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62 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

xista ou freudiano", o que, sem dúvida nenhuma, é


verdadeiro6B. Contudo, Foucault deixou um importante le­
gado para a reavaliação da história. Não como um saquea­
dor bárbaro ou transgressor de sistemas, mas mais como
Gregor Mendel, que concebeu leis de hereditariedade atra­
vés de seu trabalho com ervilhas e experimentos com hí­
bridos, Foucault reformulou a compreensão histórica mui­ I
to mais através da prática que da teoria. Em sua tentativa II
de reescrever a história da civilização ocidental, Michel Fou­

i
1
cault desafiou-nos a questionar nossos pressupostos e legou­ MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
1
nos o método e os instrumentos de análise para a escrita NA OBRA DE E. P. THOMPSON E NATAL!E DAVIS
de uma história da cultura nova e política. SUZANNE DESAN

No início da década de 1970 os historiadores soc!als


empenharam-se em ampliar suas pesquisas para além da análi­
se demográfica e sócio-econômica da vida da classe baixa, pas­
sando também a explorar as percepçõ.es culturais populares._
Buscando conferir voz e vida aos camponeses, trabalhadores
e artesãos que estudavam, os historiadores enriqueceram seu
retrato quantitativo pelo estudo das mentalités. Dois historia­
dores, E. P. Thompson e Natalie Davis, alcançaram muito pres­
tÍgio com sua análise cultural do comportamento e das atitu­ I
des populares, uma análise dotada de direção, validade e mé­
todo. Seu trabalho sobre a violência da massa, particularmen­
te, tornou-se essencial para a definição e a formação de uma
• nova abordagem cultural da história social.
Thompson e Davis partiram da obra realizada nos finais
da década de 1950 e na década de 60 por George Rudé e Char­
les Tilly, entre outros, que analisaram a composição social das

Foram muito proveitosas para mim as sugestões de Tom Broman, Dena Good­
man, Lynn Hunt,Julie Liss, Lynn Nyhart e dos panicipantes da Charter Conferen­
ce realizada em Berkeley em al:iril de 1987. Gostana de agradecer especialmente à Na�
talie Davis pelos seus proveitosos comentários. __
68. lbid., PP· 224-25.
.,
64 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
65
massas com o objetivo de corrigir a concepção incorreta de
que os desordeiros eram hordas ingovernáveis que pratica­ de Thompson e Davis sobre a violência da massa também
vam uma violência gratuita, sem finalidades e motivações estimulou os estudiosos da cultura popular e da história da
racionais1• De acordo com sua ênfase sobre o poder da cul-_ comuntdade_ em geral a examinar os valores e os rituais co­
tura, Thompson e Davis deram mais atenção aos aspectos munitários dentro do comportamento popular amplamen­
ritualizados e teatrais da ação das massas enquanto expres­ te definido.
são cultural e comunitária: focalizaram basicamente o sig­ Neste e �s�io, discuúrei primeiro as concepções e os pro­
nificado, as motivações e os meios de legitimar a ação cole­ _
gramas htstoncos subpcentes seguidos pelos dois autores
tiva violenta. Mais especificamente, argumentavam não só enquanto figuras originais do desenvolvimento da aborda­
que os desordeiros agiam com base em alguma certeza mo­ gem c�ltural. Depois, examinarei os aspectos mais funda­
ral e algum senso de legitimidade comunitária, mas, tam­ mentais de sua obra sobre o ativismo popular, concentrando­
bém, que certos padrões rituais na verdade ajustavam a vio­ m_e n� art_1go _ de Davis, "The Rites of Violence: Religious
lência deles dentro de um contexto simbólico coerente, do­ R10t 1n S1xteenth-Century France", e no de Thompson
tando suas ações de legitimidade e significado2• A obra de "The Moral Economy of the English Crowd in th�
Thompson e Davis sobre os tumultos tornou-se tão influente Eighteenth-Century". Avaliarei a influência de ambos so­
que os autores redefiniram as questões levantadas pela maio­ bre as recentes teorias da massa e sobre as definições de cul­
ria dos historiadores sobre as massas. A maior parte das pes­ tura e comunidade. Finalmente, explorarei de que modo po­
soas que nos últimos anos desenvolveram um trabalho so­ demos complementar sua obra através de uma ampliação
bre as ações coletivas procuraram não apenas investigar os da abordagem cultural da história.
antecedentes sócio-econômicos da massa, quando possível, Ao delimitarem as no�as questões e métodos de pesquisa,
mas também decgdificar os padrões ou rituais do próprio
� - P. Thompson e Natalte Davis produziram um enorme
tumulto, com a finalidade de descobrir a percepção que seus
impacto sobre a história européia, e ambos são merecedo­
participantes têm de seu significado e de sua validade. A obra
res da grande reputação de que desfrutam. Hoje é impossí­
vel desenvolver um trabalho sobre a Reforma sem ter lido
1. Entre o grande número de publicações de Rudé e TillY sobre a massa, Davis, ou estudar a Revolução Industrial sem uma leitura
as obras fundamentais incluem, de Rudé, The Crowd in History, 1730-1848 (Nova atenta de Thompson. A obra de Davis ampliou o enfoque
Iorque, 1964) e, de Charles Tilly, The Vendée (Cambridge, Mass., 1964); idem,
From Mobilization to Revolutíon (Rcadíng, Mass., 1978) e, idem, The Contentious d ?s estudos sobre a Reforma para além das questões teoló­
French (Cambridge, Mass., 1968). Ver também Robert Holton, "The Crowd in gicas, voltando :s � para a história social da Reforma e para
History: Some Problems of Theory and Method", Social History 3 (1978): 219-3:3, .
e Lynn Hunt, "Charles Tilly's Colleccive Action", em Vision and Method in 1-fis• o exame da reltg1ao popular. Embora os escritos de Davis
torical Socíology, org. Theda Skücpol (Cambridge, 1984), pp. 244-75. se aj':'.stem ao c �nt�xto
2. Natalie Zemon Davis, "The Rites of Violence: Religious Riot in Sixteenth­ _ da escola dos Annales, com sua pro­
Century France", Past and Present 59 (1973): 51-91; reimpresso em Natalie Ze­
pensao para a htstona do povo e para a histoire des mentali­
mon Davis, Society and Culture in Early Modem France (Stanford, Calif,, 1975), tés, seu tra��lho tam�ém complementa a abordagem fran­
pp. 152-87. (Minhas citações são extraídas do livro.) E. P. Thompson, "The Mo­ cesa por uttltzar, maciçamente, a antropologia simbólica e
r.ti Economy of the English Crowd in the Eighteemh Century", Past and Pre­
sent 50 (1971), 76-136. enfatizar o papel determinante e fundamental dos fatores
culturais, em detrimento dos fatores climáticos, geográficos
66 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
67
ou sócio•econômicos3. Do mesmo modo, assim como Na­ principais determinantes da história. Am
talie Davis deixou uma marca radical no estudo da Refor­ bos repudiaram
uma explicação simples de base/superes
ma e da cultura popular em ger�Vl. P. Thompson trans­ trutura para a for­
mação das percepções culturais. Durante
formou o estudo da Revolução Industrial e reformulou cri­ sua pesquisa de dou­
toramento sobre os impressores e pro
testantes da Lyon d
ticamente os debates sobre a metodologia marxista. Em sua século XVI, Davis começou a questionar
obra fundamental, The Making ofthe English Working Class, a validade do mo�
delo de classe ma xista como element
. i_: o mais significativo
Thompson contestou a importância dos tradicionais deba­ para a determmaçao do comportamento
e da atitude. "As
tes quantitativos sobre os salários reais e o padrão de vida desc?bertas da própria tese levaram-me a
, repensar a impor­
mensurável da classe trabalhadora na Inglaterra do século tan cia da classe social e do conflito de clas
se nas transfor­
XIX e, em seu lugar, deu início a uma vasta exploração da mações religiosas,,, comentou ela num
a entrevista. "A Re­
formação cultural das atitudes e da consciência da classe tra­ for�a, em suas décadas de f rmação em
? Lyon, ultrapassou,
balhadora. Seu estudo da identidade da classe trabalhadora mais do que refletm, os hrn1tes de classes,
mas as razões dis­
'1 atraiu muitos seguidores, discípulos e imitadores, bem co­ so podem ser totalmente compreendidas
em termos sócio­
mo críticos4. econômicos"5. As últimas obras de Dav
is ilustram uma sen­
Ao revelarem novos temas e métodos de análise, Davis sibilidade a vários agrupamentos den
tro da sociedade· esses
e Thompson deram ênfase a urna mesma idéia central - grupos podem incidir em categorias
sócio-econômi�as ou
o papel decisivo da cultura como força motivadora da trans­ P_'.'de_rn compartilhar ví culos dif eren
� tes, tais como ocupa­
formação histórica. Tarnbérn tinham em comum um mes­ çao, idade, sexo, confrana ou lealdade
à comunidade de um
mo ponto de partida: ambos iniciaram suas carreiras de his­ povoado. Com eloqüência, e de mo
do consistente, ela ar­
toriadores trabalhando dentro da tradição marxista e am­ gumenta em favor de uma análise mai
s sutil da dinâmica
bos reagiram contra as "tradicionais" interpretações mar­ desses grupos e do impacto das forças
econômicas sobre a
xistas que enfatizavam as forças sócio-econômicas como as c�ltu:ª· Em sua análise dos mosteiros par
a jovens e dos cha­
nvan
_ s, por exemplo, Davis contrasta a estrutura da comu­
mdade rural do vilarejo corno univers
o urbano e mais com­
3. Nos últimos anos, inúmeros seguidores da escola dos Annales abandona· plexo dos ofícios, vizinhanças e profiss
ram sua ênfase e análise sobre os fatores sócio-econômicos de longa duração e ões, mostrando de
voltaram-se para os elementos culturais. Sob certo aspecto, a guinada para as men·
que mo�� esses contextos influenciar
am a organização, a
talités chegou mesmo a minar a posição origi�al da esc�la ?os A_?nales, segundo compos1çao, o papel e a função de gru
a qual os fatores críticos eram de ordem social e econonuca, na� cultural. Ver pos de jovens em di­
Lynn. Hunt, "French History in the Last Twenty "'!ears: The· Rtse and Fall of
ferentes arnbientes6.
the Annales Paradigrn", ]oumal ofContemporary Htstory 21 (1�86): �09-24, esp. . Como Natalie Davis, E. P. Thompson nega qualquer
p. 217. Sobre a história da escola dos Annales, ver Tra1an Sto1anov1ch, French simples correlação entre forças econôm
Historical Method: The Anna[es Paradi�m (lthaca, N.I., 1976). icas e construtos cul-
4. E. P. Thomrson, The Making o/ the English Working C/ass (Nova Iorque,
1963). Sobre a influencia de Thompson, ver, por exemplo, Alan Dawley, "E. P.
Thompson and the Peculiarities of the Americans", Radical History Review 19 _S. Rob Harding e Judy Coffin, "Interview
(1978•79): 33,59; Craig Calhoun, The Question o/ Class St71!ggle (Ch1_cago, 1982), o,fllutory, o�g. Henry Ab�lo et with Natalie Davis" em Visions
ai. (Nov
e Paul Sdack (org.), Rebellion, Popular Protest, and the Social Order tn Early Mo­ 6. Natahe Zemon Davis, ;_;The Reasonsa Iorque, 1983), p. 109.'
dern England (Cambridge, 1984). re, PP· 97-123. of Misrule"' em Society and Cultu•
)!
,

' MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL


68 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL 69
Thompson na introdução a The Making ofthe English Wor­
rurais. A relação de Thompson con: o marxi�mo é mais com­ king Class9• Thompson também enfatiza que se "classe" for
plexa e mais direta do que a de Davis. Ele foi membro at�a�­ usada como um categoria heu.rística, "será inseparável da
te do Partido Comunista inglês até 1956, e um dos princi­
pais editores da New Left Review. Engajou-se �iversas ve­ º.
noção de luta de classes" 1 A classe só adquire existência
ao longo do. processo de luta, que leva à gradual aquisição
zes em debates com outras importantes personalidades ma:• de identidade cultural e política. Não existe de facto sim­
xistas, entre as quais Perry And�rson, John Foster_ e, mais plesmente por causa de sua posição dentro dos meios de pro­
recentemente, Louis Althusser7 • Thompson contmu� se ?·
, dução ou, em termos mais gerais, das estruturas econ&mi­
do fortemente influenciado pelo marxismo e ve seu propno cas. Em termos ideais, o conceito de E. P. Thompson da /
projeto como uma espécie de reabilitação de Marx, como formação cultural da identidade de classe pretende promo­
um preenchimento de alguns d�s "silê�cios" de M�rx. ' ver uma análise sutil da interação dialética entre economia
Thompson considera Marx silencios_o parucula�n,1 ente no e valores, entre estrutura e operação, entre os elementos ma­
,
que diz respeito às mediações morais e cultura1S • S_e, por
i
. teriais e culturais da existência. À medida que busca essa
um lado, não nega a importâ� cia dos fatores n;atena1s, por análise dialética, contudo, Thompson atribui tanta prim a-
!
_
outro Thompson rejeita explicitamente a metafora de ba­ zia aos fatores culturais na formação de. classe, que tem si-
se/superestrutura" e procura examinar "o modo como es­ do insistentemente criticado pela f alta de uma atenção ade­
sas experiências materiais são abordadas culturalmente,, 8 • quada à ,estrutura, sobretudo em The Making ofthe English
Em sua utilização da palavra classe, por exemplo, Workinf"Class 11 •
Thompson refuta diversas concepçõ:s marxistas "clássicas" Em síntese, ao reagirem contra uma abordagem estru­
que definem classe segundo a posiça� dentro da es�rutura
0

turalista francamente reducionista, tanto Davis quanto


econômica ou da relação com os meios de produça�.
vez disso, Thompson vê a classe como "uma categon� his­
fan Thompson caminharam para um método que enfatiza os
elementos culturais sobre os de natureza sócio-econômica. ,
t6rica que descreve as pessoas em termos de seu rela� '.o�a­ Sob esse aspeêiêi"�tes de inspiração divergem um po�­
mento ao longo do tempo", num auvo processo de ena- co, embora os produtosfinaíscompartilhem certas seme­
ça•o" . "Não poderemos entender o que é classe a menos que lhanças evidentes. Natalie Davis voltou-se desde cedo para
a vejamos como uma formação soe1a · 1 e cu1tural", escreve

9. Thompson, Making Ofthe English Working Class, p. 11. Vertambém idem,


1
'

7 Sobre O relacionamento de Thompson com outros marxistas e com o par­ "Folklore, Anthropology, and Social History", Indian Historical Review 3 (1977):
tido c�munista, ver Bryan D. Palmer, The Making ofE: P. Thomr,son: Marxism,

son· Understanding the Process of History", em Vtston and Method, or bk/,C­


247-66, esp. p. 264.
Humanism, and History (Toronto, 1981), e Ellen Kay?nmberger, E, P. Tho p·
. 10. E. P. Thompson, "Eighteenth-Century English Society: Class Struggle
Without Class?", Social History 3 (1978): 133-65; citação, p. 149.
al: p. 211-43. Ver também E. P. Thompson, The Poverty of Th�pry an� _ t er 11. R. Currie e R. M. Hartwell, "The Making of the English Working Class?",
_
tsa: (Nova forque, 1978), e Perry Anderson, Arguments Withm English Mar- Economic History Review, 2� série, 18 (1965): 633-43; John Poster, Class Struggle
xism (Lo�dres, 1980). . . , and the Industrial Revolution (Londres, 1974); RichardJohnson, "Edward Thomp­
B. Michael Merrill, "lnterv1ew �1th E. P. _ Thompson, , R adica
" l H"iswry R e - son, Eugene Genovese, and Socialist Humanist History", History Workshop 6
-
view 3 (1976): 4-25; reimpresso em Vmons of�istory, o�g. Abelove et al., PP· 3_ 26. (1978): 79-100, e Trimberger, "E. P. Thompson", pp. 224-25, 236,
citação, pp. 20-21 (minhas citações são extr.udas do hvro).

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70 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 71

