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cault desafiou-nos a questionar nossos pressupostos e legou MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
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nos o método e os instrumentos de análise para a escrita NA OBRA DE E. P. THOMPSON E NATAL!E DAVIS
de uma história da cultura nova e política. SUZANNE DESAN
Foram muito proveitosas para mim as sugestões de Tom Broman, Dena Good
man, Lynn Hunt,Julie Liss, Lynn Nyhart e dos panicipantes da Charter Conferen
ce realizada em Berkeley em al:iril de 1987. Gostana de agradecer especialmente à Na�
talie Davis pelos seus proveitosos comentários. __
68. lbid., PP· 224-25.
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64 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
65
massas com o objetivo de corrigir a concepção incorreta de
que os desordeiros eram hordas ingovernáveis que pratica de Thompson e Davis sobre a violência da massa também
vam uma violência gratuita, sem finalidades e motivações estimulou os estudiosos da cultura popular e da história da
racionais1• De acordo com sua ênfase sobre o poder da cul-_ comuntdade_ em geral a examinar os valores e os rituais co
tura, Thompson e Davis deram mais atenção aos aspectos munitários dentro do comportamento popular amplamen
ritualizados e teatrais da ação das massas enquanto expres te definido.
são cultural e comunitária: focalizaram basicamente o sig Neste e �s�io, discuúrei primeiro as concepções e os pro
nificado, as motivações e os meios de legitimar a ação cole _
gramas htstoncos subpcentes seguidos pelos dois autores
tiva violenta. Mais especificamente, argumentavam não só enquanto figuras originais do desenvolvimento da aborda
que os desordeiros agiam com base em alguma certeza mo gem c�ltural. Depois, examinarei os aspectos mais funda
ral e algum senso de legitimidade comunitária, mas, tam mentais de sua obra sobre o ativismo popular, concentrando
bém, que certos padrões rituais na verdade ajustavam a vio m_e n� art_1go _ de Davis, "The Rites of Violence: Religious
lência deles dentro de um contexto simbólico coerente, do R10t 1n S1xteenth-Century France", e no de Thompson
tando suas ações de legitimidade e significado2• A obra de "The Moral Economy of the English Crowd in th�
Thompson e Davis sobre os tumultos tornou-se tão influente Eighteenth-Century". Avaliarei a influência de ambos so
que os autores redefiniram as questões levantadas pela maio bre as recentes teorias da massa e sobre as definições de cul
ria dos historiadores sobre as massas. A maior parte das pes tura e comunidade. Finalmente, explorarei de que modo po
soas que nos últimos anos desenvolveram um trabalho so demos complementar sua obra através de uma ampliação
bre as ações coletivas procuraram não apenas investigar os da abordagem cultural da história.
antecedentes sócio-econômicos da massa, quando possível, Ao delimitarem as no�as questões e métodos de pesquisa,
mas também decgdificar os padrões ou rituais do próprio
� - P. Thompson e Natalte Davis produziram um enorme
tumulto, com a finalidade de descobrir a percepção que seus
impacto sobre a história européia, e ambos são merecedo
participantes têm de seu significado e de sua validade. A obra
res da grande reputação de que desfrutam. Hoje é impossí
vel desenvolver um trabalho sobre a Reforma sem ter lido
1. Entre o grande número de publicações de Rudé e TillY sobre a massa, Davis, ou estudar a Revolução Industrial sem uma leitura
as obras fundamentais incluem, de Rudé, The Crowd in History, 1730-1848 (Nova atenta de Thompson. A obra de Davis ampliou o enfoque
Iorque, 1964) e, de Charles Tilly, The Vendée (Cambridge, Mass., 1964); idem,
From Mobilization to Revolutíon (Rcadíng, Mass., 1978) e, idem, The Contentious d ?s estudos sobre a Reforma para além das questões teoló
French (Cambridge, Mass., 1968). Ver também Robert Holton, "The Crowd in gicas, voltando :s � para a história social da Reforma e para
History: Some Problems of Theory and Method", Social History 3 (1978): 219-3:3, .
e Lynn Hunt, "Charles Tilly's Colleccive Action", em Vision and Method in 1-fis• o exame da reltg1ao popular. Embora os escritos de Davis
torical Socíology, org. Theda Skücpol (Cambridge, 1984), pp. 244-75. se aj':'.stem ao c �nt�xto
2. Natalie Zemon Davis, "The Rites of Violence: Religious Riot in Sixteenth _ da escola dos Annales, com sua pro
Century France", Past and Present 59 (1973): 51-91; reimpresso em Natalie Ze
pensao para a htstona do povo e para a histoire des mentali
mon Davis, Society and Culture in Early Modem France (Stanford, Calif,, 1975), tés, seu tra��lho tam�ém complementa a abordagem fran
pp. 152-87. (Minhas citações são extraídas do livro.) E. P. Thompson, "The Mo cesa por uttltzar, maciçamente, a antropologia simbólica e
r.ti Economy of the English Crowd in the Eighteemh Century", Past and Pre
sent 50 (1971), 76-136. enfatizar o papel determinante e fundamental dos fatores
culturais, em detrimento dos fatores climáticos, geográficos
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ou sócio•econômicos3. Do mesmo modo, assim como Na principais determinantes da história. Am
talie Davis deixou uma marca radical no estudo da Refor bos repudiaram
uma explicação simples de base/superes
ma e da cultura popular em ger�Vl. P. Thompson trans trutura para a for
mação das percepções culturais. Durante
formou o estudo da Revolução Industrial e reformulou cri sua pesquisa de dou
toramento sobre os impressores e pro
testantes da Lyon d
ticamente os debates sobre a metodologia marxista. Em sua século XVI, Davis começou a questionar
obra fundamental, The Making ofthe English Working Class, a validade do mo�
delo de classe ma xista como element
. i_: o mais significativo
Thompson contestou a importância dos tradicionais deba para a determmaçao do comportamento
e da atitude. "As
tes quantitativos sobre os salários reais e o padrão de vida desc?bertas da própria tese levaram-me a
, repensar a impor
mensurável da classe trabalhadora na Inglaterra do século tan cia da classe social e do conflito de clas
se nas transfor
XIX e, em seu lugar, deu início a uma vasta exploração da mações religiosas,,, comentou ela num
a entrevista. "A Re
formação cultural das atitudes e da consciência da classe tra for�a, em suas décadas de f rmação em
? Lyon, ultrapassou,
balhadora. Seu estudo da identidade da classe trabalhadora mais do que refletm, os hrn1tes de classes,
mas as razões dis
'1 atraiu muitos seguidores, discípulos e imitadores, bem co so podem ser totalmente compreendidas
em termos sócio
mo críticos4. econômicos"5. As últimas obras de Dav
is ilustram uma sen
Ao revelarem novos temas e métodos de análise, Davis sibilidade a vários agrupamentos den
tro da sociedade· esses
e Thompson deram ênfase a urna mesma idéia central - grupos podem incidir em categorias
sócio-econômi�as ou
o papel decisivo da cultura como força motivadora da trans P_'.'de_rn compartilhar ví culos dif eren
� tes, tais como ocupa
formação histórica. Tarnbérn tinham em comum um mes çao, idade, sexo, confrana ou lealdade
à comunidade de um
mo ponto de partida: ambos iniciaram suas carreiras de his povoado. Com eloqüência, e de mo
do consistente, ela ar
toriadores trabalhando dentro da tradição marxista e am gumenta em favor de uma análise mai
s sutil da dinâmica
bos reagiram contra as "tradicionais" interpretações mar desses grupos e do impacto das forças
econômicas sobre a
xistas que enfatizavam as forças sócio-econômicas como as c�ltu:ª· Em sua análise dos mosteiros par
a jovens e dos cha
nvan
_ s, por exemplo, Davis contrasta a estrutura da comu
mdade rural do vilarejo corno univers
o urbano e mais com
3. Nos últimos anos, inúmeros seguidores da escola dos Annales abandona· plexo dos ofícios, vizinhanças e profiss
ram sua ênfase e análise sobre os fatores sócio-econômicos de longa duração e ões, mostrando de
voltaram-se para os elementos culturais. Sob certo aspecto, a guinada para as men·
que mo�� esses contextos influenciar
am a organização, a
talités chegou mesmo a minar a posição origi�al da esc�la ?os A_?nales, segundo compos1çao, o papel e a função de gru
a qual os fatores críticos eram de ordem social e econonuca, na� cultural. Ver pos de jovens em di
Lynn. Hunt, "French History in the Last Twenty "'!ears: The· Rtse and Fall of
ferentes arnbientes6.
