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Coleção Ferramentas
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A ARTE DE PENSAR
A ambição desta obra não é tornar você mais
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A ARTE DE PENSAR
Pascal Ide
Tradução
PAULO NEVES
Revisão da tradução
MARINA APPENZELLER
Martins Fontes
São Paulo 2000
Prefácio
VII
a inteligência para poder pensar de maneira adequada. Infeliz-
mente, depois de Aristóteles, fizeram desse ensinamento uma ciên
cia à qual foi dado o nome abstrato de lógica, ao passo que ela
é uma arte, ou seja, uma disciplina que se pratica para melhor
viver e, aqui, para melhor pensar. A arte de pensar está para a
razão assim como a ginástica para o corpo.
Esta obra é também o resultado de um curso dado muitas
vezes e cujos frutos pude constatar. E eu mesmo utilizo com en
tusiasmo, há uns dezessete anos, o método que vai ser desen
volvido.
Este livro destina-se tanto ao estudante secundário quanto
ao universitário que têm necessidade de um maior rendimento
intelectual. Também é escrito para todos os que gostam de ler e
que gostariam que sua leitura não fosse apenas uma boa lem
brança, sua apreciação reduzida a um frustrante e lacônico:
“Gostei.” Dirige-se igualmente aos que devem redigir um texto
com rigor - as leis da escrita são muito próximas das da leitura,
que são as do pensamento. O pensamento é primeiramente re
ceptivo, depois criativo ou produtivo; antes de produzir seu fru
to, a árvore recebe a luz do sol e os sais minerais da terra.
Enfim, como utilizar este livro? Não existe prêt-à-porter in
telectual, existe apenas sob medida, pois cada um é único. Por
isso cada capítulo contém numerosos exercícios. Eles não foram
escritos para serem contemplados, mas para serem feitos! Do
mesmo modo, você encontrará uma série de exercícios no final
do livro, que recapitulam todas as noções desenvolvidas nos di
ferentes capítulos. Jean-Claude Lamy, que entrevistou mais de
duzentos “craques”, constata que “os bons em matemática prati
cam muitos exercícios; eles não se detêm a decorar as lições,
mas dedicam 80 a 90% de seu tempo a empregar seus conheci
mentos em exercícios”. Faça o mesmo se quiser que essa peque
na obra tenha proveito. Eis aqui uma outra constatação interes
sante do mesmo autor: o “cerne do segredo dos bons alunos” é
“uma gestão de seu capital intelectual que vise ao pleno empre
go de suas capacidades crescentes”2.
E, agora, coragem.
2. Vive les cracks. “Vie et m oeurs des ‘bêtes à coneours’ ”, Paris, Jean-Clau
de Lattès, 1989, pp. 24-5.
VIII
PALAVRAS-CHAVES
IX
tinguir as rochas em sedimentares, vulcânicas e metamórficas
para pôr ordem no interior desse vasto gênero formado pelas di
ferentes rochas. A divisão segue regras lógicas precisas (cf. capí
tulo IV).
X
\ inteligência tem três operações, que vão da mais simples
, ,,, i! >׳ ׳iiiplexa: a apreensão (cujo objetivo é a definição), o juí-
. i . 11|i >«»hjelivo é enunciar o verdadeiro e o falso) e o raciocí-
.... (. ii| ׳ ׳objetivo 6 estabelecer o juízo) (cf. Introdução).
XI
se, isto é, de enunciado afirmativo, e nào o sentido interrogativo
de juízo (cf. capítulo II).
XII
׳pi um>). lies têm nomes diferentes conforme o papel que de-
« «i11)cnliam:
na problemática, distinguem-se o sujeito e o predicado;
no raciocínio, distinguem-se o termo maior, o termo me
nor e o termo médio. Há ainda o termo semelhante no
raciocínio pelo exemplo (cf. capítulos II e III).
XIII
.
In t r o d u ç ã o
III
Ií>.ã7 , René Descartes escrevia uma obra cuja influência
icnlc uma das mais decisivas na história do pensamen-
l·'* I1 "·׳
pis,■urso cio método, primeira obra de filosofia editada em
ti 1 ןsse “cavaleiro francês que partiu com um passo tão fir-
...... (ivpiiy), esse “herói” (Hegel), nos propôs quatro leis do
!{))|( ·יו.|1to que ele considera universais:
IM'II' ( ) primeiro [preceito] era não admitir como verdadeiro
n.ida que eu não soubesse evidentemente o ser (...)·”
a ) segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu
,·xaminasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis
e quantas fossem necessárias para melhor resolvê-las.”
)<׳terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, co-
meçando pelos objetos mais simples e mais fáceis de co-
nliecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até
o conhecimento dos mais compostos
I׳: o último, fazer em toda parte enumerações tão exaus-
rivas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de na-
da omitir.” 1
Inlélizmente, a experiência mostra que essas regras não são
muito aplicáveis: aliás, ninguém, nem mesmo seu inventor, as
!׳ ןImi >11 com total rigor. De fato, foram inspiradas ao filósofo
י׳im rs pela matemática, cujo método, julgado ideal, ele sonha-
׳ ׳,(tender ao estudo de todo o real. Ora, e iremos repetir, se o
1" '!·׳mo é ideal para perfurar o granito, ele o é bem menos para
" mi o nervo de um dente. Se o método matemático é eficaz pa-
' 1 ‘ 11.11 modelos da física de partículas, ele o é bem menos
׳I'·ויndo se trata de discorrer sobre a liberdade ou sobre Deus. É
1
um preconceito positivista continuar a afirmar que a ciência é si
nônimo de método matemático e que a certeza da razão rima
com quantificação e axiomatização.
Eis por que tomamos* a liberdade de apresentar a você um
novo discurso do método, ou, mais exatamente, um discurso dos
métodos.
As quatro leis que serão propostas nos parecem respeitar
melhor a vida tão rica e tão complexa da inteligência. E o pro
pósito deste livro sobre a arte de pensar será aprofundar a ter
ceira lei. Nossa fonte foi, em boa parte, Aristóteles. Para as duas
primeiras leis, em particular, recorremos ao capítulo I do livro I
da Física, que constitui, segundo Heidegger, “a introdução
clássica à filosofia; ainda hoje ele torna supérfluas bibliotecas
inteiras de obras filosóficas. Quem compreendeu esse capítulo
pode arriscar-se a dar os primeiros passos no caminho cio pen
samento”2.
- A primeira lei vale para todo conhecimento (animal, hu
mano ou outro).
- As três outras aplicam-se apenas ao espírito humano: a
segunda dá a dinâmica geral característica do progresso
da inteligência humana (ela é tão fundamental quanto es
quecida); a terceira mostra os diferentes atos que a inteli
gência efetua diante de cada problema; e a quarta, de
que maneira ela deve comportar-se em face de situações
diversas.
A primeira lei dá à inteligência seu comprimento (a primei
ríssima dimensão), a segunda sua altura, a terceira sua profundi
dade e a última sua largura. Ou melhor, no universo quadridi-
mensional que é o nosso, a partir de Einstein, a terceira lei situa
o espírito humano no tempo, enquanto as outras medem nosso
espaço.
2
r ׳imi iu a l.i׳:i Proceder do conhecido ao desconhecido
Conseqüências
O professor ou o conferencista deve constantemente cuidar
para engatar o vagão de seu pensamento ao de seus ouvintes,
sob pena de, como se diz familiarmente, “passar por cima da ca
beça deles”. É a verdade do adágio: “Para ensinar geometria a
Pedro, é preciso conhecer Pedro tão bem quanto a geometria.”
Esse procedimento da inteligência é o do explorador que
se lança às terras desconhecidas onde “a mão do homem ainda
não pôs o pé”! A novidade é afetivamente ambivalente. Ela é
fonte tanto de alegrias quanto de tensões: abrir um novo livro,
começar um novo curso, comporta, por um lado, o prazer da
descoberta e, por outro, pode trazer alguma apreensão: terei co
ragem de ler tudo, de chegar ao fim, de fazer o esforço intelec
tual para assimilar a novidade? É tão mais confortável contentar-
se com autores ou gêneros de obras com os quais se está familia
rizado! Partir do que é conhecido de seu auditório é a única ou,
em todo caso, a melhor maneira de captar sua atenção.
A vida corrente é um inesgotável fornecedor de exemplos
familiares a todos. Disseram-me que um aluno arrebatava sem
pre os primeiros prêmios de eloquência; ele costumava começar
seus discursos por uma frase do gênero: “Outro dia eu estava no
metrô. Vejo uma menininha que...”
A descoberta de um setor de conhecimento radicalmente
novo necessita a presença de um mestre ou de alguém mais ex
periente. Ele saberá guiá-lo na floresta virgem que são sempre
os conhecimentos ainda ignorados por você, e isso lhe poupará
muitas perdas de tempo.
A inteligência cultivada é uma inteligência que soube en
contrar seus mestres, dar-lhes sua fé durante um certo tempo e
permanecer-lhes fiel. E a fidelidade (que não exclui, posterior
mente, um distanciamento sem ingratidão) de modo nenhum é
o servilismo, assim como o mestre verdadeiro não é um guru.
Enfim, em cada matéria, existem alguns bons livros peda
gógicos que fazem ganhar um tempo precioso porque buscam
estabelecer passagens entre o que você sabe e o novo domínio
4
1 <■·.) ןIu1.tr. Tal é, por exemplo, o caso da coleção Que sais-je?,
limitas vcv.es notável por sua clareza. Mas, aí também, é preciso
1ui־,ar colocar a soberba e o esnobismo sob o capacho. Um rabi-
in! diz que “citar suas fontes é fazer avançar o Reino de Deus”;
1. ו! ן, r menos brilhante citar uma pequena enciclopédia de bolso
■l< יque a enorme obra de referência em língua original.
r. assim que François Russo assinala “o forte contraste entre
•111.1■. enciclopédias francesas separadas por um século: a Grande
I in ydopédie du XIXe siècle, e a Encyclopaedia universalis. A pri-
mm·ira, tão rica em definições e comentários claros e inteligentes
•ibre o presente e o passado das técnicas; a segunda, muito po-
Im1. ־esse respeito, ou cujos artigos sobre as técnicas atuais e
p.iv.adas são certamente redigidos por especialistas, mas sem
tiin.i preocupação verdadeira de se fazerem compreender por
n.it ) especialistas6״. Traduzamos em nossa perspectiva: essa falta
de preocupação pedagógica é típica. O autor especialista não
busca tornar-se acessível ao leitor não-especialista.
5
Por que o espírito deve proceder
do m ais ao m enos universal?
Essa segunda lei precisa a primeira: o conhecido do qual
parte o espírito é um mais universal, e o desconhecido ao qual
ele chega é um mais particular. O progresso, aqui, compreen
de-se melhor na dimensão vertical. A inteligência parte do alto
da montanha; de lá ela tem uma visão global do vale. Mas, se
quiser conhecê-lo melhor, deverá descer e sua visão se fará
mais detalhada. Assim como o montanhês sente-se feliz ao vol
tar para sua casa no vale, também a inclinação natural (é o caso
de dizer) da inteligência é dirigir-se ao mais particular e não
permanecer nas generalidades‘’. O sociólogo e filósofo Edgar
Morin observa que "... ninguém pode passar sem idéias gerais -
sobre o homem, as mulheres, o amor, a vida, a sociedade, o
mundo -, inclusive o especialista, o qual está condenado às
idéias gerais mais ocas e menos controladas”910.
Houve um tempo em que os novos manuais escolares de
história e de geografia privilegiavam a abordagem temática, que
é muito particularizada. Estudavam, por exemplo, o desenvolvi
mento da metalurgia em diferentes países representativos. Tema
em si interessante, mas faltava saber o que são esses países, sua
estrutura física etc. Ora, esse método redundou num fracasso re
tumbante, e naturalmente o ensino voltou ao estudo geral e não
mais temático, aplicando, sem saber, o princípio aristotélico que
é, antes de mais nada, um bem comum do bom senso.
Aristóteles (Física, Liv. I, cap. 1) manifesta essa profunda
verdade a partir de alguns exemplos concretos. Existe, de fato,
uma proporção, uma analogia entre o conhecimento sensível
(principalmente visual) e o conhecimento da inteligência, quan
to à sua marcha:
6
I >**| x >i,s, ao se aproximar, percebe que a coisa se move: “É um
■· i vivo.” Continuando a se aproximar, você se dá conta de que
i» 1•>• ׳vivo e mais precisamente o animal (pois só o animal é ca
pa/ de se mover por si mesmo) é bípede e tem o andar de um
In >mem: “É um homem.” E, ao se aproximar ainda mais, comple-
ianilo a precisão de seu conhecimento: “Ora vejam! É Sócrates!”
\ semelhança do sentido da visão, a inteligência passa do mais
geral ao mais distinto.
Guilherme de Baskerville,
Umberto Eco e Aristóteles
7
erudição!, você talvez ainda não tenha tido tempo de contar o nú
mero de nós que se acham na madeira...
Exemplo da criança
Passemos do registro espacial a uma imagem tirada do
tempo. A criança a princípio não sabe diferenciar um terra-nova
de um labrador. Ela aprende em primeiro lugar a reconhecer um
cão. passando depois à distinção das espécies. É assim que Aris
tóteles assinala com profundidade: “A criança pequena chama
todo homem papai.” De fato, seu conhecimento é, no início, de
masiado geral para distinguir os diferentes homens, assim ela
nomeia a todos com o nome que utiliza para o homem que co
nhece melhor. A psicologia atual confirma abundantemente esse
fato, em particular a teoria de Winnicot relativa ao que ele cha
ma de objetos transicionais.
8
Estendamos ao adulto: imaginemos que você precise expli
car o que é uma mucosa. Eu lhe direi que se trata de uma espé
cie de epitélio. Ora, entre os epitélios, alguns têm todas as suas
células vivas e outros as camadas celulares superiores mortas.
( )s primeiros são as mucosas (no interior da boca, por exem
plo), os segundos têm a pele como representante. Mas não é to
la linente improvável que você não saiba o que é um epitélio. Eu
lhe direi então que é uma espécie particular de tecido. Com
eleito, existem duas espécies de tecidos: aqueles cujas células
estão juntas (sem nada mais entre as células), e que chamamos
epitélio, e aqueles cujas células não estão juntas, e que compor
iam, além das células, uma substância dita fundamental, fibras
etc. Você poderia também não saber o que é um tecido.
Ora, nesse exemplo, procede-se do mais geral ao mais par
ticular para explicar. E, toda vez que encontramos uma ignorân
cia, a melhor maneira de reduzi-la é certamente retornar a partir
de um conhecido, conforme vimos, mas também proceder de
uma noção mais universal e, por divisão, chegar a uma noção
mais particular.
9
Conseqüên cias
11. Ill Sent., d. 26, q. 2, a. 4, c. Para uma exposição mais detalhada, reme
temos ao capítulo de Roger VERNEAUX, in Epistémologiegénérale ou critique de
la connaissance, “Cours de philosophic”, Paris, Beauchesnes, 1959, pp. 93-101.
12. Michel BOYANCE, art. citado (ref. p. 16), aqui, p. 67.
10
o quanto a inteligência humana não se alimenta apenas de idéias
claras e distintas. De fato, “há conhecimentos confusos. A inteli
gência não se engana em sua primeira apreensão, mas ela não
esgota a realidade do que conhece”. For quê? A razão última é a
seguinte: “Esse conhecimento comum decorre do modo de co
nhecimento da menos perfeita das substâncias intelectuais, ainda
com a intermediação obrigatória das faculdades sensíveis.”
O que está dito acima não é um convite a permanecer no
confuso; ao contrário, todo o dinamismo da ciência se opõe a is
so. É “um sinal de acuidade intelectual buscar sempre idéias
mais distintas, mais acabadas”1314. Donde esta frase profunda de
Faseai: “À medida que se tem mais espírito, descobre-se que há
mais homens originais. As pessoas do vulgo não vêem diferença
entre os homens .” 11
11
a informação contida nesse enunciado será comum (sen
do comum a várias pessoas);
- seja do lado do objeto conhecido, e então o conhecimen
to será dito comum na medida em que disser respeito a
objetos comuns, isto é, universais.
Os exemplos acima (os de Popper e os demais) entendem
o adjetivo de conhecimento comum no primeiro sentido. Ora, o
Sol, o movimento da Terra são objetos muito particulares do
ponto de vista objetivo. Mas o conhecimento comum de que fa
lamos é um conhecimento comum no sentido objetivo, um co
nhecimento que diz respeito a um objeto universal. Por exem
plo, esse tipo de conhecimento não falará das estrelas mas do
céu, do universo. Ora, a existência de um céu e de movimentos
em seu interior, de uma ordem do universo são constatações
muito comuns e muito certas que não sofrem refutação, ao pas
so que não se pode dizer o mesmo da natureza dos quasares ou
da existência de lentes gravitacionais.
Aristóteles e Descartes
É provavelmente nesse ponto que nossa oposição a Des
cartes é maior (a segunda oposição, que será dada na exposição
da quarta lei, é apenas uma conseqüência): este sonhou com
uma matemática universal. Ora, as matemáticas apagam ;1 distin
ção confuso-distinto: em primeiro lugar, elas dão a primazia à
construção do espírito. Além disso, em matemática, todas as
concepções da inteligência têm o mesmo grau de clareza e de
distinção. Claro que a noção de número natural é mais simples
que a de quatérnion e a de conjunto, mais imediata que a de
grupo abeliano, mas de uma à outra a relação não é do confuso
ao distinto; é uma relação, com um mesmo grau de limpidez, do
simples ao complexo. De maneira análoga, um relógio a quartzo
é tão evidente quanto uma clepsidra, mas é mais complexo, e
não mais confuso ou mais universal.
13
Ora, globalmente, podem-se distinguir três entidades gra
maticais de complexidade crescente: a palavra (que é o átomo,
já que uma sílaba isolada é por definição incompreensível, des
provida de sentido), a frase (conjunto ordenado de palavras) e,
finalmente, o parágrafo, que é uma molécula de frases e uma
macromolécula de palavras.
Na maioria das vezes, a palavra é o significante de um con
ceito; a frase mais simples, isto é, de estrutura sujeito-verbo-ob
jeto, é a formulação típica de uma enunciação (cf. adiante o que
diremos da tese), e uma frase, por mais complexa que seja, po
de sempre reduzir-se a um conjunto de enunciados simples que
acabam de ser evocados. Finalmente, o parágrafo lembra, mas
de forma mais distante (devido à variedade dos modos de expo
sição), o raciocínio.
Recapitulação
As operações
Intuição ou
da razão Juízo Raciocínio
abstração
(psicologia)
Instrumentos
da razão Definição Enunciação Argumentação
(lógica)
Paralelo com
Palavra Frase Parágrafo
a gramática
Corolários
Q ual é a prim eira operação do espírito?
Primeira se diz em dois sentidos diferentes: a bolota é pri
meira em relação ao carvalho quanto ao tempo, mas é segunda
quanto à perfeição. Apliquemos essa distinção.
14
A definição é temporalmente primeira. Evidentemente é
preciso saber o que é uma coisa (o que depende da primeira
operação) antes de poder afirmá-la de uma outra (o que depen
de da segunda operação do espírito).
Mas a operação mais decisiva, final, é a segunda operação
do espírito. Esta, portanto, é a primeira na ordem da perfeição.
Com efeito, as duas outras lhe são subordinadas: ninguém fala
com conceitos isolados, estes servem para formar juízos e os
próprios raciocínios servem para estabelecer esses enunciados.
Além do mais, a meta da operação intelectual é o verdadeiro;
ora, é o juízo e somente ele que enuncia a verdade (ou a falsi
dade).
O raciocínio, entregue a si mesmo, não tem motivos para se
deter: ele só encontra sua perfeição no juízo que o põe em con
lato com as coisas e constata que o termo do raciocínio está con
forme (ou não) à realidade, portanto, que é verdadeiro (ou errô
neo). Há uma maneira de discutir, de praticar um pingue-pongue
verbal, que reduz o espírito ao mero raciocínio (como iremos ver
adiante). É encerrando o computador num raciocínio sem fim
(ganhar contra si próprio no jogo da velha) que o pequeno “gê
nio" informático de War Games [Jogos de guerra] desvia a
máquina de sua contagem regressiva e evita o conflito nuclear.