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a antropologia, primeiro como uma forma de refletir so­
bre os rituais secretos dos sindicatos primitivos e, mais tar­
' f revelar de que modo o sistema social se ajusta e como os
seus_ participantes percebem a si próprios e ao mundo ex­
de, como um meio de compreender os elementos simbóli­ terior.
cos e dramáticos da prática religiosa12• Sua obra revela a in­ ':e:.'. E. P. Thompson, ao contrário, tem uma atitude mais
fluência de uma ampla gama de antropólogos simbólicos, ambivalente diante da antropologia. Suas primeiras obras não
entre os quais Clifford Geertz, Mary Douglas, Arnold Van foram diretamente influenciadas pela antrópologia. Com a
Gennep, Max Gluckman, E. Evans-Pritchard e Victor Tur­ tÍpica desconfiança de um empirista inglês acerca da história
ner. Davis demonstra certas reservas quanto às deficiências "obscura", Thompson parece ter inicialmente relutado em
da antropologia, criticando, em particular, a tendência des­ ' apoiar ou confiar na antropologia simbólica como instrumen­
ta em ignorar a transformação. Em sua própria obra, busca to de análise. Desconfiado das compa@çêíeüntrrrnlturais ou
consistentemente combinar insights antropológicos com uma das amplas generalizações relativas a sistemas de símbolos,
sensibilidade maior à dinâmica histórica. Contudo, Davis criticou, por exemplo, as abordagens antropológicas de Alan
reconhece que a disciplina é útil para ajudar o historiador Ma_cFarlane e Gareth_Stedman Jones por sua falta de especi-·
a desenvolver uma percepção da rica variedade da experiência ficidade histórica e pelo uso de "tipologias" abstratas e não­
humana. A antropologia também oferece métodos para o históricas que carecem de rigor empírico. Ao mesmo tem­
exame das "interações informais", ou em escala reduzida, po, porém, Thompson reconheceu a�p�sibilidades de uma
que podem expressar importantes conexões e conflitos" den­ utilização eclética e contextualizada da rnspii'ãçro antropo­
tro da estrutura social13. Ainda que Davis não seja, abso­ lógica: elog�a influência da mesma em Religion and the
lutamente, uma funcionalista estrita em sua abordagem an­ Decline of Magic, de Keith Thoma;14,
tropológica, admite que diversos eventos ou costumes cul­ Ao voltar sua atenção para a sociedade cheia de costu­
turais (como tumultos, festivais ou charivaris) têm uma fun­ mes do século XVIII, Thompson viu ali um potencial maior
ção e um significado específicos para os participantes e a para a antropologia. Aliando-se a Keith Thomas e Natalie
comunidade. Ao interpretar os padrões e o significado sim­ Davis, declarou, em 1977: "Para nós, o impulso antropoló­
bólicos desses fenômenos culturais, o historiador pode gico é percebido, sobretudo, não na criação de modelos, mas
na demarcação de novos 11roblemas, no modo de ver, com
12. Harding e Coffin, "Interview with Davis", pp. 110-_tl.
novos olhos, os velhos problemas, numa ênfase em normas
13. Natalie Zemon Davis, "Anthropology a nd H1story m the t980s: The ou sistemas de valor e rituais, na atenção às funções expres­
Possibilities of the Past' ', Journal o/ lnterdisciplinary History 11 (1981): 267-75, sivas das formas de tumultos e distúrbios e nas expressões
esp. pp. 269, 274-75, e idem, "Some Tasks and Themes in the St.udy of Pop1._1lar
Religion '', em The Pursuit ofHoliness in Late Medieval a nd Renamance Religwn, simbólicas de autoridade, controle e hegemonci/' 15 . Em sua
org. Charles Trinkhaus e Heiko Oberman (Leiden, 1974), pp. 307-36. Para uma
abordagem diacrônica e.a ntr?Pº!6gica, ver, de Davis, "G�?sts, Kin, and Progeny:
Some Features of Fam1ly L 1fe in Early Modem France , Daeda/11s 106 (1�77):
87-114. Davis também está reavaliando o rnétodo antropológico em seus projetos 14. E. P. Thompson, "Amhropology and the Discipline of Historical Con­
atuais sobre graças concedidas e pedi1os de pe_rdã?; ver, d e sua autoria, Fiction text", Midland History 1 {1972): 40-45, 49-53, e idem, "Folklore, Anthropology,
in the Archives: Pardon Tales and Their Tellers m Stxteenth-Century France (Stan­ and Social History", pp. 256-60. _
lord, Calif., 1987). 15. Thompson, "Folklore, Anthropology, a nd Social History", p. 248.
72 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
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MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 73


obra sobre o charivari por exemplo, Thompson utiliza am­
obra apresenta alguma semelhança com a "densa des�ri_ç�o"
plamente as comparações interculturais e dirige-se direta­
geertziana18 • Thompson µega repetida��nte a poss1b 1hda­
mente à questão antropológica da função dos charivaris em _
de de subordinar o comportamento histonco a um conjunto
diferentes sociedades, do modo como é colocada por Van
de leis universais ou de teorias que tiiâo abrangem19 . Ele
Gennep, Lévi-Strauss e Davis 16. Thompson, porém, insis-
não enfatiza as explicações causais diretas; em vez disso, pro
te em que a metodologia da antr9pologia simbólica deve
0•

cura criar uma espécie de �!{tura de._padi:ães__culturais-de


ser reformulada para levar em coma a_ ti::an§,fo,t:111ação histó­
significado e percepção. Thompson escreveu que, no estu­
rica, a particularidade Eoníextual e o cuidado empÍrico. Aci­ do da sociedade consuetudinária da Inglaterra do século
� de tudo, deve incorporar também uma consciência mar­
XVIII, as questões fundamentais "podem muitas vezes
go sobre a formação de classes no século XVIII, Thomp- i/
xista dos conflitos de classe. Conseqüentemente, num arti­ referir-se menos ao processo e à lógica da transformação do
que à recuperação de estados passados de consciência e à
son observa a importância de �e "d�c:C>_difi_s�, o comporta­ criação de um tecido de relações sociais e domésticas. Elas
mento" e de . se "de�y_endar·notffias·-inv.ísíveis.de ação", co­ .
dizem menos respeito ao tomar-se do que ao ser"2º. Em re- ,
mo o faria -�m antropólogo, mas sem abrir mão da estrutu: sumo, o interesse de Thompson é pela exigência e atitu�_e,
ra marxista da luta de classes.- A coerência de um universo ✓ não pela transformação e causalidade. Ao delinear a forma­
mental se origina, segundo Thompson, "a partir de um cam­ ção dos valores e c_oncepções culturais, Thompson P ?stu)a
po de força específico e de oposições sociológicas peculia­ uma interação "di_.;ilétlca entre "experiêncía" e "consc1êhcta
res à sociedade do século XVIII: falando objetivamente, os soCÍal;;·:·Taiito nos seus escritos teóricos quanto-nos histÓ·
elementos descontínuos e fragmentados dos velhos padrões ricos, ele não define claramente seu conceito de "experiên­
de pensamento tornam-se integrados pela classe" 1 7. cia", mas parece pressupor que a experiência é determina­
Assim, Thompson é um pouco mais cauteloso do que da pelo "ser social", isto é, pelo lugar que se ocupa _den�ro
Davis ao adotar os métodos antropológicos porque d� a ,
da estrutura das relações humanas no mundo matenal. O
focalizar o conflito de classes, embora de fato levante mui­ 'ser social' determina a 'consciência social'", escreve Thomp­
tas d;is-mêsm� os antropólogos e comparti­ son, "à medida que a experiência se impõe e se imprime
lhe alguns de seus objetivos e pressupostos. Como 'mostrou no pensamento" 21.
Ellen Kay Trimberger, em termos de técnica e conteúdo sua . . ·
Basicamente, através de seu exame do at1v1smo; da cons­
ciência e da vida cotidiana na França do período da Refor-
16. E. P. Thompson, " 'Rough Music' : le_charivari anglais",Annales, E. S.
C. 27 (1972): 285-312. Ver também, de Thompson, "Time, Work-Discipline, and
Industrial Capitalism", Past and Present 38 (1967): 56-97, que, de forma menos 18. Tri_mberger, "E. P. Thompson", pp. 226-27. ..
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direta, revela alguma reflexão antropológica sobre as percepções variáveis do tempo. 19. Thompson, Poverty of Iheory, pp. 22-25. Ambora Thompson cnt1que

I,;!
Thompson também manifestou um crescente interesse pelas possibilidades da an• especificamente as teorias de Althusser, tanto sua cnt,ca quanto sua obra revela_m
i tropologia numa entrevista recente; ver Merrill, "Interview with Thompson", sua desconfiança geral da teoria; ver Johnson, "Thompson, Genovese, and Soc1a-
list Humanist History", pp. 82-85. _ ·
_
i
p. 21.
17. Thompson, "Eighteenth-Cemury Society", pp. 155-56. 20. Thompson, "Folklore, Anthropology, and Social History", p. 251.
21. Thompson, Poverty of Iheory, p. 25.
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74 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 75
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ma e na Inglaterra em processo de industrialização, tanto ção da natureza racional e inata do ativismo das massas. O
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Davis quanto Thompson buscam, sobretudo, dar voz às senso de identidade e autonomia da comunidade, bem co­

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grandes massas__ de pessoas que deixaram poucos registros mo seu senso compartilhado de finalidade e significado, atua
,1 , escrifôsecu}ahistória ficoii põYescrever durante várias ge­ como um poderoso elemento de validação e motivação do
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rações. Em sua ênfase sobre o papel da cultura como me- ti. comportamento das massas. Além disso, Thompson e Da­
1
,i diadora das relações e estruturas sociais, Davis e Thomp­ vis compartilham o pressuposto metodológico de que uma
son expressam sua convicção de que as classes inferiores não
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análise dos padrões do ativismo da massa revelará seu signi·
1

':' !:', ,i
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eram simples presas de forças históricas externas e determi­ ficado e oferecerá indícios sobre as estruturas da comuni?a­
1•'

1 nantes, tendo desempenhado u�apel ativo e essencial na de. Examinarei aqui "Moral Economy of the Enghsh

