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CONTEMPORÂNEO
Resumo: este projeto tem por objetivo o estudo das relações e tensões entre real e
ficção no documentário brasileiro contemporâneo. Ele toma como marco o paradigma
digital, onde sujeitos que até então eram objetificados pela câmera, tais como povos
indígenas, o povo negro e outros, passam a dominar o aparato fílmico e se "auto -
representar". Meu intento é investigar este momento antropofágico do cinema
brasileiro, onde estes sujeitos, através da linguagem cinematográfica, explicitam sua
própria realidade frente a uma cultura visual colonial. Para isso, proponho a análise de
três obras cinematográficas: as Hiper-Mulheres (Leonardo Sette, Carlos Fausto e
Takumã Kuikuro, 2011), A vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014) e Branco Sai,
Preto Fica (Ardiley Queirós, 2015). Minha hipótese é de que estes realizadores e suas
obras tencionam a noção de representação clássica da teoria do documentário,
problematizando distinções entre ficcional e documental, real e virtual à luz de um
cinema feito pelo 'outro'. Trata-se, portanto de fazer uma abertura ontológica e se
perguntar o que pode ser o cinema para ontologias não–ocidentais ou realidades
minoritárias. Neste sentido, será preciso fazer uma aproximação entre o Cinema e a
Antropologia.
1 Cf. BRASIL, 2004; MIGLIORIM, 2010; FELDMAN, 2012; HOLANDA, 2004; MESQUITA
2010, 2012; LINS, 2018.
2 BERNADET, Jean Claude.Cineastas e imagens do povo. Companhia das Letras, 2003.
3 (FELDMAN, 2008)
4 BERNADET, 2003, pag. 16-17.
Estabelece-se assim uma relação entre sujeito e objeto. Era a tese sobre o
outro, portanto, e não o encontro com ele, a finalidade do documentário moderno
brasileiro5.
Em meados dos anos 90, o cinema documental ganha uma sobre-vida no
mercado audiovisual durante o ciclo conhecido como Retomada. Mas é mesmo nos
anos 2000 que a produção de fato cresce significativamente no mercado nacional. de
apenas três lançamentos no ano 2000 para 42 produções exibidas em 20096.
O “boom do documentário” nos anos 2000, em parte possibilitado pelo
impacto das vídeo-tecnologias digitais, faz emergir um outro modelo, desta vez
“particularizante” ou “performativo 7 , não mais preocupado com representações
generalizantes do popular: ocorre aqui uma redução do enfoque, que vai em direção às
experiências e perspectivas de um ou poucos sujeitos. Ocorre um privilégio da auto-
exposição e da performance em detrimento de uma representação, levadas à cabo por
uma abordagem dialógica, isto é, o filme como relação e/ ou negociação entre quem
filma e quem é filmado. Para o documentarista contemporâneo, a voz a ser ouvida é a
do outro.
Além disso, as análises recentes que tratam do estado da arte do documentário
contemporâneo brasileiro evidenciam como uma importante característica dessa
produção um projeto “reflexivo” que se distância de um regime de visibilidade
marcado por um apelo ao realismo que produz e dramatiza uma certa realidade. Sendo
assim, uma boa parte da produção documental recente aposta no contrário, isto é, na
“opacidade” da linguagem, na indeterminação entre documentário e ficção. Filmes
como Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007), Santiago (Joaõ Moreira Salles, 2007),
Filmefobia (Kiko Goifman, 2009), O céu sobre os ombros (Sergio Borges, 2010),
Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karim Ainouz, 2009)
formam a constelação deste tipo de cinema.
Este outro, antes alçado ao posto de objeto pelo documentário brasileiro, agora
passa assumir a primeira pessoa do discurso. Segundo Ailton Krenak, indígena
idealizador da Bienal de Cinema Indígena:
É neste contexto que nascem diversos coletivos de cinema tais como o CKC
(Coletivo Kuikuro de Cinema) e o Ceicine (Coletivo de Cinema da Ceilândia) que
reúnem estes “atores estranhos” do documentário brasileiro, realizadores vindos de
fora do eixo Rio-São Paulo, vindos da floresta, vindos da “periferia” e que tem
conquistado, à duras penas, seu espaço nas oficinas de audiovisual, em festivais de
cinema e nas salas de exibição. São filmes que se constituem por regimes de
visibilidade outros frente a um regime de visibilidade hegemônico e colonial. Estes
realizadores lançam mão de procedimentos e escolhas dos mais diversos, e trabalham
no limar entre o documental e o ficcional.
1. Objetivo Principal
Este projeto tem por objetivo o estudo das relações entre real e ficção/virtual
no documentário brasileiro contemporâneo à luz de um cinema feito pelo outro. O
que, afinal, estes coletivos buscam mostrar quando produzem, eles próprios, os
filmes? Que regime de visualidade é esse que tais sujeitos explicitam em seu
movimento de filmar o real? Trata-se, portanto de fazer uma abertura ontológica e se
perguntar o que pode ser o cinema para ontologias não – ocidentais ou realidades
minoritárias.
