção durável, que proteja contra as intempéries; 2) espaço de convivência suficiente,
não se admitindo que mais de três pessoas compartilhem o mesmo quarto; 3) fácil acesso à
água potável em quantidade suficiente e preço razoável; 4) acesso a saneamento adequado,
considerando-se banheiro privado ou público com utilização por um número razoável de
234 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Definidas as categorias que norteiam etse trabalho, quais


sejam, processo de urbanização, centro urbano, rede urbana,
vila, cidade, política urbanizadora, irregularidade urbanística
e irregularidade fundiária, passa-se a verificar como se deu o
processo de urbanização no Brasil.
Não se pode afirmar que a ocupação informal da terra
urbana seja um processo recente no Brasil. Encontram-se notícias
da informalidade desde a época do Império. A impossibilidade de
os sesmeiros ocuparem na totalidade a gleba recebida (FAORO,
2000a, p. 144)9 e a inexistência de outro modo de acesso à terra
(BALDEZ, 1986, p. 105) fizeram com que a posse se tornasse o único
modo de aquisição do domínio, ainda que meramente de fato. O
período de 1822 - fim do regime das sesmarias (PEREIRA, 2003, p.
25) - a 1850 - promulgação, por D. Pedro II, da Lei 601, chamada de
Estatuto das Terras Devolutas (PEREIRA, 2003, p. 28) - passou para
a história como a fase áurea do posseiro (FAORO, 2000b, p. 10-11)10.
Foi um período marcado pela ausência de legislação específica
sobre terras no Brasil (LIRA, 1997, p. 318). Entretanto, a Lei 601, de
1850, apenas impediu novas posses a partir dela, reconhecendo a
posse e legitimando o domínio de todo aquele que utilizasse a terra
para sua morada habitual e para a cultura efetiva (PEREIRA, 2003,

pessoas (UN-HABITAT, 2006c, online).


9 Em grande parte, devido às imensas glebas de terra que lhes cabiam. Segundo
Lira (1997, p. 317) “a realidade é que as grandes extensões de terra não eram devidamente
exploradas, nem ao menos efetivamente ocupadas, gerando o sistema sesmarial, pelo seu
insucesso, o embrião da grande questão fundiária agrária que no futuro viria a constituir-
se no latifúndio improdutivo”.
10 Sobre o fim do regime das sesmarias e a disseminação da posse como meio de
apropriação, ver o mesmo autor, especialmente p. 9-13.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 235

p. 29)11. Não se tratava de um surto de democracia, pois não se pode


esquecer que havia interesse em fixar as pessoas à terra, tendo em
vista as dimensões territoriais do país e o baixo número de pessoas
que povoavam o interior12. Com o fim do regime das sesmarias e
com o advento da Lei 601 de 1850, considerada o primeiro marco
da legislação fundiária brasileira (LIRA, 1997, p. 319), a única forma
por meio da qual se poderia adquirir o domínio de terras seria
a compra e venda13. Com isso, a terra no Brasil passou a atender
aos novos padrões internacionais de domínio de bens imóveis,
surgido com a Revolução Industrial, que impôs novos mecanismos
de relação com a terra e com a força de trabalho. Devido ao novo
arranjo econômico, a terra passou a ser mercadoria extremamente
cara, portanto inacessível para grande parte da população.
Devido ao advento da Lei de Terras de 1850, pode-se
começar a identificar a ampla situação de irregularidade referente
à ocupação das terras no Brasil, embora, naquele período, a
irregularidade não fosse predominantemente urbana, mas agrária.
Apesar de ter sido promulgada para solucionar o problema de

11 Ver também CAVALCANTE, 2006. Ambos os autores apontam que todos aqueles
que possuíssem terras de modo irregular deveriam ir às paróquias declarar a posse, a fim
de que ela fosse registrada. Isso seria o embrião do registro público no país. Entretanto,
houve grandes dificuldades, pois não havia medições nem demarcações confiáveis das terras.
Cavalcante aponta que a Lei de 1850 foi um grande fiasco, pois não conseguiu regularizar a
situação das terras no Brasil.
12 Embora houvesse um interesse específico em relação à fixação das pessoas à terra,
não se pode deixar de registrar que duas personalidades relevantes na história do Brasil eram
favoráveis a um acesso mais democrático à terra: José Bonifácio de Andrada e Silva e Padre
Diogo Feijó. Ambos atuaram de modo veemente e importante no reconhecimento das posses
que se consolidaram de modo irregular. Apesar disso, as propostas elaboradas por ambos, em
épocas diferentes, não foram levadas a efeito, embora tenham repercutido decisivamente na
elaboração da Lei de 1850. Ver CAVALCANTE, 2006. Ver também PEREIRA, 2003.
13 Sobre isso, ver SOUZA, 2003a, p. 412. Ver também DOURADO, 2003, p. 472.
236 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

irregularidade da ocupação da terra, a Lei 601 de 1850 não teve


efetividade14, o que só reafirmou e estimulou a tradição latifundiária
no Brasil.
No período mencionado, ainda não se podia identificar
uma urbanização intensa no Brasil. Apesar disso, a situação
apresentada serve para identificar a cultura antidemocrática de
acesso à terra, existente desde o período colonial: inicialmente com
o regime de sesmarias e, em seguida, com a mercantilização da terra,
o que, se não impediu, pelo menos dificultou o acesso das pessoas
de baixa renda ao referido bem. Mutatis mutandis e guardadas as
devidas proporções, nada de muito diferente, portanto, em relação
à situação atual. O que se observa no Brasil é a manutenção desse
tipo de padrão de acesso à terra (preços altos, em grande medida,
graças à especulação imobiliária), que inviabiliza, para as pessoas
de baixa renda, a entrada no mercado imobiliário formal. Essa
situação gerou, paralelamente, um mercado informal de terras, ao
qual as pessoas de baixa renda recorrem para ter acesso à habitação.
Neste trabalho, a preocupação é identificar a forma como
se deu o processo de urbanização no Brasil, tendo em vista que no
âmbito das cidades, tal processo foi uma das principais causas da
ocupação informal do solo. Nesse processo destaca-se a rapidez com
que a urbanização se realizou nos países dependentes (SANTOS,
1980, p. 19)15, o que gerou uma série de obstáculos ao planejamento

14 Sobre as dificuldades de implantação do novo regime de terras, a partir de Lei


601/1850, ver CAVALCANTE, 2006.
15 Para o autor, há uma diferença fundamental entre o tipo de urbanização ocorrida
nos países dependentes – denominada por ele urbanização demográfica – e a urbanização nos
países centrais – urbanização econômica ou tecnológica. Para ele, a urbanização nos países
periféricos ocorre com a preponderância de mera transferência de população para os centros
urbanos, enquanto nos países centrais ocorre um desenvolvimento econômico e tecnológico
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 237

urbano.
Verificar-se-á também como ocorreu a ocupação informal
das cidades no processo de urbanização e as conseqüências geradas
pela informalidade.

1 Processo de urbanização no Brasil


1.1 Período rural

“Durante séculos o Brasil como um todo é um país agrário


[...]”(SANTOS, 2005, p. 19). Esta frase, com a qual Milton Santos
inicia uma de suas obras mais representativas, indica de modo claro
e definitivo a situação da ocupação urbana no Brasil. Tendo em vista
que o território brasileiro pertenceu à Coroa Portuguesa de 1500
a 1822 e, nesse período, essencialmente foram aqui desenvolvidas
atividades extrativistas, mineradoras e agrícolas com o fim de
abastecer a Metrópole, a situação no então território colonial não
poderia ser diferente.
Em 1720, o Brasil possuía um total de sessenta e três vilas
e oito cidades (REIS FILHO, 1968, p. 81), o que bem fornece a
dimensão da situação urbana no Brasil colonial16, pelo menos até
aquele período do século XVIII. Não é demais lembrar que, a partir
dos anos 30 do século XVI, foi iniciada a ocupação da Colônia
por meio do sistema de capitanias hereditárias, o que marca
profundamente a história brasileira, inclusive no que concerne à
formação dos grandes latifúndios.

que proporcionam a urbanização. Ver a noção de dependência em CASTELLS, 2000, p. 82.


