You are on page 1of 78

Anais do

Seminário de
Línguas e
Literaturas
Clássicas. 6. ed.
ISSN: 1984-4336
ISSN 1984-4336

ANAIS
DO

VI SEMINÁRIO DE LÍNGUAS E LITERATURAS CLÁSSICAS


14 a 16 de setembro de 2016

Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

2017
VI SEMINÁRIO DE LÍNGUAS E LITERATURAS CLÁSSICAS

REALIZAÇÃO:
Universidade Federal de Pernambuco
Departamento de Letras da UFPE
APOIO:
Pró-Reitoria de Extensão e Cultura
Centro de Artes e Comunicação
Grupo de Pesquisa Hermeneia – Língua e Literatura Grega e Latina da Antiguidade e do Medievo.
Grupo de Estudos Libertadores da América
COORDENAÇÃO:
Prof. Dr. David Pessoa de Lira
PROFESSORES MEMBROS DA COMISSÃO ORGANIZADORA E CIENTÍFICA:
Dr. David Pessoa de Lira (UFPE);
Dr. José Alexandre Ferreira Maia (UFPE);
Dr. Juan Pablo Martín Rodrigues (UFPE);
Me. Érica Thereza Farias Abrêu (UNEAL);
Me. Everton da Silva Natividade (UFPE).
EQUIPE TÉCNICO-OPERACIONAL:
Alexsaymour da Costa Batista;
Anna Karla de Arruda Lira Albuquerque;
Danilo de Arruda Lins;
José Edson da Silva;
José Roberto de Luna Filho;
Larissa Witória Gomes de Araújo;
Pollyanna Cristina Quadros de Souza;
Richard Fernandes de Oliveira.

ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS:


Prof. Dr. David Pessoa de Lira

DESENHO DE CAPA:
O Arco de Adriano foi escolhido como símbolo não só por se figurar no site do Grupo de Pesquisa
Hermēneia, mas também porque é simbolicamente associado ao espaço e as delimitações do mundo
greco-romano. O arco triunfal, feito de mármore, situado na antiga rua que começa desde a antiga
cidade de Atenas e termina na nova seção de Atenas, foi construído pelos atenienses, entre 131 e 132
E.C., como homenagem ao seu imperador pela sua benfeitoria naquela cidade. O monumento tem 18
metros de altura e 13 metros de largura e está em detalhe corinto, possuindo duas fachadas, sendo
dividido em duas seções verticalmente: a parte inferior segue o modelo do arco honorário romano e a
parte superior segue o famoso e tradicional propylon grego. Há duas inscrições na viga do arco; uma
em cada fachada exatamente. No lado voltado para a Acrópole, é escrito: “Esta é Atenas, a Antiga
Cidade de Teseu”. No lado em direção à nova cidade, está gravado: “Esta é a Atenas de Adriano, não
de Teseu”.
CRÉDITOS DE ARTE:
Descrição do Arco de Adriano pelo Prof. Dr. David Pessoa de Lira a partir dos dados informativos no
sítio em Atenas. O desenho por Alexsaymour da Costa Batista (aluno de Licenciatura em Letras/
Espanhol da UFPE) a partir de uma foto do Arco pertencente ao acervo particular do Prof. David Lira.
Capa pelo Prof. David Lira e Danilo de Arruda Lins (aluno do Bacharelado em Letras). Diagramação
por Danilo de Arruda Lins.
ISSN 1984-4336 (NÃO IMPRESSO)
SUMÁRIO

A PARETIMOLOGIA PLATÔNICA SOBRE O NOME ἙΡΜĤΣ EM CRATYLUS 407E-408B.............. 1

SOBRE UMA TRADUÇÃO DA BATRACOMIOMAQUIA................................................................. 11

A RELAÇÃO ENTRE AS MUSAS HESIÓDICAS E O CONCEITO DE ALÉTHEIA............................ 21

CARONTE E MENIPO: TRADUÇÃO DO 22º DIÁLOGO DOS MORTOS ....................................... 29

O MITO DE ER: UMA BEVE INTRODUÇÃO E MÉTODO DE TRADUÇÃO DO LIVRO X DA


REPÚBLICA............................................................................................................................... 35

JUVENAL E SÁTIRA LATINA..................................................................................................... 45

A ORIGEM DO SIGNO E A EVOLUÇÃO DA CULTURA (A EVOLUÇÃO DO SIGNO


CULTURAL).............................................................................................................................. 53
1

A PARETIMOLOGIA PLATÔNICA SOBRE O NOME ἙΡΜĤΣ EM CRATYLUS 407E-408B

David Pessoa de Lira ∗


Resumo: Em Cratylus 407e-408b, Sócrates explica a Hermógenes que o nome Ἑρµῆς procede do verbo εἴρω, já
que se relaciona com a função do ser intérprete, mensageiro e ardiloso com a palavra. Justifica-se o emprego
homérico do aoristo ἐµήσατο para explicar o trocadilho. Finalmente, ele conclui que o nome Εἰρέµης se
embelezou. A família manuscriturística βTδ desse texto propõe uma correção etimológica, acrescentando que o
nome Ἶρις vem de εἴρω. Sabe-se que Platão, em Cratylus, propõe uma paretimologia. Ademais, demonstra-se
uma interpretação anacrônica sobre os atributos de Ἑρµῆς, que denomina-se ἄγγελος na Odisseia V, pressupondo
uma composição tardia, quando já se formularam os epítetos de Ἑρµῆς. É plausível que Ἶρις originou-se da
mesma raiz de εἴρω; não é fortuita sua função de ἄγγελος na Ilíada. Destarte, por meio do método histórico-
comparativo, objetiva-se apresentar que o mito e a etimologia de Ἑρµῆς e Ἶρις inverteram-se e subverteram-se
na Literatura Grega Antiga.
Palavras-chave: Ἑρµῆς e Ἶρις. verbo εἴρω. Paretimologia.

Introdução

Sabe-se que Platão, em Cratylus, propõe uma paretimologia, ou seja, trata-se de uma
etimologia imprópria e muitas vezes fantasiosa, com raras exceções.1 A explicação de Platão
para a origem do nome Hermes carece de algumas outras informações. No entanto, fato é que,
na época de Platão, o mito de Hermes já havia sofrido considerável interpretação. A
incidência do verbo εἴρω nas obras homéricas não comprova nenhum atributo de Hermes
relatado em Cratylus 407e-408b. O verbo εἴρω, cujo substantivo é ἕρµα (brinco, colar),
significa ligar, juntar e entrelaçar e não tem nenhuma relação com o verbo εἴρω (dizer, falar,
pronunciar) nem com ἕρµα (rocha, suporte, fundação).2
Há um dado importante no que diz respeito à crítica textual da passagem de Cratylus
408b, o que pode ser bastante elucidativo para essa paretimologia. O aparato crítico3 da
Platonis Opera informa que as melhores famílias manuscriturísticas desse texto de Cratylus, a
saber, a família βTδ, acrescentam a seguinte fraseologia à passagem: “E, igualmente, Iris
parece [ter] sido nomeada a partir do verbo eirein porque era mensageira (ϰαὶ ἥ γε Ἶρις ἀπὸ
τοῦ εἴρειν ἔοιϰεν ϰεϰληµένη, ὅτι ἄγγελος ἦν). Essa lectio é atestada pelos melhores
manuscritos (códices), embora não seja testemunhada pelo documento mais antigo, isto é, o

∗ Professor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Email de contato:
lyrides@hotmail.com.
1 ROSSETTI, 2006, p. 387. Sobre os títulos completos das obras referenciadas, cf. as referências.
2 O verbo εἴρω, com sentido de dizer, falar, anunciar, convir, concordar, ordenar, referir, mencionar, relatar etc., tem, no
modo indicativo, o futuro ativo ἐρῶ; o aoristo ativo εἶπον, o perfeito ativo εἴρηϰα, o perfeito médio e passivo εἴρηµαι, o
aoristo passivo ἐρρηϑην, o futuro passivo εἰρήσοµαι, ῥηϑήσοµαι; ao passo que εἴρω, com sentido de ligar, juntar,
entrelaçar, não tem o futuro ativo; o aoristo ativo εἶρα, ἔρσα, o perfeito ativo εἶρϰα. LIDDELL - SCOTT - JONES
(1996) 836; RUSCONI (2003) 284; MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 99, 137, 138, 442; PEREIRA, 1998, p.169, 229-
230; BEEKES, 2010, v. 2, p. 392-393, 461-462.
3 Cod. Bodl. MS Ε. D. Clarke 39 (anno 895); Cod. Tub. gr. Mb 14 (saec. ΧΙ); Cod. Ven. gr. 185 (saec. XII); Cod. Ven.
apcl. 4· Ι (saec. Χ); Cod. Vind. suppl. gr. 7 (saec. ΧΙ); Cod. Vat. gr. 225 (saec. XII?); Versio Armeniaca (non post saec.
ΧΙ confecta). βTδ: Cod. Bodl. MS Ε. D. Clarke 39 (anno 895); Cod. Tub. gr. Mb 14 (saec. ΧΙ); Cod. Ven. gr. 185 (saec.
XII); Cod. Ven. apcl. 4· Ι (saec. Χ); Cod. Vind. suppl. gr. 7 (saec. ΧΙ); Cod. Vat. gr. 225 (saec. XII?); Versio Armeniaca
(non post saec. ΧΙ confecta).
2

PaOxy. 2663: 405c. Quer essa configuração estivesse ou não no suposto texto original, fato é
que isso possibilita corrigir a argumentação anterior de Platão ao relacionar o nome Ἑρµῆς ao
verbo εἴρω. Isso advém do fato de que o compilador deve ter notado algo que não era coerente
na afirmação platônica.

1. A Paretimologia do Nome Ἑρµῆς em Cratylus 407e-408b

No que concerne à etimologia do nome, a discussão já se encontra no diálogo


platônico Cratylus 407e-408b:
Ἑρµογένης: ἀλλὰ ποιήσω ταῦτα, ἔτι γε ἓν ἐρόµενός σε περὶ Ἑρµοῦ, ἐπειδή µε ϰαὶ οὔ φησιν
Κρατύλος Ἑρµογένη εἶναι. πειρώµεϑα οὖν τὸν ‘Ἑρµῆν’ σϰέψασϑαι τί ϰαὶ νοεῖ τὸ ὄνοµα, ἵνα ϰαὶ
εἰδῶµεν εἰ τὶ ὅδε λέγει.
Σωϰράτης: ἀλλὰ µὴν τοῦτό γε ἔοιϰε περὶ λόγον τι εἶναι ὁ ‘Ἑρµῆς’, ϰαὶ τὸ ἑρµηνέα εἶναι ϰαὶ τὸ
ἄγγελον ϰαὶ τὸ ϰλοπιϰόν τε ϰαὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοις ϰαὶ τὸ ἀγοραστιϰόν, περὶ λόγου δύναµίν
ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγµατεία. ὅπερ οὖν ϰαὶ ἐν τοῖς πρόσϑεν ἐλέγοµεν, τὸ ‘εἴρειν’ λόγου χρεία
ἐστί, τὸ δέ, οἷον ϰαὶ Ὅµηρος πολλαχοῦ λέγει, ‘ἐµήσατό’ φησιν, τοῦτο δὲ µηχανήσασϑαί ἐστιν. ἐξ
ἀµφοτέρων οὖν τούτων τὸν τὸ λέγειν τε ϰαὶ τὸν λόγον µησάµενον τοῦτον τὸν ϑεὸν ὡσπερεὶ
ἐπιτάττει ἡµῖν ὁ νοµοϑέτης· “ὦ ἄνϑρωποι, ὃς τὸ εἴρειν ἐµήσατο, διϰαίως ἂν ϰαλοῖτο ὑπὸ ὑµῶν
‘Εἰρέµης’”· νῦν δὲ ἡµεῖς, ὡς οἰόµεϑα, ϰαλλωπίζοντες τὸ ὄνοµα ‘Ἑρµῆν’ ϰαλοῦµεν. ϰαὶ ἥ γε
Ἶρις ἀπὸ τοῦ εἴρειν ἔοιϰεν ϰεϰληµένη, ὅτι ἄγγελος ἦν.4
Hermógenes: Mas farei isso te perguntando ainda uma coisa, pelos menos, sobre Hermēs, já
que Crátilo diz que eu não sou filho de Hermes (Hermógenes). Assim, tentemos examinar
‘Hermēs’ e o que o nome sugere, para que também saibamos se [existe] algum sentido no que
ele [Crátilo] diz.
Sócrates: Em todo caso, pelo menos, parece que o nome ‘Hermēs’ se relaciona com o
discurso, com o ser intérprete (hermēneus), mensageiro, ardiloso, enganoso em palavras e
barganhador (negociador), todo esse comportamento tem a ver, segundo a função, com a
linguagem. Assim, também, como nós falávamos antes, o verbo ‘eirein’ é o uso do discurso, tal
como também Homero diz frequentemente (em muitos lugares) ‘emēsato’, isto é, ele planejou.
Portanto, como o legislador nos impôs este deus a partir destes dois verbos, dizer e planejar:
“ó, homens, o que planejou o eirein seja justamente chamado ‘Eiremēs’”; agora nós, como
acreditamos, embelezando-o, chamamos de ‘Hermēs’. E, igualmente, Iris parece [ter] sido
nomeada a partir do verbo eirein porque era mensageira (tradução própria).

Etimologicamente, o nome Íris se origina da mesma raiz primitiva do verbo εἴρω e, de


fato, Íris, na sua origem, era a mensageira dos deuses, a que portava a palavra (o verbo). Isso
já foi afirmado desde a Antiguidade pelos estóicos. Os estóicos, que aprofundaram suas
teorias sobre a palavra e a etimologia, alegorizaram Ἶρις como a palavra proferida derivada
do verbo εἴρω: Ἶρις δὲ ὁ προφοριϰὸς λόγος ἀπὸ τοῦ εἴρω τὸ λέγω.5 O verbo εἴρω, cuja forma
primitiva é ϜέρϜϳω, Ϝέριω, significa, dentre outras acepções, dizer, falar, anunciar, convir,
concordar, ordenar, referir, mencionar e relatar.

4 Texto grego em PLATO 1995, p. 225-226.


5 STOICORVM VETERVM FRAGMENTA, 1964, v. 2, 43; LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 836; MORWOOD;
TAYLOR, 2002, p. 164; PEREIRA, 1998, p. 280, 652.
3

A origem indo-europeia desse vocábulo permite conectar várias palavras de línguas


diversas pertencentes ao mesmo tronco.6
O substantivo próprio Ἶρις, também grafado Εἶρις, cuja forma primitiva é Ϝῖρις
(*wīris) ou Ἐϝῖρις(*wīris), corresponde à deusa Íris. As grafias Ἶρις e Εἶρις são
intercambiáveis e testemunhadas no séc. IV a.E.C. A evidência de que Ϝῖρις seja a forma
original de Ἶρις se encontra tanto em inscrições em Corinto e nas métricas épicas.7 O
substantivo comum ἶρις é uma espécie de apelativo que significa arco-íris, cículo colorido do
brilho, uma espécie de pedra preciosa, uma flor púrpura; halo da vela; vestimenta iridescente
Não é por acaso que o nome da deusa Ἶρις, em latim, é Arcus.8
Tudo indica que Platão, por meio de Sócrates, empregou a explicação mitológica e
etimológica acerca de Ἶρις para explanar os atributos míticos de Ἑρµῆς. Nota-se, por
exemplo, a passagem, na Ilíada, que descreve a deusa Íris:
Τρωσὶν δ’ ἄγγελος ἦλϑε ποδήνεµος ὠϰέα Ἶρις / πὰρ ∆ιὸς αἰγιόχοιο σὺν ἀγγελίῃ ἀλεγεινῇ· οἳ δ’
ἀγορὰς ἀγόρευον ἐπὶ Πριάµοιο ϑύρῃσι / πάντες ὁµηγερέες ἠµὲν νέοι ἠδὲ γέροντες· ἀγχοῦ δ’
ἱσταµένη προσέφη πόδας ὠϰέα Ἶρις· εἴσατο δὲ φϑογγὴν υἷϊ Πριάµοιο Πολίτῃ, / ὃς Τρώων
σϰοπὸς ἷζε ποδωϰείῃσι πεποιϑὼς/ τύµβῳ ἐπ’ ἀϰροτάτῳ Αἰσυήταο γέροντος,/ δέγµενος ὁππότε
ναῦφιν ἀφορµηϑεῖεν Ἀχαιοί· τῷ µιν ἐεισαµένη προσέφη πόδας ὠϰέα Ἶρις… (Hom. Il. 2.786-
795).9
E de Zeus, portador de égide, veio Iris, a rápida mensageira pés-de-vento, com um doloroso
anúncio aos troianos; todos reunidos, tanto os novos quanto os velhos, falavam publicamente
nos portões de Príamo; e perto fica Íris, a rápida-nos-pés; fingiu a voz de Polites, filho de
Príamo, o qual, [sendo] atalaia dos Troianos, colocava-se de tocaia, confiando na rapidez dos
pés, alerta na tumba mais alta do velho Esíetes já que os aqueus podiam começar com as
naus. Íris, rápida-nos-pés, assemelhou-se a ele (tradução própria).

No diálogo platônico Cratylus 407e-408b, o problema inicial é o nome Ἑρµῆς e o que


se sugere e qual é o sentido dele. Sócrates relaciona esse nome com o discurso, com o ato da
fala, com a palavra (λόγος). A partir disso, ele toma como base vários atributos advindos de
mitos acerca de Hermēs, a saber: intérprete (ἑρµηνεύς), mensageiro (ἄγγελος), ardiloso
(ϰλοπιϰός), enganoso em palavras (ἀπατηλὸς ἐν λόγοις) e barganhador ou negociador
(ἀγοραστιϰός), todo esse comportamento tem a ver, segundo a função, com a linguagem, ou
seja, do discurso (περὶ λόγου δύναµίν ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγµατεία).10
Se Platão partiu do verbo εἴρω (ligar, juntar e entrelaçar), cujo substantivo é ἕρµα

6 LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 491; RUSCONI, 2003, p. 284, 408; MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 99;
PEREIRA, 1998, p. 169. A raiz de εἴρω se configura Ϝερ-, Ϝρη-, Ϝρε-, ἐρ-, ῥη-, ῥε-, dando origem à palavra ῥήτρα
(eólico: Ϝρατρα; cipriota: Ϝρετρα – convenção, acordo), ῥῆµα (frase, sentença, palavra, verbo), ῥήτωρ (orador) etc. Cf.
LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 491; RUSCONI, 2003, p. 284, 408
7 Ϝῖρις (*wīris) deve ter se originado da raiz protoindo-europeia *weh1i- (curvar, torcer, dobrar) ou *weh1i-ro- (torção,
volta; linha, fio). Palavras cognatas, em outros idiomas, têm a mesma origem: wīr (inglês antigo ou baixo-alemão:
cordão, fio metálico); wiere (alemão: cordão ou fio metálico); wire (inglês: fio); vieo (latim: curvar; entrelaçar).
8 BEEKES, 2010, v. 1, p. 598; LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 836; GLARE, 2015, v. 1, p. 180.
9 Texto grego em HOMERO, 2008, v. 1, p. 112-113.
10 PLATO 1995, p. 225-226.
4

(brinco, colar), para explicar a origem do nome Ἑρµῆς, isso não tem nenhuma relação com o
discurso (λόγος). Se ele partiu do verbo εἴρω (dizer, falar, pronunciar) para explicar a origem
desse nome, há um equívoco. Esse verbo não se relaciona etimologicamente com o
substantivo Ἑρµῆς. Do ponto de vista das funções desse deus, nos textos homéricos, ele não
era inicialmente ἄγγελος (na Ilíada) nem se pode cogitar seu papel de adjuvante como
ἀγοραστιϰός (na Odisseia).
Faz-se necessário averiguar a incidência da palavra ἄγγελος na Ilíada e Odisseia e
como se dá a função de Hermes (Ἑρµῆς) e Íris (Ἶρις) nessas obras homéricas. Ademais,
convém examinar se, de fato, o epíteto διάϰτορος (na Od. 5.43), alude à função de Hermes
como ἄγγελος.