Os filmes que compõem o corpus deste trabalho serão: as Hiper-Mulheres
(Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro, 2011), A vizinhança do Tigre
11 <https://outraspalavras.net/blog/2016/09/23/a-surpreendente-bienal-de-cinema-indigena/>
(Affonso Uchoa, 2014) e Branco Sai, Preto Fica (Ardiley Queirós, 2015): o primeiro
dirigido por indígenas do Alto Xingu e os dois seguintes realizados por cineastas
moradores da periferia que ao dramatizarem sua realidade acabam por revelar o
momento em que “a ficçaõ se documentariza e documentário se ficcionaliza”.12 Sendo
assim, seria possível indagar: se é verdade que a produção documental brasileira dos
últimos 20 anos se aproximou do outro e, neste movimento colocou-se contra a
tendência realista do cinema de ficção comercial será que o estatuto do que seja real
ou ficcional nos moldes clássicos da noção de representação na teoria documentário
permanece a mesma quando se trata de um cinema feito pelo outro?
Objetivos específicos
Hipóteses
Teorias hegemônicas naturalizaram a ideia de que o documentário é uma
representaçaõ . No entanto, no ato transformar o fato social em mise en scéne os filmes
aqui estudados tensionam este conceito, revelando regimes cosmológicos outros,
instaurando-se na divisa entre o documental e o ficcional. Desta forma, tais filmes
testam os limites dos modelos explicativos clássicos que projetam o divisor
documental/ficção, personagem e pessoa, e outros dualismos cuja base se encontra o
pressuposto cartesiano de um só mundo, múltiplas representações
(Natureza/Culturas).
Isso dito, a hipótese deste trabalho é que, quando a câmera esta na mão deste
outro “antropológico”, os paradigmas do que seja realidade, está claro, se baseiam em
modelos cosmológicos distintos daqueles que operam usualmente a câmera. Tais
filmes, portanto, revelam uma multiplicidade do real, assim como formas outras de
alcançá-lo através da câmera, agenciando e tensionando as relações entre o
13 < http://bogiecinema.blogspot.com.br/2015/04/resenha-critica-vizinhanca-do-tigre.html>
documental e o ficcional.“O documentário[afinal] naõ é o que diz ou mostra o que
existe, mas o que inventa a existência com o que existe”14.
3-Justificativa
A imagem ganhou uma importância fundamental na contemporaneidade no
âmbito da vida cotidiana. A performance, a auto-representação de si diante de um
dispositivo áudio-visual virou prática social e política. A mise en scéne tornou-se,
desta forma, fato social, e a tela, este “ecrã luminoso”15, mudou nossa forma de se
relacionar com o mundo. Diante deste contexto, entender as relações entre a
produção imagética, como o cinema, e a sociedade ou cultura que a produz, se torna
primordial. Neste sentido, o projeto se torna pertinente para o Programa de Pós-
Graduação em Cinema e Audiovisual cuja proposta reside na centralidade da cultura
audiovisual como produção de conhecimento, sentido e experiências.
Além disso, este projeto visa contribuir para a análise da problemática do
documentário contemporâneo brasileiro. Visto muitas vezes como o “primo pobre” do
cinema se comparado à categoria ficcional, nos últimos anos houve uma notável
revalorização deste gênero no Brasil, tanto comercialmente quanto academicamente.
Tal fato se deve a motivos diversos, entre eles, o barateamento das tecnologias de
filmagem e pós produção, o fomento através dos editais de financiamento, assim
como o surgimento de mostras específicas para o documentário. Lançar novos olhares
sobre esta complexa e rica produção é fundamental.
O interesse crescente que o campo do documentário especialmente nos meios
acadêmicos nos últimos anos produziram uma renovação da teoria e da crit́ ica
documental. O PPGCINE, na figura de alguns de seus docentes, tem participado de
forma relevante desta renovação. Sendo assim, este projeto pode vir a se somar à
contribuicão do programa às analises e teorias sobre o documentário brasileiro
contemporâneo.
Este projeto visa também potencializar o diálogo entre o Cinema e a
Antropologia, tais disciplinas entendidas como reveladores ou construtores de
mundos-outros. O que se propõe aqui é uma análise do cinema que aborde a
4- Referencial Teórico
Em seus traços teórico-metodológicos este projeto se insere nas recentes
reflexões acerca do estado da arte do documentário contemporâneo brasileiro.
Segundo diversos pesquisadores do documentário, a recente produção documental
traz consigo, diferentemente das abordagens totalizantes do documentário moderno
dos anos 60
18 Citar viveiros
Tais distinções só são cabíveis de serem imaginadas por uma ontologia dualista própria à
metafísica ocidental que pressupõe mundo como que dividido em unidades.
A preocupação com um olhar nativo, no entanto, sempre esteve presente nos
anseios da representação visual da ontologia ocidental:
O fascínio dos antropólogos por um modo de ver supostamente “indígena” é
compartido pelos cineastas, igualmente sempre à procura de representações
“nativas”, “diretas”, “imediatas” e, pensa-se, mais “fiéis” em relação ao ponto
de vista daqueles cujas vidas nos interessam”.
DE QUEIROZ, Ruben Caixeta. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. DEVIRES-Cinema e Humanidades, 2016, 5.2: 98-125.
FELDMAN, Ilana. "Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo." São Paulo: Tese de Doutorado,
Holanda, Karla. "Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história." DEVIRES-Cinema e Humanidades 2.1 (2016): 86-101.
LINS, C. ; MESQUITA, Cláudia Cardoso . Filmar o real - Sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 01. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008. v. 01. 94p .
MESQUITA, Cláudia Cardoso . Retratos em Diálogo - notas sobre o documentário brasileiro recente. Novos Estudos CEBRAP
(Impresso) , v. 86, p. 104-119, 2010.
Brasil,André.“Carapiru-Andrea, Spinoza: a variação dos afetos em Serras da desordem”. Devires: Cinema e Humanidades, 2008, vol.
5 no 2, p. 94.