,,
cri¾'J()_de_SJ!ª---Ri:6p_6a história e na definição de sua pró­ Crowd", de Thompson, e "Rites of Violence", de Davis,
' 1 '. 1' pria identidade cultural. Davis e Thompson voltam-se para com o objetivo de mostrar de que modo seu enfoque veio
ilj'
:.:!
a análise dos tumultos como um campo ideal para o escla­ revigorar a produção recente sobre o ativismo coletivo, mas
recimento e a exploração dessas convicções históricas. De­ também como esse enfoque resultou em alguns pressupos­
monstrar a motivação racional, autônoma e coerente dos tos e métodos limitativos.
ativistas populares equivale a mostrar, em outra esfera cru­ De acordo com Thompson, em épocas de escassez e pre­
cial, que as pessoas dos escalões mais baixos representaram ços altos na Inglaterra do século XVIII, os que se rebela­
um importante papel na configuração de sua pr6pria histó­ vam pela falta de alimentos acreditavam que sua ação cole­
ria. Além do mais, a análise de um período de conflitos lança tiva e violenta se justificava pelo fato de a comunidade ,in­
luz sobre a textura dos valores e das relações comunitárias teira sentir que sua concepção comum de práticas de mer­
em períodos mais pacíficos. Finalmente, tanto Thompson cado justas, ou de "economia moral", tinha sido violada.
quanto Davis admitem que a análise do despertar político As pessoas que se levantavam em protesto viam a "legiti­
de grupos do passado pode conter as chaves de nosso pró­ mação" de seu ativismo no fato de serem "inspiradas pela
prio entendimento das situações e comportamentos políti­ crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tra­
cos atuais. dicionais; e, em termos gerais, de que eram apoiadas pelo
Ao �r� contra as iJJJ_er.pretações que enfatizam as mais amplo consenso da comunidade" (o grifo é meu)22•
forças econ_Ô!Jlicas_ou p,;icol6gicas, Davis e 'Thompson se Com um consenso suficientemente forte para ignorar o
coriéentram em duas questões principais. Em primeiro lu­ medo ou a deferência, a comunidade como um todo lu­
gar, por que a massa vê seu ativismo ilegal e violento como tava para defender o tradicional "modelo paternalista"
significativo e legítimo? Segundo, de que modo a comuni­ como o método ideal de distribuição de grãos. De acor­
dade desempenha um papel crucial na definição das moti­ do com o modelo tradicional, a produção, a colheita e,
vações, dos objetivos e das ações do tumulto? No âmago especialmente, a comercialização dos grãos e do pão deviam
dessas perguntas encontram-se dois conceitos interligados:
"comunidade" e "legitimidade". Para os dois estudiosos,

1
esses conceitos juntos tornam-se críticos para a demonstra- l 22. Thompson, "Moral Economy", p. 78.
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
76 77
1,
século XX, e os. criadores de tumultos religiosos analisados
1

ser controlados para que assim fossem protegidos os inte­ ' \

resses da comunidade de consumidores. Compartilhando por Davis conservam, todos, alguns princípios comunita­
dessa "economia moral" ou ''modelo paternalista", esses riamente compartilhados que legitimam suas ações violen­
rebeldes condenavam uma economia de mercado livre ba­ tas ou ilegais23 _
seada no lucro, o que, em teoria, acabaria resultando num O conceito de consenso comunitário de Thompson, po­
fluxo de grãos para as regiões onde a demanda era maior. rém, pode às vezes sugerir uma comun_idade mais coesa· e
Em momentos de escassez, os aldeões atribuíam a falta de unida do que de fato existia. Ele certamente não postula a
grãos e os altos preços à queda do modelo paternalista. De existência de uma ação uniforme por parte da comunidade
inteira, mas postula uma col)ceituação unânime. Seu mq­
m_o�o disciplinado e _ ordeiro, assumiam o papel de funcio­ delo não consegue explicar por que certos grupos dentro
nanos do governo e 1?1punham a coleta e a venda de grãos
de acordo com a trad1c1onal economia moral, vendendo 0 da comunidade apresentavam uma probabilidade maior que
grão a preços "justos". Se, a curto prazo, essa prática ilegal outros de engajar-se em tumultos. Por que algumas pessoas
participavam, enquanto outras condenavam ou s6 ofereciam
11 da população revoltosa não trazia, necessariamente, um su­
1 '

uma aprovação tácita e inativa? Não há dúvida de que po­


',· ,'
cesso 1med1ato, a longo prazo a consciência da pequena no­
''
, .
' 1
breza acerca da ameaça do ativismo coletivo incitava-a a de ser extremamente difícil remontar aos antecedentes so­
precaver-se contra a violência através do controle dos pre­ ciais dos participantes individuais de uma insurreição, em­
ços_ e da manutenção de alguns aspectos do modelo pater­ bora o pr6prio Thompson tenha realizado esse trabalho com
nalista. bastante sucesso24. Mesmo quando se podem obter infor­
Thomps�n foi cer'.ª'.11.ente brilhante ao argumentar que mações-sobre as ocupações, o sexo' e a renda dos insurgen­
tes, ainda assim fica difícil explorar as motivações desses di­
grupos dentro da sociedade. Não obstante' a per-
uma concepçao comumtana compartilhada da economia mo­
ral, ou do preço justo, induzia à ação e influenciava as for­ ,
ferentes
ma� existentes de comportamento das massas. O que há de gurJ.ta deve ser feita: como divergiam as atitudes entre os
mais surpreendente em seu insight das motivações dos ati­ grupos da comunidade,. de tal forma que alguns membros
vistas é o fato de oferecer um modelo poderosamente con­ optavam pelo tumulto e outros não?
v1 �cente pa�a uma grande variedade de formas de_ ação co­
I
Thompson diz, por exemplo, que em geral eram as mu­
letiva. Segumdo os passos de Thompson, inúmeros analis­ lheres que lideravam a fixação dos preços, mas oferece muito
tas de sublevações observaram o poder de provocação das pouco em termos de uma verdadeira exploração dessa ob­
concepções comunitárias de justiça e seu impacto diretivo servação importante25. A exemplo de muitos historiadores,
sobre as ações padronizadas da massa revoltosa. Os histo­
riadores aplicaram o conceito de "economia moral" não ape­ 23. Louise Tilly, "The Food Riot as a Form of Political Conflict in Fran­
nas a outros tumultos por falta de alimentos - como na ce", Journal oflnterdisciplinary History 2 ( 1971): 23-58, esp. pp. 45-47; James C.
Scott, Ibe Moral Economy o/ the Peasant: Rebellion and Subsistence in Southeast .
F:ança, por exemplo - mas também a outros tipos de ati­ Asia (New Haven, Conn., 1976), e Davis, "Rites of Violence", pp. 154, 161.
vismo coletivo. Os operários têxteis dos prim6rdios do sé­ 24. Thompson, "Moral Economy", pp. 1 15-19.
25. Ibid., pp. 115-16.
culo XIX, os camponeses rebeldes do sudeste asiático, no
78 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 79
entre os quais Davis, ele observa que, perante a lei, _as mu­
. dade27 _ Ele afirma, por exemplo, que os trabalhadores dia­
lheres eram menos responsabilizadas por açoes cnmmosas,
por serem consideradas, f'.ºr nature':ª• !"lais histéricas e i�­ ristas pareciam muito menos inclinados a engajarem-se nos
controláveis; assim, elas unham mais hberdade para prati­ tumultos por fixação dos preços do que os artesãos, mas
car ações ilegais. Thompson observa também que as mu­ não procede a nenhum exame da relação entre os diaristas
lheres talvez tivessem mais consciência dos abusos do mo­ e a comunidade enquanto corpo social. Também não inda­
delo paternalista pelo fato de que, em geral, seu envolvi­ ga se, talvez, tivessem investido menos no modelo paterna­
mento com o mercado era muito mais direto que o de seus lista do que os pequenos fazendeiros ou empregados domés­
maridos - mas, em seguida, abandona a questão da lide­ ticos. Thompson também observa que, em alguns casos, um .
rança feminina sem ao menos sugerir que a me�ma precis� grupo central de líderes, tais como mineiros de carvão ou
de um exame mais aprofundado. O que ele nao sugere e trabalhadores das represas, incitava os outros a agir28 . Fi­
que o papel das mulheres nos tumultos por falta de grãos camos a nos perguntar sobre a dinâmica e os meios através
pode ter-lhes conferido uma certa base de poder ou uma dos quais os companheiros de um mesmo vilarejo eram ins­
identidade com o papel dentro da comunidade26. Por es­ tigados a agir. Certamente alguns dos habitantes tinham sen­
ri
1
tar interessado na luta pelo poder entre a pequena nobreza timentos ambivalentes ou negativos sobre até que ponto a
violência seria válida e eficiente enquanto meio de prote­
i.
1

1 rural e a massa, tomando cada um dos grupos como repre­


ger os interesses da comunidade. O próprio Thompson ob­
!i
!1 sentativo de uma classe emergente, Thompson não ques­
serva que o castigo e a repressão que se seguiam a uma su­
'. il
't
tiona adequadamente as tensões relativas à autoridade, aos
1 jl papéis ou à função nos escalões mais baixos da sociedade. blevação podiam incidir com muita 'dureza sobre a comu­