2. Hermes como ἄγγελος e διάϰτορος na Odisseia 5.28-54

Do ponto de vista da πραγµατεία (do emprego, da obra escrita, da história e do estudo


diligente) da Ilíada, primitivamente, o ἄγγελος dos deuses era Íris. Era justamente essa deusa
que imitava os sons e tinha o dom da eloquência. Essa mesma deusa carregava o bastão e
possuía os pés rápidos como o vento.
O nome Íris incide, na Ilíada, quarenta (40) vezes11 e nenhuma referência há na
Odisseia. Em todas as passagens, Íris tem a função de anunciar ou comunicar, sendo
tipicamente a ἄγγελος dos deuses, principalmente de Zeus e Hera. De vinte e cinco (25) vezes
que a palavra ἄγγελος incide na Ilíada, dez (10) são de gênero feminino, sendo que apenas
uma se refere a Atenas e o resto (09) corresponde a Íris. A palavra ἄγγελος ocorre nove (09)
vezes na Odisseia, sendo que duas (02) são femininas e apenas uma (01) vez que incide com o
gênero masculino se refere a Hermēs.12 Por esta razão, partindo desses dados, na Odisseia
5.29, a afirmação “Ἑρµεία, σὺ γὰρ αὖτε τά τ᾽ ἄλλα περ ἄγγελός ἐσσι (Hermes, com efeito, tu és,
mais uma vez e igualmente por outras coisas, o mensageiro) (tradução própria)” não condiz
com todas as histórias das obras homéricas no que concerne à atuação de Hermes como
ἄγγελος.
Não obstante, a palavra διάϰτορος, entre outras acepções, pode correspoder a ἄγγελος,

11 Dessas quarenta (40) vezes, vinte e sente (27) são referentes à formaἾρις (Il. 2.786, 790, 795; 3.121, 129; 5. 353, 365,
368; 8. 409, 425; 11. 195, 199, 210; 15. 168, 172, 200; 18. 166, 183, 196, 202; 23. 198, 201; 24. 77, 87, 95, 159, 188);
sete (07) são referentes ao acusativo Ἶριν (Il. 8.398; 11.185; 15.55, 144, 157; 24.117, 143); seis (06) se referem ao
vocativo Ἶρι (Il. 8.399; 11.186; 15.158, 206; 18. 182; 24.144). Dez (10) vezes a palavra ἄγγελος incide, na Il., com gênero
feminino (Il. II.94, 786; 3.121; 11. 715; 18. 167, 182; 24. 133, 169, 173, 561). Na Il. 2.94, 786; 3.121; 18. 167, 182;
XXIV. 133, 169, 173, 561, Íris é designada como ∆ιὸς ἄγγελος ou ∆ιόϑεν ἄγγελος (mensageira ou núncia de Zeus), ou
enviada (ἄγγελος) de Ἥρη (Hera). HOMERO, 2008, 2 v., passim; GEHRING, 1970, 5, 400.
12 Dessas nove (09) vezes que a palavra ἄγγελος ocorre na Odisseia, duas (02) incidências são de gênero feminino (Od.
12.374; 24. 413); sete (07) são referentes ao gênero masculino (Od. 5.29; 8.270; 15. 458, 526; 16.138, 468; 24.405);
dessas de gênero masculino, apenas uma (01) se refere a Ἑρµῆς (Od. 5.29). HOMERO, 2011, passim; GEHRING, 1970,
5, 400. Cf. o gênero masculino e feminino dessa palavra em MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 2.
5

ocorrendo oito (08) vezes na Ilíada e nove (09) vezes na Odisseia. Todas as ocorrências se
referem a Hermēs. No entanto, em nenhuma passagem da Ilíada, onde aparece esse epíteto,
Hermes assume a função de mensageiro, anunciador etc. Na Il.24, Hermes tem a função de
pompos (ποµπός). Na Odisseia, principalmente no Canto 5, Hermes assume a função de
ἄγγελος explicitamente. Não é por acaso que se menciona Hermes como tal na Od. 5.29.
Segundo Martin Nilsson, “Íris é a mensageira dos deuses (Hermes ocupa a posição
pela primeira vez na Odisseia) (tradução própria)”.13 Na Ilíada, por exemplo, embora Hermes
seja chamado de διάϰτορος,14 raramente ou nunca, ele é chamado de ἄγγελος. A palavra
διάϰτορος tem sentido muito amplo e apresenta várias acepções, como mensageiro, servente,
criado, ministro, guia, companheiro, acompanhante etc.15 Percebe-se que, amiúde, διάϰτορος
pode ser intercambiável com ἄγγελος ou com διάϰονος.16 Zeus e Hera possuíam outros deuses
delegados a fazer ou a cumprir uma determinada tarefa. Eram espécies de camareiros,
camareiras, mordomos, copeiras, copeiros, mensageiros, mensageiras, tratadores de cavalo,
arautos etc.17
De fato, não era incomum, na Antiguidade, relacionar διάϰτορος com ἄγγελος. Nono
Épico de Panápolis (séc. IV E.C.), em sua obra Dionysiaca 30.250 diz: “ἦλϑε δ’Ἀϑήνη
οὐρανόϑεν· πρὸ γὰρ ἧϰε διάϰτορον ὑψιµέδων Ζεύς... (E Atena veio do céu; pois Zeus,
governando nas alturas, enviou uma mensageira...) (tradução própria)”. Na Dionysiaca
31.107, refere-se à deusa Íris como Ζηνὸς διάϰτορος (mensageira de Zeus).18
Não obstante, o sentido de διάϰτορος, por sua natureza polissêmica, precisa ser
contextualizado. O epíteto διάϰτορος possibilitou, com o decorrer dos tempos, atribuir a
Hermes variadas funções, inclusive de arauto dos deuses, de copeiro dos deuses etc. Ateneu,
retomando um verso da poetisa Safo, afirma: “... Hermes derrama vinho para os deuses
(tradução própria)”.19 Em outras palavras, ele tinha a função de servir aos deuses como
copeiro (οἰνοχόος) divino. Em todo caso, Ateneu explica que, com os contos, a deusa
Harmoniā (Ἁρµονίᾱ) teria sido a copeira dos deuses, mas Alceu introduziu Hermes como
copeiro e isso foi seguido por Safo.
Percebe-se que Hermes assumiu funções no âmbito mítico que primitivamente não

13 Iris is the messenger of the gods (Hermes fills the position for the first time in the Odyssey). NILSSON, 1949, p. 147.
14 A ocorrência da palavra διάϰτορος referente a Ἑρµῆς se dá na Il. 2.103; 21.497; 24. 339, 378, 389, 410, 432, 445). Esta
mesma palavra referente a Ἑρµῆς ocorre na Od. 1. 84; 5.43, 75, 94, 145; 8. 335, 338; 24.99.
15 LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 399; MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 164; PEREIRA, 1998, p. 280.
16 LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 399.
17 NILSSON, 1949, p. 146-147.
18 NONNOS. 1940, v. 2, p. 414, 430. LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 399.
19 Ath. Deipnosofistas 5.192c:” ... ὁ Ἑρµῆς οἰνοχοεῖ τοῖς ϑεοῖς”. Cf. ATHENAEUS, 2006, v. 2, p. 430. LYRA GRAECA,
1990, v. 1, 154-156; LYRA GRAECA, 1922, v. 1, 282-283.
6

eram dele.20
No entanto, dificilmente um arauto (ϰῆρυξ) ou copeiro (οἰνοχόος), no contexto greco-
romano, poderia ser escravo (δοῦλος), embora seja também correto dizer que, em outro
contexto, o arauto (ϰῆρυξ) era uma espécie de embaixador (inviolável), mas que também
exercia trabalhos servis.21

Conclusão

Em todo caso, conclui-se que o epíteto διάϰτορος, na Ilíada e Odisseia, não é tão claro
e óbvio como se pode propor. Como foi supramencionado, não há nenhuma passagem da
Ilíada, onde incide esse epíteto para designar a função de mensageiro ou anunciador por parte
de Hermēs. A única função que ele possui, como ocorre na Ilíada 24, é de condutor ou ποµπός
e, como na Odisseia 24, de condutor das almas ou ψυχοποµπός. Em uma primeira análise,
parece convincente que ποµπός (condutor ou emissário) seja também relacionado à palavra
διάϰτορος, a qual advém do verbo grego διάγω, que, entre outras, tem a acepção de conduzir
através de, transportar, fazer viver (continuar ou durar). Daí vem διάγων ἀγγελίας (portador
de mensagem, mensageiro), o que pode pressupor o epíteto ἄγγελος de Hermēs. Entretanto, o
verbo διάγω origina a expressão διαγωγεύς ψυχῶν (condutor das almas).22
Não obstante, em última análise, é bastante plausível que o epíteto διάϰτορος tem a
mesma origem de ϰτέρες (almas dos mortos, mortos), ϰτέρεα (ofertas fúnebres e funerárias),
ϰτερίζω (honrar os mortos, enterrar com as devidas honras, prestar as honras fúnebres).23 Isso
pressupõe que o epíteto διάϰτορος de Hermes é aparentado aos mortos, podendo conduzir as
almas dos mortos ao mundo inferior e trazê-las à vida. Assim, não é por acaso esta frase, na
Od. 5.47-48: “... ῥάβδον, τῇ τ᾽ ἀνδρῶν ὄµµατα ϑέλγει, ὧν ἐϑέλει, τοὺς δ᾽ αὖτε ϰαὶ ὑπνώοντας
ἐγείρει (...o bastão com o qual encanta as vistas dos homens, quando quer, e, por outra parte,
ergue os adormecidos) (tradução própria)”. Essa mesma frase ocorre no último canto da Ilíada
e da Odisseia. Na primeira obra homérica, trata-se do ato de dormir e acordar literalmente,
mas, na Odisseia, seu sentido é de vida e morte na condução das almas (cf. Od. 24.3-4).24
Assim, nas obras homéricas, quando se intenciona designar a função de mensageiro,

20 Talvez tenha sido uma interpretação confusa da Od. 15.319- 324, em que se descreve que Odisseu irá executar a funções
típicas do ϰῆρυξ ou οἰνοχόος sob a graça e a glória vinda de Hermēs, que levou muitas pessoas a interpretar
Hermes(Ἑρµῆς) como arauto dos deuses e patrono dos arautos. Segundo Orgogozo, não é necessariamente a patronagem
de Hermespara com os seres humanos que o faz arauto (ϰῆρυξ ou οἰνοχόος) dos deuses nem tampouco o texto o descreve
como patrono dos arautos. São suas várias atribuições que o fazem ser mensageiro dos deuses. Cf. HOMERO, 2011, p.
460-461; ORGOGOZO, 1949, p. 154-156.
21 PEREIRA , 2012, v. 1, p. 84, nota 38.
22 LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 392, 399; MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 78, 80; PEREIRA, 1998, p. 129, 132.
23 ORGOGOZO, 1949, p. 151. LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, 1002; MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 192; PEREIRA,
1998, p. 335.
24 KERÉNYI, 2015, p. 119- 125.
7

emprega-se ἄγγελος. Quando se intencionou dar nome à função de Ἑρµῆς como mensageiro,
deu-lhe o nome de ἄγγελος e não de διάϰτορος (Od. 5.29),25 exceto se ἄγγελος não tiver o
sentido de conjurador das almas no mundo dos mortos, o que não se deve aplicar a Íris.26
Ἑρµῆς é uma divindade tipicamente grega e quando se menciona grego, imcluem-se
também os micênicos,27 cuja língua era grega.28
Tudo leva a crer que, de fato, em Cratylus 407e-408b, verbo εἴρω (ligar, juntar e
entrelaçar), cujo substantivo é ἕρµα (brinco, colar), deve ter servido de base para Platão. Ele,
de forma paretimológica, relacionou o verbo εἴρω (dizer, falar, pronunciar) com ἕρµα (brinco,
colar), o que gerou a confusão. A palavra que deve ter passado na mente dele não tem relação
nenhuma com as palavras supramencionadas, a saber, ἕρµα (rocha, suporte, fundação).29
Sendo assim, ao que tudo indica o nome Ἑρµῆς advém da palavra ἕρµα (rocha,
suporte, fundação), cujo plural é ἕρµατα (montículos de pedras). Os hermata (ἕρµατα) eram
também associadas à sepultura. Ἑρµῆς era protetor dos montículos de pedras, principalmente,
se eles indicassem os caminhos e fronteiras das cidades para os viajantes; e os fizessem
conduzir de um local a outro. Não é por acaso que os hermata (ἕρµατα) designassem os
montículos de pedras, que podiam servir para demarcar o caminho e para cobrir sepulcros.
Por isso, as atribuições de Hermes como condutor das almas ou ψυχοποµπός (ao Hades) que
se encontra no Canto 24 da Odisseia.30
Como já se mencionou, o nome de Hermes já se encontra atestado em grego
micênico como E-ma-a2 (E-ma-ha). A cultura micênica já deve ter tido contato com as crenças
acerca de Hermes. Pelo menos, é o que se pode atestar em recipientes de oferendas com o seu
nome.31 Entretanto, a palavra greco-micência e-ma-ta tem a mesma raiz de ἕρµατα, mas isso
pode pressupor o termo ἕρµα (brinco, colar), derivado do verbo εἴρω (ligar, juntar e
entrelaçar), como ocorre em Hom. Il. 14.181 e em Hom. Od. 18.297. Assim, o termo ἕρµα
(com acepção de suporte) não tem relação com e-ma-ta. Etimologicamente, e-ma-ta significa
aquilo que é apertado, ajustado e seguro, o que também implica certa diligência.
Possivelmente, relaciona-se às correias das sandálias.32 Contudo, a palavra e-ma-ta não
explica a origem do nome de Hermes pelo fato de que apertar ou ajustar está em consonância

25 ORGOGOZO, 1949, p. 151.


26 KERÉNYI, 2015, p. 119.
27 PEREIRA, 2012, v. 1, p. 37, 110 PEREIRA, 2012, v. 1, p. 37, 110.
28 CHADWICK, 1973, 21-27 CHADWICK, 1973, 21-27.
29 LIDDELL; SCOTT; JONES, 1996, p. 836; RUSCONI (2003) 284; MORWOOD; TAYLOR (2002) 99, 137, 138, 442, ;
PEREIRA, 1998, p. 169, 229-230; BEEKES, 2010, v. 2, p. 392-393, 461-462.
30 PEREIRA, 2012, v. 1, p. 338.
31 CHADWICK; BAUMBACH, 1963, p. 194; CHADWICK, 1973, p. 543; BEEKES, 2010, v. 2, p. 462.
32 CHADWICK, 1973, p. 492, 543.
8

com o termo ἕρµα (brinco, colar) e seu verbo correlato εἴρω (ligar, juntar e entrelaçar).

Referências

ATHENAEUS. The Learned Banqueters: books 3.106e-5. Edited and Translated by S.


Douglas Olson. Cambridge (MA); London: Harvard University Press, 2006. v. 2. 582p. (Loeb
Classical Library).
BEEKES, Robert. Etymological Dictionary of Greek. With the assistance of Lucien van Beek.
Leiden; Boston: Brill, 2010. 2v. 1808p. (Leiden Indo-European Etymological Dictionary
Series; 10/1-2).
CHADWICK, John. Documents in Mycenaean Greek. 2. ed. Cambridge: At the Cambridge
University Press, 1973. 622p.
CHADWICK, John; BAUMBACH, Lydia. The Mycenaean Greek Vocabulary. Glotta,
Göttingen, Bd. 41, H. 3./4, 1963.
GEHRING, August. Index Homericus. Composit Augustus Gehring. Leipzig: B.G. Teubner,
1891 (1970). 874c. 234c.
GLARE P. G. W. (ed.). Oxford Latin Dictionary. Oxford: Claredon, 2015. 2v.
HOMERO. Ilíada: de Homero. Tradução de Haroldo de Campos. Introdução e organização
por Trajano Vieira. 5. ed. São Paulo: Arx, 2008. 2 v.
HOMERO. Odisseia. Edição bilíngue. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. Ensaio
de Italo Calvino. São Paulo: Editora 34, 2011. 816p.
KERÉNYI, Karl. Arquétipos da Religião Grega. Petrópolis: Vozes, 2015. 359p.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English lexikon. Revised and Augmented
by Henry Stuart Jones with the Assistance of Roderick McKenzie with the Cooperation of
many scholars. With Revised Supplment. Oxford: At the Claredon Press, 1996. (2042p. + 45p.
+ 320p. + 31p. = 2438p.).
LYRA GRAECA. Sappho and Alcaeus. Edited and Translated by David A. Campbell.
Cambridge (MA); London: Harvard University Press, 1990. v. 1. 492p. (Loeb Classical
Library).
LYRA GRAECA. Terpander, Alcman, Sappho and Alcaeus. Newly Edited and Translated by
J. M. Edmonds. London: William Heinemann; New York: G. P. Putnam’s Sons, 1922. v. 1.
459p. (Loeb Classical Library).
MORWOOD, James; TAYLOR, John (eds.). Pocket Oxford Classical Greek Dictionary.
Great-Bretain: Oxford University Press, 2002. xii, 449p.
NILSSON, MARTIN P. A History of Greek Religion. 2. ed. Translated from the Swedish by F.
J. Fielden. Oxford: At The Clarendon Press, 1949. 316p.
NONNOS. Dionysiaca. With an English Translation by W. H. D. Rouse. Mythological
Introduction and Notes by H. J. Rose. And Notes on Text Criticism by L. R. LIND.
Cambridge (MA): Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd, 1940. v. 2.
547p.
ORGOGOZO. Jeanine J. L’Hermès des Achéens (deuxième et dernier article). Revue de
l'histoire des religions, t. 136, n. 2-3, 1949. p. 139-179.
9

PEREIRA, Isidro. Dicionário Greco-Português e Português-Grego. 8. ed. Braga: Apostolado


da Imprensa, 1998. 1054p.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica: Cultura Grega.
11. ed. rev. e atual. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. v. 1. 720p.
PLATO. Platonis Opera. Tomus Ι. Tetralogias Ι-Π continens insunt Euthyphro, Apologia
Crito, Phaedo, Cratylus, Theaetetus, Sophista, Politicus. Recognoverunt brevique adnotatione
critica instruxerunt. Ε. Α. Duke; W. F. Hicken; W. S. Μ. Nicoll; D. Β. Robinson; J. C. G.
Strachan. Oxford: Oxford Press, 1995.
ROSSETTI, Livio. Introdução à Filosofia Antiga: premissas filológicas e outras “ferramentas
de trabalho”. São Paulo: Paulus, 2006. 440p.
RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003. 540p.
STOICORVM VETERVM FRAGMENTA. Chrysippi Fragmenta:Logica et Physica . Collegit
Hans von Arnim. Editio Stereotypa Editionis Primae (1903). Stuttgart: B. G. Teubner
Verlagsgesellschaft mbH, 1964. v.2. 348 p.
10
11

SOBRE UMA TRADUÇÃO DA BATRACOMIOMAQUIA

André de Sena Wanderley1

Resumo: O presente texto visa analisar algumas relações que podem ser estabelecidas entre o epílio
Batracomiomaquia, do Pseudo-Homero, com algumas epopeias anteriores da fase heroica grega, especialmente
no que toca à quebra dos códigos épicos tradicionais, para, em seguida, discutir aspectos teóricos e conceituais
referentes a uma tradução oitocentista da obra citada, feita pelo português António Maria do Couto (1778-1843),
publicada em 1835 pela Tipografia de R. D. Costa. Trata-se da primeira tradução do poema épico grego para o
português, que apresenta em suas entrelinhas uma série de aspectos conceituais tardios ligados à visão que o
neoclassicismo lusitano possuía da mímese, verossimilhança e Imitatio. Além da análise do imaginário
prescritivo que norteia a tradução de Couto, discutiremos elementos ligados ao epos à vista da intertextualidade.
Palavras-chave: Batracomiomaquia. António Maria do Couto. poéticas normativas.

Sempre que assisto aos atuais filmes de guerra e observo o exercício narrativo –
muitas vezes, vertiginoso – conflagrado pela movimentação de câmeras que buscam explorar
as batalhas pelos ângulos mais inesperados, automaticamente vem-me à mente o universo da
Ilíada e de Homero, um dos autores que melhor souberam descrever uma grande batalha. Ora
a câmera abrange o espetáculo pairando nos ares – e fruímos da mesma visão que teria um
olímpio que também participasse dos combates; ora está situada em meio aos guerreiros,
simulando movimentos corporais de luta, corrida, drible, enfrentamento – e parece que somos
nós que os efetivamos. Homero também já fazia isso, revelando magistralmente cenas de
guerra em panorâmica ou em close, com um pincel de base realista capaz de mimetizar o
universo das batalhas de forma tão meticulosa que havia quem, na Grécia antiga, o
conhecesse para aprender técnicas marciais de combate, como testemunha Platão em seu
diálogo Íon. Nesse diálogo, o filósofo tece uma lúcida crítica ao rapsodo homônimo, que lia o
universo poético da guerra de Tróia homérica como se também fosse uma lição técnica para
generais, um tratado sobre estratégia, tantos eram os conhecimentos e efeitos de realidade que
o cego aedo conseguia lhe sugerir.
Dentre as inúmeras características e particularidades que fazem da Ilíada uma das
maiores obras já escritas, é também a excelência no trato mimético/poético do imaginário ou
da experiência da guerra (afinal, o militarismo realmente fazia parte do dia-a-dia das pessoas e
até Sócrates foi soldado e lutou numa famosa batalha) que torna Homero um virtuose da
Literatura universal. As batalhas são ao mesmo tempo palco de onde avulta a real coragem e
virtude, e elevação a uma espécie de experiência divina, transcendente, de total encantamento
e entrega. Em meio ao painel grandioso, homens chegam até a lutar contra deuses, de igual

1 Professor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Email de contato:


andredesena.art@gmail.com
12

para igual. A elevação e simplicidade associadas ao verso épico homérico também assumem
características concretas na construção dos personagens e no panorama em que se
movimentam: heróis elevam-se diante dos simples, mas têm de se ater a determinados padrões
de honra que também visam trazê-los novamente a uma justa medida. A sublimidade catártica
da guerra é estimulada então pela linguagem, sendo esta uma das principais características do
epos homérico:

A distância do voo de um dardo comprido arremessado


por um homem que põe à prova a sua força num certame
ou na guerra, acabrunhado por inimigos sanguinários –
assim cederam os Troianos, empurrados pelos Aqueus.
Mas Glauco, comandante dos escudeiros Lícios,
foi o primeiro a voltar-se e matou o magnânimo Baticleu,
filho amado de Cálcon, que tinha sua casa na Hélade
e pela ventura e pela fortuna se destacava entre os Mirmidões.
Foi nele que Glauco desferiu um golpe no peito com a lança,
virando-se de repente, quando o outro tentava ultrapassá-lo.
Tombou com um estrondo; e um denso sofrimento tomou
os Aqueus, pois tombara um homem excelente. Alegraram-se
os Troianos e puseram-se em torno dele, cerrados. Sua coragem,
porém, não olvidaram os Aqueus: levaram a força contra eles.

Foi então que Meríones matou um homem armado dos Troianos,


Laógono, audacioso filho de Onetor, que era sacerdote de Zeus
do Ida e era honrado pelo povo como se fosse um deus.
Atingiu-o no maxilar, debaixo da orelha; e depressa o espírito
saiu dos meus membros e foi tomado pela escuridão detestável.
Porém Eneias arremessou a lança de bronze contra Meríones,
pois esperava atingi-lo enquanto avançava sob o escudo.
Mas Meríones fitou-o de frente e enviou a brônzea lança;
inclinou-se para a frente e atrás dele se fixou a lança
comprida no chão; a ponta da lança estremeceu...2

O público ouvinte era convidado a ‘participar’ da guerra graças a excelência mimética


e a elevação da trama poética vertidas em linguagem e performance pelos rapsodos, da mesma
forma como hoje a câmera de cinema se distende em movimentos abruptos com o intuito de
simular uma possível imersão dos telespectadores em suas aristeias visuais.
E se Homero conseguiu descrever como nenhum outro autor da Antiguidade os
cenários sangrentos das batalhas, transformando-os em matéria poética – não raramente, com
uma minudência que adentra, mesmo em meio ao sublime, os territórios do hiperrealismo e do
grotesco –, o que falar de Hesíodo com sua Teogonia, epopeia sublime sobre a geração dos
deuses, das coisas e fenômenos? Nela, uma espécie de aristeia cósmica se perfaz, em partos
divinos que também são gestados pelo ódio e violência, na exposição dessas entranhas
celestes, orquestrações sobre a forma e a essência do universo, indo muito além da anterior

2 HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2007. p. 337.
13

medida homérica. O cenário das batalhas se engrandece exponencialmente, toldando por


completo a escala, a physis e tekhné humanas, avizinhando o infinito, os elementos – como
deuses – passando a protagonizar os papéis antes destinados aos heróis:

Não mais Zeus continha seu furor e deste


furor logo encheram-se suas vísceras e toda
violência ele mostrava. Do céu e do Olimpo
relampejando avançava sempre, os raios
com trovões e relâmpagos juntos voavam
do grosso braço, rodopiando a chama sagrada
densos. A terra nutriz retumbava ao redor
queimando-se, crepitou ao fogo vasta floresta,
fervia o chão todo e as correntes do Oceano
e o mar infecundo, o sopro quente atava
os Titãs terrestres, a chama atingia vasta
o ar divino, apesar de fortes cegava-os nos olhos
o brilhar fulgurante de raio e relâmpago.
O calor prodigioso traspassou o Caos. Parecia,
a ver-se com olhos e ouvir-se com ouvidos a voz,
quando Terra e o Céu amplo lá em cima
tocavam-se, tão grande clangor erguia-se
dela desabada e dele desabando-se por cima,
tal o clangor dos Deuses batendo-se na luta.
Os ventos revolviam o tremor de terra, a poeira,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
dardos de Zeus grande, e levavam alarido e voz
ao meio das frentes, estrondo imenso erguia-se
da discórdia atroz....3

Tais versos, retirados da “Titanomaquia” da Teogonia hesiódica, dão uma mostra dos
novos embates cosmológicos que o epos bélico alcança ainda na fase heroica grega. O
homem, antes figura central em Homero, parece observar atônito o conflagrar de forças que
estão muito acima dele; se o logos hesiódico, pela senda visionária, por um lado organiza o
cosmos num devir contínuo em que presente, passado e futuro se entremesclam, por outro,
sugere o homem – diferentemente do aedo – como observador distante, personae mutae em
meio a fenômenos que o ultrapassam e são apenas entrevistos.
Se a epopeia helênica conseguiu chegar a esse nível de abstração e sublime, de que
maneira poderíamos, então, compreender e experienciar seu contrário absoluto, ou seja, um
poema herói-cômico como a Batracomiomaquia, que a tradição antiga referendou, talvez
jocosamente, como homérico? Em meio ao vasto panorama das guerras homéricas (sublime
humano) e hesiódicas (sublime divino), como compreender versos como estes, que relatam
batalhas entre ratos e rãs?:

Come-pão golpeou o ventre do Tagarela.