15
penosos. Mais precisamente, a compreensão do verdadeiro é ora
imediata (por exemplo, “o todo é maior que a parte”), ora media
ta (por exemplo, para compreender que o sol é necessário ao
crescimento dos vegetais clorofilados, é preciso passar por uma
etapa intermediária: a compreensão do processo de fotossínte-
se). Ora, “inteligir (manifestar inteligência) é pura e simplesmen
te apreender a verdade inteligível. Simetricamente, raciocinar é ir
de um objeto inteligido a um outro, a fim de conhecer a verda
de inteligível”16. Segundo imagens classicamente utilizadas por
Santo Tomás de Aquino, a razão está para a inteligência assim
como a linha está para o ponto, ou o tempo (a duração, a suces-
sividade) para o instante.
16
modo de discurso (e é a razão): falaremos daqui por diante de
inteligência nesse segundo sentido, salvo se o contexto disser
evidentemente o contrário. A inteligência (no sentido restrito)
implica portanto uma espécie de intuitividade, se não a opu
sermos ao conhecimento intelectual, como fazia Bergson. Po
de-se então distinguir razão e inteligência como discurso e in
tuição; opô-las como análise e síntese seria, ao contrário, bem
menos preciso, pois a síntese comporta sempre um discurso, e
portanto uma intervenção da razão.
17
razão. Com efeito, o espírito consegue, progressivamente, separar
o núcleo inteligível do real, não apesar, mas a partir de suas de
terminações sensíveis, abstraindo-o destas. Assim o anjo (e segu
ramente Deus, a fortiori), ignorando a condição corporal, tam
pouco conhece a imperfeição dos longos meandros racionais: sua
inteligência é muito propriamente intuitiva, imediata18. Do concei
to de número ou de lugar, a criatura imaterial chega imediatamen
te ao conhecimento total da matemática (com uma profundidade
que depende da penetração de sua luz intelectual, evidentemen
te): isso dá o que pensar! Como diz muito bem Georges Cottier,
“a razão é um nome da humildade que significa que um homem
se encontra no grau ínfimo da intelectualidade”. Essa conclusão
de grande importância nos convida a recusar duas concepções
opostas e igualmente errôneas tanto uma como a outra.
18
A segunda tentação, inteiraniente oposta e igualmente im־
portante, quer uma inteligência sem razão. Esse angelismo é tí
pico de toda uma corrente da filosofia moderna desde Espinosa,
que desejava o que ele chamava de conhecimento de terceiro ti
po, a apreensão intuitiva. Aqui, no limite, o discurso e o método
lomam-se uma “ascese purificadora” de que algum dia o homem
lia prescindir. É esquecer que abandonar a razão é despojar o
Iminem. Encontramos essa ilusão e essa aspiração à “supracons-
i lenda”, que permitiria enfim transcender a penosa racionalida
de. em numerosos discursos atuais de obediência esotérica ou
hcrmetista. É verdade que, em si, um conhecimento realmente
Intuitivo é igualmente eficaz, mas, na realidade, e em razão de
nossa condição encarnada, ele está fora de nosso alcance.
De maneira mais geral, contra todas as fantasias alimenta
das por certas obras de ficção científica ou certas correntes neo-
gnósticas, é absurdo sonhar com uma capacidade de conheci
mento radicalmente diferente da inteligência ou dos sentidos,
que seria para o intelecto o que este é para os sentidos. De fato,
a distinção sentido-inteligência é exaustiva. De que maneira, aliás,
considerar uma faculdade que seria mais aberta que a inteligên
cia: ׳Será que esta é coextensiva ao ser e pode, segundo a ex
pressão clássica de Aristóteles, “transformar-se em todas as coi
sas"? A única diferença entre as inteligências não é de natureza,
nus de modo, racional ou intuitivo, e de grau na penetração. A
inteligência divina é evidentemente um caso à parte: a supere
minente simplicidade divina exige que o próprio ser de Deus se
identifique com sua inteligência (sempre em ato), como também
com seu querer em ato, isto é, com seu amor.
Recusemos esse desprezo da razão e essa busca de um ou-
in> tipo de atividade cognitiva pretensamente oculta num cére
bro, a respeito do qual se repete, sem jamais demonstrar, que
apenas dez por cento de suas capacidades são exploradas. Tal
vez haja, porém, uma verdade “a salvar”, como diria Santo Inácio
cie Loyola21, nessa tendência (mais do que tentação) a alçar a in
teligência humana acima de si mesma. A busca de uma supra-
eonsciência, de uma visão intuitiva, não será a tradução canhes
tra e nostálgica daquele eros (desejo) natural de verdade e, mais
19
ainda, do desejo “transnatural” (segundo a expressão de Maritain)
de ver Deus acima de toda inteligência? “Somente a visão de
Deus pode realmente apaziguar a capacidade de conhecer, de in-
teligir, de um ‘intellectus’ criado. Kis uma doutrina de extrema
audácia, certamente a mais audaciosa da história da metafísica.”22234
22. G. M. M. COTTIER, art. cit. p. 24, aqui p. 224. Cf. também o livro decisi
vo sobre esse assunto de Jorge LAPORTA, La destinée de la nature humaine selou
Thomas d ’A quin, col. “Etudes de Philosophic médiévale”, Paris, Vrin, 1965, n° 55.
23. Isaac ASIMOV, Fondation, “Presence du futur”, Paris, Denoél, 1966, p. 58.
24. Metafísica, Liv. II, cap. Ill (995a 5 a 16), trad. fr. Tricot, Paris, Vrin,
1953, t. II, p. 118. Sublinhado por nós. Cf. também ST, I-II, 47, 9, ad 2um; in F.th.
Nicom., 1, 3 e o comentário por F. DELERUE, Le système moral de saint Alphonse
de Liguori. Éaide historique et philosophique, Saint-Étienne, 1929, pp. 109-10.
20
Muitas sào as pessoas que suportam apenas um único tipo
de raciocínio25: o matemático quer matematizar tudo e só se sa
tisfaz com a exposição se ela tem o rigor de uma axiomática e
se a realidade está estreitamente atada numa rede de equações;
o cstruturalista porá a estrutura em toda parte. O médico terá
tendência a substituir a escuta silenciosa e respeitosa da pessoa
do outro por um questionário diagnóstico de sufocante precisão
e trocará a compaixão pela entrega de uma receita eficaz e rigo
rosa, com bons conselhos abundantemente testados em outros
pacientes.
De onde vem essa tendência à uniformização dos métodos?
Para resumir, digamos que, no Discurso do método, Descartes
decretou que o caminho para chegar à verdade era único: a via
matemática. Ora, essa exigência é tão absurda quanto pedir para
se utilizar um cinzel de escultor ou um maçarico como ferra
menta universal. Há materiais inteligíveis para os quais a mate
mática é tão inadequada quanto um maçarico para operar um fí
gado! Se a inteligência está a serviço do verdadeiro, portanto da
compreensão do real, seus meios de investigação devem procu
ra ׳ser tão ricos e variados quanto a realidade.
1
21
tural, inata; mas nossa natureza ferida perdeu o manual de
instruções para utilizá-la. É preciso, pois, um “organon" (um ins
trumento), como dizia Aristóteles: essa é a arte de pensar que
este livro propõe.
22
Capítulo i
O NÍVEL DE LEITURA
i >QUE 6?
23
- ou à sua vontade: o texto do Gênese prossegue desta
forma: o fruto era “desejável para adquirir o discernimen
to”. Ora, o desejo de discernimento é um ato do querer.
Do mesmo modo, todo texto pode dirigir-se a essas diver
sas faculdades.
* “Les armes du matin sont belles et la mer. A nos chevaux livrée la terre
sans amandes / nous vaut ce ciel incorruptible. Et le soleil n'est point nommé,
mais sa puissance est parmi nous / et la mer au matin com me une présomption
de l’esprit.”
1. Saint-John PERSE, “Anabase”, I, Oeuvres complètes, “Bibliothèque de la
Pléiade”, Paris, Gallimard, 1972, p. 93.
2. Pierre DANINOS, Les carnets du Bon Dien. “Le Livre de poche” nB 2181,
Paris, Plon, sen! data, p. 7.
3. 11 de março de 1992, p. 1.
24
nt* Demongeot falou um pouco mais a ‘VSD’ (5/3) cie suas convic
ções políticas: ‘Não sou de direita nem de esquerda. Sempre fui
ecologista.’ Ta pie e Hechter, novos arautos dos verdes? O luto elei
toral deve ser a tendência prêt-à-porter..."
25
Outro exemplo, tirado do poema O mal:
* “II est im Dieu, qui rit aux nappes damassées / Des autels, à l’encens,
aux grands calices d’or; / Qui dans le bercement des hosannah s ’endort, / / Et se
réveille, quand des mères, ramassées / Dans l’angoisse, et pleurant sous leur vi-
eux bonnet noir, / Lui donnent un gros sou lie dans leur mouchoir!”
4. Arthur RIMBAUD, “Vénus Anadyomène”, in Oeuvres poétiques, Paris,
Garnier-Flammarion, 1964, p. 43; “Le mal”, idem, p. 51.
5. Suma teológica, II-1I, q. 66, a. 7.
6. Claude ALLÈGRE, Uécume de la Terre, “Le temps des sciences”, Paris,
Fayard, 1983, p. 355.
26
0 texto que se dirige à vontade
É o caso de uma fábula de La Fontaine que, justamente, ter
mina com uma “moral”, de uma parábola evangélica, de um relato
de aventuras vividas ou fictícias. Aqui o texto deseja mover, não
•·edu/,indo mas propondo o que é bom ou mau para o homem.
Vejam-se os seguintes textos:
“Pode-se encolher os ombros, pode-se ficar indignado dian
te da maré negra, verde e vermelha dos grafites que invadem
nossos metrôs, nossos trens, nossas estradas. Pode-se calcular a
despesa inútil, pode-se gritar que é uma loucura. O que ainda
resta a compreender é o que se passa na cabeça de um jovem
da periferia que corre todos os riscos para deixar sua sigla eriça
da de K e de X, em letras computadorizadas, sobre o inofensivo
assento do trem de subúrbio. Há alguns anos, um estudo sobre
a·, depredações sofridas pelas cabines telefônicas na França
mostrou que elas eram praticadas sobretudo por jovens muito
isolados que se vingavam por não ter praticamente ninguém
1 mu quem conversar.
O fenômeno das pichaçòes é certamente da mesma ordem.
<,..) Mais do que uma vontade de poluir ou de degradar, ele é
um grito, informe, monstruoso, contra a imagem de uma socie-
d.ide da abundância (...). Quando se esperou indefinidamente
um auxílio-desemprego sonhando com o aparelho de som que
m· poderá comprar, quando se consumiu o dinheiro em poucos
dias e se tem a perspectiva de vinte outros de ‘trabalhos força
dos’, (...) o que se quer é fazer calar, mais dia menos dia, esse
apelo insolente ao consumo (...) e afirmar de todos os modos a
propria existência, dizer que também se tem um estilo.” Conclu
são que manifesta claramente a intenção: “Não é uma desculpa,
ia·m uma justificação. Mas talvez uma explicação e um apelo a
icsponder a esse grito. De outra forma.”7
27
agradecendo ao anfitrião, e am im ar as malas;
pois, por quanto se pode adiar a viagem?
Tu resmungas, ancião! Vê os jovens morrerem,
vê como eles andam, como correm
para mortes, é verdade, gloriosas e belas,
no entanto certas, e algumas vezes cruéis.
É em vão que te grito; meu zelo é indiscreto:
o mais semelhante aos modos é o que mais lamenta morrer**
* “La mort avait raison. Je voudrais qu’à cet âge / On sortit de la vie ainsi
que d’un banquet / Remerciant son hôte, et qu’on fit son paquet; / Car de com-
bien peut-on retarder le voyage? / Tu murmures, vieillard! vois ces jeunes mou-
rir, / Vois-les marcher, vois-les courir / A des morts, il est vrai, glorieuses et bel
les, / Mais sures cependant, et quelquefois cruelles. / J’ai beau te le crier; mon
zèle est indiscret: / Le plus semblable aux morts meurt le plus à regret.”
8. LA FONTAINE, Im mort et le mourant (liv. VIII, fábula 1).
9· Blaise PASCAL, Pensées, n° 72, ed. Chevalier in Oeuvres completes, “Bi-
bliothèque de la Plêiade”, Paris, Gallimard, 1954, p. 1102; n- 283, ed. Brunsch-
vicg. ( Pensamentos, trad. bras. Sérgio Milliet, São Paulo, DIFEL, p. 123.)
28
|i .ii■■ e os grandes mestres espirituais falavam freqüentemente
pni parábolas.
Nao ()!»־stante, um texto se dirige prioritariamente ao espíri
to ao coração ou à afetividade. Leia este retrato de La Bruyère
t \ § õ): “Arrias leu tudo, viu tudo (...); é um homem universal, e
׳I*· se tem por tal (...). Fala-se, à mesa de um nobre, de uma
i orle tio Norte: ele toma a palavra, e tira-a dos que iam dizer o
que sabem a respeito; orienta-se nessa região longínqua como
.c t o s s e originário dela ( ...) . Alguém se arrisca a contradizê-lo, e
prova lhe claramente que ele diz coisas que não são verdadei-
i.i■־
· Arrias não se perturba, pelo contrário, inflama-se contra
quem o interrompeu: *(...) Recebi essa informação de Sethon,
i inbaixador da França nessa corte (...).’ Ele retoma o fio de sua
narração com mais confiança do que havia começado, quando
um dos convidados lhe diz: ‘É a Sethon que você fala, ele pró
prio, e que retorna de sua embaixada.’ ”
Aqui, o autor, como bom humorista, dirige-se obviamente
a sensibilidade, mas com uma finalidade ética: ele procura edifi-
<ar, traçando-nos o retrato do tagarela. Em última análise, é por-
i.uito á vontade que ele fala.
29
Eis aqui, no mesmo dia, o artigo do cronista religioso do
jornal Le Monde: “O relatório dos historiadores entregue pelo sr.
René Rémond ao cardeal Decourtray é arrasador para a Igreja.”
E Henri Tincq concluirá desta forma: ”Mesmo se esse caso refe-
re-se ao passado, todos hào de lembrar que a Igreja sempre foi
mais rápida em condenar seus padres-operários ou seus teólo
gos de vanguarda do que seus clérigos comprometidos com os
regimes conservadores” (p. 12).
A diferença das conclusões é chocante e permite avaliar o
quanto os mesmos fatos podem ser interpretados em termos di
versos, e até despertar sentimentos e reações opostas: indulgên
cia ou cólera.
Há alguns anos, Franco mandou executar um certo número
de generais. Dois jornais de tendências opostas noticiaram mais
ou menos o seguinte: Franco mata tantos generais; Franco pou
pa a vida de tantos generais.
Mas por que é tão importante tomar esse recuo em relação
ao texto? Há duas razões principais.
30
1 ile ־abril de 1991 escrevia: “Trinta mil descendentes de uma
mesma família do século XV correm o risco de ficar cegos. A
identidade deles é conhecida, mas a lei proíbe preveni-los.” Es-
■>,i informação provocou um forte desassossego na população
envolvida de Pas-de־Calais. Mesmo em outra parte sua leitura
nos impressiona. Ora, isso é deixar a paixão dominar a inteli
gência do texto que, involuntariamente, joga com duas signifi
cações, e portanto com duas leituras do termo “correr o risco”:
"primeiro aquela (sentido corrente) segundo a qual 30 mil pes
soas ‘vão’ ficar cegas se não forem prevenidas; em seguida, a
outra (sentido probabilista menos familiar para o grande públi
co), segundo a qual 30 mil pessoas correm um risco, isto é, têm
uma probabilidade (talvez muito pequena, o que era o caso) de
ficarem cegas: a continuação do artigo evita fazer uma estimati
va. No entanto, o cálculo é simples: após quinze gerações, a
probabilidade de ter recebido um gene do casal ancestral é pre
cisamente igual a 1/2 na potência 15, ou seja, um pouco menos
de uma ‘chance’ em 32.000!”10
Além do efeito passional, a compreensão errônea baseia-se
num termo com muitos sentidos (o que chamaremos no capítulo
V um termo análogo): “correr o risco”.
Segunda razão
A manipulação dos espíritos existe. Não sejamos ingênuos.
Não imaginemos que a pretensa liberdade de imprensa e a au
sência de censura nos protegem do terrorismo intelectual e da
influência das modas. Escutem bem esta advertência de Alexan
dre Soljenitsin: “O Ocidente, que não possui censura, pratica no
entanto uma seleção minuciosa ao separar as idéias em moda
daquelas que não o estão, e, ainda que estas últimas não sofram
nenhuma proibição, elas não podem se exprimir verdadeiramen
te nem na imprensa periódica, nem pelo livro, nem pelo ensino
universitário. O espírito de vossos pesquisadores é de fato livre
juridicamente, mas cercado de todos os lados pela moda.”11
31
Por que a manipulação?
Seria demasiado longo examinar isso em detalhe12. Já em
1833, o general prussiano von Clausewitz, em sua obra agora
clássica sobre a guerra, observava que as armas psicológicas sào
superiores às armas militares (essa observação não poderia ter
mais atualidade).
A manipulação tem por objetivo não tanto informar, e sim
impelir à ação neste ou naquele sentido (por exemplo, para der
rubar um governo, fazer pressão...), ou, ao contrário, comover e
assim ocultar a inteligência e paralisar suas reações (esse é o
sentido de muitos atos terroristas, dos crimes atrozes, cuidadosa
mente retransmitidos pela mídia). O perigo, então, é que só
aflore à consciência a informação (o suposto alimento da inteli
gência), e que a ação primordial sobre a vontade ou a sensibili
dade não transpareça imediatamente ou não pareça imputável
àquele que fala ou escreve.
Por exemplo, certas instâncias tentam apresentar o aborto
como um simples meio de contracepção e como um procedi
mento de controle da natalidade. Foi o que disse o dr. Lagroua
Weill-Hallé a respeito das conclusões do congresso realizado
em Dacca, de 28 de janeiro a 5 de fevereiro de 1969: “Pela pri
meira vez oficialmente, num congresso da Federação Internacio
nal do Planejamento Familiar (IPPF), o aborto é apresentado
como um meio de contracepção (...), como um método de con
trole da natalidade.”13
Como?
O domínio de eficácia por excelência da manipulação é evi
dentemente o audiovisual. Com efeito, o impacto de uma ima
gem é imenso. “Uma imagem vale por dez mil palavras”, diz um
provérbio chinês. Ora, ela apresenta uma dupla vantagem imedia-
32
i.i sobre a idéia: requer um esforço mínimo (ela se acomoda pas-
.ivamente dentro de nós); e é mais atraente à primeira vista, po-
■lendo inclusive parecer mais rica quando não se compreendeu o
quanto o abstrato liberta o coração do concreto. O impacto da
imagem é então de tal ordem que a inteligência se inibe. Basta
mostrar o sofrimento de uma mulher que não pode abortar para
mobilizar um país inteiro contra a proibição do aborto.
Mas a desinformação existe também no domínio da escrita.
I )c maneira mais geral, a manipulação incidirá sobre palavras:
veja se, por exemplo, a conotação pejorativa de uma palavra tão
inocente, no sentido original, como “burguês”, habitante de um
burgo. A manipulação envolve também as idéias, como a de ra-
■ismo, fórmula vazia dos políticos, acusação que se estende por
Iodas as latitudes, apesar de sociólogos pouco suspeitos de com
placência, como P. A. Tagnieff, denunciarem a ambigüidade in
trínseca dessa noção.
( ]()MO PROCEDER?