IJ 11 Contudo a análise dos tumultos por falta de grãos poderia nidade local. Prevendo esse rigor, alguns membros da co­
oferecer ;s chaves das bases estruturais do poder informal munidade devem ter relutado em participar dos tumultos.
das mulheres dentro da comunidade aldeã. Em resumo, os Ademais, moleiros e fazendeiros abastados do vilarejo
tumultos podiam ter um impacto transformador nas fun­ podem muito bem ter preferido o novo sistema de laissez­
ções sociais e políticas em nível local. faire, uma vez que poderiam beneficiar-se de uma situação
Além disso, Thompson não parece reconhecer que a de mercado mais fluida. Além disso, algumas vÍtimas da vio­
"economia moral" pudesse ter diferentes significados ou n(­ lência das massas eram da própria comunidade aldeã; esses
veis de significação para os diversos membros da comum- fazendeiros "açambarcadores" ou os moleiros "capitalistas
astutos" muito dificilmente seriam favoráveis a um "con­
senso comunitário" que legitimasse a imposição popular da
26. Sobre a crescente literatura a respeito do papel das mulheres nas suble­
vações, ver Olwen Hufron, "Women in Revolution, 1789-1796", Past and fJ_re­
sent 53 (1971): 91-108; Temma Kaplan, "Female Consciousness and �ollect1ve 27. Calhoun, The Question o/Class Strug,gle, pp. 42-43. Com relação ao exa&e­
Action: The Case of Barcelona, 1910-1918", Signs:/ournal of Women m Culture ro da unidade das massas, ver William Beik, "Scarching for Popular Culture m
and Society 7 {1982): 545-66, e Susan Carol Rogers, "Female Fo7ms _of Power and Early Modem France",foumal ofModem History 49 (1977}: 266-81, esp. pp. 275-77,
Myths of Male Dominance: A Model of Female/Male lnteracuon in Peasant So­ e Robert Woods, "Individuais in the Rioting Crowd: A New Approach",/ourna/
ciety", American Ethnologist 2 (1975): 727-56. of lnterdisciplinary History 14 (1983): 1-24, esp. pp. 1-2.
28. Thompson, "Moral Economy", p. 119.
80 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 81

economia moral. Thompson fundamenta sua discussão num superestimava a capacidade das elites de impor uma "hege-
modelo polar antagônico, que enfatiza o confronto entre 1:1onia cultural''. às 1:1assas e subestimava a capacidade elás­
a comunidade e a pequena nobreza rural. Embora tenha uma tica das classes mfenores de limitar e reformular essas im­
aguda consciência do papel dos intermediários tanto como posiJ?es culturais. Especificamente, Thompson afirma que
_
eJ<ploradores quanto como vítimas, sua ênfase dualista difi­ patnc1os e plebeus mantmham um relacionamento recíproco
culta muito a integração da análise desse grupo29. Serão eles no século XVIII. A pequena nobreza rural usava um vasto
membros destrutivos da comunidade? Serão agentes alheios repert6rio de meios teatrais e simb6licos para afirmar seu
à comunidade? Ou será que neles se encontram as origens controle paternalista e exigir deferência e obediência da mas­
de um grupo, de difícil classificação, situado a meio cami­ sa, mas os plebeus aferraram-se a sua cultura popular tradi­
nho entre a massa e a pequena nobreza rural? cional e autônoma, o que lhes permitiu redefinir e limitar
Em resumo, Thompson nunca faz uma pergunta cru­ a hegemonia da pequena nobreza rural, bem como resistir
cial: qual é a dinâmica de poder que atua dentro da comuni­ a ela. Se esse comportamento nem sempre era declarada­
dade aldeã quando certos membros se decidem a empreen­ mente político, também não era simplesmente "apolítico",
der uma ação violenta e ilegal? Tampouco indaga de que pois a comunidade agia com autonomia em defesa .de "idéias
modo a violência pode alterar essa dinâmica e até mesmo claras e ardorosamente mantidas sobre o bem:estar comu­
transformar os papéis e as funções dos membros da comu­ nitário''3º.
nidade. Os membros da comunidade podiam, consciente ou Acima de tudo, na ausência de um aparato coercivo de
inconscientemente, manipular a violência contra os foras­ repressão do Estado, a massa podia, usar o tumulto como
teiros, autoridades ou habitantes do mesmo vilarejo, com forma de restringir o domínio da pequena nobreza rural.
o objetivo de redefinir seuspr6prios papéis ou adquirir um Por exemplo, ainda que os revoltosos por falta de grãos es­
novo status e poder em nível local. Nesse aspecto, o impor­ tudados por Thompson possam não ter tido um sucesso ime­
tante papel de uma economia moral compartilhada torna­ diato no atendimento de suas exigências, a longo prazo a
se estreitamente associado a questões de poder, identidade ameaça de violência popular realmente influenciou as au­
e conexões no âmbito da estrutura social do vilarejo. toridades, levando-as a manter os preços baixos pelo temor
E. P. Thompson não é indiferente às questões relativas do co�f:onto31 . Em seu livro Whigs and Hunters, Thomp­
ao poder. Basicamente, porém, ele procura avaliar de que son utiliza um argumento semelhante sobre as limitações
modo o poder de natureza hegemônica operava entre a "pe­ do uso hegemônico da lei por parte das elites32. Essa con­
quena nobreza rural" e a "massa". Ao interpretar a rela­ ceituação de reciprocidade é, em grande parte, convincente,
ção entre patrícios e plebeus enquanto classes emergentes
nos prim6rdios da Inglaterra moderna, Thompson refor­
mula sutilmente o modelo gramsciano. Segundo ele, Gramsci 30. Thompson, "Moral Economy", p. 83,
31. Thompson, "Patrician Society, Plebeian Culture" Journal o/Social His­
tory 7 (1973-74): 382-405! idem, "Moral Economy", pp. Í25-26.
32. Th?mpson, Whi&s and Hunters: The Origins oj the Black Act (Nova Ior­
que, 1976); idem, "The Cnme of Anonymity", em Albion's Fatal Tree, org. Dou-
29, Dale Edward Williams, "Morais, Markets, and the English Crowd in glas Hay et al. (Nova Iorque, 1975), pp. 255-308.
1766", Past and Present 104 (1984): 56-73, esp. pp. 71-72.
.1

82 A NOVA HISTÓRIA CULTUR AL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 83

mas ao concentrar-se nas relações de poder entre as elites ram a partir de crenças comunitárias. Os rebeldes religio­
e a massa, e por desejar imensamente descobrir um com­ sos de Davis iam buscar legitimação, motivação e padrões
portamento autônomo e pré-político das massas, Thomp­ de ativismo nos costumes, nas expectativas e tradições man­
son não consegue, paradoxalmente, dar a devida atenção às tidas pelo conjunto da comunidade. Fossem cat6licos ou pro­
lutas pelo poder no interior da pr6pria massa. A comuni­ testantes, esses ativistas lutavam, em parte, em defesa de suas
dade aldeã, assim como a "massa" indefinida, continua sendo concepções comunitariamente compartilhadas de um cor­
uma categoria não diferenciada em oposição à pequena no­ po social puro e impoluto. Os protestantes praticavam ações
breza rural. violentas contra os.padres católicos, cujas práticas sexuais
O fato de Thompson exagerar a coesão da massa não e quase mágicas profanavam a palavra de Deus e contami­
destr6i, necessariamente, a importância de seu conceito de navam a comunidade; também destruíam as estátuas que,
"economia moral"; é preciso, porém, que os analistas do aos olhos dos huguenotes, banalizavam e maculavam a ver­
comportamento da massa sejam cautelosos ao empregarem dadeira natureza da santidade de Deus. Os católicos, por
esse termo como uma explicação geral das motivações com­ sua vez, atacavam os huguenotes como hereges, "receptá­
partilhadas pela comunidade como um todo. O conceito culos de profanação", que contaminavam o corpo social e
de "economia moral" deve ser complementado e corrigi­ estavam sempre prontos, em atos e pensamentos, a blasfe­
do por uma análise mais matizada, tanto das tensões exis­ mar contra o Senhor, difamar as igrejas, destruir os altares
tentes dentro da comunidade quanto do impacto dos tumul­ e demolir as imagens que os cat6licos conservavam como
tos sobre a estrutura e constituição política da comunida­ sagradas.
de. Em parte, essa abordagem implica uma atenção maior O caráter do tumulto e a identidade de suas vítimas eram
aos fatores estruturais que influenciaram os papéis e as ati­ determinados não só pelos valores comunitários; as ativi­
tudes de diferentes grupos do vilarejo. Acima de tudo, exi­ dades comunitárias também influenciavam a escolha do mo­
ge uma atenção maior para a dinâmica da política local, tanto mento de deflagrar a ação violenta, bem como sua legitimi­
li � de natureza formal quanto informal. dade e a natureza de seus atributos rituais. Davis sugere que

1
A análise de Natalie Davis acerca das ações da massa os tumultos religiosos freqüentemente transformavam-se nu­
durante as guerras religiosas na França do século XVI tam­ ma extensão do ritual religioso: em geral, a violência se ori­
bém se concentram nos conceitos fundamentais de comu­ ginava em momentos de culto, e, às vezes, tanto os católi­
nidade e legitimidade. Seu artigo "The Rites of Violence" cos quanto os protestantes fundamentavam sua destruição
foi publicado pela primeira vez em 1973, dois anos depois num "repertório de ações" retirado da Bíblia ou da litur­
de "Moral Economy", de Thompson, e Davis claramente gia. Além disso, os ativistas religiosos iam buscar inspira­
ji
1