3 HESÍODO. Teogonia: A Origem dos Deuses. Edição bilíngue. Tradução e introdução de Jaa Torrano. 3 ed. São Paulo:
Iluminuras, 1995. p. 109.
14

Tombou de frente. A alma voou dos membros.


Goza-no-lago, quando viu Tagarela sucumbir,
feriu o frágil colo do Troglodita, antecipando-se
com pedra de mó. A treva cobriu os olhos.
Com dor, Manjericão avançou com aguda hasta,
não evitou lança contrária, logo caiu.
Lambe-homem mirou com alva hasta,
golpeou fígado, não falhou. Quando viu
Come-costo fugindo, caiu em penedos profundos.
Não se ausentou da luta, avançou contra ele,
caiu, não emergiu. O lago sujou-se de sangue
escuro e ele estendeu-se na praia
perfurado nas tripas, gordurosos flancos.
Come-queijo, nas mesmas margens, espoliou-o.
Calamoso, ao ver Cava-presunto, apavorou-se,
fugindo lançou fora o escudo, foi para o lago.
Irrepreensível Pé-na-panela matou Belezoca.
Goza-na-água matou o rei Come-presunto,
com golpe de pedra na testa. O miolo
escorreu do nariz. A terra sujou-se de sangue.
Irrepreensível Lamacento matou Lambe-prato.
Assalto de dardo. A treva cobriu os olhos.
Alho-poró, ao ver, puxou-o, morto, pelo pé,
no lago sufocou, segurando pelo tendão.
Rouba-resto defendia amigos mortos,
atingiu Alho-poró, que ainda não pisara a terra.
Caiu diante dele. A alma foi para o Hades...4

Mesmo em se utilizando de variados procedimentos, temáticas, epítetos e topoi


homéricos, o cômico inverte completamente aquele quadro sublime anterior para gerar um
estranhamento sui generis, pois a elevação do estilo e a retórica grandiloquente continuam,
mas estão associadas agora a animais que a tradição em geral afirma inferiores, sem vínculos
aparentes com as imagens e códigos da nobreza. Se o grotesco aparece de forma pontual e
episódica na Ilíada (como pausa do idealismo em imagens de forte realismo, contudo, ligadas
à areté guerreira) e na Teogonia (grotesco sublimado muitas vezes em imagens cósmicas), na
Batracomiomaquia ele se faz presente de maneira ostensiva, na quebra de códigos dentro do
próprio código épico que a um só tempo homenageia e esfacela.
A Batracomiomaquia é um epílio (poema épico) composto por 303 versos hexâmetros
datílicos, muito provavelmente uma obra helenística por conta de várias marcações
intertextuais, dados filológicos e, especialmente, pelos índices ligados à escrita erudita, que,
por exemplo, contradizem a oralidade dos tempos heróicos, como se observa já em seus
versos iniciais, da invocação: “Ao principiar, peço ao coro de Musas / vir do Hélicon a meu
coração pelo canto, / que recém pus em prancheta sobre os joelhos”5. Trata-se, em resumo, da
história de um rato que é convidado por uma rã para passear em suas costas num lago mas,

4 HOMERO. Batracomiomaquia: A Batalha dos Ratos e das Rãs. Edição bilíngue. Tradução e introdução de Fabrício
Possebon. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2003. p. 139.
5 HOMERO, 2003, p. 125 (grifo meu).
15

com o aparecimento de uma cobra, o passeio é desfeito, a rã mergulha em fuga e o rato acaba
se afogando. Um outro rato observa a cena e a comunica aos seus pares, gerando-se a
inamistosidade entre os dois ‘exércitos’. A ação se desenvolve em apenas um dia e tal
encolhimento cronológico também se associa às dimensões liliputianas dos ‘heróis’ em
contenda. Observemos alguns dos trechos criativos em que ratos e rãs se aprestam para irem à
guerra, respectivamente:

Primeiro ajustaram cnêmides bipartidas:


frangiram favas verdes, cobriram coxas.
Eles mesmos, a postos, as roeram de noite.
Armaduras de couros cobertos de cálamo
hábil prepararam com pele de doninha.
O escudo, umbigo de lâmpada. A lança,
aguda agulha, obra de Ares toda de bronze.
O capacete na cabeça, casca de grão-de-bico [...]6

Folhas de malvas cobriram coxas,


armaduras de belas acelgas verdes,
bem elaboraram escudos, folhas de couves;
cada uma ajustou longo agudo junco, lança;
chifres de finos caramujos cobriam cabeças...7

Embora se detectem inúmeros vínculos com a tradição épica, a exemplo da


representatividade das genealogias nobiliárquicas, dos discursos de chefes que corroboram a
tópica do encorajamento, a existência das assembléias guerreiras, dos catálogos etc., tais
vínculos são quebrados por conta da ínfima dimensão dos contendores e seus respectivos
armamentos e, também, pela iconoclastia em relação ao mítico a ela conjugada. Pois dessa
nova escala, muito inferior à humana, os deuses acabam por participar a contragosto. Quando
convidada, no Concílio dos deuses, a tomar parte de um dos lados da querela, a deusa Atena
se diz desmotivada: os sapos coaxam demais e ela perde noites de sono; os ratos lhes roem as
oferendas depositadas no templo. Mesmo assim, ela afirmará temer a bravura dos ‘guerreiros’
(“Eia, deuses, deixemos de socorrer, / não sejamos feridos por aguda agulha”8), gerando-se o
sentido do cômico por conta de uma inversão de escala, em seu temor por uma reles “agulha”,
ou lança diminuta. Destarte, a quebra dos códigos épicos anteriores aparece basicamente sob
quatro perspectivas, na Batracomiomaquia: a) na já discutida inversão de escala entre o que é
maior e menor; b) no pastiche e na paródia, que tratam de assuntos esdrúxulos com linguagem
e teatralidade elevadas, ressignificando invertidamente os temas e topoi de obras anteriores; c)
nas inversões da areté (por exemplo, a queda ou abandono do escudo são cantados como
esperteza; o rei das rãs, Bochechudo, mente, ao dizer que o rato Rouba-resto não se afogou

6 HOMERO, 2003, p. 133.


7 HOMERO, 2003, p. 135.
8 HOMERO, 2003, p. 137.
16

por culpa sua, mas por estar imitando o nado dos sapos; e o poema finda numa grande fuga ou
debandada, com os ratos – até então vencedores na batalha – sendo perseguidos pelos
caranguejos); d) pelas imagens grotescas, burlescas (a exemplo do rato que utiliza a cauda
como remo), que nos sugerem – numa licença crítica e poética – que a Batracomiomaquia
poderia ter sido escrita pelo personagem do soldado cômico Tersites, achincalhado por
Homero na Ilíada justamente por não ter respeitado os códigos guerreiros resumidos no
discurso de Odisseu.
De minha parte, estou entre os que observam tais quebras dos códigos épicos
efetivadas pela Batracomiomaquia como um jogo refinado de um poeta erudito em diálogo
criativo com a tradição. Num trecho da “Introdução” à sua excelente tradução desse epílio,
Fabrício Possebon (2003) nos diz que ele esteve durante muito tempo olvidado pela crítica e
pelos tradutores desde o período romântico por conta de uma exigência de originalidade típica
desse movimento. Contudo, é bom lembrar que, se por um lado, é certo que a
Batracomiomaquia assegura a Imitatio mesmo pela senda do cômico, por outro, a iconoclastia
ligada ao riso também poderia ser contemporizada como inaugural, inovadora, no mesmo
prisma romântico que assegura o liame entre os contrários, a famosa binomia, discutida
amiúde por inúmeros autores dessa série literária e, também, trabalhada em forma de ficção e
poesia autoconscientemente. Alfred de Musset (1810-1857), Álvares de Azevedo (1831-
1852), Victor Hugo (1802-1885), dentre inúmeros outros autores românticos, foram encontrar,
teoricamente, as raízes da binomia romântica nos gregos, graças às obras de Aristófanes e,
também, do Pseudo-Homero (Batracomiomaquia e o Margites). Como afirma, apenas para
citar um exemplo, Álvares de Azevedo em trecho do famoso “Prefácio” à “Segunda parte” da
Lira dos vinte anos (1853), ao defender o conúbio entre o sublime e o grotesco, o alto e o
baixo para a arte romântica:

Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde. É
assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois
de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain e
Don Juan – Don Juan que começa como Cain pelo amor e acaba como ele pela
descrença venenosa e sarcástica.9

Em outras palavras, os autores românticos serão os primeiros a descobrir o lado


dionisíaco do riso em meio ao logos clássico e, para isso, muito contribuiu a leitura que
fizeram de obras como a Batracomiomaquia, percepção que se verticalizará ainda mais na

9 AZEVEDO. Álvares de. Obra completa. Organização e Introdução de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
p. 191.
17

crítica literária precursora de Friedrich Schlegel (1772-1829) e nos estudos filosóficos de


Friedrich Nietzsche (1844-1900).
Dito isto, passaremos agora a discutir uma tradução da Batracomiomaquia efetuada
pelo professor português António Maria do Couto (1778-1843), publicada em 1835 pela
Tipografia de R. D. Costa. Trata-se da primeira tradução do poema grego para o português,
que apresenta em suas entrelinhas uma série de aspectos conceituais tardios ligados à visão
que o neoclassicismo lusitano possuía da mímese, verossimilhança e Imitatio. Não me deterei
nos aspectos comparativos e estruturais da tradução em si, mas antes numa breve análise do
imaginário prescritivo que norteia o trabalho de Couto, a qual buscará revelar como, em plena
etapa romântica, mesmo um autor de lastro classicista ainda incorrerá em certas inexatidões a
respeito da importância do epílio pseudo-homérico pelo viés do cômico.
De início, nas considerações introdutórias de sua tradução, Couto afirma a importância
das obras antigas como dignas de interesse e “imitação”, ou seja, já revela toda uma
motivação e modus operandi tipicamente classicistas:

He inutil fallar do mericimento das Obras do Principe dos Poétas Gregos, que, ha
vinte e nove seculos compostas, ainda se respeitão, e imitão, e admirão; isto a quem
ama do peito os Sabios, e as letras. Não he menos ocioso tãobem fallar do insano
trabalho, que dão em se traduzirem nas linguas vivas; ou tão pouco da mingua de
taes versões no Idiôma Portuguez, sendo aliás tão ricas as linguagens mortas em
similhantes modellos para o estudo, e imitação.10

Contudo, logo em seguida, define o epílio pseudo-homérico da seguinte forma: “He a


Batrachomyomáchia de Homero um Poemasinho Heróe-cómico, por certo não de grande
valía, apezar da sua originalidade, antiguidade, e fama do A. a quem se attribue”11. Se, por um
lado, o classicista parece indicar a “originalidade” em sentido positivo (o que se seria de
esperar de um romântico – noutro momento, falará mesmo num “fogo de imaginação”
presente em certas passagens do epílio, também de maneira positiva), logo trilhará uma senda
oposta, a sua principal, condenando a obra por esta ir, em inúmeros trechos de sua narrativa,
de encontro ao verossímil (e, assim, reafirma sua presença de classicista tardio). Sua primeira
motivação para traduzir o epílio não teria sido uma atração pessoal pelo escrito mas, segundo
afirma, o fato de que uma outra tentativa de tradução, em prosa, estava em curso, obra de um
poetastro (não nomeado) que provavelmente macularia o texto original, de complexidade
reafirmada. Dessa forma, observa-se, não apenas na tradução de Couto, mas também na

10 COUTO, António Maria do. “Introdução”. In: HOMERO. Batrachomyomachia, ou guerra dos ratos, e das rãas, poemeto
heroe-comico. Tradução e introdução de António Maria do Couto. Lisboa: Tipografia de R. D. Costa, 1835. Edição
organizada por Carlos Costa, Evelina Costa, Inês Semedo. Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa, Faculdade de Letras da
Universidade Portuguesa, 2007. p. 7.
11 COUTO, 2007, p. 9.
18

gênese empírica de seu trabalho, um viés plenamente academicista, de controle literário e


ideológico. Por díspar que possa parecer, Couto é bastante confessional em sua Introdução, ao
revelar o duro caminho para o conhecimento do grego, as intrigas e invejas despertadas pelo
seu sucesso, o envelhecimento precoce por conta do muito estudo, as lembranças tortuosas da
época de domínio napoleônico que vivenciou de perto etc, mas na elaboração da tradução
propriamente dita se mostra um fidedigno discípulo do universalismo e antisolipsismo de
Boileau (1636-1711) e Cândido Lusitano (1719-1773), como lemos numa nota:

Para adoçarmos o attrevimento da hyperbole, segundo o preceito de Quinctiliano,


inserimos o verso que vai em grypho: e perguntados, se o encarecimento tornando-se
incrivel sem algum salvo conducto augmenta o ridiculo, responderemos, que sem
verosimilhança elle perde todo o chiste, e sainete, sendo do nosso sentir o grande
Boileu [sic] na sua Poética, que diz = Il n’est beau que le vrai. = Só o verdadeiro he
bello.12

Couto relembra, por exemplo, o lendário sono de Homero, ou seja, os ‘erros’ de


composição ligados à verossimilhança que desde a Antiguidade lhe eram imputados,
amplificando-os ainda mais com a composição da Batracomiomaquia:

... Na verdade pareceo adormecer despregadamente, e com o somno interrompivel


de Jove, que tão magnificamente descrevêra na Iliada quando nesta pequena Peça (se
he composição sua, o que Plutarcho nega, e muitos outros AA. põem em dúvida)
rompendo todas as barreiras do verosimil, qualidade essencial da Fábula poética, e
que os preceitos mandão restrictamente observar, sem observancia dos quaes
mandamentos em Poesia, toda a composição não passa de hum méro apontoado de
versos pouco valiosos; faz Homero com que hum dos seus Heróes (são Ratos, e
Rãas) agarre no centro do conflicto em hum pedregulho tão pesado, e enorme “que a
terra gemia debaixo do pezo da mesma pedra.” Esta hyperbole, sobre attrevida he
como as desta feitura, improvavel, e incrivel, ainda que alguns criticos para
cohonestalla produzão alguns lugares paralellos de outros Poetas, v. g. a desforme
bengalla de Polyphemo em Virgilio ”trunca manum pinus regit”. Porém haverá
paridade entre uma Raã, e um Gigante? ainda que isto seja de proposito imaginado
para augmentar o ridiculo, que similhantes ficções exigem, elle perde todo o xiste, e
galantaria, logo que transpõe os limites da credibilidade e verosimilhança.13

Todo um jogo erudito de citações e intertextos é conflagrado, sempre buscando-se uma


credibilidade e verossimilhança tipicamente normativos e classicistas. Por outro lado, exige-se
forçosamente ao poema pseudo-homérico uma função pseudomimética que é definitivamente
contrária e excrescente à sátira, ao pastiche, à paródia e ao grotesco, e que novamente nos
revela todo o controle ideológico exercido em Portugal pelas instituições e mentalidades
classicistas ainda sólidas na terceira década do século XIX. Couto era professor régio de
grego e reitor do Liceu de Lisboa, reempossado neste cargo pelo monarca D. João VI após tê-
lo perdido durante a invasão napoleônica (se referia a Napoleão como “o Usurpador” e, nos

12 COUTO, 2007, p. 30.


13 COUTO, 2007, p. 11.
19

apêndices à sua tradução da Batracomiomaquia, tece amplos elogios ao Antigo Regime).


Apesar de esquecido na contemporaneidade, pode ser tido como um dos últimos bastiões
defensores da prescrição e das poéticas normativas em pleno apogeu do Romantismo europeu.
Essa busca por uma verossimilhança ideologizada, normativizada, chega por vezes à
influir na tradução do poema, como nos deixa entrever o próprio Couto:

... Quintiliano, que recommenda muito se adóçe o attrevimento das hyperboles


excessivas com as seguintes clausulas “se he possivel” podello-heis crer” seja-me
licito assim dizello” se o posso dizer” consinta-se me passar a expressão &c. cujas
expressões, e outras do mesmo jaêz são huns verdadeiros passaportes das
exagerações altivas. Tudo isto he doutrina seguida pelos melhores Hummanistas: e
por tanto eis o motivo porque em a nossa versão mollificámos a incredibilidade da
hyperbole; e se de Homero he o Poemêto, com a ingerencia do seguinte v/. n.º 304,
que he da nossa lavra, E posto ser Gigante lhe custára!* e que no seu proprio lugar
vai marcado com o signal, (*), e escripto em letra Italica.14

Num poema épico cujo efeito cômico é produzido justamente pela inversão e
exageração na escala entre o que é maior e menor, o tradutor visa “molificar” tais diferenças
(segundo sua visão, como já referido, dever-se-ia “sobresahir o ridiculo sem deturpar o
verosimil”15), tendo em conta a necessidade de se evitar as hipérboles ousadas, as metáforas
opacizadas, os desvãos excessivamente imaginativos, como ditavam as poéticas normativas
de décadas e séculos pretéritos.
Da mesma forma, o fim jocoso da Batracomiomaquia, que é plenamente coeso e
aparece como uma espécie de coroação de sua narrativa herói-cômica, a ampla debandada de
um exército antes vitorioso, é visto como errônea e cheia de incompletudes:

... o final parece não ter o seo devido termo, pois acaba de chófre, fazendo com que
se julgue incompleto; por maneira que se esta obrinha fôra no seo acabamento hum
pouco mais lidada, deixar-se-hião por isso mais longe dos tiros á Censura algumas
incorrecções, e falhas de colorido, que no mesmo opusculo se devisão ao luminoso
facho de huma crítica sãa, e artezoada.16

A necessidade de têrmo, a imposição de acabamento, são diversas, por exemplo, do


fragmento e do gosto rapsódico de importantes linhagens do Romantismo, vigentes desde o
século XVIII em países como Alemanha e Inglaterra. Graças ao seu instinto de depuração e
ânsia de clarificação iluminista, a Batracomiomaquia de Couto passa a ter 394 versos, muitos
dos quais, tentativas de se ‘corrigir’ as ‘incorreções inverossímeis’ do texto original. Se se
continuava a impôr tais freios dentro do próprio universo classicista, imagine-se a dificuldade
de se criar obras românticas em tal contexto! Traduções como esta agregam novas peças ao

14 COUTO, 2007, p. 12.


15 COUTO, 2007, p. 12.
16 COUTO, 2007, pp. 13-14.
20

mosaico do campo literário do Romantismo português, mais iluminista que experimentalista,


mais puritano e conservador que iconoclasta e outsider. A tradução da Batracomiomaquia
efetivada por Couto é outra prova de que o Classicismo normativista em Portugal adentrou o
século XIX muito além do que se costuma dizer e que, apesar do poema Camões (1825), de
Almeida Garrett (1799-1854), marco simbólico inaugural do movimento romântico luso, o
panorama vigente era mesmo do mais puro controle pela via artística.

Referências

AZEVEDO. Álvares de. Obra completa. Organização e Introdução de Alexei Bueno. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2000. 850p.
COUTO, António Maria do. “Introdução”. In: HOMERO. Batrachomyomachia, ou guerra dos
ratos, e das rãas, poemeto heroe-comico. Tradução e introdução de António Maria do Couto.
Lisboa: Tipografia de R. D. Costa, 1835. Edição organizada por Carlos Costa, Evelina Costa,
Inês Semedo. Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade
Portuguesa, 2007. Disponível em:
<http://www.fl.ul.pt/dep_romanicas/auditorio/Bibliotronica/PDF/Batracomiomaquia>. 37p.
pp. 7-19. Acesso em 14 de julho de 2016.
HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia,
2007. 503p.
____. Batracomiomaquia: A Batalha dos Ratos e das Rãs. Edição bilíngue. Tradução e
introdução de Fabrício Possebon. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2003. 166p.
____. Batrachomyomachia, ou guerra dos ratos, e das rãas, poemeto heroe-comico. Tradução
e introdução de António Maria do Couto. Lisboa: Tipografia de R. D. Costa, 1835. Edição
organizada por Carlos Costa, Evelina Costa, Inês Semedo. Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa,
Faculdade de Letras da Universidade Portuguesa, 2007. Disponível em:
<http://www.fl.ul.pt/dep_romanicas/auditorio/Bibliotronica/PDF/Batracomiomaquia> 37p.
Acesso em 14 de julho de 2016.
HESÍODO. Teogonia: A Origem dos Deuses. Edição bilíngue. Tradução e introdução de Jaa
Torrano. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. 121p.
PLATÃO. Íon. Tradução de Carlos Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 84p.
21

A RELAÇÃO ENTRE AS MUSAS HESIÓDICAS E O CONCEITO DE ALÉTHEIA

Lívia Maria da Silva1


Willy Paredes Soares2

Resumo: O trabalho relaciona a concepção mítica das Musas de Hesíodo à investigação etimológica, feita pelo
filósofo Heidegger, sobre o sentido da palavra grega alétheia. Em Heidegger, veremos alétheia não apenas com
o significado de “verdade”, hoje usado, mas com o sentido de “des-esquecimento”. Tendo isso em vista, busca-
se estabelecer relação do sentido de alétheia como “des-esquecimento” à função reveladora das Musas gregas,
que trazem os fatos do campo do esquecimento ao campo do conhecimento, tornando-os reais, verdadeiros. Para
isso, o trabalho contará com o estudo introdutório de Jaa Torrano à Teogonia de Hesíodo e, evidentemente, a
própria Teogonia de Hesíodo e a investigação de Heidegger, utilizando o método exploratório.
Palavras-chave: alétheia. Hesíodo. Musas Gregas.

Introdução
Considerando o aspecto misterioso e ambíguo das Musas com relação ao exercício de
sua função inspiradora de cantos, o presente trabalho relaciona a função das Musas de revelar
coisas verdadeiras ao conceito grego de verdade, a partir das reflexões heideggerianas a partir
de verdade e de alethéia.
O estudo dessa relação justifica-se pela recorrência com que vemos as Musas serem
pensadas como meras inspiradoras de feitos artísticos, bem como pelo fato de a cultura grega
ser base de nossa cultura, o que torna viável o paralelo entre as concepções atual e arcaica de
verdade.
A utilização do estudo introdutório de Jaa Torrano à Teogonia encontra-se diluída ao
longo do trabalho e tem sua importância pela seriedade com que nele o assunto é abordado e
pela sua riqueza de informações no que se refere ao contexto cultural em que a Teogonia está
inserida, apresentando a concepção arcaica da linguagem e de tempo e da natureza do canto.
Também possibilita a identificação as características das Musas que provêm das divindades
que lhes originaram (Zeus e Memória) e que se refletem no aedo ou poeta inspirado.

1. As Musas, a partir da tradição mítica de Hesíodo


Hesíodo inicia sua Teogonia com um hino dedicado às Musas. Por meio deste, o
poeta nos oferece várias informações acerca das deusas, do seu nascimento às suas
atribuições. Assim, segundo esta tradição mítica, as Musas nascem da deusa Memória em
união com Zeus, habitam o Hélicon e veneram, acima de tudo, a Zeus, cantando a ele e aos
outros deuses imortais.