33
A seguir, determ inar fria m en te o nível do texto
Acalme suas emoções e reflita. A palavra, sob esse aspecto,
permite livrar-nos do domínio imediato da paixão; signo e ex
pressão do pensamento, ela é condição necessária para instaurar
um ato de liberdade. O Comitê encarregado da Vigilância da Pu
blicidade pediu que os filmes publicitários fossem projetados nas
salas de cinema com a luz acesa e não na obscuridade; a luz,
com efeito, coloca o espectador em relação com seus vizinhos e
permite-lhe portanto um distanciamento em relação ao filme pu
blicitário, graças à mediação possível que a linguagem autoriza;
ora, a linguagem, que é signo e expressão do pensamento, é
condição necessária para instaurar um ato de liberdade.
Feito isso, como determinar se um texto se dirige mais à
inteligência, à vontade ou à sensibilidade? Trataremos da mani
pulação à parte.
Os critérios são de diferentes ordens:
Critérios lógicos
Um bom critério é fornecido pelos tipos de raciocínio em
pregados. Eles serão estudados em detalhe no capítulo III. Assi
nalemos, desde já, que um texto que se dirige:
- à inteligência utiliza todos os tipos de raciocínio, mas so
bretudo o silogismo e a indução; algumas vezes o enti-
mema e mais raramente o exemplo, e isso em geral acon
tecerá tanto na fase de descoberta quanto na exposição
pedagógica;
- à vontade utiliza às vezes silogismo e indução, mas so
bretudo os argumentos mais fracos como o entimema e o
argumento pelo exemplo;
- à sensibilidade utiliza exclusivamente entimema e exem
plo. Em particular, o raciocínio pelo exemplo apela com
freqüência às paixões para concluir.
Mas procuremos não esquematizar. Seja o seguinte texto:
“Essas florestas são um elo essencial do equilíbrio planetário: 7%
das terras emersas produzem 25% do oxigênio (e o mesmo de
C02). Elas participam da regulação do clima, e sua combustão li
beraria gás carbônico aumentando o efeito estufa. Ora, essas flo
restas desaparecem hoje a um ritmo acelerado: 100 mil quilôme
tros quadrados desmaiados por ano na Amazônia. A esse ritmo,
34
.i 11()resta terá desaparecido completamente no ano 2040.”“ Cer-
1.1 mente esse texto fala com rigor, sua demonstração é silogísti-
ca. Mesmo assim ele desperta em nós sentimentos, especialmen-
te de temor, e até mesmo inclinações da vontade (como fazer
para deter essas devastações?)
35
e nào exigem que se saiba se o que é afirmado é verdadeiro ou
falso; basta que se analise o próprio texto; outros, que qualifica
remos de materiais, exigem uma informação exterior que avalia
a verdade do texto.
Entre os critérios formais, procure reconhecer dois tipos de
defasagem, sempre extremamente reveladoras:
- entre a intenção declarada e o que é efetivamente escrito;
-entre o que chamaremos a tese, aquilo que o texto afir
ma, e a demonstração que ele oferece dela.
Um critério, sutil mas muito precioso, servirá de transição:
o caráter refutável ou não-refutável do texto.
Já os critérios materiais dizem respeito ao valor de verdade
do texto; eles supõem que o conteúdo seja conhecido.
36
in ni.ii, o ׳abuso de analogias (o que chamaremos raciocínio pelo
rxemplo) e de simples ilustrações à guisa de prova. Sempre me
Impressionou o emprego quase sistemático desse gênero de ar
gumentos nas obras de divulgação em esoterismo.
Ho mesmo modo, o convívio cada vez mais assíduo com a
televisão fecha-nos a qualquer argumento que não seja o “caso
de fulano” (ou caso individual). Ora, é muito raro que se possa
chegar à conclusão universal tendo percorrido apenas alguns
exemplos ou situações singulares; e no entanto é o que fazemos
demasiado espontaneamente, e que um discurso manipulador
incita habilmente a fazer.
• Leitura do texto
Eis a apresentação de um programa da série Graneis Repor
tares, na TV, com o título “Sexorama”. Ele fala da liberdade se
xual total na Espanha, hoje em dia. “Entretanto, recentemente,
um jovem pintor aceitou queimar suas obras, consideradas de
masiado eróticas pelo clero local. A Espanha da Inquisição ainda
não desapareceu completamente!”17
• Análise do texto
A conclusão (que é a última frase) ultrapassa as premissas e
se apóia num lugar-comum: Inquisição (sobretudo espanhola) =
Intolerância. Mas há vício de raciocínio. Com efeito, a Inquisição
era um tribunal que julgava e eventualmente condenava, as sen
tenças sendo executadas pelo braço secular; ora, o clero atual
não tem nenhum poder de jurisdição no domínio civil. Por outro
lado, é minimizar claramente a inteligência e a liberdade do artis
ta, que pode muito bem ter se curvado às razões do clero.
17. Télé 7jours, de 24 a 31 de agosto de 1991, p. 99: cabe notar, ali׳ás, que
o Figaro magazine TV de 26 de agosto a 1Qde setembro de 1991, p. 41, começa
a apresentação da mesma maneira, mas não acrescenta a última frase com o co
mentário.
37
sempre o direito de pedir as fontes e os fundamentos das asser
ções. Entretanto, compreender alguém supõe um mínimo de
concessões (não se pode a todo momento demonstrar tudo), as
sim como a crítica ou a desconfiança sistemáticas não permitem
acolher outrem e a verdade que ele enuncia.
Precisemos: o recurso à autoridade nem sempre é explícito;
na verdade, quanto maior a defasagem entre a afirmação e a de
monstração, tanto mais a autoridade é implicitamente exigida e
maiores as chances para que o leitor adira. Quanto mais “incrí
vel” a afirmação, mais ela se mantém e se torna crível (“Não se
pode dizer tal coisa a menos que haja boas razões!”). É assim
que Las Casas ousa contar que Cortês matou, sozinho, numa
noite, e passando pelo fio da espada, cerca de seis mil homens!
Leiamos o texto seguinte. O que está em jogo não é vital,
mas isso não é uma razão para enunciar um juízo intempestivo.
“Foi em 1605 que Kepler descobriu que a órbita de Marte
era elíptica. (...) Pode-se dizer sem exagero que essa é a maior
descoberta científica de todos os tempos. Kepler dá uma respos
ta completa a questões que vinham mobilizando há séculos os
melhores espíritos da humanidade, Eudóxio de Cnido, Aristarco
cie Patmos, Ptolomeu, Copérnico.”18*
O que quer demonstrar o autor? É o que a segunda frase
enuncia: a descoberta de Kepler “é a maior descoberta científica
de todos os tempos”. De que maneira ele o demonstra? É o que
nos diz a terceira frase. Ora, o mínimo que se pode dizer é que
o argumento proposto não é muito convincente e que prova
bem menos que aquilo que a tese propõe. Um sinal entre mui
tos: a lista dos “melhores espíritos da humanidade”, singular
mente, limita-se a cientistas, e mais: a astrônomos! Os biólogos,
os artistas e os filósofos não receberam convite. Por quê? Isso
não é dito. Em suma, Ekeland pensa que se dará crédito à sua
autoridade.
38
!■ui inglês). Essa noção original é sobretudo eficaz em ciências
humanas.
39
é o totalitarismo) no momento em que a teoria proposta não é
mais refutável. As duas ilustrações por excelência de non-falsifia-
bility são, para nosso autor, o marxismo e o freudismo: nenhum
fenômeno histórico escapa à explicação da luta de classes e,
mais precisamente, quando se faz uma crítica ao sistema, ela é
logo interpretada, não como uma reivindicação legítima, mas co-
mo a expressão da classe dos opressores ou da tendência reacio-
nária ou fascista. Também Freud com freqüência interpretou as
críticas de seus adversários como resistências psicológicas in-
conscientes à novidade perturbadora de sua doutrina. A refuta-
ção torna-se assim impossível. Com efeito, uma refutação requer
que exista uma realidade (e portanto uma experiência baseada
no real) exterior ao sistema; ora, a priori, esse sistema engloba,
totaliza: nada lhe é estranho. Há algo de prometéico nesse dese-
jo de onisciência, caminho obrigatório da onipotência totalitária.
Também aí, a humildade, a aceitação de seus limites e de seus
erros, é o único caminho para a verdade.
□ Exemplos de nào-refutabilidade
Um texto sistemático que lança a suspeita sobre toda crítica
e a interpreta nos termos de sua construção deve deixar você
com a pulga atrás da orelha: há risco de manipulação. Diferen-
tes exemplos serão tirados de mestres da suspeita, Freud e Mao.
Freud pergunta-se por que sua doutrina das perversões sexuais
demora tanto a ser aceita: “Eu não sabería dizê-lo, mas parece-me
que se deve ver a causa disso no fato de as perversões sexuais se-
rem o objeto de uma proscrição particular que repercute na teoria
e se opõe ao estudo científico delas. Dir-se-ia que as pessoas vêem
nas perversões uma coisa não apenas repugnante, mas também
monstruosa e perigosa, que temem ser induzidas por elas em ten-
taçâo, e que no fundo são obrigadas a reprimir em si mesmas,
diante dos que são seus portadores, uma inveja secreta.”20
Isto lembra a crítica de Françoise Dolto às pessoas que le-
varam a Jesus a mulher adúltera (João, 8, 1-11). Se eles a acu-
sam, é porque têm um problema a resolver com sua própria cul-
pabilidade, portanto com seu desejo inconfesso...
40
Outro exemplo: “Todas as guerras da história dividem-se,
no final das contas, em duas categorias: as guerras justas e as
guerras injustas. Somos a favor das guerras justas e contra as
guerras injustas. Todas as guerras contra-revolucionárias sào in
justas, todas as guerras revolucionárias são justas.”21 A universali
dade absoluta e englobante do discurso é suspeita.
Enfim, tomemos de Soljenitsin um exemplo vivido. O antigo
ministro Semichastny fez-lhe um dia “uma de suas estranhas acu
sações (...): ‘Soljenitsin sustenta materialmente o mundo capitalis
ta porque ele não reivindica seus direitos’ sobre certo livro”, no
caso, Uma jornada de Ivan Denissovitcb. Mas, continua Soljenit
sin, “eis a pilhéria [que toma o raciocínio não-falsificável]: quem
aceita os honorários do Ocidente é vendido aos capitalistas,
quem não os aceita apóia-o materialmente - tertium non datur
Inão há terceiro termo, donde a não-refutabilidade]”22 .
Eis finalmente um exemplo de pensamento não-falsificável
em exegese: "... católicos hesitam em admitir a autenticidade
das palavras de Jesus, ora porque podem se explicar pelas con
cepções de seu meio judeu, ora porque se afastam demasiado
das idéias comumente aceitas no tempo de Jesus”2324.
Relacionar isso com as severas observações do padre Be-
noit: “Jesus não tem o direito nem de falar como as pessoas de
seu tempo, nem de dizer algo diferente do que eles dizem. O
que lhe resta senão guardar silêncio? Não conheço melhor ma
neira de amordaçar um homem.”2'
41
Critérios m ais materiais
Esses critérios são múltiplos. Citaremos apenas alguns.
42
U O texto manipulador utiliza o raciocínio por acidente
O autor justapõe idéias, esperando que a mera coincidên
cia se torne relação de causa e efeito. Eis um exemplo típico. Es
se exemplo é apaixonante, pois permite ver em funcionamento
uma técnica clássica de pseudo-informação, ou melhor, de pseu
do-raciocínio que não conclui.
• Leitura do texto
O artigo fala do professor Jérôme Lejeune, “inventor” da
causa (genética) da síndrome de Down (ou trissomia do 21) e
fundador do movimento “Deixe viver”.
“Duas ou três coisas ainda para completar o retrato do per
sonagem: ele é doutor bonoris causa da universidade de Pam-
plona, um dos feudos da Opus Dei, e sua filha, membro da
Obra, foi designada pelo Papa, juntamente com seu marido, Jean-
Marie Meyer, para representar em Roma, no seio de um Conse
lho da família que reúne uns vinte outros casais de vinte países,
as famílias católicas da França.26״
• Análise do texto
Ora, esse artigo não conclui, pois contenta-se em justapor
para sugerir e persuadir. Mais precisamente ainda, afirmar que
“ele é doutor bonoris causa da universidade de Pamplona, um
dos feudos da Opus Dei" e dizer que “sua filha” é “membro da
Obra”, não permite sequer afirmar que o professor Lejeune faça
parte dela. Além disso, a afirmação é puramente sugestiva, pois
o jornalista não tira nenhuma conclusão explícita dessa suposta
associação (que pode ser apenas um vínculo acidental). De fato,
os vínculos estabelecidos são tão frouxos que ele é incapaz de
concluir alguma coisa. Mas o autor deseja simplesmente que o
termo Opus Dei desperte algum afeto negativo (direita, Espanha
franquista etc.) e que esse afeto se transfira ao professor Lejeu
ne. A persuasão é portanto aqui uma cortina de fumaça e, no
caso, uma técnica de manipulação.
Observe bem os meios empregados. Eles costumam ser
dois:
26. “Le professeur Lejeune. La m éthode secou é”, Les dossiers du Canard:
Les cathocrates, setem bro de 1990, p. 44.
- primeiro, a alusão, o vínculo frouxo, e geralmente aci
dental, estabelecido entre o tema, a pessoa de que fala o
artigo e um outro elemento qualquer (aqui, a Opus Det)■,
- a seguir, uma forte carga emotiva negativa associada ao
segundo elemento.
44
Assinalar esse tipo de deslize sem cair na paranóia requer
verificar suas fontes de informação e um sólido bom senso.
Lembre-se também que o homem ferido pelo pecado original
prefere espontaneamente crer no mal a crer no bem que se diz
de seu vizinho.
45
Exercícios
Primeiro exercício
• Leitura do texto
“Uma alimentação cada vez mais precária, uma vida trepi
dante e estressante, refeições feitas às pressas, só podem ter re
percussões nocivas sobre nossa saúde.
As grandes epidemias e as fomes felizmente desapareceram
de nossas regiões.
Mas parece que a doença não regride.
O homem, devido à sua higiene de vida, está em estado
permanente de microcarências.
Seu estado oscila entre saúde e doença, com o aparecimen
to de distúrbios variados cujas causas não são evidentes para o
corpo médico.
É então urgente reequilibrar.”
(Chantal e Lionel CLERGEAUD, Ualimentation saine. Guide
pratique en 13 leçons, Éd. Equilibres, Flers, 1989, p. 46.)•
• Análise do texto
Antes de mais nada, e como preâmbulo, o que diz o texto?
Sua tese é que uma alimentação equilibrada evita as doenças.
A qual nível se dirige o texto? Nosso propósito nào é fazer
um juízo de valor sobre o conteúdo do texto, mas apenas sobre
sua forma. Não estamos habituados a distinguir esses dois as
pectos, e essa é a razão de numerosas polêmicas.
46
À primeira vista, achamos que essas poucas linhas falam à
inteligência. Com efeito, o texto é claro, sem paixão, parece
bem argumentado.
Mas examinemos mais cie perto essa argumentação.
- Em primeiro lugar, o raciocínio se fundamenta em dois lu
gares-comuns: o homem atual vive estressado. A medicina
é impotente diante das doenças do homem moderno etc.
- Em segundo lugar, se tentamos formular o raciocínio, de
paramo-nos com o que chamaremos mais adiante um en-
timema, que é uma argumentação muito fraca. O raciocí
nio limita-se a dizer: o homem moderno é doente; ora, o
homem moderno não equilibra suas refeições. Logo...
- O raciocínio apresenta também um outro fundamento: as
doenças são de dois tipos: as grandes doenças (ligadas a
macrocarências, por exemplo de higiene, de vacinação
etc.), como as epidemias, e as pequenas doenças ligadas
a microcarências; ora, o homem atual continua sofrendo
doenças, embora não conheça mais as epidemias; logo...
E é fácil perceber que poderia haver outras explicações,
por exemplo, de ordem psicológica (as escolas psicanalí-
ticas explicariam os males do homem contemporâneo pe
la ausência de referência paterna).
Segundo exercício
• Leitura do texto
Neste texto, Santo Agostinho quer desencorajar os cristãos
de correrem para o espetáculo. Mais precisamente, deseja afastá-
los dos jogos do circo, pois se está às vésperas do dies natalis
da cidade (Cartago, talvez).
“Considerem um saltimbanco. Com grande dificuldade, es
se homem adestrou-se a andar sobre uma corda; suspenso, ele
47
os mantém em suspenso. Mas pensem naquele que nos oferece
espetáculos ainda maiores. Esse (...) homem (o apóstolo Pedro)·
nào aprendeu a andar sobre as águas? Esquece, pois, teu teatro,
contempla nosso Pedro, nào funâmbulo, mas, se posso dizer,
mareâmbulo.”
E a continuação, assombrosa: “Anda portanto sobre as
águas, nào aquelas que o apóstolo pisou, imaginando entào ou
tra coisa, mas sobre outras águas, pois este século é como o
mar. Está cheio de amargor, de um amargor nocivo (...). Anda,
pisa com os pés este século perverso! Querias um espetáculo,
oferece tu mesmo o espetáculo! (...) Anda sobre o mar, a fim de
nào seres engolido pelo mar!”
(Citação e comentário extraídos de Henri RONDET, “Le
symbolisme de la mer chez saint Augustin”, Augustinus Magister,
Atas do Colóquio de 1954, Paris, 1955, t. II, pp. 691701 ;־aqui,
pp. 696-7.)
·Análise do texto
A profusão das imagens que se chamam uma à outra, de ma
neira cada vez mais ousada, implicando cada vez mais a coopera
ção do ouvinte e seu engajamento íntimo, mostra o quanto o texto
se dirige à afetividade e, aqui, à afetividade voluntária, à vontade.
Por isso, comenta Rondei, o bispo de Hipona utiliza “todos
os recursos de seu gênio para interessar seus ouvintes”.
Terceiro exercício
• Leitura do texto
“Vocês nào foram ao mundo, vocês se entregaram ao mun
do! Toda a infelicidade da condição de vocês, meus caríssimos
Padres, e conseqüentemente a nossa, foi que nào puderam ficar
sozinhos a rezar entre as quatro paredes de uma igreja. Foi que
nào cumpriram seu ofício, só isso, e depois procuraram subli
mes razões. (...) Vocês esquivaram-se do combate do espírito
48
em troca de uma paz precipitada com a Terra! Disseram amém a
lodos os ventos findos do século! Renunciaram à ardente paciên
cia e aos influxos de um vigor novo!” (p. 28)
• Análise do texto
O estilo é afetivo, e observem o quanto ele influencia a ordem
da exposição, opõe-se a uma progressão linear e provoca saltos cuja
coerência só se manifesta à luz de uma lógica da persuasão.
Trata-se de uma cólera santa? O recuo dos anos, o julga
mento da História que é a falência da ideologia marxista (há
mais de dez anos não aparece nenhuma grande obra original
marxista), o desabamento do império soviético e a democratiza
ção dos países do Leste falam por si sós.
Quarto exercício
• Leitura do texto
Jean-Claude Didelot, editor e autor, defende um missal que
editou, Epbata, e nessa ocasião fala de um jovem vietnamita
“perdido” que ele um dia encontrou. Ele escreve, em particular
aos bispos:
“Contei-lhe a história do filho pródigo, adaptando os perso
nagens para nossa época. Cheguei ao instante em que o filho re
torna à sua casa:
Então, ele diz a seu pai: - Eu estava louco ao sair de casa.
Depois, foi a miséria. Mas acabei compreendendo. Gostaria de
voltar a viver aqui... - Sabe, Patrick, o que o pai dele fez?
O jovem não hesitou:
- Deu-lhe uma sova?
- Não, ele o abraçou...
Nesse instante, monsenhor, duas lágrimas correram dos
olhos de Patrick. E foi por causa dessas duas lágrimas, por todos
os Patricks e todas as Christines encontrados durante tantos anos
longe das sacristias, dos escritórios e dos locutórios encerados,
que decidi lançar o projeto Epbata e acreditar nele.”
(Jean-Claude DIDELOT, Clérocratie dam 1’Église de France,
Paris, Fayard, 1991, pp. 205-6.)