,1
compartilha certos aspectos da abordagem de Thompson. ção em atos tradicionais da justiça popular: os charivaris,
Como ele, Davis pretende ilustrar a natureza racional e au­ que já eram usados há muito tempo para fazer valer as nor­
!,I tônoma do ativismo da massa; como ele, também, procura mas da comunidade, também constituíam um meio ideal
explicar o "significado social" dos tumultos religiosos e des­ e "legÍtimo" de humilhar um indivíduo que violasse a ver­
.i'
, :.1
cobrir de que modo os padrões de violência se desenvolve- dadeira doutrina e atentasse contra o sagrado. Em síntese,
'
1j1
84 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 85
as percepções, tradições e as ações da comunidade inspira­
vez, em parte, pelo fato de ter-se afastado mais decisivamente
vam os objetivos, a legitimação, a ocasião e a base social
de uma metodologia marxista, voltando seu interesse para
do tumulto religioso.
as divisões fundamentadas em sexo e religião. Davis foi par­
As principais forças que motivavam os agitadores reli­
ticularmente eficaz ao ilustrar a capacidade de grupos apa­
giosos eram a cultura e a comunidade, não a economia e
rentemente destituídos de poder em forjar autoridade den-.
a classe. Em apoio a esse ponto de vista, Davis refuta, con­
tro das brechas ou lacunas das estruturas sociais existentes.
vincentemente, o argumento de Janine Estêbe de que o au­
mento do preço dos grãos tem relação direta com a violên­ Mostrou habilmente, por exemplo, de que modo as mulheres
cia religiosa e de que os massacres de 1572 foram, em parte, tiravam proveito das imagens de fraqueza e histeria femini­
"uma expressão do ódio de classes". Davis oferece uma aná­ na para ampliar seu poder e sua liberdade em diferentes si­
lise mais equilibrada dos participantes da violência religio­ tuações comunitárias34.
sa: ela observa, por exemplo, que embora os ativistas pro­ Paradoxalmente, porém, em "The Rites of Violence",
testantes proviessem de diferentes níveis s6cio-econômícos, mesmo quando observa os papéis distintivos de determina­
uma grande porcentagem deles era constituída por mem­ dos grupos, Davis não se aprofunda, tanto quanto poderia,
bros das "profissões mais recentes ou mais qualificadas", na análise das fissuras e dos diversos papéis dentro da co­
ou de "profissões que tinham sido transformadas pelos pro­ munidade. Sua ênfase principal continua sendo a idéia de
gressos urbanos dos primórdios do século XVI". Enquan­ que o tumulto religioso tem por metas fundamentais a uni­
to membros altamente instruídos de uma nova profissão, dade e a pureza do corpo social. Para ela, por exemplo, o
os tipógrafos e editores, por exemplo, podiam mais facil­ papel dos jovens é essencialmente o de manter a ordem e
mente tomar contato com a propaganda impressa da nova a consciência da comunidade, e não um elemento ritualiza­
religião; assim, era bastante prováyel que, nessas profissões, do dentro de uma luta pelo poder profundamente gerado­
as pessoas de todos os níveis viessem a converter-se ao pro­ ra de dissensão. Em "The Rites of Violence" ,· ela relega seus
testantismo. Davis também observa que certos grupos, co­ comentários sobre as tendências religiosas de membros de
mo as mulheres das cidades e os rapazes adolescentes, de­ diversas profissões a uma nota de rodapé35 • Em certo sen,
sempenharam um papel notáveJ33 • Ao praticarem violên­ tido, a unidade e a coesão da comunidade assumia uma im­
cia religiosa, os adolescentes propagavam sua permissão tra­ portância ainda maior para os revoltosos de Davis do que
dicional de agir de acordo com "a consciência da comuni­ para os ativistas de Thompson. Os insurgentes religiosos
dade" e de fazer cumprir as normas sociais. iam além da defesa de um conceito comuru de justiça; re­
Em geral, Davis é muito mais sensível que Thompson corriam à violência para purgar ou purificar a própria co-
à dinâmica de grupos diferentes dentro da comunidade, tal-
34. Ver, especialmente, de autoria de Davis, "City Women and Religious
33. Davis, "Rites of Violence", pp. 175-78, 182-84; Janine Estebe e Natalie Change" e "Women on Top", em Society and Culture, pp. 65-96 e 124-51; idem,
Davis, "Debate on the Rites of Víolence: Religious Riot in Síxteenth-Century The Return ofMartin Guerre (Cambridge, Mass., 1983), esp. pp. 30-34, 67-68, so­
France, Comment and Rejoinder", Past and Present 67 (1975): 127-35, Sobre o bre o papel de Bertrande; idem, "WOmen in the Crafts in Sixteenth-Century Lyon"'
papel dos jovens, ver "The Reasons of Misrule" e "Tasks and Themes". Feminist Swdies 8 (1982): 47-80.
35, Davis, "Rites of Violence", pp. 177-78 n.
A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 87
86
munidade e para definir suas fronteiras contra as ameaças como um fenômeno cultural que, apesar de violento,
de fora e de dentro. Talvez o fato de Davis enfatizar tão baseava-se essencialmente na ordem e na pureza comunitá­
_
fortemente a coesão da comunidade se deva, em parte, a seu ria. Como sugere o titulo de seu ensaio, o tumulto
claro desejo de demarcar o contraste entre crenças e com­ transforma-se num ritual que tem por finalidade a unidade
portamentos católicos e protestantes. Em resultado, sacri­ comunitária. A interpretação de Davis é irresistÍvel, e seu
fica uma análise mais intensa a essa justaposição mais am­ en�oque do significad_o _e da legitimidade percebidos pela mas­

-
pla de características de grupo. sa e importante e ongmal. Mas o leitor pode ficar também
As limitações na compreensão de Davis acerca da co­ co� a incômoda sensação de que algumas questões críticas
deixaram de ser levantadas. A ênfase sobre a coesão da co­
munidade também se encontram na abordagem antropoló­
munidade e a fo ça de sua legitimidade, sobretudo, impede
gica que informa e inspira, mas também restringe, a natu­ _ ,'."
uma cons1deraçao adequada das questões relativas à trans­
reza das questões que ela decide levantar. Vários antropó­
formação, ao conflito e ao poder.
logos simbólicos influentes, como Geertz, Sahlins, Turner
Na verdade, ao esquadrinhar ou expandir a análise de
e Douglas, definiram cultura como sendo basicamente um
Davis, seria possível virar alguns de seus argumentos de ca­
sistema de símbolos mantidos pela coletividade. Se, por um
beça para baixo ou de pernas para o ar - para usarmos um
lado, esses antropólogos (sobretudo Geertz e Sahlins) pro­
de seus temas culturais favoritos. Inverter desse modo al­
curaram incorporar e desenvolver uma sensibilidade à trans­
guns dos pontos essenciais da abordagem de Davis revela ­
formação histórica dentro dos sistemas culturais, por ou­ _
na novas possibilidades de interpretação, com base nos fun­
tro sua abordagem enfatiza o papel da cultura como uma
damentos por ela já assentados.
espécie de mecanismo sutil para a manutenção da ordem,
Examinemos, primeiro, sua noção de comunidade. Ela
do significado e da coesão sociaJJ6. Correndo o risco de sim­ afirma que a autopercepção comunitária legitimava a suble­
plificar excessivamente o trabalho deles, bem como o im­ v�ção e influenciava sua forma; contudo, poder-se-ia· tam­
pacto deste trabalho sobre os historiadores, eu diria que a bem argumentar que, na verdade, a violência transformou
vigorosa ênfase dos antropólogos sobre a função estética e fundamentalmente a comunidade urbana e a redefiniu por
conciliadora da cultura levou os historiadores a uma cor­ _
mte1ro.. Em vez de afirmar que as percepções existentes do
respondente limitação de seus enfoques. Em sua análise da corpo social definiam a violência, seria possível dizer que
violência religiosa, Davis procura interpretar o tumulto .
a v10lenc1a em torno das crenças religiosas destruiu a co­
munidade existente, fragmentando-a através de uma sangren­
36. Sobre os problemas dessa abordagem antropológica, ver, por exemplo,
ta luta pelo poder, com cada grupo lutando para delimitar
Ronald G. Walters, ''Signs of the Times: Clifford Geertz and Historians", Social novas fronteiras comunitárias. A violência forçou os habi­
Research 47 (1980): 537-56, esp. PP· 553-56; William Sewell, Work andRe volution tantes urbanos a repensar suas tradicionais definições de co­
in France: The Language ofLaborfrom the Old Regime to 1848 (Cambridge, 1980),
pp. 10-13; Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropology Makes lts Ob­ munidade.
ject (Nova Iorque, 1983), pp. 151-52, 156; M. Greengrass, "The Anatomy of a Com efeito, Davis deixa o l;,itor a se perguntar até que
Religious Ríot at Toulouse",jouma/ o/ Ecdesiastical History 34 (1983): 367-91,
esp. pp. 389-91. ponto católicos e protestantes faziam parte de uma mesma

