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Teixeira de Sousa
1. Relatório
A………., devidamente identificado nos autos, inconformado com a decisão proferida, em 15
de Janeiro de 2015, no TCAS, no âmbito da acção administrativa comum intentada para
efectivação de responsabilidade civil extra contratual contra o Ministério da Defesa
Nacional/Exército Português, que negou provimento ao recurso e, confirmou o despacho/saneador
proferido no TAF de Leiria, que julgou verificada a excepção dilatória de falta de personalidade
judiciária e de ilegitimidade passiva do demandado, com a consequente absolvição da instância,
interpôs o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo.
Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I. «O acórdão recorrido julgou, injustamente e sem fundamento válido, improcedente, o
recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente, por falta de personalidade judiciária insusceptível
de sanação do Réu Ministério da Defesa Nacional – Exército Português, absolvendo este dos
pedidos contra ele formulados.
II. Tal acórdão assenta em dois pressupostos fundamentais, que são os de não atribuir
personalidade judiciária ao Ministério da Defesa Nacional, não admitindo igualmente a respectiva
sanação, e de entender que o n.º 2 do artigo 10.º do CPTA se não aplica no âmbito das acções
administrativas comuns.
M. Teixeira de Sousa
III. O artigo 10.º, n.º 2, foi, assim, erroneamente, interpretado visto não ter sido
considerado o n.º 1 do mesmo artigo, que amplia a legitimidade passiva a entidades com
interesses contrapostos ao do autor, como acontece com o Ministério da Defesa Nacional no caso
sub judice.
IV. Pelo que não pode nem deve ser levada a efeito qualquer interpretação restritiva da
norma constante do art. 10.º, n.º 2, do CPTA.
V. Tem de entender-se a presente ação como intentada contra o Estado Português.
VI. Pois, o Ministério da Defesa Nacional é o órgão a quem incumbe a prática do ato que
está aqui em causa na presente ação.
VII. Ao não decidir assim, a decisão recorrida violou o que se dispõe nos n.os 2 e 4 do art.
10.º, n.º 2, do art. 11.º, ambos do CPTA, n.º 1 do art. 20.º do CPC.
VIII. Na situação em apreço, o Ministério da Defesa Nacional, e em concreto o Exército
Português, ao decidir praticar, ou não, os atos, objecto do pedido, actua no exercício do ius
autorictatis que impõe àquele um dever especial de protecção dos cidadãos que prestam o serviço
militar.
IX. Assim, os factos fundamento do pedido levam o próprio Ministério do Exército
Nacional à necessidade imperiosa da prática de um ato administrativo.
X. E, conjugando a aplicação do art. 10.º, n.º 2, e o art. 11.º, n.º 2, conclui-se que a
legitimidade passiva na ação comum cabe, em princípio, aos ministérios.
XI. Exceptuando-se as acções de contratos e acções de responsabilidade pura, em que
a legitimidade passiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público.
XII. Ora, no caso em apreço, a responsabilidade pelo pagamento das quantias
peticionadas está intimamente relacionada com a prática de um ato administrativo (no caso com a
omissão do mesmo) por parte da entidade administrativa demandada originariamente.
XIII. Pelo que o Ministério da Defesa Nacional tem legitimidade passiva para ser
demandado na presente ação.
XIV. Por outro lado, como é jurisprudência assente, a personalidade judiciária pode existir
sem que a entidade que a detém goze de personalidade jurídica (cfr. Acórdão do STJ, 3 de
Outubro de 1991, BMJ n.º 410/684).
XV. Acresce que, ao não permitir a sanação da falta de personalidade judiciária do
Estado, a sentença recorrida violou o disposto no n.º 2 do art. 265.º do CPC, com prejuízo dos
interesses do aqui Recorrente e, pondo em causa os direitos deste, o qual os pode ver prescritos a
manter-se tal errónea decisão.
XVI. E tal como é sabido, demandado numa ação sobre responsabilidade, o Ministério em
vez do Estado, não deve, tendo em conta o princípio da prevalência das decisões de fundo sobre
as decisões de forma, ser proferida decisão de absolvição da instância, antes devendo ser
convidado o autor a corrigir a petição inicial, por força do princípio da economia processual –
artigos 7.º, 11.º, n.º 2, do CPTA.
