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Consulta de enfemragem e violência

A CONSUL TA DE ENFERMA
ONSULT GEM
NFERMAGEM
GINECOLÓGICA E A REDUÇÃO DA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
NURSING CONSULTATION IN GYNECOLOGY
ONSULT AND
THE REDUCTION OF GENDER VIOLENCE

Luciane Marques de Araujo*


Jane Márcia Progianti**
Octavio Muniz da Costa Vargens***

RESUMO: O presente estudo visa refletir acerca da violência de gênero, a partir da experiência vivida
pela enfermeira em seu cotidiano, no desenvolvimento da consulta de enfermagem ginecológica. Apoi-
ados na teoria do poder simbólico de Pierre Bourdieu, os autores propõem estratégias para redução da
violência de gênero na relação profissional e cliente.
Palavras-chave: Consulta de enfermagem, gênero, saúde da mulher; violência.

ABSTRACT
ABSTRACT:: The present study seeks to contemplate gender violence, starting from the daily experiences
of nurses in the development of nursing consultation in gynecology. Based on the theory of symbolic
power developed by Pierre Bourdieu, the authors propose strategies in the relationship between
professional and client for the reduction of gender violence.
Keywords: Nursing consultation, gender, women’s health; violence.

I NTRODUÇÃO
No campo da ginecologia, por meio da transmissão e incorporação desses valores, pro-
consulta de enfermagem, temos conseguido aten- pomos a reflexão acerca da violência de gênero e
der a grande parte das ações previstas no Progra- a utilização de estratégias para sua redução no
ma de Assistência Integral à Saúde da Mulher1, cotidiano da consulta de enfermagem.
juntamente com a sua proposta de integralidade.
Nesse percurso, temos observado que grande A APRENDIZAGEM DE GÊNERO: A
parte das mulheres tem uma imagem negativa de AQUISIÇÃO DO HABITUS FEMININO
seu próprio corpo. Tal fato fica evidenciado, por
exemplo, quando as mulheres descrevem suas pró- De acordo com Bourdieu5, o mundo so-
prias secreções vaginais fisiológicas como queixas, cial constrói e impõe uma representação acerca
ao referirem seus odores como fétidos e solicita- dos órgãos sexuais masculino e feminino e essa
rem tratamento medicamentoso. Acrescenta-se a representação, sendo incorporada nas mentes, se
isso a observação muito freqüente de mulheres, torna o fundamento da diferença social entre
na fase do climatério, que solicitam terapia de re- homens e mulheres. Portanto, a diferença bioló-
posição hormonal com vistas ao retardo do proces- gica entre os sexos passa a ser vista como justifi-
so fisiológico de envelhecimento. cativa natural da diferença socialmente
Tal representação, construída como conse- construída entre os gêneros.
qüência da violência simbólica de gênero, contri- Para construir essa oposição entre o mascu-
bui para reforçar o processo de medicalização da lino e o feminino, são utilizados esquemas de pen-
sociedade brasileira, em especial da saúde da samento, de aplicação universal, que, no enten-
mulher2,3,4. No sentido de romper com a cadeia der de Bourdieu6, determinam que as mulheres

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Araújo LM, Progianti JM, Vargens OMC