16 Sobre o surgimento das cidades brasileiras em cada século do período anterior à
Independência, ver AZEVEDO, 1956.
238 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Até o primeiro quartel do século XVIII, fundamentalmente,


a vida colonial se passava no meio rural, sendo que as poucas cidades
existentes tinham vida apenas intermitente, quando os senhores
chegavam, seja para deixar suas mercadorias agrícolas, seja para
utilizar algum serviço oferecido por meio das atividades que se
desenvolviam na urbe. Para os grandes proprietários, os espaços
urbanos significavam um ponto de contato com a civilização (REIS
FILHO, 1968, p. 188). Desse modo, pode-se afirmar que, naquele
período, a vida Colonial dependia fundamentalmente do meio
rural e a população, em sua grande maioria, ocupava esse meio e se
distribuía no território de modo a formar grandes claros, grandes
espaços vazios entre os núcleos de povoamento17.
Entretanto, a partir do referido século iniciou-se uma
grande transformação que modificaria radicalmente a distribuição
da população brasileira: a urbanização. Nesse período ocorreu
uma mudança gradual nos hábitos de vida dos fazendeiros e dos
senhores de engenho: eles passaram a utilizar como residência
casas das cidades, somente indo às suas propriedades na época da
colheita (SANTOS, 2005, p. 21)18, o que inverteu o fluxo já descrito.
Esse foi, no entanto, apenas o início da urbanização, que somente
se expandiu no século seguinte, graças às modificações sofridas
pela economia devido aos novos ciclos agrícolas, especialmente o
ciclo do café, que modificou o eixo produtivo no Brasil de forma
definitiva.
Assim, no período colonial, há que se ter cuidado ao se falar

17 Ver PRADO JÚNIOR, 2000, p. 25-77. Sobre isso, ver também, HOLANDA, 1981,
especialmente o capítulo IV.
18 Ver, também, REIS FILHO, 1968, p. 185.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 239

em urbanização no Brasil. Segundo Caio Prado Júnior (2000, p. 26),


ao final desse período, de acordo com os dados mais confiáveis, que
incluíam, sem grande base, os índios não colonizados, a população
brasileira era de aproximadamente 4,4 milhões de habitantes. Neste
mesmo período, apenas 5,7% da população total do país viviam em
cidades, destacando-se São Luís do Maranhão, Recife, Salvador,
Rio de Janeiro e São Paulo (SANTOS, 2005, p. 22). Embora seja
um número sem grande expressividade, é preciso, no entanto,
levar em consideração que, na virada do século XVII para o século
XVIII, a cidade de Salvador possuía 100 mil moradores, sendo, na
visão de Milton Santos (2005, p. 21-22), uma urbanização notável,
chegando o autor a afirmar ser possível considerar que, nessa época,
Salvador19 liderava a primeira rede urbana das Américas, formada
por Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré, além da capital baiana. Para
se ter uma idéia, no mesmo período, nos Estados Unidos, não havia
aglomeração com mais de 30 mil habitantes (SANTOS, 2005, p. 22).
Perto da Independência, a cidade de Salvador tinha cerca de 115
mil habitantes (AZEVEDO, 1969, p. 228).
Não se pode perder de vista que existiam nessa época
cidades importantes, criadas, conforme verificado anteriormente,
pela própria Coroa para serem cabeças das redes urbanas locais.
Daí, seu porte e importância nos contextos locais. Entretanto, tendo
em vista que a economia colonial era desarticulada, não havia
relações comerciais significativas entre as várias regiões. Estas
apenas se relacionavam com a Metrópole (SINGER, 1968, p. 8).
Isto acontecia com a cidade de Salvador e também com

19 Sobre a formação da cidade de Salvador, ver AZEVEDO, 1969, especialmente a


segunda parte, A Marcha do Povoamento, p. 117-228.
240 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

a cidade do Rio de Janeiro que, em 1808, possuía uma população


de 50-60 mil habitantes (MARTINS; ABREU, 2004, p. 211). Essa
última, embora configurasse um núcleo urbano de porte médio,
possuía importância para sua região, pois, apesar de Salvador ter
uma notória urbanização, não “exercia um controle efetivo sobre
os demais centros urbanos do resto do país” (LEAL, 2003, p. 16).
Entretanto, com a chegada, no mesmo ano, da Corte Portuguesa, o
Rio de Janeiro começou a conhecer grande expansão populacional,
estimada em 30%, somente nos meses seguintes ao desembarque
da Corte. Houve, portanto, um incremento de algo em torno de 15
mil habitantes (MARTINS; ABREU, 2004, p. 212)20.
Além da expansão populacional, há que se registrar que a
transferência da família real portuguesa para o Brasil, tornando o
país sede da monarquia, gerou transformações de ordem política e
econômica. Obviamente, tais modificações têm dimensões sociais,
com reflexos nos costumes que passaram a ditar os comportamentos
dos habitantes da cidade. O Rio de Janeiro tornou-se uma cidade
cosmopolita e as pessoas mais abastadas passaram a adotar o
modo de vida burguês. Entretanto, não se pode generalizar o que
acontecia no Rio de Janeiro para o restante do país (OLIVEN, 1980,
p. 59). No interior do Brasil, as novas influências européias não

20 Obviamente que tal situação causa grandes impactos sobre a população local e
sobre a rotina da cidade, gerando crises. A primeira delas ocorreu no setor da habitação, pois
a chegada de pessoas de Portugal criou grande demanda por moradia, passando a se praticar
o confisco de residências para atender os cortesãos. Com isso, os habitantes locais pararam de
construir novas casas, o que provocou maior adensamento populacional e aumento no preço
dos aluguéis. Por outro lado, os recém-chegados passaram a procurar locais mais aprazíveis
para construir suas moradias, já que o núcleo da cidade naquele momento não era dotado de
serviços básicos, o que, já naquela época, ocasionava enchentes no verão devido à obstrução
das valas de drenagem por detritos jogados pela população (MARTINS; ABREU, 2004, p.
222-223).
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 241

tiveram ressonância e o país continuava essencialmente agrário.


Os números citados fornecem uma noção muito clara
do que aconteceu no Brasil ao final do século XVII e ao longo do
século XVIII. Uma população que, até então, era essencialmente
rural, graças às atividades às quais o país se dedicava (agricultura,
mineração e extrativismo), iniciou um movimento de urbanização
que, como se verá adiante, avolumou-se de modo incessante.
Esse movimento, no entanto, não ocorreu de modo totalmente
desordenado. Devido à queda nos preços do açúcar, os interesses
da Metrópole e os dos proprietários rurais começaram a divergir.
Por esse motivo, surgiram transformações importantes seja na base
social da Colônia, seja nas bases do processo de colonização. Para
não perder o controle sobre a Colônia, a Coroa passou a intervir
de modo ainda mais direto na vida colonial, o que teve como
conseqüência um maior controle sobre o processo de urbanização
(REIS FILHO, 1968, p. 186).
Devido a essa necessidade de nova conformação do processo
de urbanização, a Coroa passou a não mais admitir a dispersão de
população existente no interior, escapando ao controle do Governo
Geral. Isso pode ser ilustrado pela Carta Régia recebida, em 1695,
pelo governador Castro Caldas, do Rio de Janeiro. Por meio dessa
carta, o Rei determinava que os habitantes que se dispersavam
pelo sertão fossem congregados em povoações regulares. Essas
foram as primeiras intervenções de Portugal no sentido de uma
maior urbanização da Colônia, tendo sempre como fim um maior
controle sobre ela. Entretanto, somente após a Independência, no
final do século XIX, iniciou-se a primeira aceleração do fenômeno
da urbanização. Em 1872, 5,9% da população do Brasil era urbana;
242 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

em 1900, esse contingente de pessoas passa para 9,4% da população


(SANTOS, 2005, p. 24)21.
A aceleração do processo de urbanização, que passa a
ocorrer no final do século XIX e passa a se intensificar ainda mais no
século XX, foi fruto de um novo ciclo econômico, a industrialização,
tendo como principal trincheira a cidade de São Paulo, que, com
isso, passou a disputar importância, no contexto nacional, com
a cidade do Rio de Janeiro. Ambas passaram, mais tarde, a ser
reconhecidas como metrópoles nacionais.
Pode-se identificar na última década do século XIX o
primeiro surto industrial brasileiro significativo, que ocorreu
devido ao surgimento de indústrias alimentícias e têxteis, como
forma de substituição e complementação às importações (OLIVEN,
1980, p. 62). Entretanto, esse surto foi muito restrito e não modificou
a identidade essencialmente rural do país. O processo de aceleração
da expansão industrial, que teve reflexos na urbanização, somente
se deu no início do século XX, especialmente a partir da década de
30, após a crise de 1929, que provocou queda substancial no preço do
café, principal produto agrícola do Brasil na época. Posteriormente,
a Segunda Guerra Mundial teve reflexos no processo brasileiro de
industrialização, já que, devido ao vazio deixado pela interrupção
do abastecimento proveniente do exterior, as indústrias tiveram
um novo vácuo a preencher.
É nesse contexto que a cidade de São Paulo passa a
despontar no cenário brasileiro, fazendo frente à importância da
cidade do Rio de Janeiro. Deve-se, entretanto, ainda que de modo

21 Segundo o autor, tais dados devem ser vistos com cautela, pois somente a partir de
1940 as contagens de população passaram a separar a população urbana da população rural.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 243

breve, identificar os motivos e o momento em que a economia


paulista desponta no contexto nacional, suplantando as demais
regiões produtivas (especialmente, a região açucareira do Nordeste
e a região cafeeira do Vale do Paraíba).
Pode-se afirmar, de modo sucinto, que duas situações
econômicas específicas geraram, quando da substituição do
modo de produção escravista pelo modo de produção capitalista,
vantagens para São Paulo em relação às duas outras regiões
produtivas de destaque à época. Quanto ao Nordeste, São Paulo
levava vantagens pela grande disponibilidade de terras para a
expansão da agricultura cafeeira (FURTADO, 2000, p. 144; CANO,
1977, p. 18). Na região Nordeste, apesar da recuperação da economia
açucareira, na segunda metade do século XIX, graças à expansão do
mercado interno, a acumulação de capital era limitada tanto pela
baixa produtividade, quanto pelos preços vigentes. Entretanto, o
custo da mão-de-obra, após a abolição da escravatura, continuou
em níveis baixos, tendo em vista que, no Nordeste, a inexistência de
terras das quais os libertos pudessem se utilizar para a agricultura
de subsistência, fez com que a abolição fosse quase que somente
formal, já que os antigos escravos tiveram que alienar sua mão-de-
obra por salários irrisórios.
Em relação ao Vale do Paraíba, São Paulo levava vantagem
também pela relativa abundância de terras. Porém, além da
escassez de terras, sua crescente exaustão gerou a necessidade de
investimentos cada vez mais altos para manter uma produtividade
que já não era satisfatória. Juntando-se a isso o alto custo da
mão-de-obra escrava na região, à época, tem-se como resultado a
diminuição das margens de lucro e a estagnação que mais tarde
244 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

gerou a decadência da economia cafeeira no Vale do Paraíba22.