the Annales Paradigrn", ]oumal ofContemporary Htstory 21 (1�86): �09-24, esp. . Como Natalie Davis, E. P. Thompson nega qualquer
p. 217. Sobre a história da escola dos Annales, ver Tra1an Sto1anov1ch, French simples correlação entre forças econôm
Historical Method: The Anna[es Paradi�m (lthaca, N.I., 1976). icas e construtos cul-
4. E. P. Thomrson, The Making o/ the English Working C/ass (Nova Iorque,
1963). Sobre a influencia de Thompson, ver, por exemplo, Alan Dawley, "E. P.
Thompson and the Peculiarities of the Americans", Radical History Review 19 _S. Rob Harding e Judy Coffin, "Interview
(1978•79): 33,59; Craig Calhoun, The Question o/ Class St71!ggle (Ch1_cago, 1982), o,fllutory, o�g. Henry Ab�lo et with Natalie Davis" em Visions
ai. (Nov
e Paul Sdack (org.), Rebellion, Popular Protest, and the Social Order tn Early Mo 6. Natahe Zemon Davis, ;_;The Reasonsa Iorque, 1983), p. 109.'
dern England (Cambridge, 1984). re, PP· 97-123. of Misrule"' em Society and Cultu•
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7 Sobre O relacionamento de Thompson com outros marxistas e com o par "Folklore, Anthropology, and Social History", Indian Historical Review 3 (1977):
tido c�munista, ver Bryan D. Palmer, The Making ofE: P. Thomr,son: Marxism,
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a antropologia, primeiro como uma forma de refletir so
bre os rituais secretos dos sindicatos primitivos e, mais tar
' f revelar de que modo o sistema social se ajusta e como os
seus_ participantes percebem a si próprios e ao mundo ex
de, como um meio de compreender os elementos simbóli terior.
cos e dramáticos da prática religiosa12• Sua obra revela a in ':e:.'. E. P. Thompson, ao contrário, tem uma atitude mais
fluência de uma ampla gama de antropólogos simbólicos, ambivalente diante da antropologia. Suas primeiras obras não
entre os quais Clifford Geertz, Mary Douglas, Arnold Van foram diretamente influenciadas pela antrópologia. Com a
Gennep, Max Gluckman, E. Evans-Pritchard e Victor Tur tÍpica desconfiança de um empirista inglês acerca da história
ner. Davis demonstra certas reservas quanto às deficiências "obscura", Thompson parece ter inicialmente relutado em
da antropologia, criticando, em particular, a tendência des ' apoiar ou confiar na antropologia simbólica como instrumen
ta em ignorar a transformação. Em sua própria obra, busca to de análise. Desconfiado das compa@çêíeüntrrrnlturais ou
consistentemente combinar insights antropológicos com uma das amplas generalizações relativas a sistemas de símbolos,
sensibilidade maior à dinâmica histórica. Contudo, Davis criticou, por exemplo, as abordagens antropológicas de Alan
reconhece que a disciplina é útil para ajudar o historiador Ma_cFarlane e Gareth_Stedman Jones por sua falta de especi-·
a desenvolver uma percepção da rica variedade da experiência ficidade histórica e pelo uso de "tipologias" abstratas e não
humana. A antropologia também oferece métodos para o históricas que carecem de rigor empírico. Ao mesmo tem
exame das "interações informais", ou em escala reduzida, po, porém, Thompson reconheceu a�p�sibilidades de uma
que podem expressar importantes conexões e conflitos" den utilização eclética e contextualizada da rnspii'ãçro antropo
tro da estrutura social13. Ainda que Davis não seja, abso lógica: elog�a influência da mesma em Religion and the
lutamente, uma funcionalista estrita em sua abordagem an Decline of Magic, de Keith Thoma;14,
tropológica, admite que diversos eventos ou costumes cul Ao voltar sua atenção para a sociedade cheia de costu
turais (como tumultos, festivais ou charivaris) têm uma fun mes do século XVIII, Thompson viu ali um potencial maior
ção e um significado específicos para os participantes e a para a antropologia. Aliando-se a Keith Thomas e Natalie
comunidade. Ao interpretar os padrões e o significado sim Davis, declarou, em 1977: "Para nós, o impulso antropoló
bólicos desses fenômenos culturais, o historiador pode gico é percebido, sobretudo, não na criação de modelos, mas
na demarcação de novos 11roblemas, no modo de ver, com
12. Harding e Coffin, "Interview with Davis", pp. 110-_tl.
novos olhos, os velhos problemas, numa ênfase em normas
13. Natalie Zemon Davis, "Anthropology a nd H1story m the t980s: The ou sistemas de valor e rituais, na atenção às funções expres
Possibilities of the Past' ', Journal o/ lnterdisciplinary History 11 (1981): 267-75, sivas das formas de tumultos e distúrbios e nas expressões
esp. pp. 269, 274-75, e idem, "Some Tasks and Themes in the St.udy of Pop1._1lar
Religion '', em The Pursuit ofHoliness in Late Medieval a nd Renamance Religwn, simbólicas de autoridade, controle e hegemonci/' 15 . Em sua
org. Charles Trinkhaus e Heiko Oberman (Leiden, 1974), pp. 307-36. Para uma
abordagem diacrônica e.a ntr?Pº!6gica, ver, de Davis, "G�?sts, Kin, and Progeny:
Some Features of Fam1ly L 1fe in Early Modem France , Daeda/11s 106 (1�77):
87-114. Davis também está reavaliando o rnétodo antropológico em seus projetos 14. E. P. Thompson, "Amhropology and the Discipline of Historical Con
atuais sobre graças concedidas e pedi1os de pe_rdã?; ver, d e sua autoria, Fiction text", Midland History 1 {1972): 40-45, 49-53, e idem, "Folklore, Anthropology,
in the Archives: Pardon Tales and Their Tellers m Stxteenth-Century France (Stan and Social History", pp. 256-60. _
lord, Calif., 1987). 15. Thompson, "Folklore, Anthropology, a nd Social History", p. 248.