sejam constituídas como uma entidade negativa, ele faz suas observações, fala da mulher em ter-
definida apenas pelo que lhes falta em relação ao ceira pessoa6.
homem, cabendo a ele a melhor parte. Aqui está mais uma de nossas estratégias de
Por meio dessas categorias historicamente redução da violência de gênero: abolimos o len-
construídas dentro da ordem masculina, fica as- çol. Em nossa experiência, evitamos a utilização
segurado o primado da masculinidade, no qual o do campo sobre o ventre da cliente para que ela
princípio masculino é tomado como medida de possa ver o rosto de quem a está examinando,
todas as coisas, pois ao homem correspondem as identificar a procedência dos barulhos dos ins-
categorias reconhecidas como positivas, restando trumentais e, principalmente, para evitar a cons-
às mulheres uma representação bastante negati- trução da barreira simbólica no corpo. Observa-
va do próprio sexo5. mos que agindo assim contribuímos, também, para
Para Bourdieu5,7, ao incorporarmos essas es- diminuir a ansiedade que é comum nesse momen-
truturas históricas da ordem masculina, atualiza- to. Acreditamos que, ao agirmos dessa maneira,
mos nosso habitus. Assim, a constituição do habitus a etapa de conversa iniciada com a anamnese pode
sexuado emerge de um profundo processo de ter continuidade. Profissional e cliente podem se
inculcação cultural e simbólica, de sujeição da ver e se falar sem barreiras durante a manipula-
mulher à dominação masculina, cuja inversão ção dos órgãos genitais.
passa a ser considerada um sacrilégio. Pensando Como expresso anteriormente, no modelo
por essa ótica, pode-se considerar então que a vigente, a participação de uma terceira pessoa
aprendizagem de gênero é uma forma de violên- estranha à mulher lhe é imposta. Procuramos tor-
cia simbólica, e é por meio do trabalho de educa- nar a experiência da consulta a mais agradável
ção que essas construções sociais são incorpora- possível, facilitando a participação de outra pes-
das, inscritas nos corpos. soa que seja da confiança da cliente, quando ela
assim o deseja. Essa é outra de nossas estratégias
E STRA TÉGIAS DE R EDUÇÃO D A
STRATÉGIAS de redução da violência de gênero.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA CON- Como apontado por Bourdieu6, o momento
SULTA DE ENFERMA
SULT GEM
NFERMAGEM do exame pélvico é carregado de gestos, procedi-
mentos e atitudes que são a expressão mais evi-
Durante a consulta de enfermagem à mu- dente da violência de gênero. A introdução do
lher, acabamos invadindo a sua intimidade, mui- espéculo vaginal seria seu ponto culminante. As-
tas vezes indagando sobre situações que vão além sim, como mais uma estratégia de redução da vi-
de suas queixas. Em contrapartida, quando ouvi- olência, procuramos incentivar a que ela própria
das com atenção, manifestam a necessidade de insira o espéculo vaginal, oferecendo ainda um
discutir inúmeras questões, tais como: auto-ima- espelho para que ela possa visualizar sua vagina e
gem, sexualidade, relação conjugal, violência colo de útero para compreender o que foi dito a
doméstica e outras. Essa escuta sensível, portan- seu respeito. Essa atitude, além de ajudar no co-
to, constitui-se na primeira de nossas estratégias nhecimento e apropriação do próprio corpo, faci-
de redução da violência de gênero. lita a participação mais ativa da mulher, inclusi-
Analisando a rotina do exame ginecológico, ve no planejamento dos cuidados e da prevenção
Bourdieu6 comenta que o profissional de saúde se dos agravos à saúde. Tal atitude está em conso-
submete a um verdadeiro ritual visando manter a nância com o proposto por Araújo8 que nos alerta
barreira, simbolizada pela cintura, entre a pessoa que a garantia da participação da clientela é um
pública e a vagina. Faz referência à utilização do desafio aos profissionais de saúde que aspiram efe-
lençol sobre a cintura como um instrumento para tivar uma nova forma de atuar, pautada no prin-
separar a parte alta da parte baixa do corpo, cons- cípio da integralidade e da partilha do poder.
truindo assim a barreira simbólica6. Analisa tam- Também nos chama a atenção o fato de que,
bém a relação entre o profissional e a cliente de com grande freqüência, as mulheres manifestam
tal modo que numa primeira etapa, a da anamnese, sentimentos de vergonha do próprio corpo, bem
ambos se falam, se olham e no momento seguinte, como nojo das próprias secreções vaginais e odo-
já com o lençol sobre a cintura da mulher, o pro- res, muitas vezes fisiológicos. Essa representação
fissional observa a vagina como algo dissociado negativa do próprio sexo se dá, na opinião de
da pessoa e em presença de um auxiliar, a quem Bourdieu5, em função da incorporação dos esque-