Além da vantagem que tinha quanto à disponibilidade
de terras para a expansão da agricultura cafeeira, São Paulo teve
a seu favor um outro fator de destaque: maior desenvoltura para
lidar com o complexo23 capitalista em substituição ao complexo
escravista. Tal condição pode ser ilustrada pela colocação de
Wilson Cano (1977, p. 19) sobre os “‘momentos’ da evolução
histórica cafeeira”. Segundo o autor (CANO, 1977, p. 19), podem
ser distinguidos quatro momentos dessa evolução cafeeira:

um primeiro, em que a atividade é escravista;


um segundo, em que predominando ainda
o escravismo, já existem alguns segmentos
operando com trabalho assalariado ou
com outras formas distintas do trabalho
(a parceria, por exemplo); o terceiro, ao
contrário do anterior, seria aquele em
que a predominância se daria na forma
do trabalho assalariado e, no último,
finalmente, a escravidão estaria extinta.

São Paulo teve seu primeiro grande salto de expansão


cafeeira, entre 1876 e 1883, já parcialmente dentro de relações
capitalistas de produção. Nesse período, apesar de ainda existir o

22 Sobre isso, ver FURTADO, 2000, especialmente o capítulo XXIV e CANO, 1977,
especialmente o capítulo I.
23 A noção de complexo aqui utilizada é a que foi proposta por Wilson Cano (1977,
p. 17): conjunto de atividades que interferem no surgimento de um conjunto econômico
integrado.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 245

sistema escravista, já se utilizava amplamente a mão-de-obra livre


no processo de produção do café. O preço dessa mão-de-obra era
baixo. Além do regime assalariado, também conviviam os regimes
de parceria e colonato. Todos os regimes adotados geravam grande
insatisfação, tendo em vista que os ganhos para o assalariado, o
parceiro e o colono eram extremamente baixos. Com a queda no
preço do café, nas décadas de 1850 e 1860, houve forte pressão dos
fazendeiros para reduzir ainda mais os custos da mão-de-obra.
Tentou-se, para solucionar o problema, importar mão-de-obra
chinesa, que tinha um custo ínfimo. Como a tentativa não vingou, o
sistema teve que encontrar outra solução: os imigrantes europeus,
que foram inseridos no regime de colonato.
A substituição da mão-de-obra escrava pela do imigrante
representou uma relevante vantagem para os fazendeiros, pois
além dos custos dessa mão-de-obra serem mais baixos que os custos
de manutenção dos escravos, devido à ausência de necessidade de
imobilização de capital, a produtividade da lavoura passou a ser
muito maior com os colonos europeus. A título de comparação, duas
situações podem ilustrar essa vantagem do colono sobre o escravo.
Segundo Cano (1977, p. 40), para a mesma tarefa executada por um
imigrante, seriam necessários cinco escravos. Paralelamente a isso,
o custo de produção de uma saca de café sob o regime escravista
era de algo em torno de 15$000, enquanto que nas fazendas que
adotavam o colonato, o custo de produção da mesma saca de café
variava entre 7$200 e 9$800 (SIMONSEN, 1973, p. 210).
As mais avançadas e dinâmicas relações de produção
capitalistas conferiram a São Paulo uma maior vocação para
o desenvolvimento econômico no âmbito da substituição do
246 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

modo de produção escravista. Além disso, há outros fatores que


contribuíram de maneira decisiva para a pujança econômica que
São Paulo passou a ter. Destacam-se alguns deles: a expansão e
o vigor da atividade cafeeira, central na economia paulista; a
expansão da oferta de mão-de-obra; a expansão ferroviária, que
permitia o escoamento da produção (CANO, 1977, p. 42).
Além desses fatores, são relevantes para esse trabalho, os
elementos referentes ao segmento urbano da economia paulista.
Com a ampliação e o sucesso obtido na atividade nuclear (atividade
cafeeira), houve importante expansão dos serviços urbanos, como
a atividade industrial, a atividade bancária, a proliferação de
escritórios, de armazéns, do comércio atacadista, além da expansão
do aparelho estatal. Desse modo, essas atividades também
fomentaram o surgimento e ampliação de outras, mais diretamente
vinculadas ao processo de urbanização: comércio varejista,
transportes urbanos, construção civil, equipamentos urbanos, etc.
Todas essas atividades, inclusive a cafeeira, passaram a ser inter-
relacionadas, gerando uma série de conexões econômicas que se
aceleraram entre 1890 e 1900 (CANO, 1977, p. 69).
Obviamente que esse florescimento econômico gerou um
forte crescimento demográfico. Para se ter uma idéia, em 1872 a
população do Estado de São Paulo era de 800.000 habitantes; em
1900, já havia atingido um total de 2.300.000 habitantes. Quanto
à capital, o crescimento se dava de maneira ainda mais intensa:
em 1872, a capital possuía 31.400 habitantes, enquanto em 1900,
atingiu o número de 239.800 habitantes (CANO, 1977, p. 70). Um
dos fatores responsáveis por tal crescimento foi o fato de muitos
fazendeiros de café terem fixado residência na cidade de São Paulo
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 247

(SINGER, 1968, p. 36).


Apontam-se duas causas para o crescimento demográfico:
o aumento das taxas de crescimento natural e a migração do campo
para a cidade, ocorrida tanto pela decadência agrícola quanto pelos
atrativos que as cidades começavam a oferecer.

1.2 Período urbano

Por meio do quadro descrito, percebe-se que estavam


estabelecidas as bases para um incremento ainda maior do
crescimento da economia paulista, o que ocorreu por meio
do crescimento industrial, principal gerador do processo de
urbanização no Brasil. Esse processo de industrialização se referiu
a todo o território nacional, embora se mostrasse mais vigoroso na
Região Sudeste, especialmente em São Paulo. A atividade cafeeira
foi uma das grandes responsáveis por isso.
Devido à forma cíclica da expansão cafeeira, na fase de
alta do preço do café, os investimentos eram feitos na formação
de plantações. Nos ciclos de baixa do preço do café, o capital
fortemente acumulado até a década de 1930 migrava para outros
investimentos, como bancos, estradas e indústrias (CANO, 1977,
p. 122). Pode-se, desse modo, afirmar que a primeira expansão
industrial foi fortemente beneficiada pela acumulação gerada pela
produção cafeeira. Essa situação, entretanto, não se verificava do
mesmo modo no Estado do Rio de Janeiro, cuja atividade cafeeira
encontrava-se, naquele período, em franco declínio. Portanto,
o Estado de São Paulo, além das outras condições favoráveis
248 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

apontadas, tinha a acumulação proveniente da atividade cafeeira24


como fonte financiadora da indústria, ao passo que o Rio de
Janeiro25 dependia muito mais do capital estrangeiro e de ações
governamentais.
Pode-se afirmar que a concentração industrial em São
Paulo ocorreu no início do século XX. Entre 1905 e 1919, ocorreu
o primeiro “salto quantitativo” da indústria paulista que, nesse
período, cresce 8,5 vezes (em 1919, a indústria paulista representava
31,5% da indústria nacional); enquanto que no restante do país
o crescimento ficou na casa das 3,5 vezes (CANO, 1977, p. 227).
Desnecessário lembrar que nessa época, o Estado de São Paulo já
possuía farta mão-de-obra para a indústria, devido aos mecanismos
de substituição da mão-de-obra escrava verificados anteriormente.
Além disso, devido às condições cada vez mais difíceis de vida no
campo, conforme já destacado, a Região Sudeste passou a receber
grande número de migrantes de outras regiões do país, onde a
expansão industrial não se mostrava tão vigorosa. Obviamente, a
maioria dessas pessoas se dirigia a São Paulo graças ao quadro aqui
delineado.
Podem ser identificados quatro processos que contribuíram
de maneira decisiva para que o Brasil se transformasse em uma
sociedade cada vez mais urbana: 1 – a migração dos camponeses para
a cidade devido à proletarização que sofreram como conseqüência
da penetração de relações capitalistas no campo (vide subseção