49
• Análise do texto
O texto dirige-se manifestamente à sensibilidade. Com efei
to, o vínculo entre sua tese (a defesa do missal Epbata) e o caso
desse jovem “perdido” é mais do que frouxo. Ora, a descrição
do episódio com Patrick é muito carregada afetivamente. O pro
cedimento lembra muito o do raciocínio por acidente.
50
Capítulo II
A PROBLEMÁTICA PROBLEMÁTICA
51
Por quê?
52
análise rigorosa do “em si” do texto (o que ele diz em si). “A in
justiça mais corrente que se comete em relação ao pensamento
especulativo consiste em torná-lo unilateral, ou seja, em revelar
apenas uma das proposições de que ele se compõe.”'
Ora, reduzimos um texto ou o pensamento do outro ao que
dele compreendemos superficial mente sobretudo em dois casos
bem diferentes: quando o texto nos parece difícil de compreen
der e quando não concordamos com ele; e os textos árduos tam
bém são com freqüência textos que não correspondem à nossa
forma de pensamento. Assim, o problema aqui é tanto uma ques
tão de inteligência quanto de acolhimento do outro.
Logros de verdade
53
tam-se enföo progressos realmente excepcionais, com resulta
dos que efetivamente ultrapassam a média."
Robert ROSENTHAL e Lenore JACOBSON, Pygmalion à /ecole, trad, fr., Paris, Caster-
man, 1 9 7 t, citado por Paul WATZLAWICK, "Les predictions qui se vérifient d'elles-me-
mes" [As predições que se verificam espontaneamente], in L'invention de la réalité.
Contributions au constructivisme, dirigido por Paul WATZLAWICK, Paris, Seuil, 1988,
pp. 115-6.
54
que freqüentemente tocaram e acariciaram os animais, e inclusi
ve brincaram com eles” (Idem, pp. 116-7).
Cabe notar que essa tese pode se voltar contra o partidá
rio da influência da predição... do perigo da suspeita. Em outras
palavras: a primeira função da tese é evitar ao máximo que o
intelecto caia nas armadilhas do afetivo; e isso não visa a um
contentamento orgulhoso do espírito, mas a seu humilde con
sentimento no enunciado do verdadeiro. É o que devemos ver
agora.
55
dar senào sua opinião é muitas vezes sinal de negligência ou
desprezo à opinião de outrem.
Lembremos enfim que a razão existe para a inteligência, e
que esta é feita para dizer o verdadeiro. O longo caminho do
discurso está a serviço da verdade.
Isso vale também em ciência. Há um perigo próprio no uso
apenas operatório ou técnico da inteligência; e pensamos aqui,
em particular, em todos aqueles que fazem estudos de engenha
ria (e praticam essa profissão). Com efeito, a maior parte da ati
vidade intelectual deles consiste em conceber, construir projetos,
experimentar, de sorte que o real não é mais que o lugar de ve
rificação de suas produções mentais (e também de resistência à
concretização de suas concepções!); não é mais esse cosmos
que não inventei nem construí, que se oferece a mim, que me
espanta e me entusiasma, cujo sentido me precede e do qual ja
mais esgotarei a beleza e a infinita riqueza.
Um sinal disso é que, por preocupação com a eficácia, o
engenheiro reduz seu aparato conceituai, intelectual, às fórmulas
imediatamente úteis e à porção do produto que ele testa (deter
minada parte da fuselagem, determinado equilíbrio dinâmico...).
Hssa restrição mental é portanto dupla: perda da referência aos
princípios e ao real que fundamenta as fórmulas (ausência de
recuo) e perda do sentido do todo (parcelamento e hiperespe-
cialização que são uma verdadeira “patologia do saber”, segun
do a expressão de Edgar Morin). Em última instância, essa visão
econômica e militarista mata o sentido da contemplação; ora,
theoria quer dizer contemplação do verdadeiro.
Hubert Reeves escreve: “Conheço muitos astrofísicos que
são trabalhadores honestos... Mas vocês ficariam espantados
com o número de astrofísicos que são incapazes de reconhecer
uma constelação além da Ursa Maior... Certo dia, mostrei Órion
a um especialista de Órion que jamais a tinha visto. Mas ele he
sitava em olhar. Tinha medo de se decepcionar !’”
56
car isso). Ela permite especialmente assinalar as eventuais con
tradições do autor; e elas existem mesmo nos autores que estão
acima de qualquer suspeita de manipulação.
É o caso nas passagens abaixo, que são do grande teólogo
protestante Karl Barth: “A confissão de fé apostólica não pre
tende falar de uma sociedade invisível, mas de uma reunião es
sencialmente visível"; e também: ‘1Credo Ecclesiam significa:
creio que a comunidade à qual pertenço é a Igreja una, santa,
universal”; ora, por outro lado, Barth afirma: “Testemunho na fé
que a comunidade concreta à qual pertenço (...) está destinada a
tornar visível, nesse caso sob a forma que lhe é própria, a Igreja
una, santa e universal.” Em outras palavras, Barth afirma dois
enunciados antinômicos: a Igreja é visível (“quando a Igreja não
tem essa visibilidade, ela não é a Igreja”); a Igreja não é visível3.
Enfim, a formulação permite, nos outros, assinalar as repeti
ções fastidiosas e, em si mesmo, evitá-las tanto quanto possível.
Eis como o psicanalista Tony Anatrella expõe o que carac
teriza o processo psíquico próprio do adolescente: “As tarefas
do adolescente vão sobretudo ser dominadas pelos remaneja-
mentos da identidade sexual, pelos das funções do ego e do de
sejo. A renúncia às gratificações infantis destinadas a confortá-lo
deve ocorrer para transformá-las por ocasião da passagem a
uma sexualidade objetai. Esta última implica a integração do ou
tro no campo da consciência do indivíduo e na economia da
pulsão. A pulsâo sexual torna-se altruísta e, ao mesmo tempo
que elabora os restos da sexualidade infantil, não é mais finali
zada por si mesma. O prazer não é mais buscado em si mesmo,
mas será mediatizado. O objetivo e a finalidade da pulsão é o
outro com o qual o indivíduo estará em relação. A posição nar-
císica irá, no melhor dos casos, transformar-se em posição de al-
teridade. O adolescente entrará, não sem dificuldade às vezes,
na psicologia da diferença.”'
Eis algo bem expresso. Mas que a proliferação das palavras
não engane: trata-se de variações sobre um mesmo tema (con-*4
57
ceitual) que a seguinte tese resume: A tarefa do adolescente é
abrir-se ao (buscar o) outro.
O QUE É A TESE?
Natureza da tese
A busca do verdadeiro rege a maneira pela qual o exprimi
mos: no caso, atribuindo um conceito a outro. Eis o que é uma
tese: a atribuição de um conceito a outro tendo em vista dizer a
verdade.
Faça um teste: será que “fresco” é verdadeiro? será que
"peixe” é verdadeiro? Não, não há sentido nenhum em dizer is
so. Ora, observe que nessas duas proposições existe apenas um
único conceito (essa palavra um pouco técnica é sinônimo de
idéia no vocabulário atual). Inversamente, tente responder sim
ou não a cada uma das seguintes questões: “O homem é mortal
e mau?”, “O homem, que em toda parte está escravizado, nasceu
livre?” Esses últimos exemplos, ao contrário dos primeiros, com
portam mais de dois conceitos - “o homem”, “mortal”, “mau”,
“em toda parte está escravizado”, “nasceu livre”. Um referendo
que pedisse que se respondesse sim ou não a essa questão teria
manifestamente outra intenção que a de conhecer a opinião dos
58
eleitores sobre o assunto, pois justamente a resposta única seria
impossível.
E eis a contraprova. Você pode responder à questão: “O
peixe é fresco?”, “O homem nasce livre?”, “O homem está em to
da parte escravizado?” (com a possibilidade de matizar sua res
posta a seguir). Aqui, você está diante de apenas dois conceitos.
59
- a manutenção da “União”, isto é, de um centro dotado
de plenos poderes;
- a soberania das repúblicas, igualdade dos direitos nacionais
e, para os indivíduos, liberdades e direitos do homem.
Outro exemplo:
Também não se deveria imaginar que toda frase contenha
uma única problemática. Leia-se esta frase do teólogo suíço Bal-
thasar: “Nos lábios de Cristo e no contexto do Sermão da Monta
nha, a ‘Regra de ouro’ (Mt 7, 12; Lc 6, 31) só pode ser considera
da como o resumo da Lei e dos profetas porque ela fundamenta
no dom de Deus (que é o Cristo) aquilo que os membros do Cris
to podem esperar uns dos outros e assegurar-se mutuamente.”6*
A frase é rica e complexa. Percebe-se de saída que ela não
pode se reduzir a uma tese única. Prova está que se ficaria bas
tante embaraçado para responder com um simples “sim” ou um
simples “não” à pergunta: “Isso é verdadeiro ou falso?” Discerni
mos aí inclusive uma série de subproblemáticas, sendo que as
principais seriam:
- o Cristo enuncia a Regra de ouro;
- ele o faz no contexto do Sermão da Montanha;
- essa Regra de ouro resume a Lei e os profetas;
- ela baseia-se no dom de Deus;
- o dom de Deus é o Cristo
- essa Regra diz o que os membros do Cristo podem espe
rar uns dos outros e assegurar-se mutuamente.
Como orientar-se? É preciso atomizar essas frases-molécu
las. De fato, essa frase articula diferentes proposições que cons
tituem um raciocínio. A problemática é: “A Regra de ouro resu
me a Lei e os profetas” (o que é o próprio conteúdo da palavra
das Escrituras). Sendo esse o núcleo da frase, Balthasar explicita
e mostra o sentido da proposição através cios vários outros
membros da frase:
Somente Cristo pode resumir a Lei e os profetas (isto é, to
da a Escritura). Ora, a Regra de ouro se fundamenta no Cristo.
Mostremos essa última proposição, que não é evidente: primei-
60
io, ela está nos lábios de Cristo, a seguir no contexto do Sermão
tia Montanha; enfim, ela diz respeito ao que os membros do
Cristo podem receber (“esperar uns dos outros”) e fazer (“asse-
gurar-se mutuamente”).
62
Confirmações
Todo texto bem estruturado (e isso vai do editorial de dez
linhas à tese de mil páginas) gira em torno de uma única proble
mática. Talvez não valha a pena determinar uma para o cartão
de Ano Novo ou buscá-la num romance policial! Tomemos um
exemplo dos dois extremos:
- O Cavalier seul [Cavaleiro solitário] de André Frossard.
Esse editorial (como todos os editoriais) é um gênero lite
rário difícil cujo impacto depende da unicidade da tese.
“As enfermeiras acampadas diante do Ministério da Saúde
acabarão pegando um forte resfriado, e o Ministro que recusa
recebê-las será obrigado a sair para cuidar delas.
E o caso de se perguntar, aliás, por que ele mantém tão
obstinadamente sua porta fechada. Ele parece um sitiado, situa
ção penosa que termina geralmente por uma rendição. Detalhe
curioso, ele declarava, ontem na televisão, que não era uma ma
nifestação de vinte enfermeiras que o faria mudar de idéia.
Não é extraordinário? Ele não as escuta, mas as ouve; não
lhes fala, mas sabe o que elas querem. Vê-se por aí todos os
dons necessários para ser ministro, e compreende-se melhor que
sejamos quase sempre obrigados a engolir os mesmos.”9
O começo pode enganar: o gancho do editorial não é um
sentimento de compaixão pelas enfermeiras; estas servem de
termo médio (veremos o sentido dessa palavra no capítulo III),
de mediação para a verdadeira problemática que é dirigida con
tra o governo atual: “Os ministros devem mudar.” E a razão é
clara: eles não querem dialogar.
63
- Enfim, uma ilustração a meu ver extraordinária é dada por
Santo Tomás de Aquino, especialmente em sua Suma teo
lógica. Essa obra de maturidade alinha 2669 artigos que
se apresentam todos sob a mesma forma: “Será que A é
B?” (“O mundo começou a existir?”, “Cristo desceu aos in
fernos?”, “Os santos do céu rezam por nós?”...), de sorte
que a resposta adquire sempre a forma de uma tese: Sim,
o mundo começou a existir. Sim, Cristo desceu aos infer
nos etc. Esse método confere uma grande limpidez ao
propósito do doutor angélico que é a total transparência à
verdade. O que às vezes se criticou apressadamente como
secura é, na verdade, o sinal de um discurso que apenas
serve a verdade com rigor: a extrema simplicidade do vo
cabulário e da forma (retirar uma frase torna muitas vezes
o texto incompreensível; acrescentar, sobrecarrega-o inu
tilmente) é prova da extrema simplicidade de sua alma.
Objeção
O que acabamos de dizer é um ideal que vale para as dis
ciplinas límpidas e rigorosas como a matemática ou as ciências
em geral. Na maioria das vezes, nossa inteligência deve discorrer
na penumbra. Se ela quiser permanecer fiel ao real de que se
ocupa, deverá portanto tomar-lhe emprestada a natureza: para
assunto obscuro, exposição obscura. É assim que alguém justifi
cava Lacan, esse campeão em todas as categorias do absconso
(a última frase de sua única entrevista na televisão foi: “De ce
qui perdure de perte pure à ce qui pane de père en pire" [Do que
perdura de perda pura ao que aposta de pai em pior]): “Esse es
tilo é provocado por aquilo mesmo de que ele trata. O inconscien
te é, ao menos em parte, o contrário do mundo das idéias claras
e distintas. (...) O estilo de Lacan é então essa marcha para a es
cuta do inconsciente e para sua expressão. (...) Por isso querer
explicar Lacan em linguagem dita clara é como querer traduzir
Rimbaud em prosa, ou recortar uma tela de Picasso para recolo
car o nariz no meio da figura...”11
Mesmo São João da Cruz finge confundir a ordem real e a
ordem da razão no prólogo de A subida do monte Carmelo-. “Co-
64
mo se trata aqui da noite escura, pela qual a alma deve ir a
Deus, que o leitor não se espante de encontrar alguma obscuri
dade em nosso ensinamento.”12
Aliás, nossa tese monolítica, cristalizada, não é uma traição
ao real? Ela fixa o movimento, eterniza o fugaz, unifica artificial
mente a proliferação do múltiplo, objetiva o subjetivo, intelectua
liza o amor etc.
65
Alguns exemplos de jargão
G.W.-Friedrich HEGEL
Martin HEIDEGGER
Jean-Paul SARTRE
Michel FOUCAULT
Les mols el les choses. Une archéologie des Sciences humaines, Paris, Gallimard,
1966, p. 352.
67
- Aliás, um psicanalista observava, com razão, que essa
obscuridade é uma camuflagem e uma defesa do pensa
mento que não ousa mostrar sua nudez esquelética aos
olhos de outrem. Para um Lacan, a fala é o homem. Ora
vamos, um pouco de pudor... Como assinala Montaigne,
certos filósofos “fazem questão de nem sempre apresentar
suas opiniões a rosto descoberto e visível” e, “para seu
próprio possuidor, o espírito é um gládio ultrajante, se ele
não sabe armar-se de maneira ordenada e discreta”".
14. Essais, II, 12, Apologie de Raim ond Sebond, in Oeuvres completes, “Bi-
b lioth èq u e d e la P lêiade”, Paris, Gallimard, 1962, p. 628.
68
ivspeitar tanto a ordem e a natureza da inteligência quanto a do
real para ensinar. Esse é o sentido da questão clássica: “Para en
sinar matemática a Cirilo, o que é preciso conhecer: Cirilo ou a
matemática?” Outrora, respondiam: “a matemática”; hoje, dizem
mais: “Cirilo.” Na verdade, ambos.
Apliquemos esta distinção capital. Por definição, a inteli
gência só pode avançar com ordem e clareza. Que ela nos diga
que a realidade é múltipla, mas que nos diga claramente. E
quando ela nos fala do amor, que evidentemente é subjetivo,
que nos fale disso em sua língua própria, que é objetiva, univer
sal etc.
69
A primeira frase rica (demasiado rica) de uma das obras ca
pitais de Marshall MacLuhan fornece ao mesmo tempo a tese
original da obra e seu termo médio, que ele irá ilustrar abundan
temente a seguir: "... numa cultura como a nossa, habituada de
longa data a tudo fragmentar e a tudo dividir para dominar, é
por certo surpreendente fazer lembrar que, na realidade e na
prática, a verdadeira mensagem é o próprio meio, ou seja, muito
simplesmente, que os efeitos de um meio sobre o indivíduo ou
sobre a sociedade dependem da mudança de escala que cada
nova tecnologia, cada novo prolongamento de nós mesmos,
produz em nossa vida”15.
A tese é dada na metade da frase: “a mensagem é o meio”,
por oposição ao conteúdo. A formulação é voluntariamente pa
radoxal e lapidar. O título do capítulo, aliás, é a problemática:
“O meio é a mensagem.”
Mas a frase enuncia também o termo médio: a tecnologia
do meio influi sobre a vida do indivíduo. Assim, para MacLuhan,
passamos de uma tecnologia mecânica a uma tecnologia da au
tomação: “o princípio de fracionamento (...) é a própria essência
da tecnologia mecânica, que modelava as estruturas de trabalho
e de associação dos humanos. A essência da tecnologia da auto
mação é inteiramente oposta. Ela é englobante e profundamente
descentralizadora” (p. 26).
15. Pour comprendre les média. Les prolongem ents tech n ologiq u es de
rhom m e, “Points”, Paris, Seuil, 1968, p. 24.
70
versai, pois qualquer célula é composta de um núcleo e
de um citoplasma.
- “Alguns marinheiros têm enjôo” é uma problemática ma
nifestamente particular.
Essa distinção não deixa de ser importante na vida corren
te, na qual a tendência a generalizar não é tão rara. Conhece-se
a história do inglês que desembarca em Calais, vê passar uma
mulher ruiva, pega seu bloco de anotações e escreve: “Todas as
francesas são ruivas." Eis aí um plural bastante singular!
O homem adquiriu o mau hábito de passar muito rapida
mente do particular ao universal, e apoiado num fundamento in
suficiente. Um dos sinais da verdadeira humildade e do cuidado
extremo com o real é não dar à sua tese uma amplidão superior
à extensão permitida pelo raciocínio. Se as ciências humanas ti
vessem a mesma prudência e o mesmo respeito por seu objeto
(o homem) que a atual indústria farmacêutica: não se pode
lançar uma idéia sobre o homem, assim como não se pode colo
car sem risco um medicamento no mercado senão após tê-lo
testado em peixinhos vermelhos e rãs. Ora, nem sempre é isso o
que se lê.
71
K fazendo muitos exercícios que a problemática não apre
sentará mais mistério para você. Os quatro domínios distingui
dos (p. 30) - o ler e o escrever, a escuta e a fala - serão os luga
res de suas buscas, de seus combates e de suas vitórias.
Não perca a ocasião de descobrir as teses dos textos que
lemos. O treinamento, paciente, deve trabalhar com qualquer
material: do artigo de jornal à nota de serviço, passando pelas
obras informativas e os grandes tratados. Mas seja também flexí
vel em suas aplicações: não transforme todos os seus jantares
em discussões, ou suas leituras de Simenon em debates dialéti
cos. As teses existem sobretudo nos textos que visam a alimen
tar a inteligência; quase não as encontramos naqueles que dis
traem, buscam comover ou impelem a agir. Num texto sensível
ao coração, há mais uma intenção do que uma tese. Há portanto
uma proporção entre nível de leitura e problemática.
72
linguagem: tenha uma problemática claramente formulada e a
enuncie de imediato, positivamente.
Enfim, a escrita não se subtrai à exigência da tese. Não é
raro que, ao redigir um manuscrito, você comece um parágrafo
sem ter uma idéia precisa da informação que quer comunicar e
dos caminhos a tomar para manifestá-la. Daí essa impressão de
vago à leitura e essa “inflação da linguagem” de que falam Jae
ques Eltul ou Gilbert Hottois. O leitor é então convidado sem a
menor consideração a compartilhar das angústias de parto do
pensamento do autor, se tiver a felicidade de encontrar algum!