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Consulta de enfemragem e violência

mas de percepção impostos pelos dominantes. Quan- da história das mulheres, inclusive pelo próprio
do as mulheres aplicam modos de pensar e perce- governo federal, que nas décadas de 60 e 70 não
ber estruturados de acordo com o pensamento somente permitiu, mas incentivou a atuação de
hegemônico, seus atos tornam-se, inevitavelmen- entidades de controle da natalidade em nosso país,
te, atos de reconhecimento e de submissão. Assim, como as reconheceu de utilidade pública.
adotamos como estratégia em nosso cotidiano na Destarte, já em outras épocas da história, para
consulta de enfermagem a conversa franca a res- atender a seus interesses, incentivou os nascimen-
peito das particularidades do corpo feminino, sem- tos, conduzindo as mulheres como verdadeiros
pre com conotações positivas, tendo como princí- objetos/instrumentos da reprodução biológica11.
pio o reconhecimento e o reforço à idéia do corpo Outra situação que merece atenção se refe-
e seus fluidos fisiológicos como naturais. re à atuação profissional junto às clientes porta-
Quanto à contracepção, contata-se a cada doras de doenças sexualmente transmissíveis. Em
dia o aumento da demanda para esse programa de geral, essa atuação é exclusivamente voltada para
saúde. Essa situação, já identificada em décadas os aspectos biológicos. Isso ocorre devido à inabi-
anteriores, teve como fatores explicativos o acele- lidade do profissional em lidar com questões tão
rado processo de urbanização, a maior participa- íntimas e complexas, como, por exemplo, o con-
ção da mulher no mercado de trabalho e as restri- texto em que surgiu a doença, a compreensão do
ções impostas por um contexto de crise econômi- que se passa na família ou na relação conjugal e
ca, além da difusão de métodos anticoncepcionais9. principalmente no modo de ajudar a mulher a
Como uma das estratégias para desvincular encontrar uma forma de abordar o parceiro, do
as atividades atinentes à contracepção de qual- qual freqüentemente é vítima de violência, por
quer caráter coercitivo para as pessoas que ve- vezes até mesmo física. A estratégia que adota-
nham a utilizá-lo, desenvolvemos o trabalho mos em situações semelhantes é o estímulo à par-
educativo de grupo. Embora essa atividade seja ticipação do parceiro em consultas especialmen-
aberta à participação masculina, eles raramente te agendadas para esse fim.
o fazem, o que reforça a constatação de que a
contracepção é encarada quase sempre como uma CONSIDERAÇÕES FINAIS
responsabilidade exclusivamente feminina.
Sen e Grown10, ao analisarem o contexto do Em nossa sociedade, a violência se mani-
desenvolvimento das tecnologias contraceptivas, festa de diferentes formas, desde o plano simbóli-
já haviam identificado a tendência de tornar a res- co, que estabelece papéis sociais e sexuais, até a
ponsabilidade da contracepção mais centrada nas violência física. A violência simbólica, apesar de
mulheres. Isso fica fortemente evidenciado pelo invisível, tem efeitos reais e muito perversos, os
fato de a maior parte dos métodos contraceptivos quais se refletem nos índices de analfabetismo,
ser de uso no corpo feminino, e cabe dizer que ain- miséria, desemprego e fome que afetam a quali-
da assim muitas mulheres precisam recorrer à ca- dade de vida do ser humano.
misinha feminina porque seus parceiros se recu- Devemos então adotar medidas práticas para
sam a utilizar o preservativo masculino. eliminar a discriminação contra as mulheres no
Observações do cotidiano suscitam nos au- campo da saúde a fim de garantir, com base na
tores dúvidas quanto à real liberdade de escolha igualdade de homens e mulheres, o acesso aos
dos métodos contraceptivos, pelas mulheres, e serviços de saúde e serviços de qualidade. Tais
sugerido a influência exercida pelos profissionais serviços devem ainda garantir a autonomia das
de saúde, o que sem sombra de dúvida represen- mulheres, o que se traduz no seu consentimento
ta uma forma de violência. Portanto, há que se livre e informado para qualquer tipo de interven-
refletir acerca da relação dos profissionais de saúde ção e no respeito à sua intimidade, opinião, pri-
com a clientela, historicamente autoritária e de- vacidade, expressão sexual e reprodutiva.
sigual, bem como sobre nossa participação nos A enfermeira deve refletir sobre sua prática
programas de saúde, em especial no que se refere cotidiana para, antes de tudo, garantir que não
às questões relativas à contracepção e ao caráter se torne um agente reprodutor da violência a que
coercitivo que possa permeá-lo. ela própria está sujeita.
Ainda em relação à contracepção, vê-se que Portanto, muito ainda precisa ser feito no
a violência de gênero foi e é praticada, ao longo sentido de rediscutir a nossa prática diária, in-