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Thompson também manifestou um crescente interesse pelas possibilidades da an• especificamente as teorias de Althusser, tanto sua cnt,ca quanto sua obra revela_m
i tropologia numa entrevista recente; ver Merrill, "Interview with Thompson", sua desconfiança geral da teoria; ver Johnson, "Thompson, Genovese, and Soc1a-
list Humanist History", pp. 82-85. _ ·
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p. 21.
17. Thompson, "Eighteenth-Cemury Society", pp. 155-56. 20. Thompson, "Folklore, Anthropology, and Social History", p. 251.
21. Thompson, Poverty of Iheory, p. 25.
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ma e na Inglaterra em processo de industrialização, tanto ção da natureza racional e inata do ativismo das massas. O
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Davis quanto Thompson buscam, sobretudo, dar voz às senso de identidade e autonomia da comunidade, bem co
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grandes massas__ de pessoas que deixaram poucos registros mo seu senso compartilhado de finalidade e significado, atua
,1 , escrifôsecu}ahistória ficoii põYescrever durante várias ge como um poderoso elemento de validação e motivação do
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rações. Em sua ênfase sobre o papel da cultura como me- ti. comportamento das massas. Além disso, Thompson e Da
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,i diadora das relações e estruturas sociais, Davis e Thomp vis compartilham o pressuposto metodológico de que uma
son expressam sua convicção de que as classes inferiores não
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análise dos padrões do ativismo da massa revelará seu signi·
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eram simples presas de forças históricas externas e determi ficado e oferecerá indícios sobre as estruturas da comuni?a
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1 nantes, tendo desempenhado u�apel ativo e essencial na de. Examinarei aqui "Moral Economy of the Enghsh
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cri¾'J()_de_SJ!ª---Ri:6p_6a história e na definição de sua pró Crowd", de Thompson, e "Rites of Violence", de Davis,
' 1 '. 1' pria identidade cultural. Davis e Thompson voltam-se para com o objetivo de mostrar de que modo seu enfoque veio
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a análise dos tumultos como um campo ideal para o escla revigorar a produção recente sobre o ativismo coletivo, mas
recimento e a exploração dessas convicções históricas. De também como esse enfoque resultou em alguns pressupos
monstrar a motivação racional, autônoma e coerente dos tos e métodos limitativos.
ativistas populares equivale a mostrar, em outra esfera cru De acordo com Thompson, em épocas de escassez e pre
cial, que as pessoas dos escalões mais baixos representaram ços altos na Inglaterra do século XVIII, os que se rebela
um importante papel na configuração de sua pr6pria histó vam pela falta de alimentos acreditavam que sua ação cole
ria. Além do mais, a análise de um período de conflitos lança tiva e violenta se justificava pelo fato de a comunidade ,in
luz sobre a textura dos valores e das relações comunitárias teira sentir que sua concepção comum de práticas de mer
em períodos mais pacíficos. Finalmente, tanto Thompson cado justas, ou de "economia moral", tinha sido violada.
quanto Davis admitem que a análise do despertar político As pessoas que se levantavam em protesto viam a "legiti
de grupos do passado pode conter as chaves de nosso pró mação" de seu ativismo no fato de serem "inspiradas pela
prio entendimento das situações e comportamentos políti crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tra
cos atuais. dicionais; e, em termos gerais, de que eram apoiadas pelo
Ao �r� contra as iJJJ_er.pretações que enfatizam as mais amplo consenso da comunidade" (o grifo é meu)22•
forças econ_Ô!Jlicas_ou p,;icol6gicas, Davis e 'Thompson se Com um consenso suficientemente forte para ignorar o
coriéentram em duas questões principais. Em primeiro lu medo ou a deferência, a comunidade como um todo lu
gar, por que a massa vê seu ativismo ilegal e violento como tava para defender o tradicional "modelo paternalista"
significativo e legítimo? Segundo, de que modo a comuni como o método ideal de distribuição de grãos. De acor
dade desempenha um papel crucial na definição das moti do com o modelo tradicional, a produção, a colheita e,
vações, dos objetivos e das ações do tumulto? No âmago especialmente, a comercialização dos grãos e do pão deviam
dessas perguntas encontram-se dois conceitos interligados:
"comunidade" e "legitimidade". Para os dois estudiosos,
1
esses conceitos juntos tornam-se críticos para a demonstra- l 22. Thompson, "Moral Economy", p. 78.
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL
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1,
século XX, e os. criadores de tumultos religiosos analisados
1
resses da comunidade de consumidores. Compartilhando por Davis conservam, todos, alguns princípios comunita
dessa "economia moral" ou ''modelo paternalista", esses riamente compartilhados que legitimam suas ações violen
rebeldes condenavam uma economia de mercado livre ba tas ou ilegais23 _
seada no lucro, o que, em teoria, acabaria resultando num O conceito de consenso comunitário de Thompson, po
fluxo de grãos para as regiões onde a demanda era maior. rém, pode às vezes sugerir uma comun_idade mais coesa· e
Em momentos de escassez, os aldeões atribuíam a falta de unida do que de fato existia. Ele certamente não postula a
grãos e os altos preços à queda do modelo paternalista. De existência de uma ação uniforme por parte da comunidade
inteira, mas postula uma col)ceituação unânime. Seu mq
m_o�o disciplinado e _ ordeiro, assumiam o papel de funcio delo não consegue explicar por que certos grupos dentro
nanos do governo e 1?1punham a coleta e a venda de grãos
de acordo com a trad1c1onal economia moral, vendendo 0 da comunidade apresentavam uma probabilidade maior que
grão a preços "justos". Se, a curto prazo, essa prática ilegal outros de engajar-se em tumultos. Por que algumas pessoas
participavam, enquanto outras condenavam ou s6 ofereciam
11 da população revoltosa não trazia, necessariamente, um su
1 '
IJ 11 Contudo a análise dos tumultos por falta de grãos poderia nidade local. Prevendo esse rigor, alguns membros da co
oferecer ;s chaves das bases estruturais do poder informal munidade devem ter relutado em participar dos tumultos.