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ser parte” (n.º 1) sendo que, quem “tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade
judiciária” (n.º 2).
Temos, assim, que a personalidade jurídica se traduz na aptidão para ser titular autónomo
de relações jurídicas e que as pessoas colectivas são organizações constituídas por uma
colectividade de pessoas, que propendem a realização de interesses comuns ou colectivos, às
quais a ordem jurídica atribui personalidade jurídica.
Consiste, pois, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome,
qualquer das medidas de tutela jurisdicional reconhecida na lei, sendo que o critério geral fixado
no n.º 2 do art. 11.º do CPC para saber quem tem personalidade judiciária, corresponde a um
critério de correspondência (coincidência ou equiparação) entre a personalidade jurídica
(capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária, valendo esta equiparação, quer para
pessoas singulares, quer colectivas [de direito público ou privado] – cfr. Antunes Varela, in Manual
de Processo Civil, pág. 108.
Por outro lado, se é certo que quem tiver personalidade jurídica tem igualmente
personalidade judiciária, o inverso já não corresponde a uma proposição verdadeira, dada a
extensão da personalidade judiciária a entidades que não gozam de personalidade jurídica, como
previsto no art. 6.º do CPC.
Já a capacidade judiciária, definida no art. 15.º do CPC consiste na susceptibilidade de
estar, por si, em juízo e tem por base e por medida a capacidade de exercício de direitos.
Resumindo: quer a personalidade, quer a capacidade judiciárias, à semelhança da
personalidade e capacidades jurídicas, são “qualidades pessoais das partes”, ou nas palavras de
Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra
Editora, 1985, pág. 131 “ requisitos abstracta ou genericamente exigidos para que a pessoa ou a
organização possa estar em juízo ou possa actuar autonomamente em relação à generalidade das
acções ou a certa categoria de acções”.
Refere Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, 2.ª edição, vol. I, pág. 221,
que «apesar da multiplicidade das atribuições, do pluralismo dos órgãos e serviços, e da divisão
em ministérios, o Estado mantém sempre uma personalidade jurídica una. Todos os ministérios
pertencem ao mesmo sujeito de direito, não são sujeitos de direito distintos: os ministérios e as
direcções-gerais não têm personalidade jurídica”.
E acrescenta: «o Estado-administração é uma pessoa colectiva pública autónoma, não
confundível com os governantes que o dirigem, e nem com os funcionários que o servem, nem
com as outras entidades autónomas administrativas, também dotadas de distinta personalidade
jurídica, tais como as regiões autónomas, as autarquias, as associações, institutos, empresas
públicas, com personalidade jurídica, património, direitos, obrigações, atribuições, competências,
finanças, pessoal próprios e que são terceiros em relação ao Estado (…)».
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responsabilidade civil extracontratual do Estado como é o do caso vertente, sendo que o mesmo,
pelos seus termos, repita-se, não tem o alcance de conferir personalidade judiciária a quem não a
possui no quadro duma acção como a “sub judice” [cfr., neste sentido o Ac. STA de 03.03.2010,
proc. n.º 0278/09 e no domínio do anterior contencioso, entre outros, os Acs. STA de 29.01.2003,
proc. n.º 01677/02, de 03.04.2003, proc. n.º 050/03, de 06.05.2003, proc. n.º 01951/02, de
18.12.2003, proc. n.º 01763/03].