1 Graduanda em Letras Clássicas, grego e latim, pela UFPB – ufpb.livia@gmail.com


2 Professor Adjunto da UFPB (CCHLA/DLCV), Doutor em Letras pela UFPB (PPGL) – willy-paredes@hotmail.com
22

Além disso, o Hino às Musas, proêmio da obra, nos oferece, também, informações
sobre as características das Musas, elas que fazem coros e, ao mesmo tempo, ensinam o belo
canto3. Dentre tais características, considerando o aspecto ambíguo dessas divindades,
destacamos as principais como sendo: Dizer muitas mentiras símeis aos fatos4; Dar a ouvir
revelações5; Inspirar o canto6; Cantar dizendo o presente, o futuro e o passado7.
Não se pode deixar de mencionar que esse caráter ambíguo das Musas é a base para
compreensão de relação, estabelecida no presente trabalho, entre a força delas e o conceito de
alétheia. Tal ambiguidade é evidenciada pelo poeta, a partir de três aspectos: 1. As Musas são
responsáveis por ocultar os fatos com mentiras a eles semelhantes, ao mesmo tempo em que
elas dão a ouvir revelações (coisas verdadeiras)8; 2. Apesar de as Musas dizerem “mentiras
símeis aos fatos”, elas são qualificadas pelo poeta como ’αρτιέπειαι, “verídicas”9; 3. A função
reveladora das Musas é executada tendo por base tanto o campo do desconhecido, quanto o do
conhecido, representando esse jogo entre o não-ser e o vir-a-ser, de modo que elas atuam sob
ambos os domínios, como pode ser observado nos versos a seguir:

Daí precipitando-se ocultas por muita névoa


vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apoio, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.10 (grifo nosso: negrito)

Tal passagem descreve o momento exato em que as Musas revelam a si mesmas,


após terem estado ocultas por muita névoa, para poderem revelar fatos, coisas verdadeiras.

3 HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2012. v. 22.


4 HESÍODO, 2012. v. 27.
5 HESÍODO, 2012. v. 28.
6 HESÍODO, 2012. v. 31.
7 HESÍODO, 2012. v. 38.
8 HESÍODO, 2012. v. 27-8.
9 HESÍODO, 2012. v. 29.
10 HESÍODO, 2012. v. 9-21.
23

2. A concepção mítica de linguagem, a partir das atribuições das Musas


Tendo em vista essas noções iniciais, compreendamos que a palavra grega Μουσα
11
(Musa) podendo significar “palavra”, “canto” remete à representação divina da palavra, do
canto. Dessa forma, encontramos no mito a ideia da linguagem como força cósmica
intermediada pelas divindades e, portanto, força presentificadora de fatos passados e futuros,
porque “o nome das Musas é o próprio ser das Musas, porque as Musas se pronunciam
quando o nome delas se apresenta em seu ser, porque quando as Musas se apresentam em seu
ser, o ser-nome delas se pronuncia”12.
Para que entendamos essa noção de “manifestação divina da linguagem”, precisamos
nos manter atentos ao contexto em que o poeta Hesíodo está inserido – o de uma cultura
baseada na tradição oral e de que, em tudo, a piedade grega arcaica incide. Sob essa ótica,
Torrano nos esclarece:

Um traço distintivo dessa concepção mítica de verdade como alétheia é que ela é um
dom dos Deuses, um dom das Deusas Musas, como aliás tudo o mais, sob o ponto de
vista da piedade arcaica. Sob essa perspectiva, todo fruto do esforço humano
necessariamente é visto como um dom dos Deuses. Também o trigo é visto como um
dom de Deméter. Não se pode esperar que o trigo frutifique nos campos,
negligenciados esses severos trabalhos e disciplina agrícola, cujo ciclo sazonal
Hesíodo descreve nos Trabalhos e Dias. Mas esse esforço disciplinado por severa
observância e cuidado ininterrupto seria vão, se não fosse coroado com o favor
divino e a Deusa não desse os seus dons em forma de espigas maduras. Assim
também a verdade é um dom divino que coroa o esforço de quem busca o
conhecimento da verdade como “revelações” de Musas.13

Isso quer dizer, nesse contexto, todo esforço humano necessita do favor divino para
ser executado. Por essa necessidade do favor divino – devemos sempre ter isso em mente –,
não existe para esses povos a noção de dissociação entre canto recreativo e canto religioso, já
que vimos que a palavra e o canto são manifestações intermediadas pela força das divindades.
Nesse sentido, no proêmio da Teogonia, a noção de linguagem é exposta na ação das Musas
ao ensinarem a Hesíodo o canto, ou seja a expressão divina da linguagem:

Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto


quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:14

11 “Μουσα, ης (‘η): I. muse; II. p. ext. 1 science, art; 2 chant; 3 parole persuasive”. In: BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-
Français. Paris Hachette, 2000.
12 TORRANO, Jaa. Musas e Ser. In: Teogonia - A origem dos Deuses. São Paulo: Illuminuras, 2012. p. 21.
13 TORRANO, Jaa. Mito e Verdade em Hesíodo e Platão. Letras Clássicas, São Paulo, n. 2, p. 11-26, 1998.
14 HESÍODO, 2012, v. 22-5.
24

Desse fator da palavra como expressão divina e do canto como conservador de uma
piedade arcaica, vem a noção de poder que aqueles povos conferiam à palavra proferida. O
que se soma a isso, elevando consideravelmente o poder conferido à palavra, é o fato de que é
pela noção mítica da linguagem como manifestação divina que se dá o surgimento das coisas,
pois é o canto que possibilita o surgimento de forças numinosas pela sagrada relação que o
nome tem com a coisa nomeada15.
Do nascimento das Musas, vemos que seu canto é executado com a consciência
cósmica de Memória e com a reta justiça de Zeus. Daí o poeta inspirado e os reis deterem o
poder de persuasão16. Quando as Musas ensinam o canto a Hesíodo, por exemplo, elas
conferem a ele o poder de proferir verdades e, ao canto deles, tal poder de persuasão. Isso
porque elas, ao inspirarem o poeta, o põem em contato com a Força Primordial que
transportam os fatos do campo do oculto para o revelado. Este poder é representado, na
Teogonia, e na cultura grega, pelo louro:

Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,


por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.17

Assim, as Musas, como representação personificada desse canto conferem ao


inspirado, por meio de revelações, o poder das palavras pronunciadas/cantadas, pois trazem os
fatos do campo do desconhecido para o campo do conhecido, das trevas para a luz, do
esquecimento para o não-esquecimento.
Nesse sentido, como quer Fátima Regis, “a memória do poeta é, portanto, uma
potência religiosa e confere à poesia o estatuto de palavra mágico-eficaz”18. Ou seja, no
contexto da tradição hesiódica, a memória não deve ser pensada como mera potência
psicológica humana, mas como potência divina que põe o humano em contato com a magia
do universo.

15 É interessante observarmos a relação existente entre palavra e o divino. Nesse sentido, vejamos o vocábulo logos: “termo
grego que significa ‘palavra’ ou ‘pensamento’. Usado na doutrina gnóstica para designar uma divindade no universo
manifesto. Tanto na magia quanto na religião, dá-se extrema importância à qualidade vibracional do som e ao poder da
verbalização”. In: DRURY, Nevill. o Dicionário de Magia e Esoterismo. São Paulo: Editora Pensamento, 2011. p. 212.
16 HESÍODO, 2012. v. 90.
17 HESÍODO, 2012. v. 29-34.
18 REGIS, Fátima. Memória e esquecimento na Grécia Antiga: da complementaridade à contradição. Logos. V. 4, n. 2, 1997.
25

Do mesmo modo que a memória deve ser entendida como potência religiosa, também
as “muitas mentiras” do verso 27 devem sob essa ótica serem interpretadas, pois, como quer
Torrano,
Retornando aos pseúdea: tal como Léthe, “Latência”, as “Mentiras” se inscrevem no
catálogo dos filhos da Noite como forma divina e aspecto fundamental do mundo.
Nesse sentido, pseúdea não é uma mentira que um homem diga porque decidiu
dizê-la, mas antes as mentiras que se impõem ao homem porque este homem
não pode ultrapassar limites próprios de sua condição e assim subtrair-se de
sua dependência daquela forma divina do mundo.19 (grifo nosso: negrito)

É dessa noção de poder dado à palavra entoada que surge a ideia de verdade, dos
gregos. Primeiramente, temos a noção de que os conceitos são sempre existentes, porém
mantém-se no campo do oculto até serem revelados por intermédio das Musas. E é ao ser
revelado que esse conceito torna-se verdade. Depois, temos a noção do poder de persuasão
que esse fato proferido tem, justamente por ter sido revelado a partir do favor divino das
Musas – o que complementa a ideia de verdade. Tais noções podem ser melhor entendidas ao
analisarmos a palavra grega alétheia.

3. Investigação etimológica, feita pelo filósofo Heidegger, sobre a noção de verdade, a


partir da palavra grega alétheia
Em seu vasto estudo, Heidegger analisa a verdade partindo do conceito corrente e
tradicional de verdade, para então pensá-lo a partir da noção grega de alétheia. Para expor a
noção corrente e tradicional de verdade, o filósofo começa por elucidar a noção de que o
verdadeiro é aquilo que está de acordo com alguma coisa ou com alguma proposição – ideia
já trabalhada em Aristóteles, como o próprio Heidegger mostra20, como também em Detienne,
que diz: “para nós, a verdade se define em dois níveis: conformidade com princípios lógicos e
conformidade com a realidade”21.
Assim, o filósofo começa por definir o verdadeiro em oposição ao falso, pondo-o
como real e, consequentemente, opondo-o ao irreal. Mas daí surge a problemática que ele
buscará resolver, quando ele expõe o seguinte exemplo: “o irreal passa pelo oposto do real.
Mas o ouro falso é, contudo, algo real”22. Daí a necessidade de pensar no ouro como autêntico
ou não autêntico e a necessidade de constatar a autenticidade, ou seja, verificar se suas
propriedades estão de acordo com o que se consideraria autêntico, pois “é a própria

19 TORRANO, 1998. p. 17.


20 ARISTÓTELES. Metafísica. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I. São Paulo: Editora Vozes, 2005. p. 280.
21 DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. p. 01.
22 HEIDEGGER, Martin.Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p. 155.
26

verificação de si mesmo que lhe assegura a sua verdade. No contexto fenomenal dessa
verificação, portanto, é que a relação de concordância deve tornar-se visível”23.
Tendo sido elucidada a noção tradicional de verdade, baseada no nosso senso comum
atual, Heidegger passa a introduzir a noção de verdade a partir da noção de aletheia:

O que se deve verificar é unicamente o ser e estar descoberto do próprio ente na


modalidade de sua descoberta. Isso se confirma pelo fato de que o proposto, isto é,
o ente em si mesmo, mostra-se como o mesmo. Confirmar significa: que o ente se
mostra em si mesmo. A verificação se cumpre com base num mostrar-se dos entes.
Isso só é possível pelo fato de que, enquanto proposição e confirmação, o
conhecimento é, segundo seu sentido ontológico, um ser que, descobrindo, realiza
seu ser para o próprio ente real.24 (grifo nosso: negrito)

Desse trecho vemos a interpretação do filósofo a partir da reflexão de a-lethéia como


des-encobrimento, que nos remete a ideia de que a coisa ou proposição é sempre existente e
que, por meio de força divina (aqui representada pelas Musas hesiódicas), é permitido
mostrar-se, des-velar-se. Isso porque “o velamento do ente em sua totalidade, a não-verdade
original, é mais antiga do que toda revelação de tal ou tal ente”25.
Pensar verdade como des-velamento é considerar a existência de domínios que se
complementam, o do “velamento” e o do “desvelamento”. E daí chegamos no caráter
ambíguo das Musas e de sua geradora, Memória: a partir de Heidegger, é impossível pensar
em memória sem refletir sobre a questão da manifestação como força cósmica, e sem
considerar a coexistência desses domínios citados, pois é um domínio que mantém e sustenta
o outro:

Mas o mistério esquecido do ser-aí não é eliminado pelo esquecimento. Este, pelo
contrário, dá ao aparente desaparecimento uma presença própria. Enquanto o
mistério se subtrai retraindo-se no esquecimento e para o esquecimento, leva o
homem imperial a permanecer na vida corrente e distraído com suas criações. Assim
abandonada, a humanidade completa ‘seu mundo’ a partir de suas necessidades e de
suas intenções mais recentes e o enche de projetos e cálculos.26

Tal ideia é comentada por Alexandre Rubenich – que, a partir de suas leituras em
Heidegger, observa que “é a reunião do pensar em torno daquilo que nos mantém, no sentido
do cuidado, do guardar e proteger. O que nos mantém e sustenta, todavia, é algo que se subtrai
ao nosso pensamento”27 –, como também por Jaa Torrano:

23 HEIDEGGER, 2005. p. 282.


24 HEIDEGGER, 2005. p. 286.
25 HEIDEGGER, 1999, p. 165.
26 HEIDEGGER, 1999, p. 166.
27 SILVA, A. R. Mnemosyne e Lethe: A interpretação heideggeriana da verdade. Archai, n. 13, jul - dez, p. 71-84. p.75.
27

O que passa despercebido, o que está oculto, o não-presente, é o que resvalou já na


reino do Esquecimento e do Não-Ser. O que se mostra à luz, oque brilha ao ser
nomeado, o não-ausente, é o que Memória recolhe na força da belíssima voz que são
as Musas. No entanto, Memória gerou as Musas também como esquecimento ("para
oblívio de males e pausa de aflições", v. 55) e, força numinosa que são, as Musas
tornam o ser-nome presente ou impõem-lhe a ausência, manifestam o ser-mesmo
como lúcida presença ou o encobrem com o véu da similitude, presentificam os
Deuses configuradores da Vida e nomeiam a Noite negra. O próprio ser das Musas
geradas e nascidas da Memória as constitui como força de esquecimento e de
memória, com o poder entre presença e ausência, entre a luz da nomeação e a noite
do oblívio. Porque as Musas são o Canto e o Canto é a Presença como a numinosa
força da parusia: este é o reino da Memória, Deusa de antigüidade venerável, que
surge da proximidade das Origens Mundificantes, nascida do Céu e da Terra (v.
135).28

Assim vemos, portanto, a verdade enquanto aletheia como aquilo que, as forças
naturais e divinas permitiram que deixasse se perceber, tendo escapado do campo do não ser
e, por intermédio da linguagem, vindo a ser perceptível, ou, simplesmente, vindo a ser.

Considerações Finais
Pelo estudo de Heidegger, nos foi possível uma noção mais abrangente do conceito
de verdade no contexto da poesia de Hesíodo, de modo a observarmos a função das Musas
sob a ótica de uma cultura oral, regida pelas noções de piedade. As ambiguidades quer na
caracterização das Musas, quer no entendimento de alethéia, nos leva a pensar o mundo, na
concepção grega arcaica, como forças opostas que se complementam para o exercício de
desígnios do campo do mistério, além do conhecimento humano – por isso o homem precisar
do intermédio e da inspiração das Musas para ter acesso às informações por elas reveladas.

Referências

DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013. p. 01.
DRURY, Nevill. o Dicionário de Magia e Esoterismo. São Paulo: Editora Pensamento, 2011.
p. 212.
HEIDEGGER, Martin.Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p. 155.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I. São Paulo: Editora Vozes, 2005. p. 280.
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2012. v. 22.
REGIS, Fátima. Memória e esquecimento na Grécia Antiga: da complementaridade à
contradição. Logos. V. 4, n. 2, 1997.
SILVA, A. R. Mnemosyne e Lethe: A interpretação heideggeriana da verdade. Archai, n. 13,
jul - dez, p. 71-84. p.75.
TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas: I. Discurso Sobre Uma Canção
Numinosa; II. Ouvir Ver Viver a Canção; III. Musas e Ser e IV. Musas e Poder. In: Teogonia
- A origem dos Deuses. São Paulo: Illuminuras, 2012.

28 TORRANO, 2012. p. 25-6.


28

TORRANO, Jaa. Mito e Verdade em Hesíodo e Platão. Letras Clássicas, São Paulo, n. 2, p.
11-26, 1998.
29

CARONTE E MENIPPO: TRADUÇÃO DO 22º DIÁLOGO DOS MORTOS

Jaynnoã Fernando Silva Lopes *


Willy Paredes Soares **

Resumo: Os Diálogos dos Mortos (NekrikoiDialogoi) de Luciano de Samósata, autor do século II de nossa era
que se distinguiu pela sua particular forma de escrever textos humorísticos servindo-se do gênero filosófico dos
diálogos, satirizam o post mortem antigo, tópos da tradição literária greco-latina. Luciano, nesta obra, põe em
diálogo personagens da mitologia, da história e também fictícias que se deparamcom situações esdrúxulas, diante
das quais não têm absolutamente ideia do que fazer. Por este artigo, propomos uma tradução, do Grego para o
Português, do 22º diálogo dos mortos, em que Caronte e Menippo discutem sobre o pagamento do porthmeion,
preço cobrado pelo barqueiro para atravessar os que chegam ao Hades.

Palavras-chave: Sátira. Luciano de Samósata. Diálogos dos Mortos.

Introdução
No fim do séc. I E. C., a aproximação dos romanos à cultura grega, resultante da
expansão do domínio de Roma sobre os povos helênicos e de cultura helenística, se mostrava
forte o suficiente para fazer crescer dentre os povos sob a égide do Império o desejo de
reproduzir e tentar recriar as formas áticas, que – no período clássico da cultura Grega –
atingiram seu apogeu de expressividade. Não obstante o domínio de Roma,os autores
serviam-se da própria Língua Grega, buscando fazer renascer o modo ático de se expressar,
especialmente na oratória e na retórica. Dá-se a esse movimento, que se alarga do fim do séc.
I E. C. ao séc. V, o nome de “Segunda Sofística”, expressão cuja menção mais antiga – pelo
que se sabe – está emFilóstrato, em sua Vida dos Sofistas.
O movimento contou com representantes como Plutarco, Pausânias, o próprio
Filóstrato, Dião Cássio. No entanto, em Luciano de Samósata, temos provavelmente seu
representante mais intrigante. Com efeito, embora persiga a expressividade ática, tanto no
vocabulário quanto no conteúdo, sua peculiaridade reside na postura de questionamento a
tudo o que se tem por certo ou habitual. Como observa o Prof. Murachco, há “essa dualidade
na obra de Luciano – a sua formação retórica e o exercício da arte por algum tempo, e a opção
pela filosofia, isto é, pela sátira moral, filosófica e social, expressas sobretudo sob forma de
diálogo...”29.
Desses diálogos satíricos, fazem parte os Nεκρικοί Διάλογοι [nekrikoi dialogoi] ou
DialogiMortuorum(título latino): Diálogos dos Mortos. Neles, Luciano satiriza o modo de
que a tradição enxergava o post mortem. Para isso, ele põe os mortos em diálogo, ora
*
Graduando em Letras Clássicas pela UFPB (jaynnoa_lopes@hotmail.com).
**
Orientador. Doutorado em Letras Clássicas pela UFPB. Professor Adjunto de Letras Clássicas da UFPB (willy-
paredes@hotmail.com).
29
LUCIANO. Diálogos dos Mortos. Versão bilíngue. Organização e tradução de Henrique G. Murachco. São Paulo: Edusp,
2007. p. 16.
30

personagens fictícios ora figuras ilustres. São retratados deuses, heróis e personagens míticos:
Hermes, Plutão, Perséfone, Pólux, Caronte, Cérbero, Heraclés, Diógenes, Ájax, Agamêmnon,
Antíloco, e também personagens históricos, reis: Alexandre, Filipe, Sócrates.
A obra é composta, ao todo, por trinta diálogos. Grande parte deles tem por
personagem ou por tema a figura de Menipo. Trata-se de uma referência a Menipo de Gádara,
tido por criador do gênero das sátiras menipeias. Essa personagem figura em onze dos
NεκρικοίΔιάλογοιe como que encarna o questionamento à concepção religiosa e mítica da
morte.Aqui, escolhemos traduzir o diálogo que, na edição de Karl Jacobitz, se intitula

“ΧάρωνοςκαὶΜένιππου” [KharōnoskaiMenippu]: “Caronte e Menipo”. Menipo, nesse

diálogo, se defronta com Caronte, o barqueiro responsável por fazer os mortos atravessarem o
Aqueronte para chegarem ao Hades. Esse é, portanto, um dos primeiros momentos de Menipo
no mundo dos mortos e julgamos que a discussão gerada pelo diálogo e a própria construção
dele ilustram muito fortemente o caráter satírico de toda a obra.
Assim, proporemos uma tradução operacional do diálogo, buscando deixar as
estruturas da tradução próximas o mais possível das gregas. No entanto, quisemos nos
afastarde artificialidades que pudessem travar a fluência do diálogo, o que quebraria o
desenvolvimento dinâmico que se nota no texto de Luciano. Antes, porém, apresentaremos o
texto original, que, na mencionada edição, que será por nós utilizada, é o 22º Diálogo dos
Mortos.
1 Texto Original de Luciano de Samósata:
[Διάλογος] Χάρωνος καὶ Μένιππου

Χάρων: ἀπόδος, ὦ κατάρατε, τὰ πορθµεῖα.


Μένιππος: βόα, εἰτοῦτόσοι, ὦ Χάρων, ἥδιον.
Χάρων: ἀπόδος, φηµί, ἀνθ᾽ ὧνσεδιεπορθµεύσαµεν.
Μένιππος: οὐκἂνλάβοις παρὰτοῦµὴἔχοντος.
Χάρων: ἔστιδέτις ὀβολὸνµὴἔχων;
Μένιππος: εἰµὲν καὶ ἄλλοςτιςοὐκοἶδα, ἐγὼ δ᾽ οὐκἔχω.
Χάρων: καὶ µὴνἄγξωσενὴτὸνΠλούτωνα, ὦ µιαρέ, ἢνµὴ ἀποδῷς.
Μένιππος: κἀγὼτῷξύλῳσου πατάξας διαλύσω τὸκρανίον.
Χάρων: µάτηνοὖνἔσῃ πεπλευκὼςτοσοῦτον πλοῦν.
Μένιππος: ὁ Ἑρµῆς ὑπὲρἐµοῦσοι ἀποδότω, ὅςµε παρέδωκέσοι.
Ἑρµῆς: νὴ∆ί᾽ ὠνάµηνγε, εἰµέλλω καὶ ὑπερεκτίνειντῶννεκρῶν.
Χάρων: οὐκ ἀποστήσοµαί σου.
31

Μένιππος: τούτουγεἕνεκα καὶ νεωλκήσας τὸ πορθµεῖον παράµενε: πλὴνἀλλ᾽ ὅ γεµὴἔχω,


πῶςἂνλάβοις;
Χάρων: σὺ δ᾽ οὐκᾔδειςὡςκοµίζεσθαι δέον;
Μένιππος: Ἤιδεινµέν, οὐκεἶχονδέ. τίοὖν; ἐχρῆνδιὰτοῦτοµὴ ἀποθανεῖν;
Χάρων: µόνοςοὖν αὐχήσεις προῖκα πεπλευκέναι;
Μένιππος: οὐ προῖκα, ὦ βέλτιστε: καὶ γὰρἤντλησα καὶ τῆςκώπης συνεπελαβόµην καὶ
οὐκἔκλαον µόνοςτῶνἄλλων ἐπιβατῶν.
Χάρων: οὐδὲν ταῦτα πρὸς πορθµέα: τὸν ὀβολὸν ἀποδοῦναί σεδεῖ: οὐθέµιςἄλλωςγενέσθαι.
Μένιππος: οὐκοῦν ἄπαγέµε αὖθιςἐςτὸν βίον.
Χάρων: χάριενλέγεις, ἵνα καὶ πληγὰς ἐπὶ τούτῳ παρα τοῦΑἰακοῦ προσλάβω.
Μένιππος: µὴἐνόχλειοὖν.
Χάρων: δεῖξοντίἐντῇ πήρᾳἔχεις.
Μένιππος: θέρµους, εἰθέλεις, καὶ τῆςἙκάτηςτὸδεῖπνον.
Χάρων: πόθεντοῦτονἡµῖν, ὦ Ἑρµῆ, τὸνκύνα ἤγαγες; οἷα δὲ καὶ ἐλάλει παρὰτὸν πλοῦντῶν
ἐπιβατῶν ἁπάντων καταγελῶν καὶ ἐπισκώπτων καὶ µόνοςᾄδωνοἰµωζόντωνἐκείνων.
Ἑρµῆς: ἀγνοεῖς, ὦ Χάρων, ὅντινα ἄνδρα διεπόρ θµευσας; ἐλεύθερονἀκριβῶς, κοὐδενὸς
αὐτῷµέλει. οὗτόςἐστιν ὁ Μένιππος.
Χάρων: καὶ µὴνἄνσελάβω ποτέ;
Μένιππος: ἂνλάβῃς, ὦ βέλτιστε: δὶςδὲοὐκἂνλάβοις.
2 Tradução do diálogo
30
[Diálogo] de Caronte e Menipo
Caronte: Paga, ó maldito31, as passagens32.
Menipo:Grita, ó Caronte, se isto te é mais prazeroso.
Caronte: Digo: paga!Em troca delas te passamos33.