das mulheres dentro da comunidade aldeã. Em resumo, os Ademais, moleiros e fazendeiros abastados do vilarejo
tumultos podiam ter um impacto transformador nas fun podem muito bem ter preferido o novo sistema de laissez
ções sociais e políticas em nível local. faire, uma vez que poderiam beneficiar-se de uma situação
Além disso, Thompson não parece reconhecer que a de mercado mais fluida. Além disso, algumas vÍtimas da vio
"economia moral" pudesse ter diferentes significados ou n( lência das massas eram da própria comunidade aldeã; esses
veis de significação para os diversos membros da comum- fazendeiros "açambarcadores" ou os moleiros "capitalistas
astutos" muito dificilmente seriam favoráveis a um "con
senso comunitário" que legitimasse a imposição popular da
26. Sobre a crescente literatura a respeito do papel das mulheres nas suble
vações, ver Olwen Hufron, "Women in Revolution, 1789-1796", Past and fJ_re
sent 53 (1971): 91-108; Temma Kaplan, "Female Consciousness and �ollect1ve 27. Calhoun, The Question o/Class Strug,gle, pp. 42-43. Com relação ao exa&e
Action: The Case of Barcelona, 1910-1918", Signs:/ournal of Women m Culture ro da unidade das massas, ver William Beik, "Scarching for Popular Culture m
and Society 7 {1982): 545-66, e Susan Carol Rogers, "Female Fo7ms _of Power and Early Modem France",foumal ofModem History 49 (1977}: 266-81, esp. pp. 275-77,
Myths of Male Dominance: A Model of Female/Male lnteracuon in Peasant So e Robert Woods, "Individuais in the Rioting Crowd: A New Approach",/ourna/
ciety", American Ethnologist 2 (1975): 727-56. of lnterdisciplinary History 14 (1983): 1-24, esp. pp. 1-2.
28. Thompson, "Moral Economy", p. 119.
80 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 81
economia moral. Thompson fundamenta sua discussão num superestimava a capacidade das elites de impor uma "hege-
modelo polar antagônico, que enfatiza o confronto entre 1:1onia cultural''. às 1:1assas e subestimava a capacidade elás
a comunidade e a pequena nobreza rural. Embora tenha uma tica das classes mfenores de limitar e reformular essas im
aguda consciência do papel dos intermediários tanto como posiJ?es culturais. Especificamente, Thompson afirma que
_
eJ<ploradores quanto como vítimas, sua ênfase dualista difi patnc1os e plebeus mantmham um relacionamento recíproco
culta muito a integração da análise desse grupo29. Serão eles no século XVIII. A pequena nobreza rural usava um vasto
membros destrutivos da comunidade? Serão agentes alheios repert6rio de meios teatrais e simb6licos para afirmar seu
à comunidade? Ou será que neles se encontram as origens controle paternalista e exigir deferência e obediência da mas
de um grupo, de difícil classificação, situado a meio cami sa, mas os plebeus aferraram-se a sua cultura popular tradi
nho entre a massa e a pequena nobreza rural? cional e autônoma, o que lhes permitiu redefinir e limitar
Em resumo, Thompson nunca faz uma pergunta cru a hegemonia da pequena nobreza rural, bem como resistir
cial: qual é a dinâmica de poder que atua dentro da comuni a ela. Se esse comportamento nem sempre era declarada
dade aldeã quando certos membros se decidem a empreen mente político, também não era simplesmente "apolítico",
der uma ação violenta e ilegal? Tampouco indaga de que pois a comunidade agia com autonomia em defesa .de "idéias
modo a violência pode alterar essa dinâmica e até mesmo claras e ardorosamente mantidas sobre o bem:estar comu
transformar os papéis e as funções dos membros da comu nitário''3º.
nidade. Os membros da comunidade podiam, consciente ou Acima de tudo, na ausência de um aparato coercivo de
inconscientemente, manipular a violência contra os foras repressão do Estado, a massa podia, usar o tumulto como
teiros, autoridades ou habitantes do mesmo vilarejo, com forma de restringir o domínio da pequena nobreza rural.
o objetivo de redefinir seuspr6prios papéis ou adquirir um Por exemplo, ainda que os revoltosos por falta de grãos es
novo status e poder em nível local. Nesse aspecto, o impor tudados por Thompson possam não ter tido um sucesso ime
tante papel de uma economia moral compartilhada torna diato no atendimento de suas exigências, a longo prazo a
se estreitamente associado a questões de poder, identidade ameaça de violência popular realmente influenciou as au
e conexões no âmbito da estrutura social do vilarejo. toridades, levando-as a manter os preços baixos pelo temor
E. P. Thompson não é indiferente às questões relativas do co�f:onto31 . Em seu livro Whigs and Hunters, Thomp
ao poder. Basicamente, porém, ele procura avaliar de que son utiliza um argumento semelhante sobre as limitações
modo o poder de natureza hegemônica operava entre a "pe do uso hegemônico da lei por parte das elites32. Essa con
quena nobreza rural" e a "massa". Ao interpretar a rela ceituação de reciprocidade é, em grande parte, convincente,
ção entre patrícios e plebeus enquanto classes emergentes
nos prim6rdios da Inglaterra moderna, Thompson refor
mula sutilmente o modelo gramsciano. Segundo ele, Gramsci 30. Thompson, "Moral Economy", p. 83,
31. Thompson, "Patrician Society, Plebeian Culture" Journal o/Social His
tory 7 (1973-74): 382-405! idem, "Moral Economy", pp. Í25-26.
32. Th?mpson, Whi&s and Hunters: The Origins oj the Black Act (Nova Ior
que, 1976); idem, "The Cnme of Anonymity", em Albion's Fatal Tree, org. Dou-
29, Dale Edward Williams, "Morais, Markets, and the English Crowd in glas Hay et al. (Nova Iorque, 1975), pp. 255-308.
1766", Past and Present 104 (1984): 56-73, esp. pp. 71-72.