No mesmo sentido, se pronuncia a doutrina que se tem debruçado sobre esta questão,
designadamente, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in “Comentário ao
Código de Processo nos Tribunais Administrativos” – 2.ª ed. págs. 82/3, Almedina), para os quais
a norma em apreço “...parece dever ser, porém, objecto de uma interpretação restritiva mediante a
qual será de entender que ela não abrange todo o tipo de processos intentados contra entidades
públicas, mas apenas as situações que anteriormente correspondiam ao recurso contencioso de
anulação e à impugnação de normas (agora enunciadas nos artigos 50.º e segs. e 72.º), e a que
há a acrescentar agora as pretensões dirigidas à condenação na prática de acto devido e à
declaração de ilegalidade por omissão de normas (artigos 66.º e 77.º), bem como as acções de
reconhecimento de direito e às acções de condenação à adopção ou abstenção de
comportamentos, designadamente as que tenham em vista a condenação da Administração à não
emissão de um acto administrativo (artigo 37.º, n.º 2, alíneas a), b), c) d) e e)). Trata-se, portanto
dos processos que seguem a forma de acção administrativa especial e uma parcela dos
processos que seguem a forma da acção administrativa comum.
E acrescentam: «nesse sentido aponta, desde logo, a letra da lei, que se reporta a
processos que tenham por objecto “a acção ou omissão de uma entidade pública, determinando
que a identificação do ministério que deverá ser demandado (no caso do Estado) deverá ser
efectuada por referência aos órgãos a que “seja imputável o acto jurídico impugnado” ou sobre os
quais “recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos” -
isto, em contraponto com a cláusula geral do n.º 1 do art. 10.º que confere legitimidade passiva, à
outra parte na relação material controvertida, sugerindo que pretende referir-se, por regra, a
pessoas jurídicas e não a entidades (como seria o caso dos ministérios) que beneficiem de uma
mera extensão da personalidade judiciária, o que assume sempre um carácter excepcional (cfr.
art. 5.º do CPC). No mesmo sentido concorre também o disposto no art. 11.º, n.º 2, que, de
harmonia como artigo 20.º do CPC, no âmbito do patrocínio judiciário, ressalva a possibilidade de
representação do Estado (e não dos Ministérios) pelo Ministério Público, nos processos que
tenham por objecto relações contratuais ou de responsabilidade”.
No mesmo sentido se pronunciam, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira,
em nota ao art. 10.º, n.º 2 (CPTA anotado, a págs. 167), depois de registarem que a
importantíssima inovação em matéria de legitimidade passiva respeita aos “processos que tenham
por objecto o exercício (ou a recusa de exercício) de poderes de autoridade para a emissão de
normas ou actos administrativos da autoria de determinado órgão de um ente público, ou seja, nos
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outra causa], que imputa directamente ao Ministério da Defesa Nacional, mas sem que tenha
pedido a condenação do Réu na prática de qualquer acto administrativo.
Na verdade, toda a causa de pedir e pedido se agrupam numa mera acção de
responsabilidade, alegadamente por danos sofridos em virtude de saltos de pára-quedas por si
realizados no mês de Abril de 2006, pelo que, neste momento, é vã a tentativa do recorrente em
tentar justificar que se limitou a errar na identificação do sujeito processual.
A questão seguinte consiste em saber se esta excepção de falta de personalidade judiciária
por parte do R. Ministério da Administração Interna, pode ser suprida ou se é insanável.
A decisão recorrida entendeu, em conformidade com a jurisprudência maioritária que
estamos perante uma excepção que não admite correcção.
Diversamente, o recorrente apoiando-se nos princípios da economia processual, da
prevalência das decisões de fundo sobre as decisões de forma, entende que a mesma pode
regularizada/sanada.
Esta questão, igualmente, não é nova na jurisprudência, sendo maioritária, para não dizer
quase unânime, a posição que se inclina para a impossibilidade de sanação, até porque como
supra já se referiu, a personalidade judiciária constitui o pressuposto dos restantes pressupostos
processuais relativos às partes, pois faltando personalidade judiciária estamos perante uma
instância irregular, que não pode, neste tipo de acções ser regularizada.