,
88 A NOVA HISTÓRIA CULTUR AL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 89

comunidade. Às vezes os dois grupos parecem lutar, den­ focalizando também a formação social e as interações dos dois
tro da comunidade, pelo controle do sagrado; em outros grupos. Em grande parte, porém, o elemento político não é
momentos, agem como duas comunidades antag6nicas em explorado. Fica a cargo dos historiadores dos conflitos coleti­
guerra uma contra a outra. Se os dois grupos realmente fa­ vos i�vest(g:11' a inter-�e!ação entre os níveis políticos, religio­
ziam parte da mesma comunidade e compartilhavam alguns sos, s1mbohcos e soc1a1s �a luta pelo controle municipaJ37.
aspectos de seu sistema simbólico (para não dizer o mesmo Para explorarmos as ligações entre o significado e O po­
espaço social dentro da cidade, das igrejas, da política mu­ der no âmbito da violência religiosa, poderíamos analisar e
nicipal e da economia urbana), então a violência deles torna­ inverter um segundo elemento da argumentação de Davis.
se parte de uma luta maior e de múltiplos aspectos pelo con· Ela afirma que os padrões de ações dos rebeldes revelam seus
trole, num sentido às vezes brutal e de absoluta abrangên­ pressupostos sobre a legitimidade e seu senso racional e or­
cia. Enquanto a violência se tornou, sem dúvida, um meio deiro de unidade e significado; contudo, seria possível argu­
fundamental de definir a identidade e a solidariedade reli­ mentar que, ao contrário, essas ações ilustram as incertezas
giosas, o contexto do conflito religioso também forçou ca­ dos ativistas sobre a legitimidade, revelam sua necessidade
tólicos e protestantes a viverem numa comunidade ideolo- . de forjar um novo poder e, de fato, contribuem para sua ca­
gicamente dividida. Essa realidade tinha duas ramificações pa�idade d cri , dentro da cidade, novos papéis para si pró­
7 :n-
principais: a longo prazo, significava que ambos os grupos pnos. Davis afirma, por exemplo, que os insurgentes se sen­
acabariam tendo de aceitar uma nova concepção da diversi­ tiam no direito de agir em lugar das autoridades civis ou re­
dade e das tensões possíveis dentro da comunidade urbana; ligiosas que faltavam com seus dever�s. Para ela, as imita­
. ,
a curto prazo, significava que católicos e prot,çstantes esta­ ções de ações oficiais, tais como os julgamentos simulados
vam engajados numa luta muito real pelo poder e o contro­ eram um me10 para os ativistas religiosos formarem e con-
le, bem como pelo significado, pela doutrina e pelas defini- solidarem seu senso de legitimidade e também atribuírem um
ções do corpo social. significado sistemático a sua violência. Davis, porém, não su­
Para compreendermos as características desse conflito gere a possibilidade de que o repertório de ações imitativas
que era ao mesmo tempo religioso e político, seria conve­ das fórmulas oficiais pudesse ter sido uma forma de usurpar
niente saber mais do que Davis nos conta sobre o modo o poder das autoridades e talvez, simultaneamente, ridicula­
como os cidadãos huguenotes e católicos interagiam em es­ rizar e criticar as deficiências desses oficiais. Além de cria­
feras de ação pacífica e, particularmente, no domínio da po­ rem significado e legitimidade, tais ações podem ter sido uma
lítica. Como se relacionavam entre si na feira livre? Viviam forma deliberada de exigir, de modo muito direto e explíci­
em comunidades distintas? Competiam pelos cargos de ma­ to, um poder e uma autoridade até então inédita.
gistrados locais? Davis examina algumas questões desse ti­ Além disso, talvez também revelassem as dúvidas e as
po em seu mais recente artigo, "The Sacred and the Body certezas dos insurgentes. Enquanto Davis relata que alguns
Social in Sixteenth-Century Lyon", publicado em 1981, onde
aprimora sua discussão de como as crenças religiosas influen­
ciaram os conceitos católicos e protestantes de comunidade, 37. Davis, "The Sacred and the Body Social", Past and Present 90 (1981): 40-70.
90 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 91
oficiais aprovavam tacitamente os tumultos r�ligi�sos, ou
à racionalização: afirmar que um tumulto é um ritual equi­
até mesmo chegavam a tomar parte neles, o leitor fica a in­
_ vale a atenuar a violência ou a desviar a atenção das lutas
dagar sobre aqueles oficiais que pr�c"._ra�am i1:1�or a ordem
e a tranqüilidade. Que espécie de dmamica exis:ia entre _ e(es pelo poder implícitas nessa matança pelas ruas. O tumulto
era sempre ritual? Não se originaria às vezes num contexto
e os insurgentes? Os grupos privados de autondade oficial
ritual para, então, expandir- se para além dele e assumir um
não tinham necessariamente, a unidade e a ordem comu­
caos e uma brutalidade que dificilmente poderiam expressar­
nitárias coU::o prioridade; é possível que também tivessem
se dentro do conceito de ritual per se? Por exemplo, ape­
interesses particulares a defe�der e q�e tenham procurado
drejar uma casa onde os protestantes entoavam salmos, aban­
descobrir as técnicas para faze-lo. Alem do mais, sen� con­
donar repentinamente uma procissão para atacar um espec­
veniente perguntar de que modo seu papel enquanto msur­
tador zombeteiro, ou provocar os participantes de uma pro­
gentes talvez lhes tenha conferido, como um subproduto
cissão rival não era bem um ritual, mas uma violência que
de sua liderança religiosa, status ou autoridade dentro da co­
munidade, assim como as mulheres ou artesãos que lidera­ se originava num contexto ritual .., que, na verdade, pode
ram os tumultos por falta de grãos, no estudo de Thomp­ ter-se degenerado numa deturpação ou até mesmo na des­
son talvez tenham adquirido certos tipos de poder ou res­ truição do ritual.
pei;o em função de seu ati:isn_io. Em �Íntese, é prec;_iso p�r­ O uso do termo ritual para descrever padrões de vio­
guntar não s6 como a violencia refleua as concepçoes exis­ lência ajusta-se perfeitamente à concepção antropol6gica de
tentes de comunidade, mas também de que modo ela trans­ cultura enquanto força estética e unificadora. Se a violên­
formava a comunidade ao atribuir novos papéis, poder ou cia é ritual, parece ser dotada de uma.legitimidade inerente
status a alguns de seus membros. que, de certo modo, é predeterminada e reforça a natureza
. .
, vezes mquietante) essencialmente coesa da comunidade. Mas nem sempre é fácil
Outro aspecto fascinante (ainda que as
da argumentação de Dav)s, e que pode ser fertil ent: ques­ estabelecer uma relação entre ritual e violência. Em primeiro
':'
tionado ou até mesmo virado de cabeça para baixo, e a sua lugar, precisamos fazer uma diferença entre padrões de ação
crença' de que o ritual levava à violência e de que, co?'o simb61ica reiterada, por um lado, e ritual, por .outro38 . Em
conseqüência, a violência às vezes transformava-se em nt�. segundo lugar, nos casos em que a violência tornou-se ri­
Davis revela-se muito perspicaz ao sugerir que o culto reh­ tual precisamos perguntar de que modo os ativistas conse­
gioSo transformava-se numa ocasião propícia à viol�nci�, e guiram dotar a violência de qualidades rituais e criar tanto
_
que os tumultos assumiam for�as nt�afiz�das por mspira­ uma legitimidade religiosa quanto um poder terreno ao
, transformarem a natureza, e às vezes o significado, dos pr6-
ção em crenças e costumes bibhcos, l1turg1cos ou tradic10-
nais. Davis observa que os ativistas do século XVI podem prios símbolos. Na França do século XVI, por exemplo,
ter-se habituado à crueldade de suas ações pelo fato de en­ os costumes bíblicos e litúrgicos s6 ofereciam modelos de
volverem a violência em formas rituais. Sob esse aspecto validação da violência se fossem reinterpretados e tomados
sua análise é sutil, mas é provável que ao leitor fique a im­
pressão de que a autora se equipara aos insurgentes quanto
38. John Skorupski, Symbol and Theory (Cambridge, 1976), pp. 69-75.
92 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MA.SSAS, COMUNIDADE E RITUAL 93
de certas maneiras. Os insurgentes podem ter alterado ou
distorcido os símbolos e rituais como parte de sua luta pe­ do três dias de verdadeiro combate39• Davis apresenta es­
lo controle do significado e da autoridade. Em síntese, ao sas cenas como evidências da natureza e do contexto ritua­
reconhecer que os padrões de violência não são rituais por lizados da violência e como provas de fortes razões religio­
natureza, mas apenas vagamente dotados de legitimidade ri­ sas dos insurgentes. Contudo, também seria preciso pergun­
tual através de uma luta violenta e polêmica, o historiador tar de que modo esse caráter particularmente agressivo da
pode reintegrar o poder e o conflito na interpretação de ati­ prática religiosa, numa época de conflitos, produziu impacto
vismo coletivo sem que isso implique a perda dos insights sobre os sentimentos religiosos, e como estes últimos se en­
conquistados à antropologia. redaram, de maneira inextricável, à dinâmica do poder, Qual
. Para virar mais uma vez a argumentação de Davis de foi o efeito disso sobre as atitudes dos devotos católicos se
cabeça para baixo, poderíamos, além de observar que a cren­ eles sabiam que cada procissão poderia ser, de fato, uma pro­
ça religiosa configurava a violência, perguntar de que mo­ vocação e que cada dia santo p0deria transformar-se numa
do a violência conseguia, de fato, transformar fundamen­ carnificina? Como se misturavam os motivos sagrados e pro­
talmente o ritual e as percepções religiosas. Em primeiro fanos quando os protestantes despedaçavam os ícones - is­
lugar, o próprio contexto em que se davam os conflitos am­ to é, de que modo as convicções religiosas sobre a profana­
1
'