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mas ao concentrar-se nas relações de poder entre as elites ram a partir de crenças comunitárias. Os rebeldes religio
e a massa, e por desejar imensamente descobrir um com sos de Davis iam buscar legitimação, motivação e padrões
portamento autônomo e pré-político das massas, Thomp de ativismo nos costumes, nas expectativas e tradições man
son não consegue, paradoxalmente, dar a devida atenção às tidas pelo conjunto da comunidade. Fossem cat6licos ou pro
lutas pelo poder no interior da pr6pria massa. A comuni testantes, esses ativistas lutavam, em parte, em defesa de suas
dade aldeã, assim como a "massa" indefinida, continua sendo concepções comunitariamente compartilhadas de um cor
uma categoria não diferenciada em oposição à pequena no po social puro e impoluto. Os protestantes praticavam ações
breza rural. violentas contra os.padres católicos, cujas práticas sexuais
O fato de Thompson exagerar a coesão da massa não e quase mágicas profanavam a palavra de Deus e contami
destr6i, necessariamente, a importância de seu conceito de navam a comunidade; também destruíam as estátuas que,
"economia moral"; é preciso, porém, que os analistas do aos olhos dos huguenotes, banalizavam e maculavam a ver
comportamento da massa sejam cautelosos ao empregarem dadeira natureza da santidade de Deus. Os católicos, por
esse termo como uma explicação geral das motivações com sua vez, atacavam os huguenotes como hereges, "receptá
partilhadas pela comunidade como um todo. O conceito culos de profanação", que contaminavam o corpo social e
de "economia moral" deve ser complementado e corrigi estavam sempre prontos, em atos e pensamentos, a blasfe
do por uma análise mais matizada, tanto das tensões exis mar contra o Senhor, difamar as igrejas, destruir os altares
tentes dentro da comunidade quanto do impacto dos tumul e demolir as imagens que os cat6licos conservavam como
tos sobre a estrutura e constituição política da comunida sagradas.
de. Em parte, essa abordagem implica uma atenção maior O caráter do tumulto e a identidade de suas vítimas eram
aos fatores estruturais que influenciaram os papéis e as ati determinados não só pelos valores comunitários; as ativi
tudes de diferentes grupos do vilarejo. Acima de tudo, exi dades comunitárias também influenciavam a escolha do mo
ge uma atenção maior para a dinâmica da política local, tanto mento de deflagrar a ação violenta, bem como sua legitimi
li � de natureza formal quanto informal. dade e a natureza de seus atributos rituais. Davis sugere que
1
A análise de Natalie Davis acerca das ações da massa os tumultos religiosos freqüentemente transformavam-se nu
durante as guerras religiosas na França do século XVI tam ma extensão do ritual religioso: em geral, a violência se ori
bém se concentram nos conceitos fundamentais de comu ginava em momentos de culto, e, às vezes, tanto os católi
nidade e legitimidade. Seu artigo "The Rites of Violence" cos quanto os protestantes fundamentavam sua destruição
foi publicado pela primeira vez em 1973, dois anos depois num "repertório de ações" retirado da Bíblia ou da litur
de "Moral Economy", de Thompson, e Davis claramente gia. Além disso, os ativistas religiosos iam buscar inspira
ji
1
,1
compartilha certos aspectos da abordagem de Thompson. ção em atos tradicionais da justiça popular: os charivaris,
Como ele, Davis pretende ilustrar a natureza racional e au que já eram usados há muito tempo para fazer valer as nor
!,I tônoma do ativismo da massa; como ele, também, procura mas da comunidade, também constituíam um meio ideal
explicar o "significado social" dos tumultos religiosos e des e "legÍtimo" de humilhar um indivíduo que violasse a ver
.i'
, :.1
cobrir de que modo os padrões de violência se desenvolve- dadeira doutrina e atentasse contra o sagrado. Em síntese,
'
1j1
84 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 85
as percepções, tradições e as ações da comunidade inspira
vez, em parte, pelo fato de ter-se afastado mais decisivamente
vam os objetivos, a legitimação, a ocasião e a base social
de uma metodologia marxista, voltando seu interesse para
do tumulto religioso.
as divisões fundamentadas em sexo e religião. Davis foi par
As principais forças que motivavam os agitadores reli
ticularmente eficaz ao ilustrar a capacidade de grupos apa
giosos eram a cultura e a comunidade, não a economia e
rentemente destituídos de poder em forjar autoridade den-.
a classe. Em apoio a esse ponto de vista, Davis refuta, con
tro das brechas ou lacunas das estruturas sociais existentes.
vincentemente, o argumento de Janine Estêbe de que o au
mento do preço dos grãos tem relação direta com a violên Mostrou habilmente, por exemplo, de que modo as mulheres
cia religiosa e de que os massacres de 1572 foram, em parte, tiravam proveito das imagens de fraqueza e histeria femini
"uma expressão do ódio de classes". Davis oferece uma aná na para ampliar seu poder e sua liberdade em diferentes si
lise mais equilibrada dos participantes da violência religio tuações comunitárias34.
sa: ela observa, por exemplo, que embora os ativistas pro Paradoxalmente, porém, em "The Rites of Violence",
testantes proviessem de diferentes níveis s6cio-econômícos, mesmo quando observa os papéis distintivos de determina
uma grande porcentagem deles era constituída por mem dos grupos, Davis não se aprofunda, tanto quanto poderia,
bros das "profissões mais recentes ou mais qualificadas", na análise das fissuras e dos diversos papéis dentro da co
ou de "profissões que tinham sido transformadas pelos pro munidade. Sua ênfase principal continua sendo a idéia de
gressos urbanos dos primórdios do século XVI". Enquan que o tumulto religioso tem por metas fundamentais a uni
to membros altamente instruídos de uma nova profissão, dade e a pureza do corpo social. Para ela, por exemplo, o
os tipógrafos e editores, por exemplo, podiam mais facil papel dos jovens é essencialmente o de manter a ordem e
mente tomar contato com a propaganda impressa da nova a consciência da comunidade, e não um elemento ritualiza
religião; assim, era bastante prováyel que, nessas profissões, do dentro de uma luta pelo poder profundamente gerado
as pessoas de todos os níveis viessem a converter-se ao pro ra de dissensão. Em "The Rites of Violence" ,· ela relega seus
testantismo. Davis também observa que certos grupos, co comentários sobre as tendências religiosas de membros de
mo as mulheres das cidades e os rapazes adolescentes, de diversas profissões a uma nota de rodapé35 • Em certo sen,
sempenharam um papel notáveJ33 • Ao praticarem violên tido, a unidade e a coesão da comunidade assumia uma im
cia religiosa, os adolescentes propagavam sua permissão tra portância ainda maior para os revoltosos de Davis do que
dicional de agir de acordo com "a consciência da comuni para os ativistas de Thompson. Os insurgentes religiosos
dade" e de fazer cumprir as normas sociais. iam além da defesa de um conceito comuru de justiça; re
Em geral, Davis é muito mais sensível que Thompson corriam à violência para purgar ou purificar a própria co-
à dinâmica de grupos diferentes dentro da comunidade, tal-
34. Ver, especialmente, de autoria de Davis, "City Women and Religious
33. Davis, "Rites of Violence", pp. 175-78, 182-84; Janine Estebe e Natalie Change" e "Women on Top", em Society and Culture, pp. 65-96 e 124-51; idem,
Davis, "Debate on the Rites of Víolence: Religious Riot in Síxteenth-Century The Return ofMartin Guerre (Cambridge, Mass., 1983), esp. pp. 30-34, 67-68, so
France, Comment and Rejoinder", Past and Present 67 (1975): 127-35, Sobre o bre o papel de Bertrande; idem, "WOmen in the Crafts in Sixteenth-Century Lyon"'
papel dos jovens, ver "The Reasons of Misrule" e "Tasks and Themes". Feminist Swdies 8 (1982): 47-80.