Na verdade, sobre esta questão, igualmente a posição do STA tem sido de que tal sanação
desta excepção dilatória, à luz das normas do processo civil não é possível, com excepção das
situações tipificadas no art. 8.º do Código Civil [sucursais, agências, filiais, delegações ou
representações], o que não é o caso dos autos, sendo que o Ac. deste STA proferido em
03/03/2010, in proc. n.º 0278/09, expressamente consignou: «Ora, atento o que se deixou já
exposto sobre a importância do pressuposto processual da personalidade judiciária [pressuposto
de outros pressupostos processuais relativos às partes, como ensina o Prof. Castro Mendes
(Direito Processual Civil II, págs. 13 e 14)] e do que dimana nomeadamente do disposto nos
artigos 5.º a 8.º, 23.º e 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, crê-se que a falta desse
pressuposto processual é insanável, determinando a absolvição da instância, nos termos do
preceituado no artigo 288.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil. (…) E, não se vê de que
forma a solução/interpretação para que se propende possa violar o direito de acesso à tutela
jurisdicional efectiva, consagrado nos arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois que,
independentemente do mais, tal tutela supõe que as partes se conformem com as limitações
decorrentes da lei ordinária, designadamente das disposições imperativas do Código de Processo
Civil, o que, como se viu, não foi o caso. (…) De resto, os enunciados princípios não podem deixar
de coexistir com o princípio da autorresponsabilidade das partes inerente ao princípio dispositivo,
o qual opera na escolha dos meios processuais e na fixação do objecto da pretensão da tutela
judicial. (…) Em suma, fora da hipótese prevista no art. 8.º do CPC, a falta de personalidade
judiciária … não é sanável …”.
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E cremos que outra não pode deixar de ser a solução aplicável ao caso presente, sendo
infundada a argumentação utilizada pelo recorrente quando se socorre do princípio vertido no art.
7.º do CPTA, pois quer o princípio da economia processual, quer o da prevalência das decisões de
fundo sobre as decisões de forma, possuem limites na sua aplicação e, portanto estes limites não
podem ser excedidos, sob pena de violação expressa das normas imperativas e positivadas no
Código do Processo Civil.
Face ao exposto, improcedem todos os argumentos trazidos no recurso dirigido a este
Tribunal, sendo de concluir que, no caso presente, a excepção dilatória por falta de personalidade
judiciária do R. Ministério da Defesa Nacional é insusceptível de sanação.
3. Decisão
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao
recurso.
Custas a cargo do recorrente.
Anotação
1. O decidido no acórdão quanto à matéria da falta de personalidade judiciária do Ministério
demandado não levanta problemas. Em todo o caso, não deixarão de se suscitar algumas dúvidas
quanto à não sanação da falta de personalidade judiciária daquele Ministério.
Não obstante do estabelecido no art. 10.º, n.º 2, do CPTA poder resultar a atribuição de
personalidade judiciária passiva a entidades sem personalidade jurídica (à semelhança do
disposto nos art. 12.º e 13.º do CPC), compreende-se a interpretação restritiva que é realizada
pela jurisprudência e pela doutrina do disposto naquele preceito. De acordo com esta
interpretação, art. 10.º, n.º 2, do CPTA mantém um sentido útil e um campo der aplicação próprio
sem que dele se tenha de retirar a atribuição de personalidade judiciária a entidades desprovidas
de personalidade jurídica (como é o caso dos Ministérios).
A sanação da falta de personalidade judiciária está regulada no art. 14.º do CPC (aplicável
ao processo administrativo ex vi do art. 1.º do CPTA). No regime legal, esta sanação só é possível
num caso muito particular: se a acção for proposta por ou contra uma sucursal, agência, filial,
delegação ou representação que não tenha personalidade judiciária (por a acção não proceder de
facto por ela praticado: art. 13.º do CPC), esta falta de personalidade pode ser sanada mediante a
intervenção da administração principal e, no caso de a falta respeitar a uma parte activa, mediante
a ratificação ou repetição do processado; se a falta de personalidade disser respeito a uma parte
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passiva, a não ratificação ou não repetição do processado não obsta à sanação do vício, pois que
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essa omissão apenas determina a revelia da administração principal .
Numa primeira análise, nada obsta à aplicação analógica do disposto no art. 14.º do CPC à
sanação da falta de personalidade do Ministério demandado através da intervenção do Estado.