pliava certas funções profanas e políticas do ritual: quase ção do sagrado e da comunidade se misturavam com a ira,
inevitavelmente, o ritual ultrapassava a mera expressão de numa posição de inf erioridade e ilegalidade forçadas? As
religiosidade e valores comunitários. Mesmo ·sem se tornar crenças religiosas, a defesa da verdadeira doutrina e da co­
violento, o ritual transformava-se, por si só, numa arma. munidade religiosa, foram, sem dúvida, fatores de motiva­
Tornemos, por exemplo, um caso relevante de uma outra ção sinceros e importantes, mas nessa atmosfera exaltada
época: durante as fases decisivas da Revolução Francesa, al­ os objetivos religiosos, e mesmo as próprias crenças religio­
guns católicos, por motivos políticos e religiosos, partici­ sas, não pOdiam ser separados de questões de status, confli­
param de uma forma ilegal de culto. Dançar ilegalmente num to e poder.
dia santo não era apenas uma celebração religiosa e comu­ Como, então, a violência religiosa influenciou e possi­
nitária; constituía também um desafio com forte conota­ velmente transformou as crenças e o senso de identidade
ção política. Do mesmo modo, na França do século XVI comunitária? Aqui encontramos o outro lado da argumen­
a devoção religiosa pública tornou-se facilmente uma de- tação de Davis: da mesma forma que as crenças e os ritos
. claração de hostilidade ou desafio. comunitários influenciavam e legitimavam a viornncia, as­
Davis fornece muitos exemplos de rituais hostis: quan­ sim também a própria violência estreitava os limites das co­
do a procissão dos protestantes passou a assemelhar-se a um munidades protestantes e católicas e influenciava a dinâmi­
"desfile militar", os salmos que entoavam caíam como de­ ca do poder e as percepções religiosas dentro de cada gru­
safios e insultos nos ouvidos católicos; inversamente, os ca­ po. A religião huguenote, por exemplo, tomou forma num
tólicos de Pamiers que dançavam no dia de Santo Ant8nio
começaram a gritar em coro: "Morte, morte!", deflagran-
39. Davis, "Rites of Violence", pp. 73-75,
94 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 95

caldeirão de oposições e hostilidades legais. Essa oposição res, influenciados pelas idéias de Davis e de Thompson, são
e os conflitos dela decorrentes podem, inicialmente, ter re­ testemunhas da importância e do caráter oportuno da contri­
forç';ldo a fé huguenote, criado um senso de diferença e con­ buição de ambos.
ferido determinadas características a suas pr6prias doutri­ O que necessitamos hoje não é tanto um retorno à aborda­
nas. Da mesma forma, essa era de violência pode facilmen­ gem estrutural que Davis e Thompson procuraram corrigir,
te ter influenciado as metáforas e a espiritualidade cat6li­ masUífia estrutura a panlrdas bases que eles lançaram. Precisa­
cas. ·Embora o conceito de espiritualidade enquanto campo mos perguntar de que modo a abordagem cultural da hist6ria
de batalha não seja absolutamente novo na era da Refor­ em geral e do ativismo coletivo em particular pode incorporar
tanto a ênfase antropol6gica sobre o significado e a mentalité
ma, talvez suas ramificações fossem diferentes daquelas dos
quanto uma percepção maior da dinâmica do poder e da trans­
tempos medievais. Além do mais, em alguns casos a neces­
formação. No caso do ativismo popular, a ênfase de Davis e
sidade de lutar em defesa da doutrina religiosa ou a necessi­ Thompson ao exame da comunidade e da legitimidade deve
dade de praticar ilegalmente o ritual podiam transformar reintegrar-se à análise do poder, da transformação e do conflito.
tanto a forma quanto o significado da expressão religiosa. Em primeiro lugar, embora os padrões do ativismo pd­
Sem dúvida, embora essas questões nos levem para além da pular possam revelar o significado que tinham para os parti­
análise do pr6prio tumulto, fazendo-nos penetrar os domí­ cipantes, esses padrões não são necessariamente conciliado­
nios mais amplos da espiritualidade protestante e cat6lica, res, estáticos ou universalmente interpretados da mesma ma­
oferecem-nos férteis campos de análise. Além disso, realçam neira. A exemplo das atitudes dos aldeões, os padrões de vio­
o potencial da violência de transformar, e não simplesmen­ lência podem ser ambíguos. Não devemos, portanto, enfati­
te fortalecer, as atitudes comunitárias. zar os padrões e rituais de violência à custa de perguntar de
Ao elucidarem o papel fundamental da comunidade na que modo as sublevações têm um impacto transformador, não
criação de noções de legitimidade e justiça que inspiravam s6 com relação aos papéis e ao status dos membros da comu­
a violência popular em moldes racionais e significativos, Na­ nidade, mas também sobre as atitudes e costumes culturais.
talie Davis e E. P. Thompson deram uma contribuição ori­ Em segundo lugar, os sistemas culturais podem, de fato, for­
ginal e surpreendente à interpretação cultural do ativismo talecer a comunidade, manter a "ordem" e dotar diferentes
e das atitudes populares. Juntos, resgataram o estudo das ações de legitimidade e significado. Mas podem também tornar­
ações coletivas de sua ênfase anterior sobre as forças fconô­ se veículos para a criação de poder e a disseminação de disc6r­
micas ou psicológicas . Mostraram, decisivamente, a impor­ dia. Os diferentes membros da comunidade têm atitudes di­
tância dos fatores culturais e comunitários na motivação dos versas em relação aos sistemas simb6licos, apropriando-se de­
ativistas e ilustraram o papel independente e ativo dos in­ liberadamente dos símbolos ou manipulando-os como parte
surgentes na criação de sua pr6pria hist6ria. A ênfase que de uma luta pelo controle40 • Devemos esforçar-nos para ela-
atribuíram à visão de mundo, ao ritual e ao significado com­
partilhado teve ramificações que extrapolam os domínios 40. Sobre as várias interpretações possíveis dos símbolos, ver Roger Chartier,
do estudo da massa, pois ajudaram a criar a hist6ria d_as_men­ ''Texts, Symbols, and Frenchness",Journa/ o/Modem Hi.story 57 (1985): 685-95, esp.
talités e da cultura popular em geral. Inúmêros'liistoriado- pp. 689-90.
96 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

borar uma análise da dinâmica interna da comunidade que


seja tão equilibrada quanto as fomes o permitam. Além disso,
a ênfase sobre a força poderosa e determinante de fatores
culturais como, por exemplo, a crença religiosa, não nos
deve fazer ignorar outros fatores decisivos, como os confli­
tos e interesses políticos e sócio-econ6micos. Ao demons­
trarem a necessidade de um questionamento crÍtico das con­
cepções comunitárías de legitimidade e significado, Davis
e Thompson fomentaram a abordagem cultural da violên­
cia popular. Precisamos, agora, perguntar de que modo a
III
violência contribui não s6 para a definição de comunidade
e significado, mas também para a transformação de siste­
SABER LOCAL, HISTÓRIA LOCAL GEERTZ E ALÉM
mas simbólicos e o realinhamento de poder, status e papéis
dentro da comunidade. ALEITA BIERSACK

Os estilos são "confusos", disse Clifford Geertz 1 . Pa­


ra cada historiador que cita o apelo de Braudel à science so­
ciale, há um antropólogo a nos lentbrar a famosa máxima
de Maitland: de que a antropologia será história, ou não se­
rá absolutamente nada. Os historiadores reconhecem, aber­
tamente, a influência de Claude Lévi-Strauss, Victor. Tur­
ner, Mary Douglas e, em particular, a de Clifford Geertz.
E hoje,- no exato momento em que o "paradigma dos An­
nales" tornou-se mais polêmico que nunca2, Marshall Sah-

Meus agradecimentos a Lynn Hunt por ter-me convidado a participar desse


estimulante projeto, e a Lynn Hum, Alexander Bolyanatz, Roger Chartier, James
Clifford, Roger Keesing, Debra Kirch, George Sh"eridan e os revisoies da Univer­
sity of California Press por seus valiosos comentários e sugestões sobre versões an­
teriores deste ensaio.
1. Clifford Geertz', Local Knowledge: Further Essa)'S in lnterpretive Anthropo­
fugy (Nova Iorque, 1983), cap. 1.
2. Lynn Hunt, "French History in the Last Twenty Years: The Rise and Fali
of the Annales Paradigm",Journal o/Contemporary History 21 (1986}: 209-24; ver
também a introdução de Hunt ao presente livro. Para uma explicação completa
do "paradigma" dos Annales, ver Traian Stoianovich, French Historical Method: 1he
Annales Paradigm (Ithaca, Nova Iorque, 1976).
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