35, Davis, "Rites of Violence", pp. 177-78 n.
A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 87
86
munidade e para definir suas fronteiras contra as ameaças como um fenômeno cultural que, apesar de violento,
de fora e de dentro. Talvez o fato de Davis enfatizar tão baseava-se essencialmente na ordem e na pureza comunitá
_
fortemente a coesão da comunidade se deva, em parte, a seu ria. Como sugere o titulo de seu ensaio, o tumulto
claro desejo de demarcar o contraste entre crenças e com transforma-se num ritual que tem por finalidade a unidade
portamentos católicos e protestantes. Em resultado, sacri comunitária. A interpretação de Davis é irresistÍvel, e seu
fica uma análise mais intensa a essa justaposição mais am en�oque do significad_o _e da legitimidade percebidos pela mas
-
pla de características de grupo. sa e importante e ongmal. Mas o leitor pode ficar também
As limitações na compreensão de Davis acerca da co co� a incômoda sensação de que algumas questões críticas
deixaram de ser levantadas. A ênfase sobre a coesão da co
munidade também se encontram na abordagem antropoló
munidade e a fo ça de sua legitimidade, sobretudo, impede
gica que informa e inspira, mas também restringe, a natu _ ,'."
uma cons1deraçao adequada das questões relativas à trans
reza das questões que ela decide levantar. Vários antropó
formação, ao conflito e ao poder.
logos simbólicos influentes, como Geertz, Sahlins, Turner
Na verdade, ao esquadrinhar ou expandir a análise de
e Douglas, definiram cultura como sendo basicamente um
Davis, seria possível virar alguns de seus argumentos de ca
sistema de símbolos mantidos pela coletividade. Se, por um
beça para baixo ou de pernas para o ar - para usarmos um
lado, esses antropólogos (sobretudo Geertz e Sahlins) pro
de seus temas culturais favoritos. Inverter desse modo al
curaram incorporar e desenvolver uma sensibilidade à trans
guns dos pontos essenciais da abordagem de Davis revela
formação histórica dentro dos sistemas culturais, por ou _
na novas possibilidades de interpretação, com base nos fun
tro sua abordagem enfatiza o papel da cultura como uma
damentos por ela já assentados.
espécie de mecanismo sutil para a manutenção da ordem,
Examinemos, primeiro, sua noção de comunidade. Ela
do significado e da coesão sociaJJ6. Correndo o risco de sim afirma que a autopercepção comunitária legitimava a suble
plificar excessivamente o trabalho deles, bem como o im v�ção e influenciava sua forma; contudo, poder-se-ia· tam
pacto deste trabalho sobre os historiadores, eu diria que a bem argumentar que, na verdade, a violência transformou
vigorosa ênfase dos antropólogos sobre a função estética e fundamentalmente a comunidade urbana e a redefiniu por
conciliadora da cultura levou os historiadores a uma cor _
mte1ro.. Em vez de afirmar que as percepções existentes do
respondente limitação de seus enfoques. Em sua análise da corpo social definiam a violência, seria possível dizer que
violência religiosa, Davis procura interpretar o tumulto .
a v10lenc1a em torno das crenças religiosas destruiu a co
munidade existente, fragmentando-a através de uma sangren
36. Sobre os problemas dessa abordagem antropológica, ver, por exemplo,
ta luta pelo poder, com cada grupo lutando para delimitar
Ronald G. Walters, ''Signs of the Times: Clifford Geertz and Historians", Social novas fronteiras comunitárias. A violência forçou os habi
Research 47 (1980): 537-56, esp. PP· 553-56; William Sewell, Work andRe volution tantes urbanos a repensar suas tradicionais definições de co
in France: The Language ofLaborfrom the Old Regime to 1848 (Cambridge, 1980),
pp. 10-13; Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropology Makes lts Ob munidade.
ject (Nova Iorque, 1983), pp. 151-52, 156; M. Greengrass, "The Anatomy of a Com efeito, Davis deixa o l;,itor a se perguntar até que
Religious Ríot at Toulouse",jouma/ o/ Ecdesiastical History 34 (1983): 367-91,
esp. pp. 389-91. ponto católicos e protestantes faziam parte de uma mesma
,
88 A NOVA HISTÓRIA CULTUR AL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 89
comunidade. Às vezes os dois grupos parecem lutar, den focalizando também a formação social e as interações dos dois
tro da comunidade, pelo controle do sagrado; em outros grupos. Em grande parte, porém, o elemento político não é
momentos, agem como duas comunidades antag6nicas em explorado. Fica a cargo dos historiadores dos conflitos coleti
guerra uma contra a outra. Se os dois grupos realmente fa vos i�vest(g:11' a inter-�e!ação entre os níveis políticos, religio
ziam parte da mesma comunidade e compartilhavam alguns sos, s1mbohcos e soc1a1s �a luta pelo controle municipaJ37.
aspectos de seu sistema simbólico (para não dizer o mesmo Para explorarmos as ligações entre o significado e O po
espaço social dentro da cidade, das igrejas, da política mu der no âmbito da violência religiosa, poderíamos analisar e
nicipal e da economia urbana), então a violência deles torna inverter um segundo elemento da argumentação de Davis.
se parte de uma luta maior e de múltiplos aspectos pelo con· Ela afirma que os padrões de ações dos rebeldes revelam seus
trole, num sentido às vezes brutal e de absoluta abrangên pressupostos sobre a legitimidade e seu senso racional e or
cia. Enquanto a violência se tornou, sem dúvida, um meio deiro de unidade e significado; contudo, seria possível argu
fundamental de definir a identidade e a solidariedade reli mentar que, ao contrário, essas ações ilustram as incertezas
giosas, o contexto do conflito religioso também forçou ca dos ativistas sobre a legitimidade, revelam sua necessidade
tólicos e protestantes a viverem numa comunidade ideolo- . de forjar um novo poder e, de fato, contribuem para sua ca
gicamente dividida. Essa realidade tinha duas ramificações pa�idade d cri , dentro da cidade, novos papéis para si pró
7 :n-
principais: a longo prazo, significava que ambos os grupos pnos. Davis afirma, por exemplo, que os insurgentes se sen
acabariam tendo de aceitar uma nova concepção da diversi tiam no direito de agir em lugar das autoridades civis ou re
dade e das tensões possíveis dentro da comunidade urbana; ligiosas que faltavam com seus dever�s. Para ela, as imita
. ,
a curto prazo, significava que católicos e prot,çstantes esta ções de ações oficiais, tais como os julgamentos simulados
vam engajados numa luta muito real pelo poder e o contro eram um me10 para os ativistas religiosos formarem e con-
le, bem como pelo significado, pela doutrina e pelas defini- solidarem seu senso de legitimidade e também atribuírem um
ções do corpo social. significado sistemático a sua violência. Davis, porém, não su
Para compreendermos as características desse conflito gere a possibilidade de que o repertório de ações imitativas
que era ao mesmo tempo religioso e político, seria conve das fórmulas oficiais pudesse ter sido uma forma de usurpar
niente saber mais do que Davis nos conta sobre o modo o poder das autoridades e talvez, simultaneamente, ridicula
como os cidadãos huguenotes e católicos interagiam em es rizar e criticar as deficiências desses oficiais. Além de cria
feras de ação pacífica e, particularmente, no domínio da po rem significado e legitimidade, tais ações podem ter sido uma
lítica. Como se relacionavam entre si na feira livre? Viviam forma deliberada de exigir, de modo muito direto e explíci
em comunidades distintas? Competiam pelos cargos de ma to, um poder e uma autoridade até então inédita.