Ora, uma coisa é a preparação (“qual vai ser minha tese?”), outra
coisa é a redação definitiva: somente esta interessa ao leitor. A
leitura tão agradável de Madame Bovary ou de Salammbô se faz
na ignorância das correções tão laboriosas e das passagens dez
vezes repetidas que eram a especialidade de Flaubert.
Pesquisa do predicado
□ Critérios essenciais
Em geral, uma única palavra exprime a idéia. Procure a
idéia que:
- é a mais universal;
- é a mais unificadora dos diversos aspectos do texto;
- é teoricamente única, se o texto for bem construído;
- responde à questão: “O que se diz disso?” Com efeito,
veremos que o sujeito é aquilo de que trata o texto; ora,
o texto diz algo a respeito dele.
□ Critérios secundários
Há critérios mais acidentais, mas que também têm sua im
portância:
- Assim, o conceito nem sempre é claramente enunciado
no texto, seja porque o autor não deseja expor demais
suas baterias e o dissimula, seja porque não explicitou
bem seu pensamento, o que não é tão raro como se pensa...
73
- Desconfie dos predicados complexos, isto é, dos predica
dos que contêm vários conceitos. Quando da busca das
primeiras problemáticas, acontece freqüentemente que se
proponha um predicado demasiado rico, por receio de
deixar de lado idéias essenciais. Ora, as idéias injetadas
no predicado são na verdade demonstrações, ou conse-
qüências.
Pierre-Marie Beaude fala da interpretação bíblica de Paul
Beauchamp: “A leitura aqui se faz escrita, corpo textual, real
produção que de maneira nenhuma se apaga diante das Sagra
das Escrituras das quais se alimenta, mas, ao contrário, forma
um conjunto com elas.”16
À primeira vista, o predicado parece rico. Na realidade, é
complexo; ele articula vários conceitos. Em primeiro lugar,
enuncia a tese: “A leitura [de Beauchamp] se faz escritura”, e dá
a razão disso, o termo médio: “real produção”; em outras
palavras, Beaude argumenta assim: fala-se de escrita em face de
um trabalho original que não é um simples reflexo, que não se
apaga diante do texto comentado; ao passo que a leitura é uma
retomada que não constitui um conjunto; ora, Beauchamp faz
obra original, realiza uma produção; logo...
- O predicado está às vezes presente no título (é o caso,
por exemplo, dos artigos da Suma teológica de Santo To
más); mas isso raramente ocorre, na verdade. Na maioria
das vezes, ele aparece no subtítulo que, menos chamati-
vo, explicita mais o assunto do texto. Em todo caso, se o
predicado se verifica no título, você pode estar quase
certo de que o texto é honesto em suas intenções e não
procura camuflá-las.
- O predicado, de direito, a menos que seja evidente, de
veria ser sempre o conceito mais analisado, aquele a que
cabe a parte do leão. Sendo o conceito mais universal, é
o mais esclarecedor. É bom assim dedicar o começo de
um trabalho a explicitá-lo.
74
U Se você tiver alguma dificuldade em encontrá-lo,
eis aqui alguns “truques” mais concretos:
- Sublinhe as palavras mais universais, as mais unificado
ras, e veja qual o termo mais universal.
- Mas sublinhar os termos mais empregados serve mais pa
ra encontrar o sujeito do que o predicado; não é raro que
o predicado seja pouco citado.
- Tampouco é raro encontrá-lo citado no início ou no fim
do texto, quando a passagem apresenta uma inclusão, is
to é, começa como termina. Pode-se também encontrá-lo
no meio do texto se este tiver, por exemplo, uma estrutu
ra do tipo: A-B-A-C-A.
- Enfim, não permaneça jamais na imprecisão. Para predi
cado vago, trabalho (ou leitura) frustrante! Com efeito, o
predicado rege a compreensão de todo pensamento, é o
princípio de ordem. Uma vez descoberto, ele permite
deslocar-se ao centro do pensamento do autor.
75
Ora, se o sujeito é evidentemente o humor, o predicado é
hem mais delicado de delimitar. Com efeito, o que é dito do hu
mor? Tentemos classificar: em negativo, ele rompe os automatis
mos, as proteções, permite escapar à monotonia, à inconsciên
cia; em positivo, ele proporciona a vida, o progresso, o risco de
existir, o riso etc. A quantidade de predicados torna vaga a idéia
principal; do mesmo modo, a multiplicação das metáforas serve
tanto quanto desserve à clareza do conceito. Na verdade, o pre
dicado nào é dito explicitamente. É preciso “inventar", criar um
que resuma as diferentes características atribuídas ao humor. Pa
rece ser: “maneira de existir" (e esse é exatamente o título da
conclusão: “uma arte de existir”). Mas, para compreendê-lo, é
preciso apelar ao que está apenas implícito na exposição, a sa
ber, a concepção que Escarpit faz da vida. Para nosso autor, vi
da (existência) é sinônimo de mudança, de progresso, de novi
dade (é o que o autor não diz: aliás, trata-se aí de uma concep
ção nietzscheana da vida); ora, o humor permite a irrupção da
mudança, da novidade (o que o autor diz).
Em suma, numa primeira leitura, o predicado não é explíci
to; é preciso realizar uma leitura condicional, recorrendo a con
ceitos que eventualmente os leitores não possuem.
□ Critérios essenciais
- O sujeito é, na maioria dos casos, o conceito menos uni
versal. Mas pode ocorrer que seja tão universal quanto o
predicado.
- É o conceito ao qual se referem os predicados essenciais.
- O sujeito permite responder à questão: “De que se fala?”
(enquanto o predicado responde à questão: “O que se
diz disso?”).
76
- Hle está freqüentemente presente no título. É preciso por
tanto que o título ou, no mais tardar, as primeiras linhas
o contenham se o autor não quiser desorientar totalmen
te o leitor.
- O sujeito é muito raramente dissimulado, ou seja, na maio
ria das vezes é evidente. Aliás, é em função dele que as
paixões despertam. O simples fato ele evocá-lo mobiliza
os hormônios! Por exemplo, observar o quanto as sim
ples palavras (conceitos) a seguir, não importa o que se
diga a respeito, são suficientes para iniciar as discussões
mais inflamadas: aborto, ecologia, a direita e a esquerda
(política), o último filme da moda, a última partida de fu
tebol ou de tênis...
77
- a propriedade: é o que não diz a essência da coisa, mas
dela decorre;
- o acidente: é o que não diz a essência da coisa, nem de
la decorre, mas no entanto lhe é atribuído.
Vejamos um exemplo. Digamos que o sujeito é o homem.
Segundo o ponto de vista do predicável, pode-se dizer dele
quatro espécies diferentes de atributo:
- a título de gênero: o homem é um animal;
- a título de espécie: o homem é um animal dotado de razão;
- a título de propriedade: o homem é capaz de rir;
- a título de acidente: o homem é loiro, está sentado etc.
Se o predicado for dito do sujeito como um gênero ou um
acidente, ele é mais universal; se for dito como uma espécie
ou uma propriedade, ele é igualmente universal (a proprie
dade, com efeito, decorre da essência e não pode ter mais
extensão do que sua fonte). Daí que o sujeito, às vezes, seja
tão universal quanto o predicado: mas, de fato, isso aconte
ce mais raramente.
Há casos indecidíveis (seja devido à falta de clareza do au
tor, seja devido à dificuldade do sujeito). Leiamos, por exem
plo, o início da obra do filósofo Alexis Philonenko sobre a
Europa, L'archipel de la conscience européenne [O arquipé
lago da consciência européia]: "Convencido de que só o
aprofundamento, pelos europeus, da coesão espiritual que
os une fará da Europa algo mais do que uma comunidade
mais ou menos precária de interesses, pesquisei os elemen
tos de um patrimônio comum." Ele passa então em revista di
ferentes temas: o latim, a agricultura... E se detém no seguin
te: "Assim fui obrigado a concluir: a Europa é, principalmen
te, o continente da metafísica."
Alexis PHILONENKO, op. c it, col. "Le collège de philosophie", Paris, Grasset, 1990,
pp. 11-2.
78
se a metafísica diz a Europa como uma propriedade ou co
mo sua essência.
Assinalemos, enfim, um outro interesse dessa distinção. N ão
é raro que se atribua a um sujeito, assim como à sua defini
ção, o que não é senão uma propriedade ou mesmo um aci
dente. Assim, quando Benjamin Franklin diz que o homem é
um animal toolmaker (fabricante de ferramentas), ele atribui-
lhe um acidente (comum com os animais); quando Marcei
Jousse define o homem como um animal imitador (cf. adiante
cap. VII, p. 262), ele indica apenas uma propriedade.
• Leitura do texto
O § tem por título: “A experiência da unidade da pessoa sus
cita a necessidade de compreender a complexidade do homem.”
O § começa assim: “Dessa maneira, a experiência da unida
de do homem como pessoa desperta simultaneamente a necessi
dade de compreender sua complexidade enquanto ser. Tal com
preensão é sinônimo de conhecimento ‘até o fim’, ou ainda, ‘até
o fundo’. Ela é própria à filosofia primeira, isto é, à metafísica,
que há muito já elaborou uma teoria do homem enquanto ser
composto de alma e de corpo, ou seja, de espírito e de matéria.”
• Análise do texto
Para compreender a articulação desse início de parágrafo,
basta colocar uma conjunção de coordenação no devido lugar
(teremos a ocasião de rever isso no próximo capítulo), no caso,
colocar “ora” entre a segunda e a terceira frase: “Ora, ela é pró
pria...” Isso significa que o autor junta, une as duas premissas
79
lendo em vista mostrar o que é sua tese: a experiência da unida
de e da complexidade da pessoa suscita a necessidade de uma
metafísica do homem.
!,oi ׳outro lado, você constata que a primeira frase é quase
idênli( a ao titulo I m consequência, o título não é senão a pri
meira parte do raciocínio, o que chamaremos mais tarde de pre
mi ·.·a maior do silogismo. Ele é portanto enganador e não trans-
mítc todo o conteúdo do parágrafo, o que é o papel da tese.
1’udcmos observar o mesmo processo na intitulação de nu-
nu ·m i m is ariigiis (:<mvém saber que esta nem sempre é da respon
sabilidade di >s autores, sobretudo nos artigos para grande público.
/*est/nisa </<>preci/ca do
• I citura do texto
"< > !··.ludo da·, (ii.meas inlersexuadas desmente a idéia se-
i1- »«׳a qual o biológico fundamenta o psicológico. A gênese
111 1
• Analise do texto
I >e que fala o texto? Da sexualidade.
() que diz o texto a respeito dela? A autora mostra a partir
dc exemplos que a origem da sexualidade não é biológica mas
psicológica.
A tese é portanto: a sexualidade é de origem psicológica (e
não biológica): em outras palavras, de origem cultural e não na
tural.
HO
Pesquisa do sujeito
Releia o texto de Escarpit sobre o humor citado mais acima:
os critérios de descoberta do sujeito aplicam-se de maneira evi
dente (conceito menos universal, ao qual são atribuídos todos os
predicados importantes que permitem responder à questão: "De
que se fala?” etc.)· Analisemos agora um exemplo menos fácil.
• Leitura do texto
Este texto é certamente um dos mais decisivos e mais re
presentativos das intuições do biólogo Changeux:
“As operações sobre os objetos mentais, e sobretudo seus
resultados, serão ‘percebidos’ por um sistema de vigilância com
posto de neurônios muito divergentes, como os do tronco cere
bral, e de suas vias de acesso. Esses encadeamentos e encastra-
mentos, essas ‘teias de aranha’, esse sistema de regulações fun
cionarão como um todo. Deve-se dizer que a consciência ‘emer
ge’ de tudo isso? Sim, se tomarmos a palavra ‘emergir’ ao pé da
letra, como quando se diz que o iceberg emerge da água. Mas
basta-nos dizer que a consciência é esse sistema de regulações
em funcionamento. Com isso, o homem não tem mais o que fa
zer com o ‘Espírito’, basta-lhe ser um Homem Neuronial.”2"
• Análise do texto
Contrariamente a muitos textos, aqui o predicado é claro,
sobretudo se tivermos em mente o título da obra. O autor quer
demonstrar que o homem é neuronial. Esse, de fato, é o concei
to mais analisado, a palavra (e seus equivalentes) mais freqüen
temente utilizada.
Mas qual é o sujeito preciso nesse texto? Será realmente o
homem? Isso não tem a ver com o núcleo do texto, que fala de
outra coisa. Ademais, há um conceito menos universal ao qual
os outros conceitos se referem. Procure-o.
Seria possível nos colocar a questão: será que se trata, por
exemplo, de “sistema de regulações”? Será esse o sujeito do pa
rágrafo? Não, pois ele qualifica outra coisa: a consciência.
Descobrimos o sujeito: é a consciência (no sentido geral,
global, de psiquismo), isto é, a instância que opera sobre os ob-20
81
jetos mentais. Sinal disso é que esse é o primeiro conceito do
texto, o sujeito da primeira frase. A tese é portanto: a consciên
cia, o psiquismo do homem, é neuronial. Em outras palavras, a
consciência, as operações mentais, são identicamente o sistema
de neurônios em funcionamento.
Daí a conseqüência (que é materialista): nenhuma necessi
dade de recorrer a um espírito ou a um psiquismo; mais exata
mente, o psiquismo, a consciência, são os neurônios. Não existe
portanto espírito.
E você constata que essa não é a palavra mais freqüente
mente citada no texto: portanto, esse não é um critério absoluto,
ao contrário dos critérios essenciais.
• Análise do texto
Vê-se que a problemática é identicamente o título geral do
parágrafo (que, por sua vez, após ter estabelecido que toda lei
tura é guiada por um projeto, irá passar em revista os diferentes
- no caso, seis - projetos fundamentais possíveis do leitor).
21. Lionel BELLENGER, Les méthodes de lecture, “Que sais-je?” ns 1707, Pa
ris, PUF, 1978, pp. 98-9.
E x e rc íc io s
Exemplo I
• Leitura do texto
Trabalhe sobre este outro editorial de André Frossard, o do
Figaro de 26 de setembro de 1991:
“Na televisão, ao cabo de uma troca de argumentos obscu
ros sobre um assunto que não o era menos, o sr. Bernard Tapie
dispara em diagonal contra seu principal contraditor: 'Vou lhe
dizer: você é um imbecil.’ Resposta imediata: ‘Você também.’
Nesse momento crítico, em geral aparece um homem de boa
vontade para tomar a palavra e vexar todo o mundo propondo
uma elevação do nível do debate. Nesta noite, ninguém. Na
França, é cada vez mais difícil elevar o nível dos debates. Deve-
se dizer que é um exercício perigoso. Já se viu mais de um
pobre político, tal como o filósofo amável citado por Aristóteles,
ser ‘esmagado pelo peso da questão que ele havia levantado’.”•
• Estudo do texto
A tese é dada tal e qual no texto: “Na França, é cada vez
mais difícil elevar o nível dos debates.”
O texto dirige-se manifestamente à sensibilidade.
83
Exemplo II
• Leitura do texto
Eric Tabarly fala da façanha de Gérard d’Aboville sob o tí
tulo “Bons ventos ao sonho” (Figaro-Magazine, 30 de novembro
de 1991, p. 45): “Colocar a questão dessa utilidade é perguntar-
se para que servem o esporte ou o sonho. (...) Cada um, quer
escale montanhas com mãos nuas, quer vá ao pólo ou às estre
las, tem suas motivações próprias e secretas que nos são desco
nhecidas. Eles ganharam de si mesmos. Eles ganharam para nós:
essas conquistas individuais não são egoístas. Essas proezas tra
zem proveito a todos, porque nos oferecem sonho. E o sonho, a
vontade de superar-se, é algo próprio do homem, não é?”
• Estudo do texto
A tese é que a façanha de d’Aboville, em particular, e as fa
çanhas, em geral, trazem proveito a todos os homens.
O título nos oferece uma parte do que chamaremos no ca
pítulo seguinte o “termo médio” do raciocínio. Com efeito, o ra
ciocínio de Tabarly é o seguinte: a façanha esportiva permite ao
homem que a realiza superar-se, e àquele que o contempla, so
nhar; ora, superar-se e sonhar (que a gente se supera) é a essên
cia do homem.
O título indica portanto apenas uma parte do texto. Será
que o autor percebeu o ápice de seu texto, que é a definição do
homem pela superação Co que, diga-se de passagem, é uma de
finição nietzscheana)?
Exemplo III
• Leitura do texto
“Alguma vez você se perguntou por que todas as grandes
metrópoles modernas, no século passado, se apressaram em
construir metrôs?
- Para resolver os problemas de tráfego. Não é isso?
- Quando não havia tráfego de automóveis e apenas os fia-
cres circulavam? De um homem com seu espírito, eu es
perava uma explicação mais sutil!”
(Umberto ECO, Le pendule de Foucault, Paris, Grasset, 1990,
p. 315.)
84
A resposta proposta envolve o esoterismo: o metrô permite
a presença de uma rede secreta debaixo das grandes cidades.
• Estudo do texto
Cuidado, a tese não é a primeira frase do diálogo: “As
grandes metrópoles modernas se apressaram em construir me
trôs.” Com efeito, o predicado seria mais universal que o sujeito.
Na verdade, pergunte-se de que quer falar a pessoa: ela quer ta
lar das metrópoles ou dos metrôs? Dos últimos, obviamente. Es
se é portanto o sujeito e, desse ponto de vista, o que há de me
nos universal.
A tese portanto é: “Os metrôs foram construídos rapida
mente nas grandes metrópoles modernas.”
Ela é colocada como um fato problemático: por que razão?
Porque o termo médio proposto não é o que nos parece eviden
te. A questão torna problemático o que à primeira vista não o
era.
Problemáticas a construir
■V
Capítulo III
O RACIOCÍNIO EM GERAL
87
a não ser quando se estabelece a evidência, isto é, etimológica-
mente, quando ela vê por que se afirma a tese. Sejamos precisos:
a problemática une um predicado a um sujeito; ora, a inteligên-
cia interroga-se sobre a razão pela qual se atribui o predicado a
esse sujeito. E tal é a função do raciocínio: mostrar a causa da
união dos dois termos.
For exemplo, lê-se no Credo que a Igreja é santa. Muito le-
gitimamente, pode-se perguntar por quê: busca-se então a causa
que permite aproximar Igreja e santidade a ponto de atribuir
uma à outra. E, aliás, isso é tào pouco evidente que foram mui-
tos os que buscaram separar esses dois termos. O raciocínio,
portanto, tem primeiramente uma função esclarecedora, fecun-
dante. Assim também, você lê um título de artigo: “É preciso re-
formar a ortografia.” Trata-se de algo não tão evidente... já que
isso o incita a ler o artigo.
O raciocínio unifica
A primeira razão nos lembrava toda a importância do traba-
lho racional. O espírito do homem não se eleva à verdade às custas
de intuições beatificantes, assim como seu corpo não sobe
aproveitando-se preguiçosamente de ascensões: os pés da inteli-
gência chamam-se argumentos, e sua marcha, raciocínio. Mas, in-
versamente, também é letal para o espírito fazer-se um tetrapilo-
carpo (não procure no dicionário: tetrapilocarpo é um detalhista!).
O raciocínio servirá, portanto, para unificar um raciocínio
tào ameaçado cie perder-se em seus argumentos quanto Séraphin
Lampion* em seus contratos de seguro. É como aquele pesquisa-
dor que havia colocado uma questão muito complexa a seu com-
putador; após um tempo indefinido, chega a resposta, de um la-
conismo ideal: “Sim!” Mas o cientista esqueceu a questão: “Sim o
quê?”, pergunta ele. “Sim, senhor”, responde a máquina!
Aristóteles chamava ao raciocínio silogismo. Precisamente,
silogismo vem de um termo grego que significa “juntar os feixes
de feno”. A análise precedente deve ser retomada na unidade
para que haja ato de inteligência e adesão à verdade. Uma etapa
original, específica, é necessária para integrar a diversidade da
análise numa síntese.