24 Sobre isso, ver também BASTIDE, 1969, p. 158-162.


25 Antes do eixo da industrialização se modificar, o Rio de Janeiro não só era a maior
cidade do Brasil, mas também “sediava a mais importante indústria, o mercado financeiro e
o maior mercado de consumo e de trabalho do país, até que São Paulo viesse a rivalizar essa
posição nas primeiras décadas do século XX.” (FERNANDES; NEGREIROS, 2004, p. 27).
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 249

anterior); 2 – aumento da população, em certas áreas, seja devido


às taxas de natalidade, seja graças à diminuição da mortalidade
infantil; 3 – expansão das fronteiras agrícolas, em parte devido
à migração das pessoas atingidas pelos processos anteriores; 4 –
migração para os centros urbanos devido à expectativa de melhores
condições de vida e trabalho (OLIVEN, 1980, p. 67-68).
Como verificado anteriormente, a crise de 1929, com
seus reflexos na produção do café, e a Segunda Guerra Mundial,
com o desabastecimento, contribuíram de modo decisivo para o
desenvolvimento da indústria no Brasil.
O primeiro momento da industrialização e da urbanização
brasileiras durou até a década de 1930, com a consolidação da
liderança paulista. A partir daí, surgiram novas condições políticas
e organizacionais que permitiram que a industrialização conhecesse
uma nova impulsão: por um lado, o Poder Público começou a
intervir no processo; por outro, o mercado interno ganhou um
papel crescente na elaboração, para o país, de uma nova lógica
econômica e territorial (SANTOS, 2005, p. 30).
A partir dos anos 1940-1950, prevaleceu essa nova lógica
da industrialização. O termo industrialização passa a ter uma
concepção mais ampliada, significando o processo social complexo,
que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os
esforços de equipamento do território para torná-lo integrado. Além
disso, verificou-se a expansão do consumo em formas diversas,
o que impulsionou a vida de relações (leia-se terciarização) e
ativa o próprio processo de urbanização (SANTOS, 2005, p. 30)
.
Esse período, especialmente a década de 50 do século XX,
250 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

marcou, no Brasil, o início da era chamada desenvolvimentista,


quando a rede urbana brasileira se expandiu de modo vigoroso
em decorrência da industrialização, mas também, em decorrência
da intervenção governamental, tanto na economia quanto na
organização do território nacional (FERNANDES; NEGREIROS,
2004, p. 25). Essa interferência do Poder Público ocorreu de maneira
a ampliar um mercado interno que absorvesse a produção industrial
e, de um modo geral, todas as transformações que passaram a
ocorrer no âmbito econômico e social. Além da expansão, era
necessária uma integração do mercado doméstico. Nesse contexto,
os centros urbanos têm importante papel a cumprir. Assim, as áreas
urbanas tiveram uma política direcionada para a sua expansão e
integração (FERNANDES; NEGREIROS, 2004, p. 25). Com isso,
foi não somente incentivada, mas também financiada pelo Poder
Público uma expansão vigorosa da rede nacional de transportes, o
que fomentou ainda mais as migrações internas. Constitui marco
desse período, a criação do Sistema Nacional de Transportes
Rodoviários, o que impôs, definitivamente, a mudança de foco do
transporte ferroviário para o transporte rodoviário.
Nesse contexto, iniciou-se o processo de metropolização,
devido à atração das pessoas oriundas de áreas cuja economia se
apresentava estagnada ou com baixo índice de desenvolvimento.
Junte-se a isso a edição de leis trabalhistas que beneficiavam apenas
os trabalhadores urbanos e tem-se um quadro de forte crescimento
demográfico das regiões industrializadas, especialmente das
cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, que se tornaram as duas
metrópoles nacionais.
Com a inauguração, na década de 1950, do modelo
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 251

desenvolvimentista, iniciaram-se processos de interiorização do


desenvolvimento. Isso foi simbolizado pela transferência da capital
federal para o interior, o que ocorreu no dia 21 de abril de 1960,
com a instalação simultânea dos três Poderes do Estado na nova
capital. Na década de 70, o sistema urbano já refletia a influência de
Brasília26 e da integração regional, promovida fortemente ao longo
do período desenvolvimentista.
Nesse processo, o Golpe Militar de 1964 foi um marco,
pois o movimento militar criou as condições de integração do país
ao panorama de desenvolvimento internacional (SANTOS, 2005,
p. 39). Entretanto, tal integração ocorreu de modo a concentrar
as atividades modernas e dinâmicas em algumas cidades do país,
especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, que, como verificado, se
firmaram como metrópoles nacionais. Isso criou uma polarização,
ficando as demais capitais numa posição de periferia em relação
às duas metrópoles. O desenvolvimento concentrado foi
proporcionado também por uma série de investimentos públicos
no sentido de desenvolver os referidos centros metropolitanos, a
fim de adequar as cidades às novas necessidades. Isso contribuiu
de modo ainda mais decisivo para o movimento de migração de
pessoas das áreas estagnadas para as cidades que apresentavam
maior pujança econômica. Tal situação foi possível, entre outros
motivos, graças à ideologia desenvolvimentista e à ideologia do
Brasil como potência, típica do período militar, que justificavam
o investimento público maciço em benefício de grandes empresas
(SANTOS, 2005, p. 113). Com isso, o próprio Poder Público

26 Sobre o papel de Brasília no processo de urbanização brasileiro, ver FERREIRA,


1985, p. 43-56.
252 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

contribuiu para uma situação de pauperização da população que já


era despida de recursos (SANTOS, 2005, p. 123).
Essa visão da era desenvolvimentista perdurou durante as
décadas de 60, 70 e, sob certo período, a década de 80 do século
XX, quando um novo quadro econômico se instalou. Na chamada
década perdida27 houve uma longa estagnação na economia,
em oposição ao longo período de desenvolvimento verificado a
partir da década de 1950. Com isso, o vigor da industrialização se
esmaeceu e as condições de vida nas grandes cidades ficaram ainda
mais difíceis para as populações de baixa renda.
Ao mesmo tempo, as cidades de porte médio já começavam
a mostrar vigor econômico, o que permitiu que elas se tornassem
atrativas para os novos migrantes. Com isso, verificou-se nos
centros de médio porte um crescimento populacional maior que
o verificado nas metrópoles, mormente nas metrópoles nacionais
(São Paulo e Rio de Janeiro). As atuais regiões metropolitanas do
Rio de Janeiro e São Paulo, juntas, tiveram, entre 1950 e 1980, um
incremento populacional da ordem de 4,0%, enquanto no país como
um todo esse índice se mostrou um pouco maior: 4,28%. Entretanto,
se forem tomadas apenas as demais áreas metropolitanas, o
incremento atinge 4,96%, o que indica importante redistribuição28
da população urbana, caracterizando um movimento paralelo de
metropolização e de expansão urbana (SANTOS, 2005, p. 94).
Os novos centros urbanos, porém, não necessariamente

27 Sobre o papel desempenhado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) nos países
de Terceiro Mundo, ver DAVIS, 2006, p. 203. O autor denomina o período de atuação do FMI
como “o ‘Big Bang’ da pobreza urbana”.
28 Paralelamente a isso, pode-se verificar um movimento de retração na migração do
Nordeste para São Paulo e um movimento de retorno de muitos migrantes nordestinos para
suas origens. Sobre isso, ver CONSTANTINO, 2006.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 253

possuíam vocação industrial. Nota-se, portanto, que o processo de


urbanização não adere totalmente ao processo de industrialização.
Tanto que os consideráveis níveis de urbanização são registrados
também em cidades que não possuem vocação industrial (OLIVEN,
1980, p. 64). Houve, portanto, um momento em que o processo de
urbanização se desprendeu do processo de industrialização. Desse
modo, passou a ser difícil continuar a identificar uma situação de
pólo-periferia, o que indica que a urbanização deixou de ter como
eixos apenas as metrópoles e passou a conformar de uma nova
maneira o território nacional, ganhando importância as cidades de
grande e médio portes em diversas regiões do país.
São Paulo, entretanto, nesse contexto, não perdeu sua
proeminência. Como no início da industrialização, a cidade
mais uma vez conseguiu encontrar lugar de destaque. São Paulo
continua a polarizar, não mais devido a sua indústria, mas à sua
capacidade de produzir, coletar e classificar informações suas e dos
outros, distribuindo-as e administrando-as de acordo com os seus
interesses (SANTOS, 2005, p. 59). Com isso, a distância entre Rio de
Janeiro e São Paulo cresce ainda mais, abrindo-se um verdadeiro
abismo. A cidade de São Paulo destacou-se, então, como metrópole
onipresente no território brasileiro.
Pode-se identificar nesse momento a situação descrita por
Milton Santos (2005, p. 48), em sua clássica obra A Urbanização
Brasileira. Segundo o geógrafo, enquanto a industrialização era
a base da economia, o desenvolvimento era proporcionado pela
utilização dos meios naturais a partir do trabalho direto do homem
sobre esses recursos. Ainda segundo o autor (SANTOS, 2005, p. 49),
no último quartel do século XX, estabeleceu-se uma grande ruptura,
254 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

pois a produção não mais de baseava na atuação direta do homem


sobre a natureza, mas na utilização do capital. Com isso, impôs-se
o fim da separação Brasil urbano/Brasil rural, para se inaugurar
um novo momento, em que a contraposição é feita de outra
maneira. A partir desse momento, o Brasil urbano é contraposto ao
Brasil agrícola, que não mais se identifica com a exploração arcaica
das terras cultiváveis. A exploração passa a ocorrer com base no
desenvolvimento tecnológico, o que gera ampla mecanização da
lavoura e a utilização de meios de manejo e de controle agrícolas
cada vez mais elaborados.
Com isso, mesmo as populações que trabalham com a
lavoura, em sua grande maioria, não mais habitam o meio rural,
passando a viver nas cidades próximas das grandes áreas agrícolas.
Ao mesmo tempo, essas atividades passaram a exigir cada vez mais
desenvolvimento técnico-científico, o que abriu novos caminhos
para a migração, porém, dessa vez, das grandes metrópoles para as
cidades de médio porte.
Essas cidades, no entanto, passaram a atrair a população
qualificada. Segundo Milton Santos (2005, p. 54), a população
brasileira não se tornou mais culta, mas se tornou mais letrada.
Tal situação, ao lado de algumas outras identificadas no texto a
seguir referenciado, indica uma possível nova realidade no âmbito
das metrópoles: a permanência preponderante da população pouco
qualificada e, conseqüentemente, de mais baixo poder aquisitivo,
que habitarão, fundamentalmente, as áreas periféricas das grandes
cidades29, recriando-se “condições para a utilização do velho

29 Sobre isso, ver especialmente SOUZA, 2004a, p. 57-74. No artigo, o autor analisa
a situação da reversão da polarização apontada no presente trabalho. Importante salientar que
merece destaque no texto a afirmação de que a pobreza no Brasil é sobretudo metropolitana,
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 255

econômico” (SANTOS, 2005, p. 61).