Ainda assim, aceita-se que decorre da margem de ponderação dos tribunais administrativos a
conclusão de que, de acordo com o critério enunciado no art. 10.º, n.º 2, do CC, as razões
justificativas da regulamentação que consta do art. 14.º do CPC não devem valer para a hipótese
em que, em vez do Estado, é demandado um Ministério. Certo é que não se pode dizer que haja
uma impossibilidade absoluta de aplicação analógica da regra que consta do art. 14.º do CPC a
outras lacunas, mesmo no campo do processo administrativo.
Se a sanação da falta de personalidade judiciária não deveria ser admissível noutras
situações além daquela que consta do art. 14.º do CPC, isso é questão que agora não importa
analisar. Também fica em aberto a questão de saber se o disposto no art. 279.º, n.º 2, do CPC
quanto ao aproveitamento dos efeitos civis produzidos numa causa em que tenha sido proferida
uma decisão de absolvição da instância é aplicável ao caso em que, depois de uma absolvição da
instância por falta de personalidade de uma das partes (cf. art. 577.º, al. c), 576.º, n.º 2, e 278.º,
n.º 1, al. c), do CPC), é proposta uma nova causa com o mesmo objecto por ou contra uma parte
dotada de personalidade judiciária.
2. a) Segundo a definição que consta do art. 11.º, n.º 1, do CPC, a personalidade judiciária
consiste na susceptibilidade de ser parte. No direito português, esta definição aparece, talvez pela
primeira vez, no art. 12.º do Projecto de Código de Processo Civil de 1936, organizado por
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ALBERTO DOS REIS , muito provavelmente por influência de CHIOVENDA, que se referia à “capacità
di esser parte” e que a definia como a “capacità di esser soggetto di un rapporto giuridico
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processuale” . Do aludido Projecto, a definição passou para o art. 5.º do CPC de 1939.
A referida definição de personalidade judiciária conduz a um problema clássico nesta
matéria: se – poder-se-ia dizer –, para ser parte, é necessário ter personalidade judiciária, então
quem não tiver personalidade judiciária não é parte ou é uma “não-parte”. Alargando esta
conclusão não é difícil inferir que um processo com “não-partes” é um “não-processo”.
CASTRO MENDES raciocinava nesta base, ao afirmar, a propósito da absolvição da instância
que decorre da falta de personalidade judiciária de alguma das partes (cf. art. 577.º, al. c), 576.º,
n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. b), do CPC), que a “absolvição é antes uma absolvição de aparência de
1 COSTA E SILVA, O manto diáfano da personalidade judiciária, Estudos em Honra do Professor Doutor José de
Oliveira Ascensão II (2008), pp. 1896 e segs.
2 Neste Projecto, a matéria respeitante à legitimidade processual (art. 5.º a 11.º) antecedia o tratamento da
personalidade e da capacidade judiciárias (art. 12.º a 33.º); tem interesse acrescentar que a personalidade
judiciária não é tratada nas obras didácticas de ALBERTO DOS REIS (Processo Ordinário Civil e Comercial I (1907);
Processo ordinário e sumário I2 (1928)) e só foi introduzida na ZPO alemã pela Novelle de 1898 (cf. Materialien
zur Civilprozeẞordnung (1898), pp. 10 e 119 e seg.).
3 CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile4 (1928), p. 583.
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instância (se a não-parte for autora) ou uma aparente absolvição da instância (se a não-parte for
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ré)” . Quer dizer: a consequência da falta de personalidade judiciária é uma aparência de processo
ou de decisão, dado que parece que há processo ou decisão, mas afinal não há nem uma coisa,
nem outra.
Sobre a solução a dar ao problema da falta de personalidade judiciária de alguma das
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partes há, entretanto, algumas reflexões interessantes tanto em Portugal , como no estrangeiro .
Antes de avançar com uma breve reflexão pessoal, importa começar por verificar porque é que o
problema se coloca.
b) O cerne da questão está em saber se a falta de personalidade judiciária deve ser tratada
como uma situação de inexistência de parte, ou seja, se a falta daquela personalidade conduz a
uma “não-parte”. Uma pequena digressão histórica sobre a função dos pressupostos processuais
mostra que esse entendimento não é sustentável.