88
Por exemplo, você pode compreender que a água refresca,
saber que há um distúrbio da hemodinâmica nos jacarés. Mas é
preciso um procedimento particular para aproximar esses dois
juízos e concluir pelo porquê da vida fluvial dos jacarés. Com
efeito, estes apresentam uma incontinência das válvulas cardía
cas que torna deficiente seu sistema de esfriamento, e assim eles
não se afastam das margens dos cursos d agua a fim de pode
rem se refrescar mais facilmente. Tal será a função do silogismo:
sistematizar.
89
grande tiragem: “a dimensão desejante dessa corporeidade fun
damental”3. Será preciso escrever deste modo para fazer-se com
preender? O filósofo de Hanover, Leibniz, dizia: “Afinno que a
invenção da forma do silogismo é uma das mais belas do espíri
to humano e mesmo das mais consideráveis. Trata-se de uma es
pécie de matemática universal cuja importância não é bastante
conhecida, e pode-se dizer que nela está contida uma arte da in
falibilidade, contanto que se saiba e que se possa utilizá-la bem.
Eu mesmo constatei algumas vezes, inclusive debatendo
por escrito com pessoas de boa fé, que só foi possível entender-
se quando se argumentou formalmente para desemaranhar uma
meada de raciocínios.”4
Ora, essa formalização supõe o respeito de certas regras,
pouco numerosas, mas que é preciso aprender a conhecer e a
aplicar.
Inácio de Loyola
• Leitura do texto
“O homem foi criado para este fim: louvar o Senhor Deus,
respeitá-lo e, servindo-o, ser finalmente salvo. E todas as outras
coisas que há na terra foram criadas por causa do próprio ho
mem, para ajudá-lo a buscar o fim cie sua criação. Segue-se por
tanto que ele deve usá-las ou abster-se delas na medida em que
isso favoreça ou prejudique a busca de seu fim.”5
90
• Análise do texto
Os comentadores sempre assinalaram o aspecto extrema
mente rigoroso e até mesmo formal dessa solene introdução aos
Exercícios. Essas três primeiras frases são não apenas um silogis
mo, mas também respeitam exatamente sua estrutura: a primeira
frase é a premissa maior, a segunda, a menor, e a terceira, a
conclusão6.
• Leitura do texto
“A fé é o meio próprio e proporcional à união da alma
com Deus. (...)
É preciso portanto saber, de acordo com uma regra da filo
sofia, que todo meio deve ser proporcional a seu fim, isto é, de
ve ter com ele a conveniência e as relações suficientes para al
cançar o objetivo que se busca. Eis aqui um exemplo. Se alguém
quer ir à cidade, deve necessariamente passar pelo caminho que
conduz a ela, pois esse caminho é o meio que o põe em relação
com a cidade. Outro exemplo. Você quer acender o fogo; mas é
necessário que o calor, que é o meio, transforme progressiva
mente a madeira para que ela se torne pouco a pouco seme
lhante ao fogo. (...)
Ora, devemos notar que, entre todas as criaturas superiores
e inferiores, não há nenhuma que seja um meio próximo de união
a Deus ou que tenha semelhança com seu ser. Sem dúvida, co
mo dizem os teólogos, todas as criaturas têm uma certa relação
com Deus e conservam mais ou menos alguns vestígios de seu
ser, conforme o grau de perfeição de sua natureza; mas entre
Deus e elas não há nenhuma relação, nenhuma semelhança es
sencial. Ao contrário, a distância entre Deus e elas é infinita. Eis
por que o entendimento não pode unir-se perfeitamente a Deus
por meio das criaturas, tanto do céu quanto da terra, por não
haver uma semelhança suficiente. Davi, falando das criaturas ce
lestes, disse: ‘Senhor, não há ninguém semelhante a vós entre os
6. Cf., por exem p lo, Gaston FRESSARD, La dialectique des exercices spiri-
tuels de saint Ignace de Loyola. II, Fondement. Pécbé. Orthodoxie, “Theologie"
66, Paris, Aubier, 1966, p. 14.
ól
deuses’ (SI 85, 8), entendendo por d e u s e s o s santos anjos e as
almas santas. Ele diz em outra parte: ‘0 D eu s, vosso caminho é
um caminho de santidade; o n d e h á u m D eus como o nosso
Deus?’ (SI 76, 14). É como se ele d is s e s s e : o caminho para che
gar a vós, ó Deus, é um cam inho s a n to , isto é, um caminho de
pura fé. (...)
Em suma, nem todas as c ria tu ra s p o d e m servir de meio
adequado para que o entendim ento s e aproxim e perfeitamente
de Deus.”78
Logo, a fé “é o único m eio p r ó x im o e adequado para a
união da alma com Deus, pois a s e m e lh a n ç a que existe entre ela
e Deus é tão grande que não há o u t r a diferença, exceto entre
ver Deus e crer em Deus. Deus é in fin ito , e la no-lo propõe infi
nito; Deus é Trindade em pessoas e U n id a d e em natureza, e é
assim que a fé no-lo propõe. Deus é tr e v a s para nosso entendi
mento, a fé também é trevas e o b s c u r id a d e para nosso enten
dimento. (...) Assim, quanto mais um a a lm a tem fé, mais ela está
unida a Deus:'*
• Análise do texto
Aqui também, a estrutura do t e x t o é a de um silogismo
(cuja estrutura irá em breve ser e s tu d a d a ). A tese é dada na pri
meira frase (§ 1): “A fé é o meio p r ó p rio e adequado à união da
alma com Deus.” Em sua tese de d o u to r a d o em teologia, A fé se
gundo São João da Cruz, o próprio J o ã o P a u lo II diz que procu
rou analisar e evidenciar “a afirmação c e n tr a l do doutor místico:
a fé é o meio único, imediato e p r o p o rc io n a l da comunhão com
Deus”9.
São João da Cruz dem onstra essa t e s e incansavelmente e o
faz da maneira mais rigorosa p o ssív el e m sua grande obra, A
subida do monte Carmelo. Ac!ui, ele f a z isso através de um silo
gismo perfeitamente claro: o 2Q p a r á g r a f o é a premissa maior
92
(ela mesma estabelecida por um silogismo tomado da filosofia);
o 3 ־parágrafo é a premissa menor; e os dois últimos são a con
clusão (o 4S parágrafo a fornece em forma negativa e o 5g em
forma positiva).
Veremos outros exemplos nos exercícios de final de capítulo.
93
constituído (quando ele é explicitado) por pelo menos três pro
posições (é o mínimo): duas premissas e uma conclusão.
□ Observações
Nunca seria demais insistir na importância dessas premissas
e de sua explicitação: são como os degraus de uma escada. Faça
como as criancinhas que, se não querem tropeçar, devem pri
meiro aprender a subir os degraus um a um. É só bem mais tar
de (e mesmo assim demasiado cedo!) que elas descobrirão as
alegrias perigosas de saltar os degraus.
De fato, a grande tentação intelectual é a precipitação: che
gar de imediato à conclusão e não polir suas premissas, ou me
lhor, polir uma só; ora, é perigoso não certificar-se da solidez de
todos os degraus. Por exemplo, você deseja mostrar que a Fran
ça é um país ingovernável; e desenvolve sua premissa menor: os
franceses são individualistas. Não esqueça a outra premissa: o
individualismo torna um país difícil ou impossível de governar,
pois seu interlocutor terá a ocasião de lhe contrapor o exemplo
de um outro país individualista governado corretamente.
Ademais, a estrutura ideal de um raciocínio comporta três
proposições: duas premissas e uma conclusão. Mas não é raro
que, ao contrário, se comece por anunciar o que se vai dizer (e
então se fala de problemática). É o caso do silogismo hindu1״.
94
homem não pode controlar todas as suas angústias porque ele
não comanda a excreção de seus hormônios de estresse do que
citar o exemplo de uma pessoa dominada por sua ansiedade.
Primeiro exemplo
Quer-se demonstrar que o aborto é um mal. Para isso, po
de-se recorrer aos diferentes argumentos a seguir, dos quais da
mos primeiramente a formulação que é a da conversa de todos
os dias, antes de explicitá-la de maneira mais lógica.
- “Matar um pequeno ser humano não é um crime peque
no.” Tradução rigorosa: todo homicídio é um mal; ora, o
aborto é um homicídio de inocente; logo, o aborto é um
mal.
- “Todas as mulheres que conheci e que praticaram aborto
ficaram profundamente traumatizadas.” Tradução rigoro
sa: é óbvio que não conheço todas as mulheres que pra
ticaram aborto. Meu raciocínio é portanto o seguinte: co
nheço as senhoras X, Y, Z que praticaram o aborto; ora,
X, Y, Z ficaram traumatizadas, com sentimentos de culpa;
logo, o aborto é um mal.
95
- “O aborto reedita os horrores do Holocausto.” Tradução
rigorosa: os campos de extermínio de Auschwitz e Da-
chau são um mal profundo; ora, eles são holocaustos de
inocentes; logo, todo holocausto de inocentes é um mal
profundo; ora, o aborto é um holocausto de inocentes;
logo, o aborto é um mal.
- “Ao abortar, você mata um homem. Prova disso é que ele
se move. Não se trata de uma excrescência de seu cor
po.” Tradução rigorosa: o ser vivo se move; ora, os fetos
se movem; mas matar um ser vivo humano é um homicí
dio; logo, o aborto é um mal.
O primeiro raciocínio é um silogismo, o segundo uma in
dução, o terceiro uma analogia, o último um entimema.
Segundo exemplo
Eis o que afirma o futurólogo Alvin Toffler ao final de sua
última obra que trata dos novos poderes: “O novo elemento re
volucionário - mudança criada pelo novo sistema de criação da
riqueza - é uma transformação do nível da ordem social neces
sária. De fato, quanto mais avançam as nações no caminho da
economia super-simbólica, mais elas têm necessidade de auto-
regulações horizontais, e menos se apoiam num controle hierár
quico de cima para baixo. Para simplificar, o totalitarismo entra
va o desenvolvimento econômico.
Os alunos pilotos geralmente se agarram aos comandos de
seu aparelho, e seus instrutores aconselham que relaxem um
pouco. Um supercontrole é tão perigoso quanto a falta de con
trole. Hoje, como prova a crise que atravessam a União Soviética
e outros países, o Estado que tenta impor um supercontrole a
96
seu povo e à sua economia sabota na verdade a ordem que ele
busca. O Estado menos coercitivo pode, ao contrário, obter isso
melhor, e deste modo reforçar seu próprio poder.”"
A tese defendida é dada ao final do primeiro parágrafo: “O
totalitarismo entrava o desenvolvimento econômico."
Para demonstrá-la, Toffler utiliza quatro tipos de argumen
tos ou de razões que recobrem exatamente as quatro espécies
enunciadas acima. Ei-los na ordem de aparecimento e não de
convicção:
- o silogismo: o crescimento da economia mostra que ela
necessita “auto-regulações horizontais”; ora, estas se opõem
ao “controle hierárquico de cima para baixo”, isto é, ver
tical;
- o raciocínio pelo exemplo: ele se baseia na analogia en
tre o controle de um avião e o do poder, no caso, econô
mico;
- a indução: a União Soviética e outros países estão em crise;
ora, esses diferentes países supercontrolam a economia;
- o entimema: os Estados não coercitivos têm mais poder;
ora, por definição, eles controlam menos.
97
dindo que Deus recompensa as boas ações secretas e pune os
injustos (dirigimo-nos então à vontade ou ao sentimento).
98
mais fraca. No entanto, a demonstração é muito eloqüente e in
clusive convencerá quem conhece e pratica o xadrez. Em com
pensação, se o leitor não for um aficcionado do jogo, a prova se
arrisca a cair no vazio.
No primeiro caso, Denis Sonnet procurou demonstrar, no
segundo visava a convencer. Prova disso é que o público é mui
to específico: ele deve apreciar o jogo de xadrez.
□ Observações e conseqüências
A persuasão pode ser boa ou perversa conforme o objetivo
visado: a tentação de Eva comentada por Bossuet é um modelo
de persuasão imoral. Veremos que a persuasão é às vezes ne
cessária e complementa a demonstração. Na verdade, a utiliza
ção humanizante da persuasão é engendrar a benevolência e as
sim dispor a afetividade à acolhida da verdade e da demonstra
ção. Começa-se geralmente um artigo ou um capítulo por algu
mas generalidades ou banalidades aceitas por todos: “Há 2000
anos...“ Por isso um texto que procede apenas por persuasão,
quando se anuncia rigoroso e científico, deve despertar a sus
peita.
Além disso, o silogismo e a indução têm primeiramente por
objetivo demonstrar, enquanto o entimema e a analogia são fei
tos mais para convencer.
Enfim, o estudo da arte de persuadir pertence também à
lógica: é o objeto da assim chamada retórica (cujo modelo conti
nua a ser ainda hoje os três livros da Retórica de Aristóteles). Ela
exige uma longa experiência e é polida sobretudo pelo exercí
cio do debate. Aqui, consideramos apenas suas armas, seus ins
trumentos lógicos. A lógica comporta portanto duas partes: uma
é a arte de demonstrar, a outra, a arte de persuadir. A primeira
dirige-se unicamente à inteligência, a segunda dirige-se à inteli
gência por meio da afetividade e da vontade.
99
□ Há dois grandes raciocínios de base: o silogismo e a indução
Aristóteles já afirmava: “Toda convicção se adquire pelo si
logismo ou provém da indução.”13 Analise como procede um
professor ou como você mesmo procede: para mostrar que a so
ma dos ângulos do triângulo é sempre igual a 180°, ou ele fará
você medir os ângulos de todas as configurações triangulares
possíveis, e isso é uma indução, ou fará a demonstração a partir
de leis geométricas (como a igualdade dos ângulos alternos-in
ternos), e isso é um silogismo.
Na verdade, prefere-se hoje chamar o silogismo de dedução
(é o que faz, por exemplo, Roger Vemeaux)14. O termo dedução
tem a vantagem da simetria, mas não manifesta mais seu caráter
unificador como o permite o prefixo “sil” de silogismo (do grego
“syn”, com, que se verifica, por exemplo, em “simpatia”).
13· Organon. III. PremiersAnalytiqu.es, Liv. II, cap. XXIII, 68 b 14, trad. fr.
Tricot, “Bibliothèque des textes philosophiques", Paris, Vrin, nova ed., 1971,
p. 312; cf. também Éthique à Nicomaque, Liv. VI, cap. Ill, 1139 b 25-31.
14. Introduction et logique, “Cours de philosophic”, Beauchesnes, nova
ed., 1964, p. 92.
15. ARISTÓTELES, Organon. IV. Les Derniers Analytiques, Liv. I, cap. II, 71
a 5-10. Trad. fr. Tricot, “Bibliothèque des textes philosophiques”, Paris, Vrin, no
va ed., 1970, p. 2.
100
resumida, para torná-lo menos pesado: conserva-se por
tanto uma das premissas para si, no peito (o que se diz
em grego: em tbumos). Por exemplo, em vez de dizer:
“Todo céu limpo é sinal de vento; ora, o céu está sem nu
vens; logo, haverá vento”, o que tornaria um pouco pesa
das as conversações correntes, contentamo-nos em obser
var: “Amanhã será um dia de vento: não há nuvens.”
É por ocasião do estudo do entimema que falaremos da teo
ria. Trata-se de uma forma de raciocínio capital, já que a teoria é
um dos fundamentos da ciência.
- O raciocínio pelo exemplo ou por analogia aproxima-se
da indução. !Mas ele se baseia apenas num caso singular,
enquanto a indução parte sempre de uma coleção de vá
rios casos; seu impacto é portanto atenuado. Você pode
desaconselhar a seu sobrinho ou a seu filho pôr o dedo
na tomada, seja mostrando-lhe que seu irmàozinho levou
um choque ao brincar de eletricista (é um raciocínio por
similitude), seja mostrando-lhe que você jamais viu al
guém fazer isso (e é uma indução).
Critérios lógicos
Em geral supõem que já se tenha apontado a problemática.
Cumpre então determinar as diferentes razões propostas pelo
autor.
101
Coloque-se com freqüência a questão: “Por que o autor
afirma isso (no caso, sua problemática)?”
Determine bem o que é do domínio do singular (o exem
plo, a indução) e do universal (o silogismo, o entimema): esse é
o critério mais importante. Num texto, há poucos argumentos
universais: dois ou no máximo três. Além disso, o estilo jornalís
tico apresenta um tropismo especial para o caso particular: um
artigo começa geralmente por uma ilustração de impacto. Mas
não st ־deixe obnubilar pelos exemplos: seria trocar o sol e quei
mar as asas contra um lâmpada de néon! Vá ao cerne, isto é, ao
argumento principal, ao silogismo. Em suma, veja se o texto es
clarece realmente: ele oferece um verdadeiro TM universal e
causal ou contenta-se em alinhar com habilidade alguns exem
plos bem apresentados?
índices textuais
KleS têm a vantagem de poder ser usados muito cedo, já
numa primeira leitura, mesmo se a problemática permanece ain
da vaga: eles permitem aliás abordá-la de maneira progressiva e
ajudam a determiná-la.
□ A mudança de parágrafo
Indica com freqüência uma mudança de argumento (mas
às vezes também de problemática).
102
Inversamente, a ausência cias conjunções de coordenação
torna o discurso obscuro. Leia o texto a seguir e observe como
deve ser lido com atenção (ou até várias vezes) para se compreen
der o sentido e sobretudo a coordenação das três proposições.
“O fundamento do amor sexual é o absoluto de cada pes
soa humana: sua unicidade. Esse valor único se fundamenta na
unicidade de Deus. Se não houver Absoluto a adorar, não há
absoluto a reconhecer na pessoa amada.”1’׳
Agora, acrescentemos apenas as duas conjunções “ora” e
“logo”: é como passar da noite para o dia! “O fundamento do
amor sexual é o absoluto de cada pessoa humana: sua unicida
de.” Ora, “esse valor único se fundamenta na unicidade de
Deus”. Logo, “se não houver Absoluto a adorar, não há absoluto
a reconhecer na pessoa amada”.
Outro exemplo dessa mania atual de esquecer as conjunções
de coordenação. Elas são acrescentadas entre colchetes. Aqui
também, faça uma primeira leitura omitindo-as, uma segunda in-
tegrando-as e sinta a diferença:
“O ‘símbolo’ funciona, a partir de então, segundo o sentido
etimológico dessa palavra: a metade de um signo vem ajustar-se
à outra metade, de modo que haja encontro no reconhecimento
mútuo dos dois portadores. [Ora] a Torá e o evangelho atraem-
se a fim de produzir a plena luz. [Logo] o ‘símbolo’ é esse en
contro.”1617
Aristóteles já observava que essas conjunções eram como
as cavilhas que seguram as diferentes peças de um barco.
□ Outro meio
Também não é raro que o autor reúna tese e argumento(s)
ao final de um parágrafo, do artigo, no começo de um novo ca
pítulo ou num sumário.
Tal é o caso de João Paulo II em suas catequeses de quar
ta-feira: o início resume sempre as catequeses anteriores.
103
□ Observação
Atenção, o texto nem sempre propõe as proposições que
constituem o raciocínio em sua ordem lógica: premissas, isto é,
maior e menor, depois conclusão.
“Na ausência de gravitação, as moléculas não podem ser
voláteis, de modo que apenas um pequeno numero delas pene
tra suficientemente fundo no nariz para poderem ser registradas
como odores. O que coloca um problema aos dietéticos encarre
gados da alimentação espacial. O gosto do alimento depende
muito de seu odor.”1* Qual é a estrutura desse raciocínio (note,
de passagem, que a ausência de conjunções de coordenação
torna-o ainda mais dificilmente perceptível)?
A tese é a segunda proposição: a alimentação espacial é
problemática. Prova: com efeito, no espaço, sentir os odores é
problemático (primeira proposição); ora, o gosto, que é um dos
fundamentos da alimentação, depende do odor (terceira propo
sição). O texto ordenou portanto o raciocínio da seguinte ma
neira: maior, conclusão, menor.