Verifica-se, desse modo, que mesmo na economia pós-
industrial, as cidades continuam tendo importante papel30 na nova
configuração econômica e financeira verificada no contexto do
mercado global (FERNANDES, 2005, p. 5). Isso significa que, apesar
do declínio industrial, os índices de urbanização provavelmente
continuarão crescendo ao longo do século XXI. No contexto global,
tal situação torna-se ainda mais significativa, pois, embora na
América Latina o índice de urbanização atual chegue a 75%31, os
países da África e da Ásia ainda estão passando por um processo
de migração rural-urbana.
Conforme dados da Síntese de indicadores sociais 2005,

conforme apontado na p. 64 pelo autor. Os conflitos que possivelmente passariam a existir


devido à ocupação descontrolada dos centros já tinham sido apontados pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1982, por intermédio do documento Solo Urbano
e Ação Pastoral, no qual a CNBB apontou que “a aceleração do processo de urbanização está
transferindo para a cidade uma carga conflitual, que poderá assumir as dimensões de uma
confrontação entre os muitos que têm pouco a perder e os poucos que têm muito a perder”.
30 Sobre o papel das cidades, ver os dados do State of the Wolrd’s Cities Report 2006/7,
publicado pela United Nations Human Settlements Programme (UN-HABITAT), organismo
das Nações Unidas para os assentamentos humanos, segundo os quais “las economias urbanas
globales se basan en servicios productores de avanzada, tales como los servicios financieros,
bancarios, de seguros, legales, de asesoria administrativa, de publicidad y otros. La revolución
de la tecnologia ha permitido que las empresas comerciales contraten estos servicios en
cualquier parte del mundo.” (UN-HABITAT, 2006a, online). Quanto à cidade de São Paulo, o
relatório a destaca no panorama mundial como centro de atividades financeiras.
31 A América Latina é a região mais urbanizada do mundo em desenvolvimento
(FERNANDES, 2005, p. 5). Tal situação é confirmada no referido documento recentemente
publicado pela UN-HABITAT segundo o qual, “mientras que Europa, Norteamérica y América
Latina experimentaron una intensa urbanización – la concentración creciente de personas
en las ciudades más que en las zonas rurales – y un rápido crecimiento urbano a partir de
mediados del siglo XX, ahora el fenómeno se ha desplazado hacia las regiones en vias de
desarollo de Asia y África. La inmigración, la reclasificación y el crecimiento natural de la
población contribuyen a la rápida transformación urbana de estas regiones.” (UN-HABITAT,
2006b, online).
256 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

do IBGE (2006, online), no Brasil, em 2004, 83% da população já


viviam em áreas urbanas contra apenas 17% que viviam em áreas
rurais. Destaque-se que, no mesmo ano, na Região Sudeste, 92,1%
da população viviam em cidades (IBGE, 2006, online).
O panorama da urbanização aqui traçado é o contexto
no qual surgiram as ocupações do território urbano, seja pela
população de baixa renda, seja pela população que tem condições de
prover seu sustento de forma razoável. Como pôde ser verificado,
a partir do processo de urbanização, houve grande incremento
da população urbana, o que gerou reflexos na forma de ocupação
do solo urbano. De acordo com o que será verificado, o modelo
desenvolvimentista contribuiu de forma decisiva para o aumento
das distorções referentes à distribuição da população no âmbito
urbano.
A partir do quadro traçado, o processo de ocupação do solo
urbano será o objeto de análise da próxima seção deste trabalho.

2 Processo de ocupação informal da terra urbana

No Brasil, a partir do surgimento das indústrias,


houve vários e importantes surtos de migração para as regiões
industrializadas ou mais fortemente industrializadas. A atuação
do Poder Público, com seus planos desenvolvimentistas contribuiu
decisivamente para essa redistribuição da população no território.
Entretanto, não houve, na maior parte dos casos, preparo
estratégico para que essas pessoas fossem recebidas nas grandes
cidades. Pode-se, portanto, identificar um grave problema de
acomodação dos novos moradores na área urbana das cidades que
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 257

os receberam. Como conseqüência da falta de planejamento e do


maciço investimento público na expansão da indústria, proliferaram
as ocupações informais do tecido urbano, as quais conformaram
o perfil das grandes cidades brasileiras. Entretanto, como será
verificado, o processo de ocupação informal da terra urbana, há
muito tempo, não está mais restrito às cidades de grande porte, mas
ocorre em qualquer centro urbano, seja qual for o seu tamanho32.
Entende-se como ocupação informal toda aquela que
desatende aos padrões urbanísticos e/ou jurídicos, sendo, portanto,
a informalidade um gênero de que são espécies a irregularidade
urbanística e a irregularidade jurídica. No que se refere à
irregularidade jurídica, podem ser apontados diversos tipos de
desatendimento aos padrões jurídicos de ocupação do solo urbano:
desde a posse sem qualquer tipo de titulação até a construção sem
licença municipal. Para cada tipo de ocupação irregular, há que se
utilizar um instrumento específico de regularização fundiária.
Como verificado anteriormente, o processo de
industrialização gerou um processo paralelo de migração para os
centros urbanos, tendo em vista que, em seu início, a urbanização
se verificou preponderantemente a partir dos grandes centros
urbanos, em especial São Paulo. Os operários que migravam para
trabalhar tiveram que encontrar meios de solucionar o problema
referente à habitação.

32 A título de exemplo do que vem ocorrendo também em cidades de pequeno porte,


como Viçosa, que no ano 2000 possuía 64.910 habitantes, ver o artigo de RIBEIRO FILHO,
2003, p. 317-331. Sobre o papel das cidades pequenas e das de porte médio no que se refere
à pobreza e à ocupação precária, ver o citado relatório da UN-HABITAT sobre o estado das
cidades no mundo (UN-HABITAT, 2006b, online). Há estimativas de que 37% dos pequenos
municípios têm loteamentos clandestinos, estando na casa dos 18% o índice de favelas
(FERNANDES, 2006a, online).
258 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

O mercado imobiliário era, em muitos casos, inviável,


tendo em vista que os rendimentos obtidos com o trabalho eram
insuficientes para prover os gastos com moradia e todas as demais
despesas familiares. Desse modo, outras soluções começaram a
ser utilizadas, dentre elas os cortiços se mostraram viáveis, tendo
em vista que, nesse período, as cidades não eram extremamente
segregadas. Conviviam nos mesmos bairros moradias de pessoas
abastadas, cortiços e fábricas. Isso era fundamental, tendo em vista
que os deslocamentos eram muito difíceis, já que o único meio de
transporte coletivo existente era o bonde puxado por tração animal.
De um modo geral, pode-se afirmar que, no final do
século XIX e início do século XX, os cortiços eram uma das formas
alternativas de moradia para as famílias cujos recursos não eram
suficientes para prover a habitação por intermédio do mercado
imobiliário, seja por meio da compra, seja por meio da locação.
Nesse período, a população de baixa renda habitava essencialmente
o centro da cidade, em casas modestas e cortiços.
Em São Paulo, até meados dos anos 1910 e início dos anos
1920, as moradias alugadas constituíam a forma predominante
de habitação popular (BONDUKI, 1983, p. 138). Era o auge da
economia cafeeira. Os excedentes de capital gerados por ela e as
pequenas poupanças viam na produção de casas para locação
um setor seguro de investimento, já que a indústria ainda não se
mostrava estável (BONDUKI, 1983, p. 139). Os valores pagos pelas
locações, obviamente, eram condicionados pelos salários recebidos
pelos trabalhadores. Assim, existiam diferentes tipos de moradias
para locação. Para os trabalhadores qualificados e para a classe
média se difundiam as chamadas vilas: conjunto de pequenas
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 259

casas unifamiliares geminadas (BONDUKI, 1983, p. 139). Para o


trabalhador mal remunerado, a opção era o cortiço.
Os cortiços podem ser definidos como habitações
multifamiliares, obtidas por meio da divisão precária de grandes
casas ou cômodos maiores de casas e seus porões. Podem, ainda,
se constituir por meio de cômodos construídos ao redor de pátios
e dormitórios improvisados nos fundos de bares e armazéns. Com
isso, ficam prejudicadas a aeração, a insolação e a privacidade. Os
banheiros, os chuveiros, as pias e os tanques são coletivos, gerando
uma co-habitação involuntária (RODRIGUES, 2001, p. 48).
Devido ao baixo índice de segregação das classes sociais,
começou, já no final do século XIX, a existir uma preocupação com
o saneamento. Tal preocupação se intensificou com a ocorrência da
epidemia de gripe espanhola, ao final da Primeira Guerra Mundial.
O medo da contaminação em novas epidemias gerou
a preocupação com a construção de casas higiênicas, o que foi
viabilizado por meio das vilas operárias (normalmente contíguas
às fábricas) oferecidas pelas próprias indústrias, que viam nessa
política uma vantagem, tendo em vista que os salários poderiam
ser mais baixos, já que os operários não teriam dispêndios com
moradia. Essa política subsistiu dos primórdios da industrialização
até a década de 1930 (KOWARICK, 1979, p. 30), quando a
industrialização se intensificou e o número de operários começou a
aumentar de modo vigoroso ao mesmo tempo em que os terrenos
fabris começaram a se valorizar, inclusive devido à urbanização.
Isso inviabilizou o fornecimento de moradia por parte das
empresas e os custos de habitação passaram a recair totalmente
sobre os operários. Assim, as vilas operárias foram desaparecendo
260 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