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Araújo LM, Progianti JM, Vargens OMC

vestigar novas formas de desenvolver ações de 4. Progianti JM, Lopes AS, Gomes RCP. Participação da
saúde, refazer técnicas e posturas, contribuindo enfermeira no processo de desmedicalização do parto. Rev
de forma mais efetiva para o empoderamento das Enferm UERJ 2003; 3: 271-8.
5. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro:
mulheres. Desse modo, acreditamos que a mu-
Bertrand Brasil; 1999.
lher se torna menos dependente do profissional e 6. Bourdieu P. Novas reflexões sobre a dominação masculi-
com melhores condições para exigir deste uma na. In: Lopes MJM, Meyer DE, Waldow VR, organizadores.
postura mais respeitosa, democrática e solidária. Gênero & Saúde. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1996.
Fora isso, acreditamos que assim poderemos con- p.28-40.
tribuir para transformar profundamente as dispo- 7. Bourdieu P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro:
sições adquiridas e incorporadas, por uma espé- Bertrand Brasil; 2001.
cie de reeducação para alcançar uma sociedade 8. Araújo CLF. A prática do aconselhamento em DST/
AIDS e a integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA,
mais justa, para além dos gêneros. organizadores. Construção da integralidade: cotidiano,
saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro. Instituto de
REFERÊNCIAS Medicina Social /UERJ; 2003. p.145-68.
9. Soares LTR. Ajuste neoliberal e desajuste social na
1. Ministério da Saúde (Br). Assistência integral à saúde América Latina [tese de doutorado]. Campinas (SP):
da mulher: bases de ação programática. Brasília; 1984. Universidade Estadual de Campinas; 1995.
2. Vargens OMC, Progianti JM. O processo de 10. Sen G, Grown C. Desenvolvimento, crise e versões al-
desmedicalização da assistência à mulher no ensino de ternativas: perspectivas das mulheres do terceiro mundo.
enfermagem. Rev Esc Enferm USP 2004; 38: 46-50. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; 1998.
3. Vargens OMC, Medina ET, Lessa HF. Progianti JM, Lima 11. Araujo LMA. A enfermeira como agente estratégico
ML. Desmedicalização da assistência ao parto e ao nasci- para a implantação das propostas de contracepção do
mento - um desafio para a enfermagem obstétrica brasilei- CPAIMC: 1975-1978 [dissertação de mestrado]. Rio de
ra. Enferm Atual 2003; 3:12-8. Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2000.

L A C ONSULTACIÓN
ONSULT DE ENFERMERÍA EN G INECOLOGÍA Y LA REDUCCIÓN DE LA V IOLENCIA
DE G ÉNERO
Resumen: El presente estudio busca contemplar la violencia de género, a partir de las experiencias
diarias de enfermeras, en el desarrollo de la consultación de enfermería en ginecología. Basados en la
teoría del poder simbólico desarrollada por Pierre Bourdieu, los autores proponen estrategias para
reducción de la violencia de género en la relación entre el profesional y la cliente.
Palabras Clave: Consultación de enfermería; género; salud de la mujer; violencia.

Recebido em: 28.04.2004


Aprovado em: 22.09.2004

Notas
*
Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Materno -Infantil da Faculdade de Enfermagem UERJ. E-mail:
araujo.luciane@uol.com.br
**
Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da Faculdade de Enfermagem UERJ.
***
Professor Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da Faculdade de Enfermagem UERJ.

R Enferm UERJ 2004; 12:328-31. • p.331

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