Como é conhecido, os pressupostos processuais foram construídos por O. BÜLOW na obra
que é normalmente considerada a fundadora da Ciência Processual Civil: Die Lehre von den
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Proceẞeinreden und die Proceẞvoraussetzungen . No presente contexto, importa acentuar que,
segundo a construção pioneira de O. BÜLOW , os pressupostos processuais eram concebidos como
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condições de existência (ou condições constitutivas) da relação processual , pelo que não é difícil
concluir que, nesta perspectiva, a falta de personalidade judiciária (ou melhor, a falta do
pressuposto processual que é a personalidade judiciária) conduzia à inexistência da relação
processual ou da instância. Quer dizer: de acordo com esta orientação, a falta de personalidade
judiciária levava a concluir por um “não-processo” e por uma “não-parte”.
Esta seria a orientação que hoje haveria que adoptar se não se tivesse verificado entretanto
uma modificação quanto à concepção dos pressupostos processuais e uma reorientação quanto à
sua função no processo. Importa recordar que, numa obra que constitui outro dos marcos
fundadores da Ciência Processual Civil, J. GOLDSCHMIDT firmou a orientação de que os
pressupostos processuais não são um elemento constitutivo da relação processual, mas antes
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uma condição da admissibilidade do proferimento de uma decisão de mérito na causa pendente .
A mudança não podia ser mais radical: enquanto, na construção originária (e original) de O.
BÜLOW , a função dos pressupostos processuais se situava no plano da existência, na orientação
de J. GOLDSCHMIDT a função daqueles pressupostos coloca-se no plano da admissibilidade.
Basta transpor esta conclusão para as consequências da falta de personalidade judiciária
para se compreender que, em vez de uma “não-parte” e de um “não-processo”, deve antes falar-
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se de uma parte inadmissível e, portanto, de um processo inadmissível . Esta conclusão nada
tem de extraordinário: também quando, por exemplo, falta o pedido ou a causa de pedir, a
consequência não é a inexistência de objecto do processo ou um “não-objecto”, mas antes a
ineptidão da inicial e, portanto, a inadmissibilidade desse objecto (cf. art. 186.º, n.º 1 e 2, al. a),
577.º, al. b), do CPC). Isto é o que resulta da circunstância de aquela ineptidão constituir uma
excepção dilatória (cf. art. 577.º, al. b), do CPC), conducente, como é a regra, à absolvição do réu
da instância (cf. art. 576.º, n.º 2, e art. 278.º. n.º 1, al. b), do CPC).
c) Ter personalidade judiciária significa possuir a aptidão de ser parte, ou seja, de participar
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num processo . A personalidade judiciária destina-se a demarcar quem é que possui e quem é
que não possui essa aptidão: nalgumas situações, essa aptidão é concedida globalmente em
função da personalidade jurídica (cf. art. 11.º, n.º 2, do CPC); noutras, aquela aptidão depende de
uma relação com o objecto do processo (cf. art. 12.º e 13.º do CPC). Assim, quando o art. 11.º, n.º
1, do CPC define a personalidade judiciária como a susceptibilidade de ser parte, esse preceito
não está a constituir a parte (em concreto, não está a constituir A ou B como autor ou como réu),
mas antes a atribuir a aptidão para ser parte (ou seja, está a conceder a A ou a B a aptidão para
participar num processo).
De acordo com a concepção formal de parte, as partes de um processo são aquelas que
estão no processo como autor e como réu (por exemplo, A e B). As partes são um dado (as partes
são A como autor e B como réu); a personalidade judiciária destina-se a verificar se as partes que
estão no processo como autor e como réu tem a aptidão para ser parte. O que o critério enunciado
no art. 11.º, n.º 1, do CPC faz é determinar quem é que, em função da susceptibilidade de ser
parte, possui a aptidão para participar num processo como parte. Dito de outro modo: a
personalidade judiciária não constitui a parte, antes atribui uma certa qualidade à parte que está
no processo na posição de autor ou de réu.