e a solução dos problemas de moradia passou a ocorrer no âmbito


do mercado imobiliário.
Paralelamente, aconteciam as reformas urbanas que tinham
como justificativa o sanitarismo. A Reforma Pereira Passos, no Rio
de Janeiro, ocorreu no alvorecer do século XX, retirando as pessoas
de baixa renda do centro da cidade. Tais reformas, que se baseavam
na expulsão33 das populações que habitavam essas moradias
precárias, vão ocorrer em muitas cidades, variando apenas a época
em que acontecem. Em Porto Alegre, por exemplo, esse movimento
de expulsão se iniciou por volta de 1915 (ALFONSIN, 2003, p. 160).
Além da migração que já vinha ocorrendo desde os
primórdios da urbanização, o fim das vilas operárias e a política de
expulsão geraram outros movimentos de procura de habitação por
parte das pessoas de baixa renda. A expulsão dessas pessoas das
áreas centrais das cidades deu início a um processo de periferização
e de favelização.
Por meio do processo de periferização, as famílias de baixa
renda migraram para áreas ainda não urbanizadas da cidade, tendo
em vista que somente nesses locais conseguiam, a partir da renda
familiar, pagar pela habitação.

Por força do denominado princípio da


segregação residencial, os migrantes são
ejetados para a periferia, já que não lhes é

33 Para se verificar a marca que as expulsões deixaram, verificar seu registro na


cultura popular por meio da obra do compositor Adoniram Barbosa, especialmente as músicas
Despejo na favela, Abrigo de Vagabundo, A Luz da Light e Saudosa Maloca. “Adoniram
Barbosa (1910-1982) foi um dos grandes compositores brasileiros, cantou e eternizou o dia-
a-dia do povo pobre de São Paulo, a vida na favela, os despejos, a falta de luz” (SAULE
JÚNIOR; CARDOSO, 2005, p. 29).
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 261

possível a fixação no núcleo, onde a terra


urbana alcança valores vultosos, criando as
cidades dormitórios, separando o homem
de seu local de trabalho por quilômetros de
distância (LIRA, 1997, p. 342).

Desnecessário afirmar que as periferias das cidades não eram


dotadas de infra-estrutura para receber os novos moradores. Não
havia prestação de serviços públicos, ruas abertas, meios de acesso
necessários34. Esses novos aglomerados eram distantes do centro da
cidade e, conseqüentemente, dos locais de trabalho, o que impunha
o empobrecimento dos assalariados, tendo em vista que assumiam
mais uma despesa: o transporte para os locais de trabalho35.
Enquanto parte da população expulsa se deslocava para as

34 No contexto de periferização e de favelização, a autoconstrução passou a desempenhar


um papel importante, especialmente entre a população com faixa de renda entre zero e cinco
salários mínimos. A autoconstrução tornou-se, nos dizeres de Ermínia Maricato (1979, p. 87),
“a arquitetura possível”. Dentre os vários problemas causados pela autoconstrução destacam-
se o congestionamento habitacional, a coabitação familiar, a insalubridade, a iluminação e
ventilação precárias (MARICATO, 1979, p. 91), situações geradoras de doenças físicas e,
em muitos casos de psicopatias. A autoconstrução pode dar origem à casa própria, quando a
casa é construída em terreno adquirido pela família. Entretanto, essa não é a situação mais
comum, tendo em vista que a população de baixa renda enfrenta grandes dificuldades para
adquirir imóveis urbanos, devido ao alto valor da terra como bem de consumo. Desse modo,
a autoconstrução é amplamente utilizada quando se trata de ocupações irregulares.
35 A questão do transporte urbano é um dos problemas mais difíceis atualmente
enfrentados pelos moradores dos subúrbios. Apesar do déficit verificado na qualidade
da habitação, talvez a dificuldade para prover o transporte urbano seja tão grave
quanto o estado da casa de habitação. Tal afirmação se justifica porque os gastos com
transporte são muito altos, contribuindo decisivamente para o empobrecimento das
camadas sociais de baixa renda. Sobre isso, ver a entrevista de Mike Davis à Folha
de São Paulo. Davis afirma que, em Nairóbi e outras cidades africanas e asiáticas,
as pessoas pobres gastam mais com transporte que com moradia ou educação
(MAISONNAVE, 2006).
262 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

periferias das cidades, uma outra parcela, possuindo ainda menos


condições financeiras para arcar com os novos gastos de moradia,
acabou encontrando espaços vazios, geralmente áreas públicas
(RODRIGUES, 2001, p. 36), que ocuparam e construíram suas casas,
com os materiais disponíveis (folhas de zinco, folhas de madeira,
papelão).
Surgiam as favelas, em um contexto de interesse tanto
para as classes baixas, que solucionavam, embora de modo
precário, seus problemas de habitação e transporte, quanto para
as classes mais altas, que passavam a ter oferta de mão de obra
próxima dos locais onde se estabeleceram. As favelas tendem a
se localizar próximas dos centros produtivos, seguindo a linha da
industrialização (KOWARICK, 1979, p. 38). Considera-se, de um
modo geral, que as primeiras favelas surgiram no Rio de Janeiro
logo após o fim da Guerra de Canudos, em 1897 (RODRIGUES, 2001,
p. 37). Entretanto, só se encontram referências sobre a necessidade
de atuar nas favelas a partir de 1936 (RODRIGUES, 2001, p. 41).
Porém, a atuação do Poder Público só se fará sentir de modo mais
evidente a partir da Era Vargas (1930-1945), com o surgimento
sistematizado de políticas de cunho social. Entretanto, a atuação do
Poder Público é tardia, ocorrendo somente após o desenho urbano
estar traçado. Portanto, sua restrita atuação sempre foi muito mais
curativa que preventiva.
O conceito de favela adotado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) diz respeito a um aglomerado de
pelo menos cinqüenta e um domicílios, localizados em terrenos
não pertencentes aos moradores e, em sua maioria, carentes
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 263

de infra-estrutura36. Percebe-se, portanto, que a favela é uma


ocupação juridicamente irregular da terra urbana. É importante
salientar, no entanto, que o conceito de favela adotado pelo IBGE
não é necessariamente o mesmo adotado pelos municípios, o que
implica em dados muitas vezes conflitantes. Tal situação está
ressalvada no sítio do IBGE, no resultado da pesquisa que traçou
o perfil administrativo de todos os municípios brasileiros, no ano
de 1999. Segundo o IBGE (2006, online), apenas 28% das prefeituras
declararam a existência de favelas em seus municípios, o que não
condiz com a constatação à qual se pode chegar a partir de uma
visita a qualquer centro urbano: invariavelmente a grande maioria
está favelizada em maior ou menor grau.
Com a periferização e a favelização, impôs-se a origem
da segregação espacial, oriunda da exclusão social. Os melhores
locais para moradia, dotados de infra-estrutura urbana, ficaram
para as pessoas das classes mais altas, enquanto que a população
de baixa renda foi empurrada para as periferias ou para as favelas,
que, embora, em muitos casos, se localizem em áreas próximas às
centrais (vide a Zona Sul do Rio de Janeiro), carregam a marca da
segregação, pois se localizam nos piores locais das áreas nobres:
encostas, terrenos encravados, pedregosos, etc. Além disso, a
população de favelas, fica especialmente estigmatizada devido ao
fato de sua ocupação da área ser irregular.

36 Há que se considerar que nem todos adotam o conceito de favela utilizado pelo
IBGE, segundo o qual só é favela o aglomerado que tenha pelo menos cinqüenta e uma casas.
Isso conduz a informações díspares no que diz respeito ao número de favelas nos municípios
brasileiros. Para se ter idéia dessa disparidade, segundo os dados do IBGE, a cidade do Rio
de Janeiro possuía, no ano 2000, 513 favelas. Para o Instituto Pereira Passos, havia 804, já
que se considerou como favela qualquer área de invasão em que ocorra assentamento urbano
(GOMES, 2002, p. 57).
264 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Essa é a lógica que determinou a ocupação das cidades


durante o processo de industrialização. Entretanto, não é apenas
essa a causa das ocupações informais. Elas se verificam também
devido a outros fatores, especialmente, à especulação imobiliária,
à pouca democracia nos sistemas políticos e à natureza excludente
da ordem jurídica.
Como verificado, a Lei de Terras, de 1850, inaugurou no
Brasil o período em que a terra passou a ser mercadoria, sendo,
portanto, adquirida de acordo com a lógica do mercado. A partir
do processo de urbanização, a lógica do mercado de terras urbanas
passa a se basear na especulação imobiliária.
Pode-se afirmar, em linhas gerais, que o processo
especulativo se deu por intermédio da reserva de grandes áreas de
terras urbanas por parte da iniciativa privada para, no futuro, auferir
lucros com a venda dessas terras já, então, altamente valorizadas.
Segundo Kowarick (1979, p. 32-33), o processo especulativo utiliza
um método. Como verificado, a ocupação urbana vai se dirigindo
para as periferias devido à procura, por parte das famílias de baixa
renda, de lugares para habitação a um custo mais baixo, tendo em
vista que não podem arcar com as despesas referentes à habitação
em áreas centrais. Com isso, essa população passa a ocupar áreas
ainda não dotadas de serviços públicos. Instaladas, as pessoas
começam a pleitear a instalação, por exemplo, de saneamento básico
e iluminação, além do serviço de transporte público. Seguindo
esses assentamentos, o setor privado se apropria de lotes próximos
a essas áreas e aguarda a chegada dos serviços públicos. Só então
começa a venda ou loteamento das áreas armazenadas, obtendo,
com isso, altos lucros, tendo em vista que, dotadas desses serviços,
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 265

as áreas se valorizam enormemente37.