gistrados locais? Davis examina algumas questões desse ti Além disso, talvez também revelassem as dúvidas e as
po em seu mais recente artigo, "The Sacred and the Body certezas dos insurgentes. Enquanto Davis relata que alguns
Social in Sixteenth-Century Lyon", publicado em 1981, onde
aprimora sua discussão de como as crenças religiosas influen
ciaram os conceitos católicos e protestantes de comunidade, 37. Davis, "The Sacred and the Body Social", Past and Present 90 (1981): 40-70.
90 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 91
oficiais aprovavam tacitamente os tumultos r�ligi�sos, ou
à racionalização: afirmar que um tumulto é um ritual equi
até mesmo chegavam a tomar parte neles, o leitor fica a in
_ vale a atenuar a violência ou a desviar a atenção das lutas
dagar sobre aqueles oficiais que pr�c"._ra�am i1:1�or a ordem
e a tranqüilidade. Que espécie de dmamica exis:ia entre _ e(es pelo poder implícitas nessa matança pelas ruas. O tumulto
era sempre ritual? Não se originaria às vezes num contexto
e os insurgentes? Os grupos privados de autondade oficial
ritual para, então, expandir- se para além dele e assumir um
não tinham necessariamente, a unidade e a ordem comu
caos e uma brutalidade que dificilmente poderiam expressar
nitárias coU::o prioridade; é possível que também tivessem
se dentro do conceito de ritual per se? Por exemplo, ape
interesses particulares a defe�der e q�e tenham procurado
drejar uma casa onde os protestantes entoavam salmos, aban
descobrir as técnicas para faze-lo. Alem do mais, sen� con
donar repentinamente uma procissão para atacar um espec
veniente perguntar de que modo seu papel enquanto msur
tador zombeteiro, ou provocar os participantes de uma pro
gentes talvez lhes tenha conferido, como um subproduto
cissão rival não era bem um ritual, mas uma violência que
de sua liderança religiosa, status ou autoridade dentro da co
munidade, assim como as mulheres ou artesãos que lidera se originava num contexto ritual .., que, na verdade, pode
ram os tumultos por falta de grãos, no estudo de Thomp ter-se degenerado numa deturpação ou até mesmo na des
son talvez tenham adquirido certos tipos de poder ou res truição do ritual.
pei;o em função de seu ati:isn_io. Em �Íntese, é prec;_iso p�r O uso do termo ritual para descrever padrões de vio
guntar não s6 como a violencia refleua as concepçoes exis lência ajusta-se perfeitamente à concepção antropol6gica de
tentes de comunidade, mas também de que modo ela trans cultura enquanto força estética e unificadora. Se a violên
formava a comunidade ao atribuir novos papéis, poder ou cia é ritual, parece ser dotada de uma.legitimidade inerente
status a alguns de seus membros. que, de certo modo, é predeterminada e reforça a natureza
. .
, vezes mquietante) essencialmente coesa da comunidade. Mas nem sempre é fácil
Outro aspecto fascinante (ainda que as
da argumentação de Dav)s, e que pode ser fertil ent: ques estabelecer uma relação entre ritual e violência. Em primeiro
':'
tionado ou até mesmo virado de cabeça para baixo, e a sua lugar, precisamos fazer uma diferença entre padrões de ação
crença' de que o ritual levava à violência e de que, co?'o simb61ica reiterada, por um lado, e ritual, por .outro38 . Em
conseqüência, a violência às vezes transformava-se em nt�. segundo lugar, nos casos em que a violência tornou-se ri
Davis revela-se muito perspicaz ao sugerir que o culto reh tual precisamos perguntar de que modo os ativistas conse
gioSo transformava-se numa ocasião propícia à viol�nci�, e guiram dotar a violência de qualidades rituais e criar tanto
_
que os tumultos assumiam for�as nt�afiz�das por mspira uma legitimidade religiosa quanto um poder terreno ao
, transformarem a natureza, e às vezes o significado, dos pr6-
ção em crenças e costumes bibhcos, l1turg1cos ou tradic10-
nais. Davis observa que os ativistas do século XVI podem prios símbolos. Na França do século XVI, por exemplo,
ter-se habituado à crueldade de suas ações pelo fato de en os costumes bíblicos e litúrgicos s6 ofereciam modelos de
volverem a violência em formas rituais. Sob esse aspecto validação da violência se fossem reinterpretados e tomados