18. Diane ACKERMANN, Le livre des sens, Paris, Grasset, 1991, p. 27.
104
Resta que há autores difíceis: não se pode perceber de saí
da a tese de fundo que unifica seu pensamento e sua obra. O
melhor então é proceder ao contrário do que acabamos de dizer:
considerar cada parágrafo como uma unidade inteligível, deter
minar sua problemática e raciocínio; assim, gradativamente, po
de-se descobrir a tese de conjunto, como o paleontologista que,
através de um estudo cuidadoso de cada osso, reconstitui um es
queleto, enquanto a lógica da anatomia quer que se procure de
terminar o lugar e a função de cada osso a partir da totalidade.
O SILOGISMO
105
é mortal. De fato, dizer que “todos os homens são mortais” sig
nifica que “todos os homens que conheci direta ou indiretamen
te são mortais”, e só isso19. A ciência não progride com base no
silogismo, mas confrontando-se com a experiência, portanto
com o real.
A resposta é dupla. É perfeitamente verdadeiro que a ciên
cia não se constitui apenas com silogismos, mas repousa também
e primeiramente sobre induções: veremos isso em detalhe mais
adiante. Em segundo lugar, confunde-se silogismo e dedução: o
exemplo dos manuais (“Todos os homens são mortais etc.”) é es
téril por ser simplesmente a aplicação de um universal a um caso
particular, o que se chama uma dedução20 . Ora, o silogismo rela
ciona duas premissas universais que jamais se havia pensado em
aproximar até então; e essa aproximação é que é fonte de nova
compreensão. Assim realizam-se certas invenções. Tal foi o caso
de Louis de Broglie quando inventou a mecânica ondulatória,
aproximando onda e corpúsculo, atribuindo uma onda a todo
corpúsculo21. Assim procedemos nós quando descobrimos algo
de novo: “É mesmo, jamais havia notado isso; no entanto, eu sa
bia.” “É mesmo! Jamais havia feito a aproximação!”
Um caso célebre é o da prova dita ontológica da existência
de Deus. Ela foi formulada pela primeira vez por Santo Anselmo
de Canterbury em seu Proslogion (cap. II). Apresentemo-la na
forma de questões. Sem segunda intenção aparente, pergunte a
alguém: “Você pode conceber um ser tal que não exista outro
19. Cf. John Stuart MILL, Système de logique inductive et déductive, trad.
fr.. Paris, Félix Alcan, 1875, vol. I, p. 208.
20. E, m esm o nesse caso, a aproximação do princípio universal e do caso
singular pode reservar surpresas bizarras. Você sabe, por exem plo, por que cer
tos quadros do Renascimento não utilizavam apenas a folha de vinha com o tapa-
sexo, mas também seu caule que se elevava mais para cima? Para ocultar o
eventual um bigo.de Adão. Por que isso? Não que houvesse qualquer impudor
em mostrá-lo, mas porque implicava um problema. Com efeito, o umbigo resulta
de o homem ter tido um cordão umbilical e, portanto, de ter nascido de uma
mulher (eis o princípio universal). Ora, o que acontece com Adão (eis o caso
particular)? Para colocar a questão, era preciso juntar essas duas premissas; ora,
você conhece as duas. O que mostra que certas deduções podem trazer um co
nhecimento novo, m esm o que sua fecundidade seja limitada...
21. Louis de BROGLIE, Matière et lumière, “Sciences aujourd’hui”, Paris,
Albin Michel, 1937, pp. 249 ss.
106
maior?” “Certamente”, ihe será respondido. Algum tempo depois,
coloque a questão: “Será maior existir ou não existir?” A resposta
também será clara: “É maior existir.” A resposta a essas duas
questões feitas separadamente é em geral imediata e conforme
ao que acabamos de dizer. Ora, a conjunção delas obriga, se
gundo os defensores do argumento ontológico, a concluir pela
existência do Ser perfeito, do Absoluto, daquele que é tal que
não existe outro maior, em suma, de Deus. Inesperado, não é
mesmo? O efeito de surpresa é tal que a maior parte das pessoas
a quem isso é revelado querem reconsiderar sua adesão às duas
premissas. Ora, uma vez aceitas, a conclusão segue-se necessaria
mente22.
De qualquer modo, Aristóteles afirmava categoricamente
essa novidade quando dava sua definição célebre do silogismo:
“O silogismo é um discurso no qual, sendo colocadas certas coi
sas, alguma outra coisa que não esses dados resulta necessaria
mente deles em razão apenas desses dados.”23
Exemplos de silogismo
-Jean-Louis Bruguès, especialista em moral, observa: “Des
de o século passado (...) forjou-se um silogismo que per-
22. Cf., por exem plo, L'oeuvre de saint Anselme de Cantorbery, 1. Monolo
gion, Proslogion, Paris, Cerf, 1986, pp. 245-7. Na verdade, o raciocínio de Santo
Anselmo é contestado por toda uma corrente filosófica e teológica, a começar
por Santo Tomás de AQUINO (cf. Suma teológica, I, q. 2, a. 1, ad lum).
23. Premiers analytiques, I, 1, 24 b 18-19. Trad. fr. Tricot, “Bibliothèque
des textes philosophiques”, Paris, Vrin, nova ed., 1971, pp. 4-5.
107
manece, ainda hoje, o postulado, a armação essencial, o
fundamento primeiro da mentalidade [dos técnicos].” Essa
é a tese. Ele a estabelece mediante um silogismo que é
caracterizado como “silogismo do técnico”:
“Premissa maior: apesar de alguns inconvenientes, reais,
como certas perturbações produzidas nos comportamentos e nas
mentalidades, a evolução social dos tempos modernos deve ser
apreciada como algo que representa um progresso global para o
homem. Premissa menor: a técnica foi o motor dessa evolução
das sociedades ocidentais, a ponto de poder-se qualificar estas
últimas de eminentemente técnicas. Logo: todo progresso técni
co induz, mais ou menos diretamente, um progresso humano.”21
Definição do silogismo
Doravante, sabemos, o silogismo é um raciocínio que per
mite estabelecer uma problemática dando-lhe a causa, isto é,
unindo seu predicado e seu sujeito. É a forma de argumentação
mais rigorosa, embora nem sempre seja praticável. Estudemos
sua estrutura geral e depois sua estrutura particular (as três figu
ras do silogismo), antes de examinar seu interesse.
109
□ Algumas regras fundamentais
Um silogismo só pode concluir se o TM estiver presente
em cada uma das duas premissas; assim também, uma corrente
só se sustenta se o elo tem um lugar intermediário.
Essa posição não é um artifício gramatical: ela decorre da
universalidade do TM que é intermediário em universalidade en
tre o sujeito e o predicado da problemática. Por exemplo, “ave”
é intermediário em universalidade entre “falcão” e “animal”; as
sim você pode fazer o seguinte raciocínio: o falcão é uma ave;
ora, a ave é um animal; logo, o falcão é um animal.
Em contrapartida, o raciocínio seguinte é falso (mesmo que
a conclusão possa ser correta: trata-se aí de uma coincidência),
porque o TM é mais universal que os dois outros termos: o colo
nialismo é condenável; ora, a exploração do homem é condená
vel; logo, o colonialismo é exploração.
Na verdade, o TM ocupa posições particulares segundo seu
grau de universalidade. E é isso que engendra as três espécies
de figura de silogismo que devemos agora examinar. Isso pode
rá parecer à primeira vista enfadonho, mas a experiência logo
lhe mostrará o interesse dessa distinção.
- Algumas regras
Você pode concluir todos os tipos de proposição possível:
tanto particular quanto universal, tanto afirmativa quanto negati-26
26. Sabemos que Aristóteles utiliza esses símbolos para significar os termos
ou conceitos, mas também para designar a universalidade dos termos: para ele, a
ordem alfabética das letras é signo da universalidade decrescente dos termos. As
sim, A é o termo mais universal, depois vem B, e finalmente C, que é o m enos
universal. Mas, por preocupação de simplicidade, designaremos sempre A com o
o sujeito da problemática, B com o o predicado e C com o o termo médio.
110
va. A importância dessa regra aparecerá ao estudarmos as outras
figuras de silogismo. Assim, o silogismo de primeira figura é o
único que permite concluir em universal afirmativo: portanto é
extremamente precioso. É o mais poderoso e o mais esclarece
dor. Mas não escondamos que é também o mais frágil, o mais
fácil de atacar. Com efeito, um único caso em sentido contrário
basta para destruir a pretensa universalidade da conclusão. Se
você afirmar, por exemplo, que os animais são desprovidos de
inteligência, basta um exemplo contrário para aniquilar esse ra
ciocínio.
Esse raciocínio apresenta duas condições: a premissa maior
deve ser sempre universal e a menor, afirmativa. Caso contrário,
você não podería concluir.
- Primeiro exemplo
• Leitura do texto
Contrariamente aos animais, que agem por instinto, o “ho
mem age com base num juízo, e esse juízo se faz por aproxima
ções de dados operadas pela razão. Por isso o homem age se
gundo um juízo livre, pois tem a faculdade de se dirigir a diver
sos objetos. Com efeito, no domínio do contingente, a razão po
de seguir direções opostas, como se vê nos argumentos prová
veis. Ora, as ações particulares são contingentes; assim, o juízo
racional feito sobre elas pode ir num sentido ou noutro, e não é
determinado a uma só coisa. Conseqüentemente, é necessário
que o homem tenha o livre-arbítrio, pelo próprio fato de ser do
tado de razão”27.
• Análise do texto
A tese é que o homem é dotado de livre-arbítrio. A prova
apóia-se num silogismo de primeira figura: o homem é dotado
de razão. Ora, a razão que se ocupa das realidades contingentes
não é determinada (já que somente o necessário determina). Ora,
o livre-arbítrio é uma capacidade de ação que não é determinada
por seu objeto. Logo, o homem é dotado de livre-arbítrio.
111
- Segundo exemplo
• Leitura do texto
Faça o mesmo exercício com o texto seguinte. Encontramos
silogismos em todo bom romance policial, em particular em Aga-
tha Christie. Leia este final de novela tentando identificar e anali
sar a estrutura do raciocínio (e primeiramente a problemática).
“Você me declarou saber que eu não era Lady Esther. Por
quê?
“(...) Lord e Lady Micheldever tinham, ambos, os olhos azuis.
Quando o cônsul me falou dos olhos negros flamejantes da filha de
les, compreendi que havia um erro. Esposos com olhos escuros po
dem ter um filho com olhos azuis, mas o contrário é impossível.”28
• Análise do texto
Basta colocar entre colchetes as articulações lógicas.
“Você me declarou saber que eu não era Lady Esther. Por
quê? [bela formulação de um problema ou de uma problemática].
“(...) Lord e Lady Micheldever tinham, ambos, os olhos azuis.
Quando o cônsul falou-me dos olhos negros flamejantes da filha
deles, compreendi que havia um erro |é a premissa menor]. Es
posos com olhos escuros podem ter um filho com olhos azuis,
mas o contrário é impossível” [é a premissa maior],
- O que é?
Nesse tipo de silogismo, o TM (C) é mais universal que o
predicado (B) e que o sujeito (A) da problemática. Em conse
quência, visto que o predicado não pode ser menos universal
que o sujeito, o termo médio será duas vezes predicado nas duas
premissas. Mas esse raciocínio só pode concluir se uma das pre
missas for negativa. Demonstrá-lo seria demasiado longo e com
pete aos manuais de lógica. Mas a representação com os conjun
tos mostra isso bem. Do mesmo modo, invente exemplos para
convencer-se disso: nenhum deles concluirá em afirmativo. Por
exemplo: “O leão é um ser vivo; o gerânio é um ser vivo; lo-
28. Agatha CHRISTIE, “La maison de Chiraz”, in Mister Parker Pyne, pro-
fesseur de bonhenr. Trad. fr., Paris, Librairie des Champs-Elysees, 1970, p. 253·
112
go...” E desconfie dos falsos exemplos: “Os homens são seres vi
vos; os gregos são homens; logo, os gregos sào seres vivos.”
Com efeito, é apenas por acaso que grego está também contido
sob o gênero “homem” (o sujeito da maior). Isso não é mais ver
dadeiro se você afirmar que “os pepinos sào seres vivos”; ora,
os pepinos, mesmo mascarados, não são homens...
Em todo caso, pelo fato de uma das premissas ser negativa,
a conclusão o será também.
A estrutura do raciocínio é a seguinte: B é C; ora, A não é C;
logo, A não é B. Ou então: B não é C; ora, A é C; logo, A não é B.
- Algumas regras
Uma das premissas deve sempre ser negativa. Acabamos
de mostrar que, se as duas forem afirmativas, é impossível con
cluir. Assim, Guy Sorman faz um paralogismo quando escreve
(com um sorriso nos lábios) do filósofo e historiador das idéias
políticas Isaiah Berlin: “Os ingleses sào pragmáticos. Isaiah Ber-
lin é contra o espírito de sistema. Logo, sir Isaiah é inglês.”29
Do mesmo modo, se as duas premissas concluem negativa-
mente, nada se pode concluir.
Enfim, esse raciocínio pode concluir tanto em universal
quanto em particular (negativo, é claro).
- Exemplos
“A dificuldade é esta: o amor e a inclinação amorosa são
inteiramente espontâneos, o casamento é uma decisão.”30
A conclusão está portanto subentendida: o amor nada tem
a ver com o casamento.
29· Les vrais penseurs de notre temps, “Livre de Poche”, nö 6962, Paris,
Fayard, 1989, p. 369.
30. Sören KIERKEGAARD, Propos sur le manage, citado por Ignace LEPP,
Psychanalysé de I amour, Paris, Grasset, 1959, p. 173.
31. FRANQUIN, BATEM e GREG, Le bébé du bout du monde, na série
"Marsupilami”, 2, Marsu Productions, Dargaud diffusions, 1988, p. 18.
113
Aqui também a conclusão é implícita: o panda não pode
sobreviver na floresta de Palombie.
- O que é?
Aqui o termo médio (C) é menos universal que o predica
do (B) e que o sujeito (A) da problemática. Em conseqüência,
visto que o predicado não pode ser menos universal que o su
jeito, o termo médio será sujeito das duas premissas. Trata-se
portanto exatamente do oposto do silogismo de segunda figura,
em que o TM era o termo mais universal e devia figurar como
predicado nas duas premissas.
Enquanto o silogismo de primeira figura pode demonstrar
qualquer tipo de proposição, o silogismo de segunda figura só
demonstra proposições negativas e o de terceira figura só pode
concluir em particular. Indica-se o caráter particular da premissa
acrescentando “alguns”.
A estrutura é a seguinte: C é B; ora, C é A; logo, alguns A
são B.
Os camelos bebem água; ora, os camelos são mamíferos;
logo, alguns mamíferos bebem água.
- Algumas regras
Uma das premissas é sempre particular. A outra, em com
pensação, deve sempre ser universal.2*3
114
Por outro lado, as premissas podem ser afirmativas ou ne
gativas.
• Exemplos
Na verdade, esse tipo de silogismo é empregado muito ra
ramente. Em todo caso, tal é minha experiência. Certamente
prefere-se utilizar o silogismo de primeira figura quando se quer
concluir em particular. Além disso, as exposições buscam mais o
universal que o particular. E as conclusões particulares sâo em
geral o resultado de indução parcial, incompleta.
Por isso não encontramos exemplo de silogismo de terceira
figura em outra parte a não ser nos livros escolares. Mas as ilus
trações sâo demasiado artificiais para terem alguma utilidade pa
ra nós. Nossa intenção é prática, não teórica. A rigor, elas po
dem servir de teste para quantificar o Quociente Intelectual33.
33· Cf. Pierre BERLOQUIN, Testez votre intelligence, Livre de Poche, Paris.
115
tas têm sentimentos?, podemos responder negativamente fazen
do o seguinte raciocínio: os sentimentos requerem a mediação de
hormônios e de um sistema nervoso; ora, as plantas são desprovi
das deles. O TM, “requerer a mediação de hormônios e de um
sistema nervoso”, é mais universal que os dois termos da proble
mática.
Do mesmo modo, o argumento de Saint-Exupéry acerta no
alvo: “Os homens (...) compram coisas prontas nos comerciantes
(premissa maior). Mas, como nào existem comerciantes de ami
gos (menor), os homens nào têm mais amigos (conclusão).”34
“O que há de interessante nos contos que as crianças en
contram nos livros é que eles funcionam com base em referências:
o herói deve se ‘virar’ para recuperar seu equilíbrio, um apazi
guamento. Nos desenhos animados japoneses, ao contrário, nào
há pistas para uma saída, tudo está banhado em violência e se
detém nisso.”35*Aqui, o TM tem uma universalidade máxima: a
presença de pistas (ponto de referência de ordem moral). Ele é
negado com relação ao desenho animado e afirmado com
relação aos contos tradicionais.
Como?
Para estabelecer um silogismo, proceda em dois tempos.
Pergunte-se: por que utilizar um silogismo em vez de um outro
tipo de raciocínio? A seguir, que tipo de silogismo?
□ Segundo critério
Baseia-se na universalidade do TM comparada à do sujeito
e do predicado da problemática:
-Universalidade intermediária: Ia figura.
- Mais universal que os dois: 23 figura.
-Menos universal que os dois: 3â figura.
Convém precisar que, a exemplo da pesquisa da problemá
tica, isso sempre requer muito treinamento: mas logo se torna
uma alegria. É preciso então lembrar que o objetivo não é esta
belecer estruturas lógicas harmoniosas, mas buscar o verdadeiro:
a razão está para a inteligência assim como o trabalho para o re
pouso feliz e a árvore para o fruto.
□ Critérios literários
Dissemos acima que os autores nem sempre manifestam
seus raciocínios pelas conjunções de coordenação, e até mesmo
as utilizam sem conhecimento de causa. De vez em quando se
tem a felicidade de topar com um autor que compreendeu a uti-
117
litlade delas e que não regateia o rigor silogístico. O livro de
Henri Hude, Prolegômenos (excelente não apenas pelo rigor de
sua exposição, mas também pela densa originalidade de seu
conteúdo), oferece numerosos exemplos de silogismos (disjunti
vos) cuidadosamente balizados. Eis aqui um, bastante divertido:
“O que é um ateu, por exemplo? Nenhum cético é ateu. Já
que ele diz nada saber de Deus, ele não sabe se há um Absoluto,
nem se não há. Logo, nenhum ateu é cético. Ora, tudo o que não
é cético é metafísico. Logo, um ateu só pode ser um metafísico.”36*
A INDUÇÃO
Por quê?
Trata-se de um raciocínio mais freqüente do que se imagi
na e absolutamente indispensável.
Em primeiro lugar, encontramo-lo constantemente em ciên
cia experimental. A indução tem no entanto um lugar diferente
nas ciências da estrutura e da matéria (nas quais “o lápis e o pa
pel”, as construções teóricas muitas vezes engenhosas têm tanta
importância quanto a observação e a experimentação assíduas)
e nas ciências da natureza e da vida (nas quais a parcela de ob
servação prevalece em muito sobre a da conjetura). Mas a indu
ção tem também uma utilidade cotidiana e alimenta muitas de
nossas demonstrações: "As mulheres”, observa uma mulher,
“querem ao mesmo tempo surpreender-se, rir, admirar, ser lou
camente apaixonadas e ser tranqüilas, sentir-se protegidas e
compreendidas, acariciadas e respeitadas, cortejadas e ‘reconhe
cidas integralmente’. Elas querem tudo, isto é, todos os homens
num só. Elas ainda sonham com o príncipe encantado (...), mas
têm necessidade de um homem mais maduro e tranqüilizador;
desejam um homem sensível, romântico, terno, mas nas dificul
dades cotidianas percebem que um Tarzã seria melhor; (...) que-
36. Prolêgomènes, col. “Bibliothèque europ éen n e”, Paris, Éditions Univer-
sitaires, 1991, p. 31.
rem fazer um filho sozinhas, e espantam-se de que os homens
fujam delas.”37 A tese está em itálico no artigo e constitui o título
(o artigo não dissimula, portanto, sua intenção); e a demonstra
ção se faz passando em revista os diferentes desejos da mulher,
portanto, a partir de diferentes casos singulares, por indução.