Importa procurar precisar o sentido desta qualidade que é facultada à parte pela
personalidade judiciária. A concretização reveste-se de manifesto interesse a vários títulos. Por
exemplo: não teria nenhum sentido que a parte, pela circunstância de não ter personalidade
judiciária, não tivesse os mesmos ónus, deveres e direitos de qualquer parte. Em concreto: não
seria certamente aceitável não atribuir à parte o ónus de contestação, não a condenar como
litigante de má fé ou não lhe conceder o direito à colaboração do tribunal pela circunstância de ser
uma parte desprovida de personalidade judiciária. Outro exemplo: se o domicílio do réu for o
elemento de conexão para aferir a competência territorial do tribunal, a circunstância de esse réu
não ter personalidade judiciária não obsta à competência do tribunal do seu domicílio. Estas
conclusões reforçam que a personalidade judiciária não é um factor constitutivo da parte, dado
10 No mesmo sentido, embora com fundamentação distinta, SCHEMMANN, Parteifähigkeit im Zivilprozeẞ, pp. 8 e
segs.; pelo menos em conclusão, Stein/Jonas/JACOBY23 (2014) §50 56 e 58; Musielak ZPO/WETH ZPO (2016) § 50
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11 Cf. REIMER, Verfahrenstheorie (2015), 455.
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que, para vários efeitos, é considerada parte quem não tem essa personalidade. Portanto, a
personalidade judiciária apenas acrescenta uma certa qualidade à parte.
Afinal, nada disto pode ser considerado estranho. A personalidade judiciária é um
pressuposto processual (ou, em algumas situações, um pressuposto de actos processuais), pelo
que, como qualquer outro pressuposto, só pode condicionar o proferimento de uma decisão sobre
o mérito da causa. Dado que o proferimento desta decisão depende ainda de outros pressupostos
processuais relativos às partes (como, por exemplo, a capacidade judiciária e a legitimidade
processual) e a falta de personalidade judiciária dispensa a análise de qualquer outro pressuposto
relativo às partes, pode concluir-se que esta personalidade é, sob um ponto de vista processual,
uma pré-condição (ou um “pré-pressuposto”) da apreciação do mérito da causa e, numa
perspectiva normativa, um centro de imputação dos demais pressupostos relativos às partes.
De acordo as circunstâncias, tem preponderância o aspecto processual ou o aspecto
normativo. Se faltar a própria personalidade judiciária, torna-se inútil analisar se estão verificados
os demais pressupostos relativos às partes e o aspecto processual de pré-condição da apreciação
do mérito é o relevante. Mas se a parte for dotada de personalidade judiciária, há que analisar se
os demais pressupostos respeitantes às partes estão preenchidos e então é o aspecto normativo
de centro de imputação desses pressupostos que é relevante.
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Está assim demonstrada a qualidade que a personalidade judiciária atribui à parte: apenas
uma parte dotada de personalidade judiciária pode conseguir uma decisão de mérito e apenas
contra uma parte com idêntica personalidade pode ser proferida uma decisão de mérito.
e) Do exposto resulta que, em processo, não há “não-partes” (tal como não há “não-
objectos”), mas antes partes desprovidas de personalidade judiciária e, portanto, partes
inadmissíveis. O valor de inexistência não é frequente em processo e, seja como for, nada tem a
ver com os pressupostos processuais, dado que o valor que estes pressupostos asseguram é o de
admissibilidade do conhecimento do mérito da causa.
Os valores extraprocessuais não possuem nenhuma relevância em processo: neste, só
podem relevar os valores processuais. Sendo assim, nada obsta a que aquilo que, na esfera
extraprocessual, seja qualificado como inexistente seja qualificado, no âmbito processual, como
inadmissível. Aliás, a inversa também é verdadeira, como é fácil de demonstrar precisamente na
área da personalidade judiciária: ao atribuir personalidade judiciária a patrimónios autónomos e a
sucursais ou a equivalentes (cf. art. 12.º e 13.º do CPC), concede-se a susceptibilidade de ser
parte a uma entidade que é, fora do processo, juridicamente inexistente. É por isso que as breves
reflexões anteriores também podem ser vistas como um plaidoyer a favor da autonomia do
processo civil.
M. Teixeira de Sousa