30
Caronte e Menipo, nesse 22º Diálogo dos Mortos, entram em querela por causa da travessia do Aqueronte. O primeiro, que
é o barqueiro responsável por transportar as almas através do Aqueronte até o Hades, dá voz à visão tradicional do post
mortem; o segundo, que encarna Menipo de Gádara (autor satírico que viveu entre os séculos IV e III a. C.), põe em
questão tal tradição. Além de Caronte e Menipo, há Hermes, o condutor das almas – ψυχοποµπός – ao Hades.
31
No início do diálogo, Caronte se dirige a Menipo com o vocativo κατάρατε, adjetivo verbal de καταράοµαι. Já que o verbo
αράοµαι significa “dirigir uma imprecação” e está aqui prefixado por κατά, que lhe dá ideia de hostilidade, o adjetivo
κατάρατε qualifica alguém que é “passível de ser amaldiçoado”. “Maldito”, assim, nos pareceu a opção mais
conveniente, pois, além de manter o sentido de “amaldiçoável”, nem se mostra tão artificioso quanto seria esta opção nem
quebra a dinâmica do diálogo, visto que não desdobra um vocativo numa perífrase.
32
Os πορθµεῖα que se devem dar a Caronte para a travessia são o tema desse diálogo. Nele, Luciano traz à tona um explícito
questionamento à tradição de o morto dever pagar ao barqueiro um valor para ganhar o direito de ir ao Hades. O vocábulo
πορθµεῖον designa, por vezes, a própria travessia em água, mas – por metonímia – significa também o preço pago para
realizá-la. Por isso, para traduzi-lo, foi escolhida a palavra “passagem”, que – por uma metonímia semelhante – de “ato
de passar” estende seu sentido para o preço pago para passar.
33
O verbo utilizado é πορθµεύω, com o sentido da travessia reforçado pelo prefixo δια-. O substantivo a partir do qual se
constrói esse verbo é πορθµός, cujo radical também forma πορθµεῖον e que é utilizado estritamente para designar a
travessia por água, seja por rio, seja por mar. Como se verá, a utilização dessa raiz é recorrente ao longo do texto.
32

Menipo:Não poderias receber de quem não tem.


Caronte: Há alguém que não tem óbolo34?
Menipo:Se algum outro [não tem], não sei; mas, eu não tenho.
Caronte: Por Plutão! Com certeza vou te estrangular, ó impuro, se não pagares.
Menipo:E eu, batendo com teu bastão, vou dilacerar-te o crânio.
Caronte: Assim,em vão terias atravessado tão grande travessia35.
Menipo:Hermes te pague em meu lugar, ele que me trouxe a ti.
Hermes: Por Zeus! Sou mesmo muito afortunado, se tenho ainda36 que pagar pelos mortos.
Caronte:Não me afastarei de ti.
Menipo:Por isso mesmo, atraca o barco37 e, depois, fica aí; mas, se eu não tenho, como
poderias receber?
Caronte: E tu não sabias que era necessário trazer?
Menipo: Eu sabia, mas não tinha. E então? Por isso, eu não devia ter morrido?
Caronte: Então, só tu te gloriarás de completares a travessia de graça?
Menipo: De graça não, ó boníssimo, porque tanto tirei a água do barco quanto peguei no
remo e também, dos outros tripulantes, só eu não chorava.
Caronte: Tais coisas nada são em troca de travessias, é necessário pagares o óbolo, pois não é
permitido ocorrer de outro modo.
Menipo:Então,leva-me de volta à vida!
Caronte: Dizes gracinhas.Para que, por isso,eu receba pancadas de Éaco38.
Menipo: Então, não perturbes.
Caronte: Mostra o que tens no alforge!
Menipo: Tremoços, se queres, e a comida de Hécate39.
Caronte: De onde, ó Hermes, nos trouxeste este cão40? E que coisas ele falava ao longo da
travessia, rindo e zombando de absolutamente todos os tripulantes, cantando sozinho,

34
Este é o preço da travessia: um ὀβολὸς, uma moeda de pouco valor, equivalia à sexta parte do valor de uma dracma. Para
garantir que o morto pudesse fazer a travessia, um óbolo era colocado em sua boca para que o entregasse ao barqueiro do
Aqueronte.
35
Buscou-se manter, na tradução, o objeto direto interno que há no original, em que πλοῦν complementa o particípio perfeito
πεπλευκὼς, do verbo πλέω.
36
“Ainda”, além de conduzi-los até o Hades.
37
Usa-se aqui a palavra πορθµεῖον já em outro sentido. Ela, neste trecho, designa a embarcação, o meio por que se faz a
travessia.
38
Caronte aqui expressa o temor por Éaco, um dos três juízes dos mortos, que iria puni-lo, caso ele mais uma vez permitisse o
retorno de alguém do Hades ao mundo dos vivos.
39
Menipo levou ao Hades precisamente o que Diógenes, através de Pólux, lhe pediu no primeiro dos Diálogos dos Mortos:
τὴν πήραν ἥκεινθέρµωντε πολλῶν (o alforge cheio de muitos tremoços) e Ἑκάτηςδεῖπνον(comida de Hécate).
40
A palavra κύων designa Menipo não só nesse diálogo. No diálogo primeiro, já mencionado, entre Diógenes e Pólux,
Diógenes indica a Pólux que leve uma mensagem a “Menipo, o cão”. Mas, o exemplo mais significativo dos Diálogos
dos Mortos é na conversa que ocorre entre Menipo e Cérbero, na qual, se dirigindo ao cão que guarda o Hades, Menipo
diz: “sou teu semelhante, sendo eu próprio também um cão”. Na edição de K. Jacobitz, esse é o 21º Diálogo dos Mortos.
33

enquanto aqueles choravam.


Hermes: Não sabes, ó Caronte, que homem atravessaste? Inteiramente livre e nada lhe
importa.Este é Menipo.
Caronte:E, decerto, se eu te pegar uma vez...
Menipo: Se me pegares, ó boníssimo; mas duas vezes não pegarias.
3A crítica á superstição que aprisiona
Como se vê no texto, há duas vozes que se confrontam. Caronte é a voz da tradição,
por ele, se enuncia no diálogo a visão religiosa imperante do post mortem, especificamente no
concernente à necessidade de o morto levar consigo o óbolo para poder chegar ao Hades. Os
vivos devem prestar-lhe a ajuda de lhe pôr na boca um óbolo, sem o que não alcançará
atravessar o Aqueronte. No entanto, não há no Hades benefício algum por que se possa pagar.
A compreensão de mundo dos mortos era, como se sabe, deprimentee Luciano assim o retrata.
Num dos diálogos (18º), ao conversar com Hermes, por exemplo, Menipo revela seu espanto
ao ver o estado de Helena, esposa de Menelau, cujo rapto foi a causa da Guerra de Troia.
Nesse contexto, em que, passando pelo crivo da razão, as convicções religiosas e
supersticiosas parecem não mais sustentar-se, Luciano, num tom jocoso, como é próprio da
sátira, dá lugar, pela boca de Menipo, a outra voz:o questionamento da tradição.
As duas posturas, a do barqueiro e a do “cão”, se opõem inclusive na liberdade que
têm para agir e se expressar. Caronte se mostra refém do sistema de que faz parte, tão
habituado a repetir o procedimento de receber o óbolo e atravessar os mortos, que não
consegue imaginar a quebra desse protocolo. Ao deparar com a possibilidade de alguém não
ter o pagamento, indaga surpreso: “Há alguém que não tem óbolo?”. E, depois de Menipo
revelar que não tem o que pagar, o barqueiro sabe menos ainda como lidar com tal situação e,
irritado, começa a ameaçar o morto. Em seguida, confirmando estar preso à repetição da
travessia em troca do óbolo, revela o motivo de não poder encontrar solução para o problema
que se lhe apresentou: “não é permitido ocorrer de outro modo”, em Grego: οὐθέµις [u
themis]. A reflexão e a ação de Caronte só pode ir até onde os deuses, seus superiores, lhe
permitem: essa é a θέµις, à qual não pode escapar. Mais à frente, reitera que sua ação está
limitada pela supervisão de seus superiores:depois de negar a possibilidade de Menipo
atravessar de graça para o mundo dos mortos, também recusa levá-lo de volta à vida, para
evitar a punição de Éaco.
Por sua vez, Menipo é ἐλεύθεροςἀκριβῶς [eleutherosacribōs], “inteiramente livre”.
Por isso, não mostra reservas em enfrentar o barqueiro, a quem devia reverenciar, nem se
acanha em transferir o problema para Hermes, o deus condutor das almas, resolver: “Hermes
34

te pague em meu lugar, ele que me trouxe a ti”. Porque é livre, Menipo pode inclusive
questionar Caronte, o que faz o tempo todo, acerca, é claro, da superstição cuja inconsistência
Luciano busca evidenciar.
Conclusão
Todo o texto do 22º Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, põe em questão a
concepção religiosa do pagamento do óbolo. Dentro da obra, que – de modo mais abrangente
– ressalta a falta de fundamento racional para as práticas e ideias religiosas relacionadas ao
post mortem, o diálogo entre Menipo e Caronte representa o questionamento a um desses
aspectos.
Portanto, apesar da concretude do que é questionado (o óbolo que se deve ao
barqueiro), a sátira feita por Luciano encerra pareceres mais profundos. Através dela, são
contrapostos o cínico (que se porta como κύων [kyōn]: “cão”, ao desconsiderar as convenções
e convicções que o cercam) e o tradicional (que transmite e repete o que lhe foi dado). Para
Luciano, o cínico é livre, o tradicional está preso ao que tem de repetir, sem indagar-se sobre
os fundamentos do que faz.
Referências

BRANDÃO, Jacynto Lins. A poética do Hipocentauro: Literatura, sociedade e discurso


ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
LUCIANO. Diálogos dos Mortos. Versão bilíngue. Organização e traduão de Henrique G.
Murachco. São Paulo: Edusp, 2007.
LVCIANVS. LucianiSamosatensis Opera. Exrecognitione C. Iacobitz. Vol. 1. Lipsiae, 1983.
Disponível em: <https://archive.org/details/lucianisamosate03lucigoog>. Acesso em: 10 fev.
2017.
SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. A Segunda Sofística. Mímesis. Bauru, v. 29, n.2, p. 151-
167, 2008.
35

O MITO DE ER: UMA BREVE INTRODUÇÃO E MÉTODO DE TRADUÇÃO DO


LIVRO X DA REPÚBLICA

Bruno Pontes da Costa1

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade executar uma Tradução Comentada do mito de Er no Livro X,
da República de Platão, que como último livro da obra, desenvolve-se primeiramente, na justificativa da poesia
ser banida da πόλις (cidade) grega, e logo em seguida, expõe o relato mítico do virtuoso Er, que após sua morte
em guerra, ressuscita e lhe é permitido uma visão do que acontecera com as almas após a morte, numa reflexão
de justiça e juízo, tal mito, objeto do corpus a ser traduzido encontrado nos versos 614b – 614e da obra platônica
citada. O trabalho também se desenvolverá em três partes: a primeira trazendo uma introdução à República de
Platão e as peculiaridades do livro X, na segunda, explicando o método e a metodologia como instrumento
hermenêutico e por fim, na terceira parte, a tradução, com suas observações analíticas e comentadas. Este estudo
visa metodologicamente manter um espelhamento mais próximo da estrutura morfossintática do escopo
escolhido, identificando as principais observações relativas aos usos contínuos de verbos nos modos Particípios,
Infinitivos e Optativos, como instrumentalidade de auxilio interpretativo.
Palavras-Chave: Platão. Justiça. Morte.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade executar uma Tradução Comentada do Livro X,
da República de Platão, que analisa o conceito de imortalidade da alma a partir de suas ações
em vida terrena e de seus posteriores julgamentos ad aeternum, que como último livro da
obra, desenvolve-se primeiramente, na justificativa da poesia ser banida da πόλις (cidade)
grega, uma breve introdução de conceitos e de valores filosóficos e culturais da época.
Logo em seguida, expõe sobre “o mito de Er”, onde razoavelmente esperançoso do
que acontecera com sua alma após a morte, recebe uma visão do que acontece após a morte.
Tal mito, que é o objeto do corpus a ser traduzido neste trabalho. Sendo assim, o trabalho
também se desenvolverá em partes para facilitar o entendimento metodológico e pedagógico
da tradução em pauta.
No primeiro momento, se fará uma breve introdução à República de Platão e as
peculiaridades do livro X, num segundo momento, verificar-se-á o método a ser utilizado pelo
tradutor-aluno e a metodologia (referencial teórico) como instrumento hermenêutico; e por
fim, a Tradução comentada e analisada durante todo o processo do projeto.
Este estudo visa metodologicamente manter um espelhamento mais próximo da
estrutura morfossintática do escopo escolhido, no caso, O Mito de Er de Platão, identificando
as principais observações relativas aos usos frequentes dos verbos nos modos Particípios,
Infinitivos e Optativos, como forma escolhida pelo filósofo e suas repercussões para nossa
língua vernácula.

1 Teólogo e Sociólogo, licenciando em Letras Clássicas (Grego e Latim), Mestre em Ciências da Educação e Teologia.
Universidade Federal da Paraíba, brunopontescosta@gmail.com.
36

I – Uma Introdução à República de Platão e as Peculiaridades do Livro X.

O livro IX finda o tema principal do livro A República, o tema da justiça. O livro X


apresenta duas partes, onde na primeira, desenvolve-se uma argumentação ad hoc e eloquente
que desqualifica a atividade do artista mimético. A segunda consiste no desenvolvimento do
argumento que afirma a imortalidade da alma, o próprio Mito de Er, escopo dessa tradução
comentada.
Na primeira parte, inicia-se o livro com Sócrates afirmando que de maneira alguma
pode se admitir a poesia imitativa, ela é uma “violência contra a inteligência” (595b).
Sócrates analisa a imitação reapresentando a teoria metafísica discutida alguns livros
atrás. Afirma que há apenas duas formas de ideias e que as aparências se distinguem em trás
níveis, que são graus de distância da essência das coisas. E sobre tal discussão se inicia o
livro.
Após análise sobre a µίµησις (imitação) ocorre uma transferência de discurso que se
translada para a imortalidade da alma, aqui defendida por Sócrates como uma possibilidade
argumentativa de que, se a alma é imortal, são sempre as mesmas almas que existem e a
natureza dela é muito bela e eterna.
A alma tem amor pela sabedoria, ela é “da mesma estirpe que o divino, o imortal e o
eterno” (611e). O livro X e, por conseguinte, A República, terminam com a bela exposição
sobre o mito de Er, o qual iremos analisar mais especificamente neste artigo.
Onde o virtuoso Er, depois de ter morrido em guerra teve seu corpo encontrado em
perfeito estado de conservação e ao ressuscitar após dez dias, e inicia sua narrativa do que viu
no mundo dos “mortos”.
Mostrando assim, uma narrativa carregada de símbolos e significantes sobre o
conceito de justiça e de imitação mítica, típico dos diálogos platônicos exposto por intermédio
do uso frequente dos verbos “possíveis”2, além de nos introduzir ao mundo clássico da
mitologia, literatura e da filosofia grega.
Utilizaremos uma hermenêutica baseada nas obras analisadas de Platão pelos
professores Jaeger3, Burnet4 e Paviani5, que auxiliará no desvelamento do Sitz im Leben6 do

2 No caso chamaremos possíveis os verbos no Optativo, Particípio e Infinitivo.


3 Werner Wilhelm Jaeger, filólogo alemão que teve como sua principal obra, Paidéia, publicada no Brasil pela primeira vez
em 1966.
4 John Burnet, classicista escocês, especialista nas obras de Platão da Universidade de Oxford.
5 Jayme Paviani, filósofo, cientista social e jurista, doutor em estudos clássicos, professor da UCS.
6 Expressão alemã acerca de traduzir ou interpretar a "definição na vida, pano de fundo, escrita no tempo". Modo histórico crítico
para chegar ao contexto em que um determinado texto foi criado, sua função e finalidade na época. Ao interpretar um texto,
o Sitz im Leben tem que ser tomado em consideração, a fim de permitir uma adequada compreensão do seu significado
evitando assim, o anacronismo.
37

escopo do mito em tradução.


Outrossim, a compreensão prévia do mito e da estrutura morfossintática do texto
corroboram para elaboração de uma tradução mais próxima da proposta acadêmica. Para as
Letras Clássicas e para a academia como um todo, onde a tradução comentada não deve levar
em consideração apenas o texto “per si”, mas, entender os motivos das escolhas de tradução e
seus desdobramentos para nosso idioma, como será apresentado no capítulo seguinte.

II – A Importância da Tradução como Instrumento Hermenêutico.

Para auxiliar na compreensão do texto investigado, neste momento, discutiremos sobre


o método e a metodologia aplicada nessa tradução. Sendo assim, utilizaremos como
referencial teórico e metodológico as obras dos professores doutores Henrique Graciano
Murachco7 e Juvino Alves Maia Júnior8, que norteiam a tradução de forma morfológica e
sintática para melhor compreensão gramatical da tradução e interpretação textual.
Inicialmente para tradução foi feito o levantamento léxico e morfológico oriundo do
texto acessado e extraído no sítio eletrônico do projeto perseus9, auxiliado
metodologicamente por intermédio do Dicionário Greco-hispânico da Editora Vox e as
gramáticas Gregas de teoria e prática nos cursos universitários do professor Juvino e a de
Língua grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional, de Henrique Murachco, todas nas
Referências Bibliográficas desta tradução.
Durante o processo de tradução foi percebido no diálogo platônico a constância das
formas verbais gregas nos modos Infinitivo, Particípio e Optativo, com a finalidade de
enunciar o discurso sob uma perspectiva de outrem não presente no diálogo, enfatizando
assim a impessoalidade do mito.

II.I – O Infinitivo.

No caso dos verbos no infinitivo, percebe-se uma necessidade da língua grega de se


adequar em suas orações subordinadas e reduzidas, que segundo Murachco (2001, p. 299):

Infinitivo é o verbo-substantivo. É a noção substantiva do ato verbal, também de uso


intenso em grego por trazer um significado mais concreto ao ato verbal. O infinitivo
não é uma forma verbal propriamente dita; semanticamente é a virtualidade, a

7 Henrique Graciano Murachco, doutor em Letras Clássicas, atualmente é adjunto da Universidade Federal da Paraíba, nas
áreas de filosofia antiga e do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas com ênfase em Línguas Clássicas, atuando
principalmente nos seguintes temas: língua grega, literatura, semântica, enunciado e diálogo.
8 Juvino Alves Maia Júnior, doutor em Letras Clássicas, atualmente é professor associado da Universidade Federal da
Paraíba, nas áreas de Letras, com ênfase em Grego e Latim.
9http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0167%3Abook%3D10%3Asection%3D614b
38

essência, a noção substantiva do verbo (processo ou estado). Por isso ele é um


substantivo e se comporta como tal. A denominação infinitivo [...] que os gramáticos
latinos traduziram por “infinitiuus”, isto é inflexionável. É assim que deve ser
entendido no latim e nas línguas românicas, por oposição aos modos finitos, isto é
flexionáveis. É uma denominação de cunho descritivista. Mas ela é verdadeira só no
grego; não é nem em latim nem nas línguas românicas.
Ou seja, o termo grego para o infinitivo não é formalista, é semântico, significando
algo que não diz a partir de si mesmo, como se não definisse claramente a ação, sem
determinar ou indicar, isto é, nele mesmo, ele não tem relação nem com o agente ou paciente.
No caso dos verbos εἶναι, καθῆσθαι, κελεύειν, no verso [614ξ], que apesar de se
apresentarem no modo infinitivo e pelo fato de não serem acompanhados de conjunção,
assumem um papel verbal de transitividade e pedem um sujeito no caso Acusativo e não no
Nominativo, criando assim Orações Reduzidas de Infinitivo (ORI) como característica comum
nos diálogos de Platão.
Essa denominação, contudo, foi perdendo seu conteúdo semântico também no grego,
porque no grego o infinitivo é verdadeiramente inflexionável, visto que o grego tem artigo e
que todas as funções exercidas pelo infinitivo, que é verbo-substantivo, são expressas pela
flexão do artigo.
Como substantivo, o infinitivo pode ter todas as funções do substantivo, mas ele é
invariável, não tem casos, diferentemente do latim, o infinitivo, sobretudo nas relações
concretas do diálogo do Livro X, nos auxilia na tradução criando e substituindo
morfossintaticamente nas formas verbais de Gerúndio e orações desenvolvidas para língua
portuguesa.

II.II – O Particípio.

No caso do Particípio, o professor Murachco (2001, p. 282.), diz:


Sobre cada tema podem ser construídos os particípios ativo, médio e passivo. O que
os particípios têm de próprio é o aspecto, isto é o tempo interno do processo verbal:
O particípio não tem tempo próprio, mas sim tempo relativo:
Construído sobre o tema do infectum (inacabado) marca simultaneidade com o
verbo da principal;
Construído sobre o tema do aoristo marca anterioridade em relação ao verbo da
principal, se é pontual, aoristo, ou posterioridade em relação ao verbo da
principal, se depende de verbo de movimento e intenção (vontade);
Construído sobre o tema do perfectum (acabado) mantém seu significado
próprio de ato acabado, terminado, sem nenhuma relatividade.