sua análise é sutil, mas é provável que ao leitor fique a im
pressão de que a autora se equipara aos insurgentes quanto
38. John Skorupski, Symbol and Theory (Cambridge, 1976), pp. 69-75.
92 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
MA.SSAS, COMUNIDADE E RITUAL 93
de certas maneiras. Os insurgentes podem ter alterado ou
distorcido os símbolos e rituais como parte de sua luta pe do três dias de verdadeiro combate39• Davis apresenta es
lo controle do significado e da autoridade. Em síntese, ao sas cenas como evidências da natureza e do contexto ritua
reconhecer que os padrões de violência não são rituais por lizados da violência e como provas de fortes razões religio
natureza, mas apenas vagamente dotados de legitimidade ri sas dos insurgentes. Contudo, também seria preciso pergun
tual através de uma luta violenta e polêmica, o historiador tar de que modo esse caráter particularmente agressivo da
pode reintegrar o poder e o conflito na interpretação de ati prática religiosa, numa época de conflitos, produziu impacto
vismo coletivo sem que isso implique a perda dos insights sobre os sentimentos religiosos, e como estes últimos se en
conquistados à antropologia. redaram, de maneira inextricável, à dinâmica do poder, Qual
. Para virar mais uma vez a argumentação de Davis de foi o efeito disso sobre as atitudes dos devotos católicos se
cabeça para baixo, poderíamos, além de observar que a cren eles sabiam que cada procissão poderia ser, de fato, uma pro
ça religiosa configurava a violência, perguntar de que mo vocação e que cada dia santo p0deria transformar-se numa
do a violência conseguia, de fato, transformar fundamen carnificina? Como se misturavam os motivos sagrados e pro
talmente o ritual e as percepções religiosas. Em primeiro fanos quando os protestantes despedaçavam os ícones - is
lugar, o próprio contexto em que se davam os conflitos am to é, de que modo as convicções religiosas sobre a profana
1
'
pliava certas funções profanas e políticas do ritual: quase ção do sagrado e da comunidade se misturavam com a ira,
inevitavelmente, o ritual ultrapassava a mera expressão de numa posição de inf erioridade e ilegalidade forçadas? As
religiosidade e valores comunitários. Mesmo ·sem se tornar crenças religiosas, a defesa da verdadeira doutrina e da co
violento, o ritual transformava-se, por si só, numa arma. munidade religiosa, foram, sem dúvida, fatores de motiva
Tornemos, por exemplo, um caso relevante de uma outra ção sinceros e importantes, mas nessa atmosfera exaltada
época: durante as fases decisivas da Revolução Francesa, al os objetivos religiosos, e mesmo as próprias crenças religio
guns católicos, por motivos políticos e religiosos, partici sas, não pOdiam ser separados de questões de status, confli
param de uma forma ilegal de culto. Dançar ilegalmente num to e poder.
dia santo não era apenas uma celebração religiosa e comu Como, então, a violência religiosa influenciou e possi
nitária; constituía também um desafio com forte conota velmente transformou as crenças e o senso de identidade
ção política. Do mesmo modo, na França do século XVI comunitária? Aqui encontramos o outro lado da argumen
a devoção religiosa pública tornou-se facilmente uma de- tação de Davis: da mesma forma que as crenças e os ritos
. claração de hostilidade ou desafio. comunitários influenciavam e legitimavam a viornncia, as
Davis fornece muitos exemplos de rituais hostis: quan sim também a própria violência estreitava os limites das co
do a procissão dos protestantes passou a assemelhar-se a um munidades protestantes e católicas e influenciava a dinâmi
"desfile militar", os salmos que entoavam caíam como de ca do poder e as percepções religiosas dentro de cada gru
safios e insultos nos ouvidos católicos; inversamente, os ca po. A religião huguenote, por exemplo, tomou forma num
tólicos de Pamiers que dançavam no dia de Santo Ant8nio
começaram a gritar em coro: "Morte, morte!", deflagran-
39. Davis, "Rites of Violence", pp. 73-75,
94 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL MASSAS, COMUNIDADE E RITUAL 95
caldeirão de oposições e hostilidades legais. Essa oposição res, influenciados pelas idéias de Davis e de Thompson, são
e os conflitos dela decorrentes podem, inicialmente, ter re testemunhas da importância e do caráter oportuno da contri
forç';ldo a fé huguenote, criado um senso de diferença e con buição de ambos.
ferido determinadas características a suas pr6prias doutri O que necessitamos hoje não é tanto um retorno à aborda
nas. Da mesma forma, essa era de violência pode facilmen gem estrutural que Davis e Thompson procuraram corrigir,
te ter influenciado as metáforas e a espiritualidade cat6li masUífia estrutura a panlrdas bases que eles lançaram. Precisa
cas. ·Embora o conceito de espiritualidade enquanto campo mos perguntar de que modo a abordagem cultural da hist6ria
de batalha não seja absolutamente novo na era da Refor em geral e do ativismo coletivo em particular pode incorporar
tanto a ênfase antropol6gica sobre o significado e a mentalité
ma, talvez suas ramificações fossem diferentes daquelas dos
quanto uma percepção maior da dinâmica do poder e da trans
tempos medievais. Além do mais, em alguns casos a neces
formação. No caso do ativismo popular, a ênfase de Davis e
sidade de lutar em defesa da doutrina religiosa ou a necessi Thompson ao exame da comunidade e da legitimidade deve
dade de praticar ilegalmente o ritual podiam transformar reintegrar-se à análise do poder, da transformação e do conflito.
tanto a forma quanto o significado da expressão religiosa. Em primeiro lugar, embora os padrões do ativismo pd
Sem dúvida, embora essas questões nos levem para além da pular possam revelar o significado que tinham para os parti
análise do pr6prio tumulto, fazendo-nos penetrar os domí cipantes, esses padrões não são necessariamente conciliado
nios mais amplos da espiritualidade protestante e cat6lica, res, estáticos ou universalmente interpretados da mesma ma
oferecem-nos férteis campos de análise. Além disso, realçam neira. A exemplo das atitudes dos aldeões, os padrões de vio
o potencial da violência de transformar, e não simplesmen lência podem ser ambíguos. Não devemos, portanto, enfati
te fortalecer, as atitudes comunitárias. zar os padrões e rituais de violência à custa de perguntar de
Ao elucidarem o papel fundamental da comunidade na que modo as sublevações têm um impacto transformador, não
criação de noções de legitimidade e justiça que inspiravam s6 com relação aos papéis e ao status dos membros da comu
a violência popular em moldes racionais e significativos, Na nidade, mas também sobre as atitudes e costumes culturais.
talie Davis e E. P. Thompson deram uma contribuição ori Em segundo lugar, os sistemas culturais podem, de fato, for
ginal e surpreendente à interpretação cultural do ativismo talecer a comunidade, manter a "ordem" e dotar diferentes
e das atitudes populares. Juntos, resgataram o estudo das ações de legitimidade e significado. Mas podem também tornar
ações coletivas de sua ênfase anterior sobre as forças fconô se veículos para a criação de poder e a disseminação de disc6r
micas ou psicológicas . Mostraram, decisivamente, a impor dia. Os diferentes membros da comunidade têm atitudes di
tância dos fatores culturais e comunitários na motivação dos versas em relação aos sistemas simb6licos, apropriando-se de
ativistas e ilustraram o papel independente e ativo dos in liberadamente dos símbolos ou manipulando-os como parte
surgentes na criação de sua pr6pria hist6ria. A ênfase que de uma luta pelo controle40 • Devemos esforçar-nos para ela-
atribuíram à visão de mundo, ao ritual e ao significado com
partilhado teve ramificações que extrapolam os domínios 40. Sobre as várias interpretações possíveis dos símbolos, ver Roger Chartier,
do estudo da massa, pois ajudaram a criar a hist6ria d_as_men ''Texts, Symbols, and Frenchness",Journa/ o/Modem Hi.story 57 (1985): 685-95, esp.
talités e da cultura popular em geral. Inúmêros'liistoriado- pp. 689-90.
96 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL
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