Verifica-se que o Poder Público, por sua vez, não conseguiu
atuar tanto para impedir a irregularidade e a periferização, quanto
para coibir a atuação especulativa do setor privado, restringindo-se
a levar equipamentos urbanos e serviços para as áreas já ocupadas,
contribuindo, portanto, para a especulação imobiliária. A utilização
da lógica especulativa deixou evidente a incapacidade do Poder
Público de atuar de modo preventivo na ordenação do espaço
urbano. O próprio Poder Público, por meio do BNH, em alguma
medida, acabou contribuindo para a especulação, tendo em vista

37 O processo especulativo ainda existe, embora se possa diferenciar os métodos


utilizados atualmente daqueles utilizados nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX. No século
XXI, talvez se esteja assistindo ao surgimento de um novo método especulativo. Atendendo
à globalização econômica, investidores estrangeiros começam a ver na cidade de São Paulo
novas possibilidades de investimento imobiliário (VICTOR, 2006). Contribui para isso o
modo como vêm sendo conduzidas as chamadas revitalizações de áreas urbanas degradadas.
No Rio de Janeiro, verifica-se a ênfase na revitalização de áreas como a Lapa, Centro da
Cidade e São Cristóvão. Entretanto, não parece existir preocupação com a inibição da
especulação imobiliária. Ao contrário, como afirmado em entrevista concedida pelo Prefeito
da Cidade do Rio de Janeiro à revista Veja Rio (MAIA, 2006a), a Prefeitura se empenhou para
que um empreendimento imobiliário lançado na Lapa se concretizasse. Paralelamente, na
cidade de São Paulo, a opção pela revitalização do centro da cidade parece revisitar o modelo
de expulsão utilizado no início do século XX, nas reformas urbanas que se perpetraram à
época. Esse é o diagnóstico feito pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que acaba de ganhar
o prêmio Pritzker (o mais importante na área da arquitetura, só concedido anteriormente a um
brasileiro: Oscar Niemeyer). Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, Paulo Mendes da
Rocha (2006) afirma que a revitalização que está sendo implementada no centro de São Paulo,
na chamada cracolândia, expulsa as pessoas que lá se encontram e impõe a desvalorização
da área. Ao mesmo tempo, há incentivos para que os grandes empreendimentos imobiliários
do futuro sejam nessa área. Percebe-se, com isso, que o próprio Poder Público fomenta a
especulação imobiliária. Sobre isso, ver também Natália Viana (2005), em denúncia na revista
Caros Amigos. Posição em sentido contrário pode ser encontrada na reportagem de Camila
Antunes (2006) para a revista Veja. Ver também, sobre a expulsão com patrocínio do Poder
Público, a matéria da Folha de São Paulo, por meio da qual se verifica que a Prefeitura de São
Paulo paga até cinco mil reais para tirar sem-teto da área central da cidade na qual se inicia o
processo de revitalização. (PREFEITURA, 2006). Ainda sobre a questão da revitalização, ver
ROLNIK, 2006. Ver também, AB’SABER; KEHL; FERNANDES, 2006.
266 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

que os planos de habitação popular, implementados pelo Banco,


aumentavam a demanda solvável por espaço para morar sem que a
oferta de serviços urbanos crescesse na mesma proporção, gerando,
então, um aumento do preço do solo (SINGER, 1979, p. 28).
Paralelamente, boa parte da expansão urbana ocorreu
ao longo do regime autoritário implantado em 1964. A situação
política forneceu um outro elemento que fomentou ainda mais
as ocupações informais: ausência de democracia na formulação
de políticas urbanas e habitacionais. O melhor exemplo disso é a
atuação do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), que, por
cerca de duas décadas foi a principal política pública na área da
habitação. Entretanto, era uma política centralizadora, que não
contava com elementos democráticos para a sua formulação e
implementação. O resultado foi o fracasso da política que atendeu
preponderantemente à classe média e não aos segmentos sociais
de baixa renda, interferindo muito pouco na solução do déficit
habitacional, tanto sob o aspecto quantitativo quanto sob o aspecto
qualitativo (ABREU, 1986, p. 63).
Fato é que o intenso processo de urbanização verificado
ao longo do século XX não foi acompanhado de geração suficiente
de empregos, nem da oferta de moradias, infra-estrutura, serviços
e equipamentos urbanos, resultando na ocupação desordenada do
solo e na expansão contínua das periferias (LORENZETTI, 2001, p.
6). Evidente, portanto, que a expansão urbana não foi acompanhada
de políticas públicas eficientes e eficazes para se evitar a situação
atual no que se refere às questões habitacionais.
Por fim, o caráter excludente da ordem jurídica também
contribuiu para as ocupações informais. Nesse aspecto é importante
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 267

destacar que os preços elevados do solo urbano são fruto, também,


de uma regulação que impõe condições não razoáveis para os
pobres, sendo-lhes mesmo impossível cumpri-las (SMOLKA, 2003,
p. 258). É o caso dos padrões de parcelamento do solo urbano, do
anacronismo da legislação registral e da própria regulação jurídica
da propriedade privada. Embora a Constituição Brasileira de 1988
tenha trazido diversos dispositivos que visam criar meios de tornar
a propriedade urbana mais acessível e regularizar as ocupações
informais, sua efetividade ainda está distante de um grau, pelo
menos, razoável.
Embora exista uma rica tradição em pesquisa sobre as
questões urbanas, tais investigações, em sua grande maioria, se
referem a análises econômicas, sociais, políticas e culturais. Além
disso, recentemente têm ocorrido leituras interdisciplinares sobre a
questão urbana. Entretanto, a dimensão jurídica da pesquisa urbana
ainda está longe de alcançar o mesmo patamar38. O fator jurídico
é um dos elementos que contribuem fortemente para fomentar a
informalidade nas ocupações urbanas.
A reforma urbana no Brasil passa, necessariamente,
por uma profunda reforma jurídica, iniciada com a Constituição
de 1988 e com possibilidades mais reais de concretização a
partir da vigência do Estatuto da Cidade. Esse movimento de
modernização do arcabouço jurídico deve atender à noção de que
“cidade e cidadania são o mesmo tema, e não há cidadania sem a
democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia
nas cidades” (FERNANDES, 2005, p. 7)

38 Tal situação pôde ser verificada na elaboração desse trabalho. Enquanto são fartas
as obras sobre a questão urbana que possuem abordagens econômicas e sociológicas, no
campo jurídico há poucas obras.
268 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Diante desse quadro jurídico, resta a ocupação informal.


Dentre os diversos tipos de informalidade destacam-se as favelas,
ou assentamentos informais, como alternativas à provisão formal
de moradia39. Tais assentamentos, conforme verificado, ocorrem
tanto em áreas privadas quanto em áreas públicas.

Conclusão

A partir do estudo apresentado, devem ser evidenciados,


sinteticamente, os principais resultados alcançados ao longo do
trabalho. Com isso, é possível, a título de conclusão, apontar o que
segue.
1 Observa-se que, mesmo no interregno de tempo que
nesse trabalho foi denominado período rural, havia algum nível de
urbanização. Entretanto, não se tratava de urbanização em grande
escala, como os números apontados podem indicar. Portanto, para
os efeitos desse trabalho, o grau de urbanização indicado nesse
período não apresenta relevância.
2 Para os efeitos do presente estudo, o processo de
urbanização se torna importante a partir do momento em que
grandes deslocamentos populacionais permitem que o processo
de migração seja o responsável pelo povoamento das urbes, que
recebem o referido contingente populacional devido à implantação
e ao florescimento da indústria.
3 Entretanto, o processo de urbanização ocorreu sem
planejamento, o que determinou a acomodação dos migrantes de

39 Sobre a favela como alternativa de moradia para a população de baixa renda, ver
LORENZETTI, 2001, p. 10-11.
Ocupações Urbanas Informais no Brasil 269

modo desordenado no âmbito das cidades. Com isso, essas pessoas


tiveram que prover, por suas próprias forças, o local de moradia.
Tendo em vista seus escassos recursos econômicos, os altos preços
das terras urbanizadas e a ausência de políticas públicas para
esses períodos de verdadeira explosão urbana, os cortiços, os
assentamentos informais e os loteamentos irregulares foram as
soluções encontradas para equacionar o problema da moradia.
4 Mesmo quando o processo de urbanização desvinculou-
se do processo de industrialização, já na era pós-industrial, embora
estável na América Latina e em outras partes do mundo, a urbanização
não se interrompe. Isso significa que, apesar de o número da
informalidade permanecer estável, o desafio que surgiu para o Poder
Público e a Sociedade foi encontrar uma maneira de se regularizar a
informalidade existente e de se diminuir os índices de informalidade.
5 Apesar de, na década de 1930, ter se esboçado o início de uma
política pública para a habitação, verificou-se que sua ocorrência foi
incipiente. Ao mesmo tempo, a principal política pública habitacional
que o Brasil já teve, concretizada pelo extinto BNH, não foi capaz de
interferir de modo eficiente na produção da moradia urbana, tendo
atendido muito mais à classe média do que à população de baixa
renda.
6 Com o fracasso do BNH, o Estado foi se retirando, cada
vez mais marcadamente, do setor habitacional. Somente a partir da
Constituição Brasileira de 1988, foi claramente delineada uma base
para a política urbana a ser adotada no país.
7 O modo como se deu a ocupação do solo urbano no Brasil
determinou um nível de baixa efetividade do direito fundamental
à moradia, tendo em vista que ocorrem, no padrão de moradia no
270 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

Brasil, déficits quantitativos e qualitativos, chegando-se, em muitos


casos, à indignidade no exercício do direito à moradia, que deixa a
desejar nos casos mais graves de déficits.