O particípio no discurso pode ter todas as funções do adjetivo, onde traduzido como
tal, sintaticamente assume as funções de sujeito e objeto e como adjetivo nas funções de
aposto, adjunto adnominal, predicativo do sujeito e predicativo do objeto direto. Fazendo com
39

que certas construções em português usam o infinitivo com preposição (em ou de) ou
gerúndio do verbo complemento, e, em grego exprime a mesma ideia pelo particípio em
função predicativa ou apositiva. Transformando assim algumas orações reduzidas de
particípio (ORP).
Como por exemplo, os particípios ἔχοντας, περιάψαντας, ἀπιούσας, que optamos por
suas traduções apenas de forma verbal desenvolvida ou como gerúndio, dependendo da
melhor aplicabilidade do verso escolhido, [ἔχοντας, ter], por portando ou tendo levado,
περιάψαντας, atar, por atando ou tendo atado, e [ἀπιούσας, partir] por partindo ou tendo
partido.
II.III – O Optativo.
Já em relação ao uso e emprego do Optativo, afirma Murachco (2001, p. 27-28.), que:

O optativo, por ser o modo do fato possível ou da atenuação da afirmação, isto é,


mais próximo da irrealidade, tem desinências secundárias e se traduz em português
ou pelo “imperfeito do subjuntivo”. Geralmente na prótase (desejo irrealizável-irreal
do presente) ou condicional simples na apódose (fato possível ou afirmação
atenuada). O optativo não exprime tempo; somente o aspecto, o que deve ser levado
em conta na tradução.
Nestes casos como em διαδικάσειαν [614ξ], ἔπραξαν, e διακελεύοιντό[614d], a
construção foi feita se desenvolvendo os verbos como por exemplo: ao invés de tendo ou
tinham, por tendo julgado, ou tendo ordenado, ou havia feito, tentando assim, manter os
verbos presentes o mais próximo possível para a ideia “irrealidade ou possibilidade” na língua
portuguesa.
Esse modo (irreal/possível) na língua grega nos conduz a traduzir certos verbos de
forma reduzida ou desenvolvida para manter o mais original possível o aspecto atemporal do
verbo, criando um discurso que não pode ser afirmado uma vez que o mesmo foi relatado por
outrem, como no relato do diálogo retomado sempre pelo ἔφη [disse], não se podendo
afirmar, típico dos diálogos narrativos de Platão.
Tal narrativa também trás consigo toda atmosfera mítica para sua interpretação, que
segundo Pierre Grimmal:

“Dá-se o nome de mitologia grega ao conjunto de relatos fantásticos e lendas cujos


textos e monumentos representativos nos mostram que estavam em voga nos países
de língua grega entre os séculos IX ou VIII antes de nossa era, época a que se
reportam os poemas homéricos, e o fim do paganismo10, três ou quatro séculos
depois de Jesus Cristo”. (GRIMMAL, 2010, p. 07).
Ainda em sua obra Mitologia Grega11, afirma a ideia que todas as vezes que se aborda
o estudo de um mito grego, nota-se que os textos que o descrevem apresentam um número
infinito de variantes e que, de acordo com as épocas, o mito não é de modo algum o mesmo.

10 Paganismo: religião pagã, em que se adoram muitos deuses. (N.T.)


11 Nas Referências Bibliográficas.
40

De certa forma os mitos viveram através dos tempos e se transformaram pelo


pensamento antigo, por várias vezes até nossos dias, e as gerações não lhes pediram para
expressar a mesma verdade a cada vez. De um modo genérico, pode-se admitir que os mitos
gregos atravessaram os tempos e se dividiram em três grandes momentos:
1. O de Idade Épica;
2. O da Idade Trágica;
3. O da Idade Filosófica.
Onde nossa tradução acaba se adequando ao 3º momento de interpretação e releitura,
ou seja, um mito de cunho e finalidade filosófica.
Sendo assim, a última etapa da interpretação é a própria tradução em si, ou seja, a
hermenêutica que é feita após uma leitura, histórica, mítica e filosófica do texto a se traduzir
gerando mais que uma tradução instrumental e sim uma tradução analítica como disposta em
todo o trabalho.
A partir disto, segue-se então a tradução textual analisada, de modo a corroborar com a
parte inicial sobre a introdução da obra Platônica da República, mais precisamente o Livro X,
nos versos 614b – 614e, e com os argumentos metodológicos e hermenêuticos da segunda
parte com breves exemplos verbais para elucidar a escolha do método de tradução e a visão
mítica e filosófica para auxiliar o processo tradutivo do texto.

III – A Tradução.

A tradução a seguir se desenvolve a partir das notas de aula e orientações do


Prof. Felipe dos Santos Almeida12, nas ministrações da disciplina de Língua Grega IV, do 8º
Período em 2015.2, do curso de licenciatura Plena em Letras Línguas Clássicas da UFPB e
tem como finalidade, uma observação crítica do texto a partir do escopo original em língua
grega.
O MITO DE ER
(Platão. República, livro X, 614b – 614e)
[614β] ἀλλ᾽ οὐ µέντοι σοι, ἦν δ᾽ ἐγώ, [614b] "Mas, entretanto," disse13 eu, "não a
Ἀλκίνου γε ἀπόλογον ἐρῶ, ἀλλ᾽ ἀλκίµου µὲν estória de Alcino, mas, a de um valoroso
ἀνδρός, Ἠρὸς τοῦ Ἀρµενίου, τὸ γένος homem14, Er da Armênia, da família de
Παµφύλου: ὅς ποτε ἐν πολέµῳ τελευτήσας, Panfílo15, que certo dia na guerra morreu. Ao

12 Professor do Curso de Letras Clássicas da Universidade Federal da Paraíba, doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Letras, mestre e graduado em Letras pela mesma instituição.
13 O uso do optativo é uma forma polida de exortação ao discurso, mais branda que um simples imperativo;
14 Ἀλκίνου γε ἀπόλογον ἐρῶ, ἀλλ᾽ ἀλκίµου µὲν ἀνδρός 'não a estória de Alcino, mas, a de um virtuoso homem', Há um jogo
de palavras entre Ἀλκίνου e ἀλκίµου que gera a homofonia entre homem virtuoso e virtuoso homem. Platão deve referir-
se a Alcino, rei dos Feácios, que aparece na Odisseia dando hospitalidade a Odisseu (Livros IX-XII).
15 τὸ γένος Παµφύλου “da família Panfilia ou da origem de Panfilo”, Originária da Anatólia, região onde havia algumas
colônias gregas. Na época em que Platão vivia, estava sob o domínio do Império Persa.
41

ἀναιρεθέντων δεκαταίωντῶν νεκρῶν ἤδη serem recolhidos, no décimo dia1617, os


διεφθαρµένων, ὑγιὴς µὲν ἀνῃρέθη, κοµισθεὶς cadáveres já putrefatos, encontram-no ainda
δ᾽ οἴκαδε µέλλων θάπτεσθαι δωδεκαταῖος ἐπὶ intacto; depois de ter sido enviado para casa,
τῇ πυρᾷ κείµενος ἀνεβίω, ἀναβιοὺς δ᾽ ἔλεγεν prestes já a ser cremado no décimo segundo
ἃ ἐκεῖ ἴδοι. ἔφη δέ, ἐπειδὴ οὗ ἐκβῆναι, τὴν dia18, estirado sobre a pira, ele tomou à vida,
ψυχὴν πορεύεσθαι e, ao reviver, relatou assim o que lá19 havia
visto. Disse20 que, quando sua alma partira,
ela viajou junto com muitas outras; e
chegaram num lugar extraordinário21,
[614ξ] µετὰ πολλῶν, καὶ ἀφικνεῖσθαι σφᾶς [614c] onde, na terra, havia dois abismos
εἰς τόπον τινὰ δαιµόνιον, ἐν ᾧ τῆς τε γῆς δύ᾽ contíguos e, no céu, por sua vez, na parte
εἶναι χάσµατα ἐχοµένω ἀλλήλοιν καὶ τοῦ superior, dois outros, do lado oposto. Havia
οὐρανοῦ αὖ ἐν τῷ ἄνω ἄλλα καταντικρύ. juízes22 sentados entre uma e outro23 que,
δικαστὰς δὲ µεταξὺ τούτων καθῆσθαι, οὕς, depois de julgarem, tendo ordenado que os
ἐπειδὴ διαδικάσειαν, τοὺς µὲν δικαίους justos seguissem a via superior da direita
κελεύειν πορεύεσθαι τὴν εἰς δεξιάν τε καὶ através do céu, atando os signos dos
ἄνω διὰ τοῦ οὐρανοῦ, σηµεῖα περιάψαντας julgamentos na frente, ao passo que os
τῶν δεδικασµένων ἐν τῷ πρόσθεν, τοὺς δὲ injustos, a via inferior da esquerda, portando
ἀδίκους τὴν εἰς ἀριστεράν τε καὶ κάτω, também esses, na parte de trás, os signos de
ἔχοντας καὶ τούτους ἐν τῷ ὄπισθεν σηµεῖα tudo o que haviam feito24.
πάντων ὧν
[614δ] ἔπραξαν. ἑαυτοῦ δὲ προσελθόντος [614d] Quando ele próprio se aproximou, os
εἰπεῖν ὅτι δέοι αὐτὸν ἄγγελον ἀνθρώποις juízes disseram que ele devia se tomar
γενέσθαι τῶν ἐκεῖ καὶ διακελεύοιντό οἱ mensageiro aos homens das coisas de lá e
ἀκούειν τε καὶ θεᾶσθαι πάντα τὰ ἐν τῷ τόπῳ. mandaram que escutasse e observasse tudo o
ὁρᾶν δὴ ταύτῃ µὲν καθ᾽ ἑκάτερον τὸ χάσµα que havia naquele lugar. Viu, então, que as
τοῦ οὐρανοῦ τε καὶ τῆς γῆς ἀπιούσας τὰς almas partindo, depois de submetidas ao

16 δεκαταίωντῶν “no décimo dia”, a recorrência do número dez e de seus múltiplos é um dos elementos pitagóricos que
permeiam a estória;
17 ἀναιρεθέντων δεκαταίωντῶν νεκρῶν ἤδη διεφθαρµένων “Ao serem recolhidos, no décimo dia, os cadáveres já putrefatos,
encontram-no ainda intacto”, a ausência de decomposição do corpo de Er durante esses dez dias simbolizaria o tempo em
que sua alma esteve a experimentar a vida depois da morte física Pode ser interpretada como uma menção implícita aos
episódios da llíada em que os corpos de Pátroclo (Livro XIX) e de Heitor (Livro XXIV) não se putrefizeram devido à
providência divina;
18 κοµισθεὶς δ᾽ οἴκαδε ... ἀνεβίω “depois de ter sido enviado para casa, prestes já a ser cremado no décimo segundo dia,
estirado sobre a pira, ele tomou à vida”, entre os Gregos, era costume cremar os corpos dos guerreiros mortos no próprio
campo de batalha O que Platão atribui aqui aos Panfilios, i.e., enviar o cadáver à terra pátria, era, todavia, um hábito
diferenciado dos Atenienses
19 ἐκεῖ “lá”, No outro mundo/mundo dos mortos/Hades.
20 ἔφη 'disse' - O sujeito do verbo é Er e toda narração feita por ele virá a seguir mediante uma série de orações reduzidas de
infinitivo subordinadas a ἔφη;
21 εἰς τόπον τινὰ δαιµόνιον “num lugar extraordinário”, a imagem desse lugar para onde as almas se dirigem (i.e., 'um
prado') também aparece nos mitos do Fédon (107d-e) e do Górgias (524a)
22 δικαστὰς “juízes”, se considerarmos a intertextualidade dos diálogos platônicos e cruzarmos as referências dos mitos do
Górgias e da República, poderemos dizer que esses juízes eram Minas, Radamanto e Éaco (Górgias, 523e-524a), embora
Platão aqui não os nomeie expressamente;
23 δικαστὰς δὲ µεταξὺ τούτων καθῆσθαι “Havia juízes sentados entre uma e outra” - a concepção do julgamento das almas
depois da morte é muito antiga e pode ter sido influenciada pela cultura egípcia sobre os gregos (Grimmal).
24 As estórias que são contados sobre o Hades, de que quem cometera aqui injustiças lá receberá punição, até então
ridicularizados, dirigem então sua alma ao receio de que sejam verdadeiras. Na trilogia dos mitos platônicos, presentes
nos diálogos Górgias (523a-524a), Fédon (l07d-e) e República, a questão do julgamento dos atos justos e injustos é
manifesta e cumpre um papel central no sentido estritamente moral dado por Platão ao mito. Demonstrar que o homem
injusto, mesmo que passe toda a vida sem ser punido e notado pelos homens, ao morrer receberá a pena merecida sob o
olhar indelével dos deuses, é necessário para que seja justificada suficientemente a tese central de Sócrates de que a
justiça, seja em si mesma ou no tocante ao que dela deriva, é infinitamente superior e mais vantajosa que a injustiça A
figura do juiz, por conseguinte, irá alegoricamente representar no mito a salvaguarda da moralidade platônica no além-
mundo;
42

ψυχάς, ἐπειδὴ αὐταῖς δικασθείη, κατὰ δὲ τὼ julgamento, para um dos dois abismos, um do
ἑτέρω ἐκ µὲν τοῦ ἀνιέναι ἐκ τῆς γῆς µεστὰς céu e outro da terra, enquanto, dos outros
αὐχµοῦ τε καὶ κόνεως, ἐκ δὲ τοῦ ἑτέρου dois, subiam da terra almas plenas de
καταβαίνειν ἑτέρας ἐκ τοῦ impureza e poeira, e desciam do céu outras
purificadas.
[614ε] οὐρανοῦ καθαράς. καὶ τὰς ἀεὶ [614e] As que chegavam a todo momento
ἀφικνουµένας ὥσπερ ἐκ πολλῆς πορείας mostravam-se como que vindo de uma longa
φαίνεσθαι ἥκειν, καὶ ἁσµένας εἰς τὸν λειµῶνα viagem, e, felizes por chegarem ao prado,
ἀπιούσας οἷον ἐν πανηγύρει κατασκηνᾶσθαι, acampavam tal qual num festival e as que se
καὶ ἀσπάζεσθαί τε ἀλλήλας ὅσαι γνώριµαι, conheciam saudavam umas às outras; as que
καὶ πυνθάνεσθαι τάς τε ἐκ τῆς γῆς ἡκούσας vinham da terra buscavam se informar com as
παρὰ τῶν ἑτέρων τὰ ἐκεῖ καὶ τὰς ἐκ τοῦ outras sobre as coisas do céu, e as do céu
οὐρανοῦ τὰ παρ᾽ ἐκείναις. sobre as da terra. Conversavam entre si,

Conclusão

O intuito deste trabalho de tradução é organizar metodologicamente os critérios e


métodos a serem utilizados em uma Tradução Comentada, como requesito de verificação de
aprendizagem para docentes e discentes em Letras Línguas Clássicas. Porém, não apenas isso,
mas, aprofundar o conhecimento teórico e prático da cultura e mitologia helênica, absorver
conceitos e valores do saber empírico da tradução pelo viés da análise morfossintática grega,
além de dirimir e construir textos próprios que mais se aproximem (espelhamento) do “pano
de fundo” do texto original grego.
Apesar de ser um mito, o escopo filosófico embasado pelos referenciais teóricos na
primeira e segunda parte deste trabalho, em nenhum momento nos deixou tentados a aceitar a
ideia de que os mitos tenham tido uma “forma primitiva” exclusiva, pois, os mitos gregos
sempre serão para nós, em algum grau, uma elaboração complexa, que exige a reflexão a seu
respeito, por ter começado muito cedo, concorreu para modificá-lo continuamente até os dias
de hoje.
Entendemos também, que um aprofundamento na língua e literatura clássica, nos
possibilita fazer melhores opções vocabulares que não destoam da realidade do mito e nem da
língua traduzida. Uma vez que a língua e os mitos não escaparam da evolução. Onde para
Platão, o mito não é senão uma forma recoberta e simbólica de verdades racionais.
Ao analisar a tradução, se pode perceber que a exegese realizada de forma a evitar o
anacronismo e o coloquialismo nos remete ao “método comparativo”, que repousa sobre o
postulado de que as ações do espírito humano são idênticas sempre, seja qual for o povo, seja
qual for o grupo étnico. Um mito grego ou romano pode ser explicado à luz de um mito
polinésio, africano, brasileiro ou nipônico. Um e outro respondem as exigências profundas do
43

pensamento humano, sem perder sua essência e seu significado.


Sendo assim, o papel da Tradução Comentada é de aproximar o leitor da realidade
filosófica, morfossintática e mítica grega, sem perder a elegância e o prazer da literatura
erudita em língua portuguesa, auxiliando assim, nas características mais difíceis de
compreensão para quem não é da mesma área acadêmica.

Referências

BURNET, J. Platonis Opera. Recognovit brevique adnotatione critica instrvxit. Oxford:


Oxford University Press, 1900–1902 [1999].
DICCIONARIO. Manual Griego: griego clásico-español. Madri: Ed. Vox, 1967.
GRIMAL, Pierre. Mitologia Grega. Porto Alegre-RS: L&PM, 2010.
JAEGER, W. Paideia. São Paulo-SP: Martins Fontes, 1995. P. 03-40
MURACHO, Henrique Graciano, e JUNIOR, Juvino Alves Maia. Grego: teoria e prática nos
cursos universitários. 3ª ed. Revista e ampliada. João Pessoa: Idéia/Editora Universitária,
2012.
MURACHCO, Henrique. Língua grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional. São
Paulo: Discurso Editorial / Editora Vozes, 2001.
PAVIANI, Jayme. Platão & A República. Coleção, Filosofia, Passo-a-passo; 28, Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003.
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0167%3Abook
%3D10%3Asection%3D614b-e. Acessado em 26/04/2016, às 20h.
44
45

JUVENAL E A SÁTIRA LATINA


Izabella Larissa dos Santos Santiago1

Resumo: O presente artigo centra-se na vida e obra do autor Juvenal (60? – 130?), levando
em consideração sua importância para o desenvolvimento da Sátira Latina. Buscou-se
identificar na sua obra, características que o diferenciaram de outros autores satíricos e que
demonstram sua importância para o alcance do apogeu do gênero, além de apontar aspectos
que o tornam relevante na atualidade. Juvenal viveu em um período no qual havia a falta da
liberdade de expressão, fato que influenciou em suas obras, pois teve de esperar o fim desse
período – com a morte de Domiciano (81 – 96) e o advento dos Imperadores da Casa
Antonina – para escrevê-las. Utiliza-se como Corpus a sua sátira X, pois foi encontrada de
forma mais completa em arquivos online. Analisa-se trechos da obra, relacionando-os às
características do gênero, ao contexto no qual foi escrita e aos conhecimentos obtidos sobre o
autor através do teórico Ernst Bickel (1982).
Palavras-chave: Juvenal. Sátira Latina. Sátira X.

Introdução

A Sátira é um dos mais importantes gêneros da poesia latina, pois mesmo que já
mencionado por Aristóteles e de conhecimento dos gregos, foram os romanos que melhor
souberam desenvolver e aprimorar o gênero. Além disso, é através dela que Roma é
questionada e dada a conhecer de maneira mais aproximada ao real: as suas críticas, o humor,
as reflexões feitas à respeito de Roma faz com que percebamos uma conexão com o agora. A
expressão pão e circo, por exemplo, que é um lugar comum entre os autores de sátira e remete
a forma pela qual se entretia a população romana, ainda dá luz ao nosso presente. Há uma
série de diferentes hipóteses que vão desde a origem do seu nome, até a sua conceituação. São
muitas as possíveis origens da palavra sátira, porém aqui, optou-se pelo lanx satura. Além do
mais, dar-lhe um conceito fechado torna-se difícil, por se tratar de um gênero livre no qual
cada autor impunha a sua forma de fazê-lo, mas através das suas características é possível
identificá-lo. Juvenal, apesar de ser o último escritor do gênenro na antiga Roma, foi de
grande importância, pois conseguiu fazer uma Sátira diferente da realizada por seus
antecessores, ele foi o que, de fato, apontou os problemas da sociedade romana e os
questionou. Exemplo da obra do autor, nesse trabalho tomou-se como base uma análise da sua
sátira X.

1
Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras/ Espanhol da UFPE.
46

1. A latinidade da sátira

A Sátira é um dos mais importantes gêneros da literatura latina, pois, segundo


Quintiliano (1996, v. 4, p.53-54) ela “é uma composição, na sua origem, puramente romana”.
Contudo, existe entre os estudiosos uma incerteza quanto a essa pureza, já que é claramente
perceptível nela, a influência de fontes gregas. Porém uma série de argumentos que mostram
uma limitação dessas influências apontam para a romanização do gênero. Por exemplo, o
caráter filosófico moral da sátira, é claramente uma dependência grega, porém sabe-se que, o
primeiro século do Império Romano é o da difusão cultural dos princípios da filosofia moral,
ou seja, ela se tornou comum, vista em várias partes da cidade; por tanto, sua influência na
sátira se deu indiretamente. Além disso, na Sátira, outros assuntos são tratados como os de
variedade, mistura e atualidade. Outro aspecto que desvincula a dependência grega do gênero
é a motivação dos assuntos que são tirados mais da vida do que da filosofia, ela surge como
oposição ao Helenismo em Roma. Além disso, na Sátira não há um equivalente grego, como
nos outros gêneros, o que há é a sua existência como elemento dentro da comédia, mas em
questão de gênero, ela é latina. Por tanto, a pureza tratada por Quintiliano é uma maneira de
acentuar a supremacia romana no gênero, frente às outras influências.
Quanto a origem, não há certeza de um momento exato, pois surge na mesma época
que as primeiras formas de poesia dramática. Segundo Barillari (1860 apud D'ONOFRIO,
1968, p.29):
“A sátira, poesia toda especial, que não tem origem, porque quase
confundida no sangue romano... a sátira, aquele sentimento instintivo
do ridículo, que sobressai no gênio da raça latina, se confunde com as
próprias origens da vida política, religiosa, e com as (origens)
rudimentares das Letras. Aliás, se devemos assinalar em Roma uma
vida literária nos primeiros cinco séculos, esta, sem dúvida, está ligada
à sátira, com todas as imperfeições e grosserias próprias da natural
aspiração daquele povo”.

A propósito do nome também há uma variedade de origens. Na citação a seguir, por exemplo,
Diomedes (apud D'ONOFRIO, 1968, p. 30) aponta quatro: sátyros; lanx satura; satura,
equivalente de farcimen e lex satura.

“A satura, entretanto, é assim chamada ou de Sátyros, porque, como


acontece na satura, eles dizem e fazem coisas ridículas e vergonhosas;
ou de um “prato cheio” de muitas e variadas primícias, que os antigos
camponeses ofereciam aos deuses por ocasião de festividades
religiosas: era chamada satura pela abundância e pela fartura...; ou de
um certo tipo de “recheio”, que, dizem, Varrão chamou de satura
porque repleto de muitos ingredientes... Outros acreditam que o nome
47

derive de uma lei, chamada satura porque, numa única súplica, inclui
ao mesmo tempo muitas coisas, como acontece na satura, composição
versificada, em que se encontram juntas muitas poesias”

Porém, de todos esses conceitos, o mais aceito é o da lanx satura, já que é o mais próxima da
realidade romana naquele contexto. O termo se refere a uma bandeja com os primeiros frutos
colhidos oferecida à deusa Ceres, em gratidão à satisfação. Voltando ao gênero, em 364 a.C.,
Tito Lívio (séc. Ia.C.), conta a importação da Etríria, feita pelo Senado, dos ludiones ou
histriones, pois uma peste assolava o povo romano e queriam com isso, apaziguar os ânimos
dos deuses e acabar com a peste. O povo romano aderiu a novidade. Assim surge a sátira
dramática e a literária a posteriori.
Além de múltiplas influências, a definição do gênero em um conceito fechado é difícil,
pois, segundo Albrecht (1997, p. 244) “cada autor vive em condições diferentes e tem uma
maneira absolutamente individual de escrever saturae”. Uma possível conceituação, segundo
Diomedes (apud D'ONOFRIO, 1968, p. 30) é a seguinte:
“Chama-se satura a um tipo de poesia cultivado entre os romanos.
Atualmente tem caráter difamatório, visando corrigir os vícios dos
homens, sobre os moldes da Comédia Antiga: escreveram este tipo de
sátira Lucílio, Horácio e Pérsio. Mas, outrora, dava-se o nome de
satura a uma composição em versos constante de uma miscelânea de
poesias, cujos representantes foram Pacúvio e Ênio.”

Ela é uma espécie de cronica social em versos e segundo as suas características, é


dividida em duas: a satura dramática e a sátira literária. A primeira consiste em uma
modalidade teatral rudimentar formada pela combinação de cantos fesceninos e danças
mímicas; essa modalidade nunca fora encontrada na expressão escrita. Já a segunda, trata de
composições poéticas narrativo-dissertativas ou dialogadas, que põe em foco pessoas ou fatos
para ridicularizar os vícios e defeitos de forma jocosa ou indignada. Ela não é um gênero
produzido apenas para entretenimento, possui um caráter introdutório ou educacional, pois ao
apresentar aos leitores a ridicularização dos vícios alheios, o autor da sátira acaba por afastá-
los desses vícios, aproximando-os da virtude.
Tanto uma modalidade, quanto outra, possui a zombaria como um de seus elementos
principais, explicação de assuntos variados em sua composição e a utilização da diversidade
de metros e de tons. A fonte de inspiração do autor está na vida, a exemplo disso verifica-se
que dificilmente encontrar-se-á no gênero um tema inspirado na morte. Expressava-se através
do ridículo, tendo como finalidade a moralização.
A sátira se opõe às mudanças sociais consequentes da assimilação romana do
48

helenismo, essa oposição se dá em vários campos desde o literário ao social. Na literatura os


satíricos criticam os declamadores de poemas épicos e trágicos, e banem a mitologia de seus
assuntos buscando um realismo em suas obras. Na filosofia, eles vão em contra os paradoxos
de algumas escolas da época, pois defendem o bom senso e o equilíbrio em todas as coisas.
Na religião, buscavam livrar a religião dos rastros deixados pela superstição e repudiavam o
fanatismo dos ritos orientais. No campo social, eles são contra a aristocracia do dinheiro e a
ascensão da classe média, ao mesmo tempo que alegam a decadência da nobreza. No campo
dos costumes, relatam a sua depravação na Roma imperial, que se deu pela assimilação de
costumes de outros povos.

2. Juvenal

Decimus Iunius Iuuenalis (60? - 130?) viveu entre o fim do século I e o início do
século II d.C., filho de uma família aristocrática, natural de Aquino, passou a maior parte de
sua vida em Roma. Último escritor do gênero da antiga Roma, foi autor de dezesseis sátiras e
com ele a sátira retórica alcançou seu apogeu. Em suas obras censurou os vícios da época e
escreveu sobre questões relacionadas à moral. Ernst Bickel (1982 apud MARTINS, 2009, p.
238) faz uma síntese da obra do poeta mostrando os aspectos pelos quais ele se diferencia de
seus antecessores:
“Juvenal não prevê na sua sátira crítica filosófica da cultura e dos
costumes como o faz Pérsio, tampouco trata, como Horácio, de erigir
na consciência pessoal o que há de humano no homem por meio da
ironia, mas sim libertar contradições sociais. A sátira de Juvenal é mais
uma luta interna contra certa classe social. Esse tipo de sátira coincide
muito com a de Lucílio, se bem que existem características que os
separam. Assim como Lucílio inclinou-se a satirizar quando já fazia 50
anos, por causa da corrupção dos costumes políticos, igualmente o
quadro moral da capital induziu a Juvenal em idade semelhante a
empunhar a pena. Entretanto em Lucílio, o aristocrata se abstém de pôr
sob o látego seus companheiros de classe, em Juvenal, porém, a classe
média se subleva com ira contra a corrompida classe superior e contra
tudo que lhe pertence e com ela se relacione. É claro que não era
possível na época de Adriano elevar na sátira os nomes de aristocratas
vivos. Mas a nobreza romana com a inclusão da corte imperial havia
demonstrado suficientemente no século I sua fisionomia prototípica, de
sorte que Juvenal podia encontrar nos tipos do passado mais recente
tudo o que em seu presente lhe parecia caduco e perigoso, repugnante e
depravado.”

Segundo o próprio Juvenal em depoimento, o objetivo da sua Sátira era “Os votos, os
temores, as iras, os prazeres, as alegrias, os tropeços, tudo o que os homens fazem, será
49

misturado no meu livro” (Saí. I apud D'ONOFRIO, 1968, p. 52). De extremo realismo, sua
obra não se limita a tratar apenas sua época, ele também caminha pelo passado, fazendo
censura aos vícios e defeitos de outros momentos.
Com relação ao contexto histórico, Juvenal viveu nos principados de Domiciano (81-
96), Nerva (96-98), Trajano (98-117) e Adriano (117-138); e teve que esperar a morte de
Domiciano e o advento dos Imperadores da casa Antonina para escrever suas obras, já que até
então predominava a falta de liberdade de expressão. Neste período tornou-se “permitido
pensar o que se deseja e expressar o que se pensa” (TACITO, Hist., I, 1, 6), os Imperadores da
época (Nerva, 96-98; Trajano, 98-117 e Adriano, 117-138) foram apontados por historiadores
e literatos como governantes justos e sábios, proporcionadores dos 40 anos de glória militar e
de prosperidade econômica ao Império romano. Mesmo com tais afirmações a corrupção da
sociedade romana na época imperial era um mal que vinha de outras épocas e que não era
fácil acabar com ela da noite para o dia. O autor se diz herdeiro de Lucílio e Horácio.
Suas obras são agrupadas em cinco livros: O I livro é composto por cinco sátiras que
abordam: na I A vocação do poeta satírico, na II a hipocrisia, na III os problemas da vida
citadina, na IV a prodigalidade e na V a tolice dos nobres e o parasitismo. O II livro comporta
apenas a VI sátira, sua temática gira em torno de considerações que o poeta faz sobre as
mulheres. O livro III apresenta três sátiras com os seguintes assuntos: VII a miséria sofrida
pelos homens de letras, VIII as características da verdadeira nobreza e a IX o problema da
devassidão. No livro IV, composto por três sátiras, o poeta aborta os temas: X a natureza dos
votos, XI o luxo excessivo e os prazeres da mesa, na XII o retorno de um ente querido. O
livro V é composto das quatro últimas sátiras que giram em torno de temas como: XIII o
remorso, XIV o valor do exemplo na educação, XV as superstições egípcias e a XVI com as
vantagens da carreira militar.
Em todas se percebe um tom áspero e agressivo, como uma estratégia de quem deseja
a correção através da acusação, exceto no IV e V livro, nos quais ocorre uma mudança no tom
aproximando-se do de Pérsio. Quanto à extensão, as sátiras mais curtas possuem 130 versos e
as mais longas 660; eles são permeados por um estilo carregado de retoricismo, mesmo que
monótono em alguns trechos, agressividade e de ornamentos utilizados pelo poeta para a
obtenção de alguns efeitos estéticos.

3. Sátira X

Na sátira X o autor trata da natureza dos desejos. O autor inicia a sátira falando dessa
natureza que ao fazer votos desprovidos de razão, o homem incomoda os deuses e ao atendê-
50

los, se manifestam contra ele. De todos os desejos que possui, acaba desejando a si mesmo e
se prejudicando. Nesse jogo entre desejar e receber, um observador pode encontrar muito para
chorar e também para rir: e Demócrito, no fundo, escolheu o partido certo (verso 1 ao 53).
Em seguida ele começa a falar dos desejos, apontando três: o poder, a eloquência e a
longevidade. Em meio a apresentação de cada um, Juvenal faz uma reflexão sobre o papel
desses desejos na vida do homem. Finaliza com um conselho, para que ele aprenda a controlar
o desejo, enfrentar os momentos da vida e aceite as suas próprias deficiências. A seguir um
pequeno resumo da obra:
Desejo ao poder: nessa parte ele utiliza o exemplo de Sejano, fala da sua queda e da
covardia do povo diante do que lhe ocorrera. Trata também da conveniência dele ter se
equivocado na sua manobra para obter o poder. Em seguida trata da sua condenação à morte
por Tibério, mas se fosse ele e não Sejano o condenado, o povo aceitaria a condenação. Ai
surge a ideia do Pão e circo (verso 81). Em seguida o autor utiliza os exemplos da morte de
Crasso, Ponpeu e César, como uma maneira de reflexão para ver se vale a pena esse tipo de
desejo.

Deseja-se eloquência: ele inicia narrando a ruina de Demóstenes e Cícero causada justamente
pela eloquência. Seguida de um questionamento sobre de que vale a glória militar? E mostra
os destinos de Anibal e de Alexandre.
Deseja-se longevidade: fala da importância de lembrar a é preciso não esquecer a
hediondez psíquica do velho, suas decadências morais e intelectuais, suas dores, seus
achaques, etc. Dando o exemplo de Nestor e Priamo e se eles não teriam tido mais vantagens
se houvessem morrido mais jovens. Faz outra vez uma reflexão contando a história de
Hipólito.
Conselho: Deve-se pedir que se tenha mente sã num corpo são, Embora, ao revés, tu
peças algo mais e prometas nos templos As entranhas e as lingüiças divinas dos porcos
brancos.
Peça um ânimo forte isento do terror da morte, Como quem põe o extremo espaço da
vida entre os dons da natureza, Como quem possa suportar alguns labores, Saiba não se irritar,
nada deseje e antes Creia melhores as provações de Hércules e as penosas tarefas Do que
tanto o prazer amoroso quanto banquetes, bem como as plumas de Sardanapalo. Eu mostro o
que podes encontrar em ti mesmo: o caminho Único da tranqüilidade certamente abre-se pela
virtude de vida. Não tens nenhum poder, Fortuna, se houver prudência. Nós, apenas nós, te
tornamos deusa, ó Fortuna, e te colocamos nos céus. (DA SILVA, 2013, p. 58).
51

Considerações Finais

Após a sintetização do gênero, e da vida e obra do autor em questão, chega-se a


conclusão de que tanto um, quanto outro, possuem relevância na atualidade. Gregório de
Matos, por exemplo é um grande representante da sátira. Ele com seus poemas de crítica ácida
sobre a sociedade da época, foi um grande representante do barroco brasileiro. Além disso,
hoje a sátira se tornou uma técnica, a exemplo da audiovisual, ou seja, a reprodução das
sátiras através da TV, cinema e internet, com o auxílio do jogo de imagens e sons que se
tornaram elementos fundamentais nessa nova forma de fazer sátira.
Quanto à Juvenal, muitos de seus versos de tornaram provérbios como: Difficile est
saturam non scribere, É difícil não escrever sátira; Dat ueniam coruis, uexat censura
columbas, A censura é indulgente com os corvos e se encarniça contra as pombas; Rara auis
in terris, Ave rara no mundo; e Panem et circenses, Pão e circo. Este último é um dos mais
famosos e é possível vê-lo em outros autores como José de Alencar (1865, Cartas de Erasmo)
“Cobiça e prazer, ‘panem et circenses’ – eis o que move as massas quando as desampara a
crença de liberdade e da dignidade popular”. E também Camilo Castelo Branco(1971, Cenas
da Foz) “Fui a casa, e aquietei o motim intestinal, como os imperadores romanos aquietavam
acanalha: ‘panem’, mas com manteiga, que os romanos não conheceram: o ‘et circenses’,
traduzi-lo em café com leite”.

Referências

CARDOSO, Zélia de Almeida, A literatura latina, 3ª ed. rev. - São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.

D'ONOFRIO, Salvatore, Os motivos da Satira, [S.I.], ed. Marília, 1968.

DA SILVA, A. A SÁTIRA X, DE JUVENAL. PRINCIPIA, 2, Nov. 2013. Disponível em:


<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/principia/article/view/8156/5937>. Acesso em:
19 Nov. 2015

MARTINS, Paulo, Literatura Latina, Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009.


52
53

A ORIGEM DO SIGNO E A EVOLUÇÃO DA CULTURA (A EVOLUÇÃO DO SIGNO


CULTURAL)

José Alexandre Ferreira Maia1

Minha proposição geral é, pois, esta: na Unidade Original


da Primeira Coisa está a Causa Secundária de Todas as
Coisas, com o germe de seu Inevitável Aniquilamento.(E.
A. POE)
Resumo: Neste artigo faremos uma análise semiológica da evolução do intelecto humano,pois a partir da
invenção do signo, o ser humano fez evoluir sua cultura única e universal. Ao lado da evolução de outros
mecanismos de sobrevivência, o signo cultural teria evoluídoem três fases que englobam o processo evolutivo do
ser humano. Na primeira faseteve início a sua semiose quando, saído da própria natureza, o signo é projetado na
mentehumana como ferramenta, é a faseindicial. Na segunda fase,com o aprimoramento do uso das ferramentas,
surge o signo produzido pela própria ação humana, é a faseiconográfica, na qual as artes e os artefatos se
desenvolvem. Na terceira fase surge realmente o signo cultural,que avança para uma fase puramente
simbólica,que só é existente na mente humana, o signo é utilizado comofala e escrita.E assimconsolidado, o
signo cultural seguirá sua evolução, através da qual tornará toda ação humana sobre a Terra inteligível.
Palavras-chave: Evolução. Signo.Cultura.

Introdução

O significado da palavra cultura permeia tão profundamente o significado de ser


humano eperfaz tão concretamente a história da espécie humana, que para estudá-lo, devemos
pensar em um projeto que o alcanceem sua concepção e origem. Não se trata da simples
adoção do método histórico para acompanhar a extensa diacronia que demarca o
aparecimento da cultura e sua evolução, trata-se de propor caminhos para a epistemologia do
signo,para melhor compreendermos sua natureza intelectual. Principalmente para podermos
identificar a cultura como a própria realização material do signo, como também,o impulso
intelectivo que nasceu no despertar evolutivo da espécie humana. Da sua natureza biológica,
selvagem, ao limiar da domesticação, o cérebro humano se tornou a única máquina apta para
compreender o Universo,e tudo começou com a criação do signo, que compreendemos como
a unidade intelectiva da realidade. Tal habilidadese transformou no fator principal de seu
êxito como espécie. Desde então, havendo intuído na sua fisiologia o plano de todo Universo,
dirige sua própria evolução.
A natureza cultural do signo é evidente por si mesma, porque é a unidade intelectiva
da consciência humana.Acreditamos que o processo de intelecção, ou a aquisição da
consciência, é algo que começa com a invenção do signo.
Para PEIRCE (2015, 74) o signo é“qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu
interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico,

1
Doutorado em Letras e Professor Associado na Universidade Federal de Pernambuco.
54

transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum.”//


A partir desta definição, entendemos queo signo é esta “qualquer coisa”, uma
invençãoeminentemente social, poisé um objeto inventado pela intelecção nascida no seio das
relações inter-humanas. Pressupõe-se quea origem e a evolução do signo,depois de
deflagradas,dependeram de uma ideia interpretante transformada em consciência coletivaque
jamais recuou ao seu total aniquilamento, nem ficou reduzida a uma consciência individual.
Como acrescenta PEIRCE

“Sem dúvida uma consciência inteligente deve entrar nesta série. Se a série de
interpretantes sucessivos vem a ter fim, em virtude desse fato o signo torna-se, pelo
menos, imperfeito. Se tendo sido determinada uma ideia interpretante numa
consciência individual, essa ideia não determina um signo subsequente, ficando
aniquilada essa consciência ou perdendo toda lembrança ou outro efeito significante
do signo”
A invenção do signo,pela nossa espécie,realização produzida e mantida por essa
consciência individual,praticamente nos separou do mundo natural, criando um mundo
exclusivamente humano, mas sua realização plena com a formulação do significado da ética,
ou seja, a realização da semioseper se, jamais resolveu o problema humano intrínseco:o de ser
essencialmente animal e de ter vivido por milhões de anos inconscientemente, sujeito às leis
da natureza, da realidade física. Por isto identificamos o signono seu modo original vinculado
aos ciclos metabólicos naturais de sobrevivência orgânica.
A incapacidade de extinguir definitivamente as forças nocivas da opressão e da
exploração nas relações humanas revela que a natureza animal fazdo ser humano eterno
partícipe de um mundo regido por leis aparentemente alheias a seu mundo cultural,
masinexoravelmentecondicionantes, ou seja, jamais foi banida a inconsciência. Para bani-la,
o esforço de toda sabedoria jamais teve êxito (conatusvanus). Ao primeiromamífero
intelectual, ou a um macho, ou a uma fêmeahomo sapiens, é devido o primeiro gesto
comunicativo geneticamente programado em demanda de uma compreensão, em respostaa
uma consciência. A evolução do signo concebido desde o primeiro instrumento
significativoempregado pelos ancestrais humanos, até a invenção do pensamento
científico,demonstra o quanto o signo está presente na estrutura fisiológica do cérebro
humano.
Até tornar-se culturalmente distinto o homem só alcançava com sua fisiologia as
impressões imediatas, até que foram percebidos, na própria natureza, sinais que ao longo de
milhões de anos se transformaram em signo. Aquela pedra arcaica tratava-se de um objeto da
natureza, mas foi percebida como um instrumento por um mamífero hominídeo, para
potencializar alguns órgãos do corpo limitado. O efeito da extensão corporal ocasionou a
55

imitação e o aprendizado. Este ato provocou a primeira intelecção em espécies hominídeas,


todaviasó se tornouunidade de um sistema de signo quando, além de seu emprego
instrumental,seu significado foi compreendido por outros indivíduos de sua espécie, ou seja,
quando sua compreensão ou seu significadofoi compartilhado e ele se transformou,ao mesmo
tempo, no próprioobjeto,na imagem deste objetoe no seu nome enunciado. Assim nasceu
neste objeto uma dinâmica simbólica e,sem o empregodas funções de cortar ou triturar, ou
seja,independentemente de sua natureza real, o signo pedra uniu em torno de si uma
comunidade inteirade interpretantes (uma família, um clã, uma tribo, uma nação) responsável
pela intelecção do seu significado.
Apreender o signo desde o seu primórdio intelectivo pode nos oferecer os subsídios
para entender este processo evolutivo.A investigação acerca da origem dosigno e seu efeito
culturalnos fornece um amplo panorama para nos orientar na compreensão do atual estágio
em que se encontra a cultura. No estágio em que é possível enunciar a existência de uma
cultura humana universal, colocando o ser humano como um ser inseparável em si mesmo,
pois trata-se de uma espécie, originada nas remotas regiões do planeta, cujo domínio alcançou
a totalidade da esfera terrestre 2apoiado em uma poderosa cultura de intelecção do signo.
Neste sentido podemos conceber o homem evoluindo como um primata antropoide em
duas etapas: pela via natural e pela via semiológica. Pela via da evolução natural,o homem e
todos os seres vivos realizam um processo de adaptação orgânica para sujeitar sua existência
ao meio. Ao longo das gerações,os organismosvão adquirindofisiologicamente morfologias
neurológicas, sensoriais e comunicativas para lidar com as leis físicas. Estas leis físicas
presentes em todo universo darão aos seres vivos de todos os reinos e espécies,inclusive as do
gênero homo,a oportunidade de vivenciá-las e de se adaptar a elas inconscientemente. Neste
sentido, avida poderia ser explicada pela capacidade do próprio universo de reordenar suas
leis e fazê-las funcionar organicamente. A evolução dos hominídeos nesta primeira etapa foi
conformea evolução de todos os seres vivos.
Na segunda etapa, pela via semiológica, depois da evolução natural que se prolongou
por milhões de anos, uma espécie do gênero homo sai do estado inconsciente, onde estão
confinadas todas as outras espécies, para um estágio de consciência,no qual ela passa a dirigir
sua própria evolução e, por intermédio do signo,adquire a habilidade detransmitir a
consciência a outros da espécie, capacidade que será culturalmente herdada por todo
indivíduo daespécie, produzindo um universo transcendente ao universo natural:a cultura

2
56

humana.
A Invenção do Signo Cultural
Cultura é uma palavra que etimologicamente subjaz ao verbo latino colo ere
coluicultumque se traduz por cuidar, preocupar-se, honrar. Aparece registrada porCatão no
livro do séc. III a.C intitulado De AgriCultura (Apud MORISSET&THEVENOT: 1961),que
enuncia um conjunto de atividades que o pater familiasdeveria ter sob seu domínio para
administrar sua propriedade. Além do conceito pedagógico registrado por Catão, entre as
múltiplas acepções da palavra cultura, tentamos identificar a que está associada àsdescobertas
de TYLOR (2005, 69) e seus aportes evolucionistas. Para ele cultura “é aquele todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade”.
Da nossa parte, comecemos por focalizar aquele salto que está por trás da criação de
todo este complexo cultural, que foi o primeiro passo para a criaçãodo signo. Isto se deu a
partir do momento em que ocorreu esta ação, a invenção de uma coisa ou um
objeto,instrumento ou artefato, cujo uso compartilhado logo o notabilizou, pois, este objeto
deveria ser nomeado e ensinado para significar uma coisa na sua ausência, pois o signo é um
objeto simulacro, funciona como uma réplica do objeto ausente na realidade, mas presente no
cérebro humano como compreensão ou significado. O signo é, em suma, a coisa que significa
outra coisa,compartilhada por mais de um cérebro humano e que, nos primórdios só foi
possível tornar-se real, quando uma coletividade complexa já estivesse constituída e, assim,
bastoua execução de um gesto ou a emissão de um som vocalidentificando este signo
inventado,paradesencadear a evoluçãoda cultura humana, aquilo que representa sua realidade.
Provavelmente, muito antes da criação do signo desenvolve-se na espécie humana a
criação da linguagem no auxílio da comunicação instintiva. HERDER (1987, 25)no século
XVIII já havia formulado a questão: “Terão os homens, entregues às suas faculdades naturais,
podido inventar por si mesmos a linguagem? ”
Atualmente sabemos que a comunicação e a linguagem ocorrem na natureza, entre os
seres vivos, de forma diversa e instintiva. A pergunta que formulamos hoje é a seguinte:
quando a linguagem humana conseguiu ultrapassar a comunicação instintiva ou impressiva e
alcançou a comunicação consciente e expressiva?
Terá sido, como queria HERDERatravés da sonorização das dores e das paixões, como
ele próprio havia sugerido:“Todas as poderosas impressões, e as mais poderosas de entre elas,
as dolorosas impressões do corpo e as fortes paixões da alma, exprimem-se imediatamente em
gritos, em sonoridades, em sons selvagens e não articulados” (idem).
57