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Índice

A
ação
ação civil pública 60, 61, 62, 64, 69, 70, 71, 75, 88, 90, 91, 92, 95, 96, 97,
98, 99, 100
ação coletiva 65, 66, 67, 71, 93
ação privada 66
advogado 54, 55, 79, 96, 210, 219
afabilidade 52
alteridade 124, 126, 133, 140, 180
amor
mandamento do amor 171, 172, 175, 176, 183, 184, 186, 188, 189, 190,
192, 193, 194
Aristóteles 46, 53, 54, 125, 126, 130, 131, 177, 180
autonomia
princípio da autonomia 176, 178
autoritarismo 143
B
Brasil 7, 67, 79, 83, 97, 105, 108, 163, 166, 227, 228, 229, 230, 231, 232,
234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 247, 248, 249, 250, 251,
254, 255, 256, 264, 267, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277
C
castigo 52
cidade 131, 152, 229, 230, 231, 234, 239, 240, 242, 246, 247, 248, 253, 255,
258, 260, 261, 263, 265, 267, 270, 275
ciência 10, 11, 14, 15, 51, 59, 104, 110, 111, 118
Constituição 69, 70, 76, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 89, 91, 97, 101, 105, 118,
144, 267, 269
Convenção de Genebra 201, 205, 206, 209, 210, 211, 215, 218, 220
280 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

D
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 144
defensoria pública 6, 59, 60, 61, 63, 67, 69, 70, 73, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84,
85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100
democracia 63, 136, 141, 162, 164, 166, 167, 168, 170, 235, 264, 266
Deus 52, 194
dever
dever ser 22, 29, 30
direito 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25,
26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 46, 47, 51, 55,
56, 61, 64, 66, 70, 72, 77, 78, 82, 83, 86, 87, 88, 95, 96, 97, 104, 105,
106, 107, 108, 109, 118, 121, 123, 124, 125, 133, 134, 136, 138, 139,
140, 141, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 153, 160, 179, 199, 200,
201, 203, 204, 205, 207, 210, 211, 212, 213, 220, 223, 225, 227, 233,
269, 270, 274
direito internacional 6, 199, 201, 203, 204, 205, 211, 220, 223, 225
direito natural 13, 14, 16, 19, 40, 41, 46, 47, 56, 149
direito processual 6, 87, 105, 106, 107, 121
E
economia
economia do dom 172, 183, 186, 187, 188, 190, 192, 193
equidade 32, 52, 54, 129, 131, 180, 181, 188, 189
epiquéia 45, 52, 54
Estatuto da Criança e do Adolescente 71
ética 33, 39, 105, 110, 111, 127, 130, 131, 132, 171, 172, 173, 177, 179, 186,
187, 188, 190, 191, 192
EUA 199, 206, 211, 213, 215, 222
F
filosofia 10, 20, 23, 106, 124, 128, 129, 136, 139, 141, 172, 173, 174, 175,
177, 178, 180, 182, 183, 184, 187, 189, 190, 193, 194, 195
filosofia moral 129, 136, 174, 180, 190
G
Índice 281

G. Del Vecchio 124, 125


Guantánamo 6, 199, 201, 202, 206, 207, 208, 210, 213, 214, 215, 216, 217,
218, 219, 221, 222, 223, 226
H
Hart 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 23, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 41, 42
hermenêutica 83, 127, 132, 171, 172, 190, 194
I
instrução
instrução probatória 106
interesses
coletivos 75, 98, 100
difusos 75
J
John M. Finnis 13, 41
judiciário 74, 89, 146, 156, 160, 163, 167
juiz 30, 50, 62, 103, 105, 106, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 211
jusnaturalismo 9, 12, 13, 23, 31, 41
justiça 1, 3, 4, 52, 53, 59, 69, 78, 79, 84, 93, 97, 104, 123, 124, 125, 126,
127, 129, 132, 136, 141, 273
justiça comutativa 45, 48, 49, 180, 188, 189
justiça distributiva 45, 48, 49, 50, 51
justo 6, 14, 26, 46, 56, 80, 123, 125, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133,
134, 136, 137, 138, 140, 142, 143, 181, 199, 201, 213, 221
partes potenciais 45, 46, 48, 51, 53
partes subjetivas 45, 48, 53
K
Kant 174, 175, 176, 177, 178, 180, 181
Kelsen 11
L
legalidade 22, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 134, 140, 200, 207, 210, 212
282 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

legislador 11, 28, 29, 30, 31, 34, 54, 115, 117, 153, 154
legislativo 29, 61, 145, 146, 150, 151, 153, 155, 156, 160, 163, 167
lei
lei positiva 13, 46, 47, 145
leis norte-americanas 206, 215
lex talionis 179, 180, 184
supremacia da lei 145
Lei Maria da Penha 72
liberalidade 52
Locke 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 155, 160, 170
lógica
lógica da punição 179
lógica da reciprocidade 172, 173, 175, 177, 179, 180, 183, 186, 190, 192,
193, 194
lógica do dom 172, 173, 185, 186, 190, 192, 193, 194
lógica evangélica 183, 184
Lon Fuller 6, 9, 10, 12, 13, 19, 21, 23, 26, 33, 37, 41, 42
M
mercado
mercado imobiliário 236, 258, 260
metafísica 12, 14, 114, 136
Military Commissions Act 207, 211, 213, 222
Ministério Público 61, 62, 64, 65, 66, 68, 69, 76, 83, 99, 110, 112, 120, 167
Montesquieu 145, 146, 147, 148, 150, 151, 152, 155, 160
moradia
moradia urbana 7, 227, 269
moral 9, 13, 16, 19, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 29, 31, 39, 42, 124, 129
moralidade
moralidade administrativa 68
moral procedimental 23
N
Nações Unidas 204, 216, 255
natureza
Índice 283

essência humana 46, 56


natureza humana 13, 41, 56
O
observância 32, 33, 52, 82, 221, 222
ocupação
ocupação urbana 227, 233, 237, 264
órgãos
órgãos judiciários 61
P
Paul Ricoeur 6, 123, 127, 129, 133, 135, 137, 139, 140, 142, 171, 172, 173,
174, 176, 178, 179, 180, 181, 183, 184, 186, 188, 189, 190, 192, 193,
195, 196, 197
perspectiva
jusnaturalista 11
positivista 11
pragmática 10
pessoa humana 6, 105, 109, 199, 202, 205, 213, 220, 225
piedade 51, 52
poder
poder executivo 6, 143, 144, 146, 147, 149, 150, 151, 152, 154, 155, 156,
158, 160, 162, 163, 164, 165, 166, 168
política
estabilidade política 147, 156
instabilidade política 156
política européia 165
política urbanizadora 231, 232, 234
população 96, 158, 228, 235, 236, 238, 239, 240, 241, 242, 246, 249, 252,
254, 256, 258, 261, 263, 264, 268, 269
positivismo 9, 10, 15, 16, 19, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 29, 105, 118
processo 1, 3, 4, 67, 100, 101, 102, 103, 108, 109, 110, 112, 118, 119, 120,
121, 237, 256
regras do jogo 106
proteção 17, 19, 69, 71, 72, 82, 87, 90, 144, 199, 200, 201, 204, 205, 210,
284 Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II

212, 213, 220, 225


R
razão
razoável 34, 35, 70, 85, 136, 190, 233, 256, 267
regra de ouro 6, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182,
183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196
religião 45, 50, 51, 52, 53, 126, 140, 145, 171, 190, 218
rule of law 22, 34, 36, 37, 38
S
sabedoria
sabedoria prática 129, 131, 132, 181
sistema
sistema jurídico 24, 25, 26, 27, 28, 30, 33, 36, 39, 124
suicídio 216, 217
sujeito
sujeito do direito 123, 133, 134, 136, 138
T
Teoria do Direito 13, 41
Tomás de Aquino 45, 47, 48, 49, 50, 52, 53, 54, 55, 57
totalitarismo 143
tratamento
stress and duress 214
tutela 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 72, 81, 82, 83, 85, 86, 87, 88, 90,
91, 92, 95, 108, 138
tutela judicial 67, 83
U
universalidade 157, 174
unlawful enemy combatant 209, 211, 212, 220
urbanização 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 238, 239, 240,
241, 242, 246, 247, 249, 251, 253, 255, 256, 257, 259, 260, 264, 266,
268, 269, 273
Índice 285

V
valor
valor humanitário 118
verdade 6, 12, 47, 78, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111,
112, 113, 114, 116, 117, 118, 127, 129, 132, 135, 142, 176, 181, 186,
193
vida
vida política 157
vila 229, 230, 234
violência 16, 17, 19, 38, 72, 131, 134, 178, 179, 203, 214
virtude 28, 45, 46, 48, 51, 53, 54, 56, 62, 103, 106, 126, 128, 129, 135, 143,
202
prudência 129, 132, 181, 192
virtude política 143
vocação 168, 245, 253

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