A nossa hipótese é que a linguagem humana consciente só começou a se articular com


a invenção do signo. Para que serve o signo a não ser para tornar real uma realidade que está
ausenteque passa a existircomo a própria realidade? É atributo exclusivo da espécie humana
produzir signos em sua comunicação, na sua linguagem. Todas as espécies comunicam, todas
têm aparelhos e órgãos que executam tarefas de comunicação. Mas somentea espécie humana,
em uma de suas etapas evolutivas, descobriu o potencial significativo de sua elementar
estrutura comunicativa envolvendo tanto gestos, quantogritos ou grunhidos e depois
acrescentou algo mais a simples comunicação,tornou real a existência de algo que não estava
presente ao ato comunicativo, assim criou o signo que desencadeou a realidade humana.
Do ponto de vista da linguagem (SAUSSURE: 2012, 105) o signoé constituído pelo
significado e pelo significante. Esta concepção foi basilar para criação da Linguística
Estruturalista pois o signo verbalem sua estrutura sensorial elementar é dicotômico, representa
o enclave do significante sensorial(imagem acústica) ao significado que é a imagem mental.
Do ponto de vista pragmáticoestabelecido por PEIRCE (Op. Cit.: 63)“Um signo ou
Representámen, é um primeiro que se coloca numa relação triádica genuína tal comum
Segundo, denominado seu Objeto que é capaz de determinar um Terceiro que é seu
Interpretante”.
Assim, basilar para a criação da Semiologia Geral ou Semiótica, o signo é triádico. De
uma maneira geral, diferentemente da concepção saussuriana, o significado do signo é o
objeto representado, o significante é o representante do objeto, que é a imagem captada pelos
órgãos sensoriais e que, além de ser acústica, é gráfica e gestual. Um terceiro elemento de
significação é o interpretante,que é, na realidade,um novo signo que possui os meios
deintelecção que torna possível a eficácia do signo, a sua semiose, a sua consciência ad
infinitum, tornando real o seu objeto, ou seja, ele próprio.
Desde os primórdios, a realidade humana é forjada por signos, poisesta realidade está
representada na cultura que a perpetuou e que a fez evoluir.A realidade não significa nada em
si mesma, a não ser através dos signos culturais. O fato de vivermos em sociedade não nos
distingue de outras espécies, a vida em sociedade não depende da cultura, mas a vida em
sociedade pode gerar cultura, algo que só existe por força da significação, isto é, por força da
intelecçãoe conscientização do signo;e a espécie humana, por sua natureza inerentemente
social, foi a primeira a dar este salto evolutivo dentro do Universo e da Vida.
O Método Evolutivo
Todos os nossos estudos e experiências na tentativa de desenvolver uma epistemologia
do signo dentro da área da Semiologia da Culturatêm-nos levado a acreditar que, assim como
58

ocorreu com o Universo Físico e a Vida Biológica, a Cultura Humana também teve uma
origem, isto é, evoluiu a partir de um signo único. Um fato evolutivo levou o cérebro humano
a vivenciar esse momento cultural original. No sentido biológico, por exemplo, os seres vivos
partiram de uma únicamolécula de DNAque evoluiu e se diversificou em espécies. Os seres
vivos evoluíram de um estágio celular a outro, segundo recursos de adaptação e de
sobrevivência, sem os quais a evolução das espécies seria impossível. As mesmas leis
serviriam para a espécie humana.
Do ponto de vista da cultura, um fato único surgiu, gerando uma explosão imagética
que fez evoluir diferentes formas de sociedades humanas, pois,em todas elas, é fácil
identificar signos comuns advindos daquele único signo, a partir do qual se desenhou a
cultura humana.
Teoricamente,o Universo teve sua origem em uma única partícula e quando esta
partícula encontrou sua divisão, impulsionoua evolução quânticaproposta por Georges
Lemaitre e Max Planck. No Universotudo está sujeito ao arranjo incessante de partículase
ondas evoluídas da primeira que explodiu no Big Bang. Este movimento evolutivoteve origem
há treze bilhões e oitocentos milhões de anos. Toda partícula neste Universo está
continuamente se movimentando sob a força da gravidade, tudo está evoluindo.
A evolução da cultura teve início quando o cérebro humano evoluiu para entender as
condições em que a natureza evolui, foi quando o ser humano começou a se tornar íntimo da
própria criação do Universo. Trata-se do primeirosalto para a evolução da cultura, que até
agora comprovadamente, na Vida e em todo Universo, somente ocorreu com o cérebro
humano. E o que ocorreu no cérebro humano foi a disposição para operar com signos, isto nos
tornou a única espécie inteligente no Universo.
A evolução do Universo não depende da nossa existência, continuará evoluindo,
mesmo sem nós, como vinha acontecendo antes de nós termos adquirido a consciência de sua
evolução. Do Universo de partículas, fótons e ondasmagnéticas aceleradas pelo motor nuclear
que arranja a Matéria, que no planeta Terra arranjou a Vida; do primeiro ser vivo que
aproveita a energia da vida para povoar a Terra e do primeiro signo que o ser humano
inventou no despertar da consciência, evoluímos para desenvolver a intelecção da evolução do
Universo. A partir de nossa cultura, humanizamos a evolução. Esta evolução continuará sendo
abstraída e raciocinada, enquanto a cultura humana insistir em dominá-la, até onde os sentidos
humanos e sua cultura ousarem alcançar.
É possível deduzir que aevolução alcançará o seu fim, a sua extinção está refletida no
abismo da morte biológica, acreditamos que todas as coisas do Universo perecerão, até
59

mesmo a dinâmica do sistema de ondas eletromagnéticas aceleradas pela força da gravidade-


espaço-tempo se esgotará; todo esse complexo ordenado ao acaso ou pela vontade divina
cessará e as partículas serão dispersadas em virtude de uma força antagônica a ele, chamada
provisoriamente de energia escura. Mas é exatamente através dessa complexa estrutura
gravitacional de partículas e ondas, alterando e fazendo evoluir a matéria no espaço e no
tempo permanente e mutanteque o Universo evolui, transmitindo um complexo de
informações subliminares de uma geração a outra. As gerações que perecem passam para as
novas um legado: do ponto de vista do Universo, um legado quântico, do ponto de vista da
Vida,um legado genético,do ponto de vista daCultura, um legado semiológico. As novas
gerações, por sua vez, usam estes legados já como geração evoluída, que também está
destinada a perecer.
A teoria da evolução quântica do Universoparece estar em congruênciacom a evolução
da cultura humana. Para nossos sentidos culturalmente apurados e evoluídos, é impossível
aceitar que algo tenha surgido do nada. Então nos reportamos à origem e julgamos que esta
origem é única como oBig Bang ou o primeiro DNA, que na verdade, são apenas explicações
para satisfazer o nosso bom-senso científico: este é o ponto de onde devemos partir para que
possamos entender como e porque existimos, ou melhor, o Universo existe.
Partamos,então, de um fato cultural original, assim como o Big Bange o primeiro
DNA, o surgimento do animal humano, para a Ciência,partiu de uma espécie hominídea
original,Sahelanthropustchadensis. (fig.1 e 2).
Mas ainda não é este específico animal o criador da cultura. Entretanto, segundo
teorias amplamente sustentadaspor MICHEL BRUNET, foi a partir dele, há 7 milhões de
anos, que evoluiu a espécie humana, a espécie geradora da cultura. O fato cultural original
nasceu com o sucesso evolutivo deste primata hominídeo,mas só a espéciehomo sapiensfoi
deflagradora da cultura. Nenhuma outra espécie da família Hominidae realizou o salto cultural
de sucesso tão amplo.
Será então que, em algum momento, depois de dominar utensílios de pedra, o fogo e
manufaturar instrumentos, um indivíduo desta espécie despertou de umlongo estágio não
metafísico, em que se encontram todas as espéciese, como primeiro sera usar o signo,
vislumbrou a própria evolução e passou atransformar a selva que o oprimia em algo como
uma aldeia ou um jardim? Um deus o separou da natureza e o colocou num jardim?
Esse despertar evolutivo deu-se,primeiramente,em um indivíduo ou em vários ao
mesmo tempo? Que fatos e que informações foram transmitidas de um indivíduo a outro, de
uma geração a outra, que pudessem provocar o despertar da cultura no processo evolutivo das
60

espécies hominídeas? Em que época e em que região do planeta isso teria ocorrido?
De acordo com os fundamentos da teoria evolutiva, obviamente, tudo partiu de um
indivíduo.Um animal humano macho ou fêmea vivenciouo fato cultural primordiala partir do
qual uma mudança profunda ocorreu no seu cérebro.
O cérebro humano alcançou o grande sucesso evolutivo dentre os diversos organismos
vivos, é o “maestro” dos órgãos sensoriais. Éhoje, reconhecidamente, o maior êxito evolutivo
entre todas as cadeias evolutivas conhecidas na natureza. Mas o que teria provocado a
mutação semiológica deste indivíduo? O que Adão, ou Eva inventou, descobriu, para que,a
partir deste fato original, nos tornássemos animais culturais? Sem dúvida,seu cérebrojá estava
prestes a sofrer este salto.
Sem dúvida,este signo surgiu com a evolução das habilidades de manusear a
pedracomo instrumento e com o emprego complexo da comunicação oral e gestual. Sem
instrumentos,o signo nãoteria evoluído. A mão que vai polir a pedrae torná-la a matéria prima
da cultura humana, é a mãoevoluída queforjará o martelo, que forjará o cinzel e fabricará a
pequena flauta, que também erguerá gigantescos monumentos. Este signo seria também um
objeto manufaturado. Percebeu nosso primeiro intelectual, que o fato cultural poderia ser
transmitido a outros, porque ele havia se transformado em objeto e os instrumentos serviam
para produzir e reproduzir este objeto e foi assim que surgiu o artefato, isto é, o primeiro
signo.
A pedra foi sem dúvida a matéria do primeiro artefato, mas a tinta pode ter sido o
primeiro artefato significativo a projetar os primeiros signos nas paredes das cavernas, as
armas de pedra ou de ossotambém foram além de sua fisiologia e deram a entender, ou
melhor,passaram a significar poder e submissão, até chegarem a um estatuto de magia, pois
podemos questionar: o que significa para o leão suas garras e seus dentes caninos? Para o
elefante, seu tamanho gigantesco e sua tromba? Para a aranha, sua teia e seu veneno? Nenhum
indivíduo dessas espécies ou de quaisquer outras usaria a tinta para projetar desenhos,nem
esculpiria a pedra como signo daquilo que desejam. Para o animal humano o que significa seu
cérebro avantajado e suas mãos lidando com a pedra ou com a tinta, já instrumentos
significantesno paleolítico, provavelmente carregados de magia,quando foram esculpidos ou
desenhados nas cavernas seres idênticos, transcendentes aos seres da natureza, vistos e
desejados por ele?
No caso dos humanos,seus grunhidos e gestos foram se associando a cada objeto
esculpido e desenhado, ou seja, a cada objeto manuseado. Todo este processo envolvia uma
energia tão intensa que o objeto adquiriu uma espécie de encantamento, talvez por se revelar a
61

uns e a outros não. Os objetos mágicos devem ter sido os primeiros objetos de significação e
devem ter assegurado o primeiro grau de intelecção semiológica.
Entre os artefatos humanos mais antigos figuram estatuetas comoa Vênus de
Willendorf (fig. 3), datado entre 24.000 a. C. A 20.000 a. C. O domínio semiológico feminino
não é amplamente relatado pois ainda não foi amplamente identificado, mas seu início
demarca uma era correspondente ao fim do paleolítico e da hegemonia do caçador, era da
qualo último estágio está registrado nas pinturas rupestres e parietais. Neste interregno a pedra
passa de instrumento a escultura.
Este objeto cheio de significadocontinua sendo para Ciênciaum mistério e nisto está
sua maior importância. Por si só fica evidente que no paleolítico inferior alguns artefatos
tornaram-se signos, deixaram de ser apenas instrumentos. Este, em particular, reproduz um
acontecimento notável, um gesto cultural evolutivo que mesmo não sendo rigorosamente
identificado, pressupõe uma sequência evolutivaem relação às outras estatuetas pré-históricas
amplamente produzidas, também chamadas Vênus e a qualquer outro tipo de objeto
manufaturado na mesma época.
Teremos encontrado neste conjunto o primeiro signo humano, que circulou entre a
Europa e a Eurásia ao longo de pelo menos 30.000 anos? Será este o primeiro ícone do homo
sapiens? Ao lado dos instrumentos e utensílios, este foi sem dúvida o primeiro artefato a
incorporar as dimensões de um signo.
Essas Vênus representam uma evolução notável,revelam um novo perfil do homem
euroasiático paleolítico. Trata-se de um homem culturalmente dotado de valores simbólicos.
Sem dúvida, uma tradição se estabeleceu,evoluiu e conheceu o seu fim e deixou para geração
cultural seguinte o seu legado,mas não há como não admitir que uma dessas Vênus, a de
Willendorf ou a de Laussel (fig. 4), por exemplo, representasse a mãe da cultura. O nosso
grande salto cultural se deu com a ação de uma mulher que se transformou na Deusa-Mãe ou
Mãe-Terra?
Acompanhando sua evolução encontramos a Cibeleno Neolítico (fig. 5) e a Deusa das
Serpentes (fig. 6) na Creta da era do bronze,com os seios saltando elegantemente sobre um
esplêndido vestuário. Os nossos ancestrais euroasiáticos continuaram seu processo de
evolução cultural dando amplos poderes ao signo feminino.
A não ser através de achados cranianos fossilizados, não há imagem mais antiga de
nossa espécie. Temos que avaliar o seu significado a partir do salto que provocou na evolução
da cultura. Na verdade, uma mulher, uma ancestral nossa teria desencadeado a evolução
cultural. Nem o culto aos mortos, nem a atividade de caça foram tão importantes para nossa
62

evolução mental. Nossa mente estava agora pronta para tentar alcançar o significado dessa
cultura: a nossa domesticação. Domesticação do homo sapiens, a sua consagração entre as
outras espécies. O domínio do signo feminino e sua iconografia geraram um novo tipo de
concepção e emprego dos instrumentos e utensílios, bem como ofereceu condições para a
evolução da artee do signo estético. O escultor é o protótipo do artista, na verdade seu
trabalho não remete concretamente a um signo linguístico, mas o seu cérebro estava pronto
para indicar proporcionalidades e espacialidades que ajudariam no aguçar da visão humana.
De mão em mão, de mente emmente, em sua plena semiose, o culto à imagem feminina
evoluiu para a primeira noção de divindade. O domínio desta iconografia era amplo e
consolidado, para prová-lo basta examinar o imenso acervo desses achados arqueológicos. Foi
supostamente o primeiro signo simbólico com amplo significado ético. Surge das mãos do
escultor, este antigo artistaque dominou em um mundo ainda mudo, onde uma força
deflagradora dava início à domesticação. Esta força deflagradora já se encontra no signo
nomeado:Mãe-Terra.
A era de domínio da feminilidade está configurada nestas estatuetas. Como animais
mamíferos, o domínio técnico de objetos de caráter masculino significaram um risco de
extinção sempre presente, os artefatos femininos, por sua vez, representam o salto que
precisava para o armazenamento e provisões dos alimentos produzidos pela agricultura,
técnica primordial da domesticação. A aldeia neolítica deve ter abrigado o apogeu desta
cultura duradoura e asseguradora das novas gerações (MUMFORD: 1998, 17-22).
O Signo Verbal Escrito
Contudo, em determinado momento, um signo masculino se revela poderoso,
contrariando o poder da Mãe-Terra. Sob o favorecimento de um signo celestial, talvez de uma
mudança climática, Adão apareceu como um revolucionário entre os seus filhos e associou
seu domínio a um pecado original.
Mas onde, quando, como e por que Adão teria forjado o salto evolutivo que abriu as
portas para uma nova ordem cultural? Antes das representações humanas masculinas,
surgiram representações de animais, representações realistas muito refinadas como as
encontradas nas cavernas de Lascaux e Altamira. A revolta de Adãoterá sido tramada nessas
cavernas? O símbolo masculino reprimido só veio encontrar sua representação na figuração
oculta de animais que poderiam representar a força dos machos caçadores?
O caçador macho conspirou sua revolução no fundo da caverna? A associação de duas
habilidades,a de caçar e a de desenhar a imagem do objeto da caça, promoveu um realismo
mais aperfeiçoado do que o da modelação das Vênus. Entretanto não é possível acompanhar
63

de modo preciso a evolução iconográfica das Vênus e das pinturas das cavernas, ao signo
gráficodos monumentos e das tábuas sagradas, mas entre um e outro é possível conceber a
evolução do objeto pictórico identificado oralmente a sua forma gráfica, de letra escrita,
representação cuja técnica está associada ao relato oral eà música. Para acompanhar a
ascensão do mito como enunciação proclamadora de uma nova ordem nascida da revolução
masculina, as dificuldades são muitas. Quando exatamente o verbo se fez carne (a voz se fez
escrita) não podemos precisar, mas foi a voz da divindade masculina que passou a enunciar
seu reino e dominar. Quando os primeiros escritos sistemáticos aparecem, dão conta da
fundação de cidades e relatam como o homem surgiu pela ação dos deuses. Nesses relatos, a
Mãe-Terra será dominada por um deus masculino. Entre os Sumérios, os deuses masculinos
são criadores de cidadescomo atestam os relatos catalogados por LEIK (2003).Entre os Indo-
Europeus o deus masculino é Zeus e suas hipóstases. Zeus éum deus triunfante que faz
emergir uma sociedade patriarcal no contexto do Mediterrâneo e em toda Europa se
estendendo até a Índia. O Egito, por seu lado, conheceu o poder dos faraós, reis que adoravam
a si próprios e a deuses híbridos,antropozoomorfos, com alguma predominância masculina.
A revolução masculina foi, no princípio, enunciada por homens deuses, suas imagens
icônicas são tardias e só vem aparecer com maior realismo pictórico e discursivo entre os
gregos. A ação desses deuses,por força da linguagem que era ensinada como se houvesse sido
ditada por essesmesmos deuses,tem como principal resultado a invenção da cidade. Entre os
mesopotâmios foi Marducko inventor da cidade (LEIK), lá, este novo sistema progride,
prospera e consolida o domínio masculino, embora as imagens femininas ainda possuam
grande força representativa.
Nesta era mítica, os relatos se tornaram mais importantes que as estatuetas,isso
coincide com a invenção da escrita cuneiforme eindica que a linguagem sofreuum grande
impulsorealista que está associado ao poder do caçador, do rei divino, que vai incorporar
atributos mais violentos sobre a mulher acusando-a de associar seus dons a ardis diabólicos,
aos tradicionais malefícios, feitiços ou bruxarias e sobre outros grupos humanos migrantes
que ameaçavam a cidade. Assim tem início a escravidão e a tirania dos caçadores divinizados,
aumentados pelo escultor, pelo arquiteto e pelo poeta.
Entretanto, nas representações icônicas, flagramos a mulher equiparada ao homem e,
em todas as culturas, exceto na hebraica, há deuses e deusas, para quem o homo sapiensdeve
obediência e por quem através do signo alimenta temores, obediência e respeito, em troca do
domínio sobre a natureza e a cultura.
Espalha-se pelo mundo este sistema despótico, precoce em alguns continentes, tardio
64

em outros, mas em todos eles os deuses masculinos estão ligados ao Céu e não à Terra.
Um dos problemas da teoria da evolução da cultura é tentar entender como ocorreu
adifusão e a diversificaçãodesse sistema por todo planeta. Uma das suposições que podemos
aceitar é que a cultura humana evolui porque o ser humano migra, isto é,a própria evolução da
cultura acontece com a migração. Mesmo desprovidos de cultura, os nossos ancestrais
migravam institivamente, a migração é o primeiro passo para evolução das espécies
hominídeas. Antes mesmo de concebermos qualquer cultura, nossos ancestrais já ocupavam
grande parte do planeta.
Cada grupo que migrava dava um salto evolutivo, esta é uma lógica que podemos
explorar, pois é perceptível que os grupos sedentários são conservadores, enquanto os grupos
migrantes portam signos sujeitos a transformações. Exemplo disto são as Vênus que foram
encontradas ao longo de uma ampla zona de ocupação humana, na Europa e na Eurásia.
Duranteparte do Mesolítico e por todo Neolítico,ocorreu ampla difusão euroasiática do signo
e por trás dele a difusão de uma técnica de esculpir e talhar imagem e de construir grandes
monumentos. Com o relato e sua configuração textual como artefato, a evolução cultural
parece ganhar uma velocidade plena. O relato escrito, ou seja, o texto provoca o despertar das
técnicas da linguagem, que passaram a migrar com os povos.
Como compreender a existência de culturas tão diversas, de povos tão diferentes e
distantes uns dos outros, distribuídos por todos os continentes do planeta,sem laços evidentes
entre si, se não levarmos em conta a difusão de linguagens cada vez mais sofisticadas e
técnicas semiológicas cada vez mais avançadas?
Acreditamos que para a evolução da cultura mítica de dominação masculina, houve
um salto primordial, o aprimoramento do texto. Pois existemdeterminados ritos esignos
homólogos entre os povos de todos os continentes, advindos exatamente da mesma espécie de
relatos que consagrou a existência de signos que significavam poder divino sobre as forças da
natureza e sobre os destinos dos seres humanos: o mito.
Sem dúvida, estes relatos míticos são algo que aproximam as culturas (DURAND),
mas étambém a misteriosa causa de sua diversificação.Podemos então acreditar que foi a
partir de uma revolução noaparelhamento técnico da linguagem que as sociedades antigas
desenvolveram suas culturas e asdiversificaram. Para todas elas os relatos constituíram os
fundamentos: religioso, político, artístico, tecnológico, militar, sexual e moral.
As culturas míticas prosperaram desde o início da Idade do Bronze até o advento dos
textos homéricos.O êxito desta cultura foi tão amplo que praticamente dominou todo planeta,
incluindo o extremo oriente e a América.Nesta etapa, o aparelhamento técnico das
65

representações escritas é eminentemente iconográfico, escultural e pictórico, a própria escrita


é pictórica, até alcançar o avanço sumeriano da escrita cuneiforme, que através dos sírios e
acadianos deu um largo passo para o surgimento do alfabeto fenício e, provavelmente, através
dos feníciospara a evolução do alfabeto grego.
Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais


do método sociológico na Ciência da Linguagem; trad. Michel Lahud& Yara Fratescchi Vieira
– 8. Ed. – São Paulo: Cultrix, 1997.
ARIÉS, Philippe & DUBY, George. História da Vida Privada: do Império Romano ao
Ano Mil; trad. Armando Luís Carvalho Homem – 2. Ed. – Porto, 1990.
BURCKHARDT, Jacob Christoph. A Cultura do Renascimento na Itália: um ensino
trad. Sérgio Tellaroli – São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
DROYSEN, Johann Gustav. Alexandre o Grande; trad. Regina Schöpke& Mauro
Baladi – Rio de Janeiro: Contra Ponto, 2010.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à
Arqueologia Geral; trad. Hélder Godinho – São Paulo, 1997.
DURANT, Will. História da Civilização: César e Cristo; trad. Monteiro Lobato – 3.
Parte; 1. Tomo - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das Ideias Religiosas, v. II; TRAD. Roberto
Cortes de Lacerda. – Rio de Janeiro: Zaar, 2011.
FERREIRA, A. G. Dicionário de Latim-Português – Porto: Porto Editora, 1995.
GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano; trad. Dero A. Saunders –
Ed. Abreviada – São Paulo, 2005.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte; trad. Walter H. Geenen –
2. Ed. – São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia: a invenção da cidade; trad. Álvaro Cabral – Rio
de Janeiro: Imago Ed., 2003.
MAIA, J. A. F. A Isotopia da Perversão na Literatura Brasileira Contemporânea: a
estrutura perversa em Zero, Agá e A Festa; - Dissertação de Mestrado- Recife: Biblioteca
Joaquim Cardoso: CAC/UFPE, 1993.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Satyricon: as origens do romance e do realismo satírico - Tese de
Doutorado – Recife: Biblioteca Joaquim Cardoso: CAC/UFPE,2005.
MORISSET, R.&THEVENOT, G.Les Letres Latines. Paris : Editions de L'Ecole,
1961.
MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e
perspectivas; trad. Neil R. da Silva – 4. Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.
PEIRCE, Ch. S. Semiótica; trad. José Teixeira Coelho Neto – 4. Ed. - São Paulo:
Perspectiva, 2015.
66

POE, E. A. Poesia e Prosa: obras escolhidas; trad. Oscar Mendes e Milton Amado –
Coleção Universidade de Bolso – Rio de Janeiro, S/D.
SUASSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral; trad. Antônio Cheline& José
Paulo Paes & Isidoro Blikstein – 28. Ed. – São Paulo: Cultrix, 2012.
TOYNBEE, Arnold. A Humanidade e a Mãe-Terra: uma história narrativa do mundo;
trad. Helena Maria Camacho Martins Pereira & Alzira Soares da Rocha – 2. Ed. – Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987.
67

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/fc/Sahelanthropus_tchadensis_-

https://www.google.com.br/search?q=sahelanthropus+tchadensis&newwindo
68

https://www.google.com.br/search?q=venus+de+willendorf+significado&neww

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Venus-de-Laussel-vue-generale-noir.jpg
69

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7d/Ankara_Muzeum_B19-36.jpg

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Snake_Goddess_Crete_1600B
70

You might also like