Em segundo lugar, não se pode fundamentar um pensa
mento apenas na dedução. Chega um momento em que é preci
so parar. Não se pode demonstrar tudo por silogismo. Senão, a
serpente corre o risco de morder a cauda. Por exemplo, você
mostra que o homem é livre por ser dotado de inteligência e
que a inteligência fundamenta o exercício da liberdade. Mas co
mo provar que o homem é dotado de inteligência? Por um outro
silogismo? Parece difícil. Será então um postulado? Se se entende
por isso uma proposição arbitrária, a resposta é não, trata-se de
uma verdade. Será então uma evidência (e portanto o que cha
maremos um axioma)? Num certo sentido, sim. De fato, sabe-se
que o homem é dotado de inteligência ou de razão porque isso
foi observado, constatado em múltiplos casos singulares; ora, eis
aí justamente a indução. Portanto, em última instância, o silogis
mo se baseia em induções. Conseqüentemente, nosso conheci
mento repousa sobre induções ligadas a nossas múltiplas expe
riências, procedendo a partir daí a deduções ou silogismos.
Reencontramos nesse ponto o que dissemos sobre a humil
de origem sensível de todo saber humano. Muitos filósofos ten
taram, em vão, desprezá-la ou libertar-se dela.
O q u e é a in d u çã o ?
N atureza
Vimos que o silogismo (ou dedução) é um movimento da
razão que vai do universal ao universal; simetricamente, a indu
ção permite à inteligência elevar-se dos fatos singulares ao uni
versal.
É o que a etimologia quer dizer: silogismo vem de um ter
mo grego que significa “juntar os feixes de feno”; enquanto in
dução significa, sempre em grego, “reconduzir para, fazer a ron-
37. Jacqueline KELEN, “Ce que fem m e veut: tons les hom m es en un seul”,
in Figaro Magazine de 28 de setem bro de 1991, p. 130.
119
da, a colheita”; ora, colhem-se realidades singulares. Silogismo e
indução têm movimentos complementares, mais do que contrá
rios. Para explicar o movimento intelectual da indução, Aristóte
les utilizou uma imagem que ficou célebre. Deixemos Tomás de
Aquino explicá-la: Aristóteles “exemplifica com os combates sus
citados pela retirada de um exército vencido, com efeito, se um
dos combatentes em fuga resolve se deter, isto é, permanecer
no lugar em vez de fugir, eis que um outro, detendo-se, se junta
a ele, e logo um terceiro, até que um número suficiente deles te
nha se reunido para reencetar o combate. Assim, a partir da per
cepção sensível e da lembrança que se tem de um caso particu
lar, e depois de um outro, acaba-se por atingir (...) o que é prin
cípio de arte e de ciência”, isto é, o universal38.
Qual é a estrutura do raciocínio indutivo? A indução toma
emprestada sua figura do silogismo de terceira figura, o que na
da tem de espantoso, já que o TM é aqui uma enumeração de
singulares; ora, a conclusão é universal; como o sujeito não po
de ser mais universal que o predicado, o termo médio será sujei
to duas vezes nas premissas.
() raciocínio será portanto o seguinte: C (que é a enumera
ção de singulares) é A; ora, C é B; logo, B é A.
Vejamos isso a partir de uma ilustração. Trata-se de de
monstrar que os cachorros (B) são animais fiéis (A); para isso,
todo o mundo procederá da mesma maneira: “Veja, considere
Médor, Azor e Milou (C): eles são realmente fiéis (A); ora, eles
são cachorros; logo, os cachorros (B) são fiéis (A).”
Vê-se portanto que a força da indução repousa sobre a
enumeração de singulares. Mas, para retomar o exemplo acima,
haverá sempre alguém para lhe dizer que o cachorro do seu vi
zinho partiu há um mês e não voltou. Voltaremos a isso mais
adiante.
Exemplo
Ele será tomado do antropólogo francês estruturalista Lévi-
Strauss. ü texto que vamos ler está na conclusão do último dos*1
38. Comentário sobre os Segundos Analíticos, Liv. II, cap. XIX, 100 a 11-13;
1. 20, n. 11, traduzido para o francês por H. D. GARD1-IL. Initiation à la pbiloso-
phiedeS t. Tbomas dAquin, t. I, Introduction. Logique, Paris, Cerf, 1952, p. 230.
120
quatro tomos de sua volumosa obra dedicada aos mitos (ele es
tuda mais de 800). Ora, essas passagens resumem as conclusões
mais gerais sobre a natureza do conhecimento humano que ele
tira de todas as suas pacientes análises sobre os mitos no pensa
mento selvagem39.
• Leitura do texto
“A ambição estruturalista de lançar pontes entre o sensível
e o inteligível, sua repugnância por toda explicação que sacrifi
que um aspecto em benefício de outro aspecto, encontram”
confirmação “nos que souberam estabelecer uma correspondên
cia termo a termo entre relações inteligíveis e abstratas, de um
lado, e formas vivas, de outro (...), sendo que a primeira delas é
o rosto humano, no qual as pessoas se comprazem em ver uma
expressão visível da personalidade e de suas características sen
timentais e morais. E que habitante da floresta poderia dizer co
mo faz exatamente para identificar de longe uma árvore? No en
tanto, basta um programa com cerca de mil instruções para que
um computador desenhe árvores nas quais, fazendo variar os
parâmetros, um botânico reconhece sem dificuldade o abeto, o
salgueiro ou o carvalho... Diferenças que se poderiam acreditar
de ordem puramente qualitativa reduzem-se, portanto, ao jogo
de algumas propriedades matemáticas simples.
A teoria estereoquímica reduz a gama - que se poderia
acreditar inesgotável e indescritível - dos odores a sete valores
fundamentais (éter, cânfora, almíscar, flor, menta, acre, pútrido)
que, diversamente combinados como as unidades constitutivas
dos fonemas, engendrariam essas sensações tão inefáveis quanto
imediatamente reconhecíveis que são para nós o odor da rosa,
do cravo, do alho-porro ou do peixe. A mesma teoria reduz es
ses valores sensíveis a outras tantas formas geométricas simples
ou complexas que caracterizariam as moléculas odoríferas, cada
uma das quais viria ou não inserir-se em um receptor sensorial
com a forma apropriada à sua, e que portanto o especializaria
para reagir exclusivamente a este ou àquele tipo de molécula.”"1*40
121
• Análise do texto
A tese é a seguinte: o estruturalismo apaga a distinção que
existe entre o sensível e o inteligível. E o autor irá demonstrá-lo
Cem particular) por uma indução a partir de três fatos concretos:
O reconhecimento de um rosto humano, de uma árvore,
de um odor se faz por análise estrutural (reduzindo a diversida
de qualitativa a uma combinação quantitativa complexa de no
ções elementares).
Ora, o reconhecimento de um rosto humano, de uma árvo
re, de um odor estabelece uma correspondência termo a termo
entre o sensível concreto (as formas vivas) e o inteligível abstrato.
- Logo...
122
da física repousam necessariamente apenas sobre um número li
mitado de observações. Quem sabe se não se produzirá, ama
nhã, um fenômeno que venha contradizer sua hipótese? Jamais é
possível chegar à verificação completa de uma lei.”' Popper é
ainda mais restritivo; ele se opõe inclusive a Carnap1'.
Portanto, parece que só nos elevamos ao universal com
certo temor e tremor, e sem garantia de certeza absoluta, já que
esta é inacessível. E essa probabilidade, em compensação, afeta
rá todos os silogismos, uma vez que suas conclusões não po
dem pretender ter mais certeza do que suas premissas: a foz não
se situa em local mais elevado que a nascente.
□ Solução da dificuldade
É preciso, de fato, distinguir dois casos, dois fundamentos,
o primeiro sendo de longe o mais freqüente.
- O primeiro fundamento da indução é a enumeração dos
singulares.
Nesse caso, quanto mais completa for a enumeração dos
singulares, tanto mais certa será a indução. Ela pode chegar á
certeza? Não. Para retomar o exemplo de Popper, quando en
contrei mil cisnes brancos, nada me garante que o milésimo pri-42
123
■
meiro nào será negro. Minha indução, conclui ele, jamais será
certa. É verdade, mas mesmo assim isso não implica uma cons
tatação negativa generalizada. Há, com efeito, casos limitados
em que se pode chegar à certeza: quando a enumeração é com
pleta. Por exemplo, posso dizer que os sentidos sempre têm ne
cessidade de um órgão corporal; para mostrá-lo, basta realizar a
enumeração completa dos cinco sentidos, passá-los em revista e
constatar que cada um deles utiliza um órgão físico.
Eis aqui o que observa Edward Harrison, professor de físi
ca e de astronomia, sobre a causa da escuridão cio céu: “A ma
neira como interpretamos, segundo a fórmula de Thomas Dick,
‘a obscuridade que se acha por trás das estrelas’ depende da na
tureza do Universo no qual acreditamos viver. No sistema aristo-
télico, os espaços escuros revelavam a fronteira exterior das es
feras celestes; no sistema estóico, revelavam o infinito do vazio
extracósmico; no sistema estrelado e estático de Newton, revela
vam o nada que preexiste ao nascimento das estrelas.”1'
A tese de Harrison é que a interpretação dada da escuridão
do céu exprime nossa cosmologia, nossa visão do universo. A
conclusão é certa. Por quê? Oferece ele a razão, digamos, filosó
fica disso? De modo nenhum. O autor contenta-se em mostrar
sua tese indutivamente a partir dos modelos cosmológicos que
foram propostos; ora, ele estuda todos os modelos de explica
ção do negro da noite que foram propostos (são em número de
16: resumidos num quadro à p. 236 de seu livro. É portanto a
indução completa que engendra a certeza, não a causa.
Inversamente, no exemplo seguinte, a conclusão ultrapassa
claramente as premissas, a indução portanto só conclui de ma
neira provável: “Contrariamente a uma opinião comum, o saber
não progride fundamentalmente no interior de uma disciplina.
As grandes idéias nascem fora ou nas fronteiras da disciplina.
Assim, Darwin era um amador esclarecido que não havia feito
estudos universitários e cujas viagens estiveram na origem de
sua teoria da evolução. Wegener, que de maneira nenhuma era
um geólogo, examinava o que há de mais global - o mapa do
mundo - e chegou assim á teoria da deriva dos co n tin en tes.A 45
44. Le n o ird e la nuit. Une énigm e du cosmos, Paris, Seuil, 1990, p. 235.
45. Edgar MOR1N, entrevista em Le Monde, 26 de novembro de 1991, p. 2.
124
tese defendida pelo sociólogo é que “as grandes idéias nascem
fora ou nas fronteiras da disciplina”. E a indução baseia-se em
dois pesquisadores famosos, um em biologia e outro em geolo
gia; mas a popularidade deles não deveria fazer esquecer o ca
ráter extremamente reduzido do fundamento: não apenas exis
tem muitos outros grandes biólogos e geólogos, como também
muitas outras ciências não estão representadas. Sem dúvida, a
vasta cultura de Morin poderia desfiar uma ladainha de exem
plos que uma simples entrevista não pode dar. Em todo caso,
percebe-se o quanto a ausência de uma compreensão da causa
deixa a inteligência insatisfeita: “por quê?”, ela tem vontade de
perguntar.
Avancemos. Contavam-me o caso de uma criança que vê
chegar uma travessa à mesa; a travessa se quebra; a criança fica
confusa e pergunta bruscamente à sua mãe: “E se tudo se que
brasse?” Será que se trata de uma indução sobre um fundamento
muito restrito, pois se limita a um único caso singular? Essa ex
plicação parece um pouco curta, tanto mais que a conclusão é
muito certa: tudo pode quebrar-se, neste mundo. Portanto, é
preciso recorrer a um outro fundamento que explique que se
pode passar do singular ao universal sem perder a certeza.
- O segundo fundamento da indução é a percepção de um
vínculo essencial.
No caso dos cisnes, a indução tem por objeto uma matéria
que é contingente e da qual é muito difícil extrair algum vínculo
inteligível. No exemplo da criança, a inteligência parte também
de dados sensíveis para elevar-se ao universal, mas para ler aí,
como que intuitivamente, a essência inscrita no núcleo do real
percebido pelos sentidos. A razão disso é que o objeto conside
rado apresenta alguma necessidade, e portanto alguma inteligi
bilidade. Por exemplo, se digo que o próprio da liberdade é es
colher, parto de alguns exemplos de atos livres, mas faço bem
mais do que generalizar a todos os casos possíveis: descubro de
imediato o que é a liberdade como capacidade de autodetermi
nação. No primeiro caso, a conclusão seria somente provável;
aqui, ela é certa, pois está fundada numa intuição da própria es
sência da liberdade e da escolha. O mesmo ocorre se digo que a
parte é menor que o todo. E posso atribuir o sujeito “parte” ou
“liberdade” ao predicado “é menor que o todo” ou “é capacida-
125
de de escolha”, porque essas noções apresentam alguma neces
sidade. Como explica Simard, “o espírito, percebendo que se
trata de um predicado essencial, vê ao mesmo tempo que ele
convém a todos os singulares, quer estes sejam ou não enume
rados. De fato, a percepção de um vínculo essencial entre o pre
dicado e o sujeito equivale à enumeração total dos singulares e,
em conseqüência, dispensa prosseguir toda a enumeração sub-
seqüente”. (Op. cit., p. 113)
Inversamente, observo que o calor dilata uma barra de fer
ro; faço a mesma experiência com uma barra de cobre, depois
de chumbo, e concluo que o calor dilata os metais. Esse raciocí
nio é uma verdadeira indução, pois não tenho nenhuma intui
ção da razão pela qual o metal é dilatado pelo calor; aliás, mi
nha conclusão é apenas provável. Nada me diz que não se des
cobrirá um metal que o calor fará contrair. Se eu descobrisse o
mecanismo particular da dilatação, seria completamente diferen
te, pois estaria de posse de uma causa, e haveria silogismo.
Toda a dificuldade é saber quando estamos às voltas com o
primeiro ou com o segundo tipo de fundamento. Aristóteles já
dizia: ‘,Quando temos necessidade de tomar o universal, servi-
mo-nos da expressão e em todos os casos dessa espécie. Mas o
difícil é determinar quais são, entre as coisas propostas, as que
são dessa espécie e as que não o sào.’M(’
46. Organon. V. Topiques, Liv. VIII, cap. II, 157 a 23-26, trad. Ir. Tricot,
“Bibliotheque des textes philosophiques", Paris, Vrin, nova ed.. 1974, p. 323.
126
ao fato de que a criança fica mais tranqüila quando ouve a bati
da do coração de sua mãe que já ritmava sua vida intra-uterina'7.
Concluamos com Émile Simard ( idem, p. 282): “A diferença
entre a indução certa e a indução dialética [isto é, provável] de
ve ser mantida cuidadosamente. Ela fundamenta a distinção en
tre a parte certa e a parte apenas dialética do conhecimento da
natureza. Com efeito, a primeira extrai seus princípios da expe
riência comum por uma indução certa. Tais proposições não de
pendem da enumeração como tal e não exigem um recurso
constante à confirmação experimental. Em contrapartida, as leis
e os princípios da física são garantidos unicamente pela enume
ração dos singulares; eles deverão modificar-se e precisar-se
constantemente para permanecer conformes aos fatos.” Donde
esta conseqüência que converge para o que dizíamos sobre os
perigos do monismo metodológico: “É preciso cuidar para não
cair numa concepção totalitária do saber: ou pretender que a in
dução dialética representa a única fonte de conhecimento; ou só
dar atenção à indução certa cujas conclusões, embora definiti
vas, permanecem num certo sentido imperfeitas, porque demasia
do gerais e demasiado comuns.” No primeiro caso, seria cair no
cientificismo (redução do saber às ciências), no segundo, no “fi-
losofismo” (redução do saber à filosofia). O saber humano é in
tegral, é articulação judiciosa das ciências e da filosofia.
Como?
Os critérios são sobretudo lógicos e deduzem-se do que
acabamos de dizer. A presença de uma indução se reconhece
por diferentes sinais evidentes:
- O texto se move no singular e pouco no universal.
- O texto multiplica os casos, os exemplos concretos (em
oposição ao raciocínio por similitude que iremos ver den
tro de um instante).
-A conclusão (portanto a tese) tem uma universalidade,
uma extensão que não ultrapassa em muito o campo
abrangido pela amostragem proposta. Se for o caso, o au
tor, em geral, assinala esse fato; se não for o caso, você
deverá ficar alerta. Por exemplo, Freud concluiu pela47
47. Cf. Desm ond MORRIS, Le singe nu, Paris, Grasset, 1976, pp. 1 3 0 3 ·־
127
universalidade dos estágios pré-genitais (oral, anal) a partir
de uma base extremamente restrita e, além do mais, pato
logicamente marcada. É bem o contrário do que se observa
ao ler a conclusão desse grande observador da natureza
que foi Jean-Henry Fabre, ao final de um estudo sobre a ta
rântula de ventre negro: “Assim a mordida da tarântula de
ventre negro é temível para outros animais que não os in
setos; ela é mortal para o pardal, mortal para a toupeira.
Até que ponto se deve generalizar? Ignoro-o, minhas pes
quisas não tendo se estendido mais além. Parece-me, toda
via, com base no pouco que vi, que a mordida desse arac
nídeo não seria, no homem, um acidente negligenciável. É
tudo o que tenho a dizer à medicina.’M8
Por quê?
Esse raciocínio é muito fraco, como veremos. No entanto,
sempre teve grande popularidade e permanece indispensável,
tanto na vida diária quanto em diferentes disciplinas.
Na vida concreta
O homem não é uma inteligência pura, desencarnada; sua
imaginação precisa ser alimentada. Com mais razão ainda a crian
ça. Eis por que silogismos e induções não bastam. A similitude
vem então em auxílio do espírito e o dispõe a acolher verdades
mais abstratas. Perguntam a Roland Moreno, inventor multimilio
nário do cartão magnético, se ele é Deus. Ele responde por uma
analogia humorística muito eloqüente: “Serei prudente. Digamos
que Deus criou o recheio e eu inventei a torta!”'9*
É por isso que Cristo falava por parábolas. É impressionan
te, aliás, como Cristo busca e se esforça por encontrar similitu
des: “A que irei comparar o Reino dos Céus?” Se tivéssemos essa
48. Souvenirs eritomologiques. Études sur 1'instinct el les moeurs des insec
tes, “Bouquins”, Paris, Robert LafFont, 1989, p. 430.
49. Figaro Magazine de 28 de setembro de 1991, p. 146.
* Cartão magnético = carte à puce (puce é “pulga” e também “plaqueta de
silício”. A última frase seria, literalmente, “Deus criou a pulga [ou o silíciol e eu
inventei a torta.” (N. T.)
128
mesma preocupação, para com nossos interlocutores, cie encon
trar exemplos, meios pedagógicos adaptados!
Certos povos ditos primitivos falam espontaneamente por
similitudes, por analogias, e só se explicam quando lhes colo
cam uma questão. Convém não esconder que isso apresenta a
fraqueza inerente ao gênero, a saber, a incapacidade de fornecer
a causa; mas tem o mérito da poesia e de nos falar às vezes
mais intimamente do que um longo discurso.
Em ética
Santo Tomás já observava que em matéria de moral é bom
proceder por meio de exemplos e de similitudes. Assim Paulo VI
dizia que escutamos mais naturalmente um profeta que é tam
bém uma testemunha5051. Um exemplo (mas um verdadeiro exem
plo, isto é, um com o qual possamos nos identificar) permite
com freqüência economizar longos discursos.
Tal é também a função dos contos de fada na criança. Bru
no Bettelheim, em Psicanálise dos contos de fada-', mostrou que
eles permitem uma identificação e com isso uma eliminação de
tensões e conflitos psicológicos sem desordem moral, por exem
plo, ao desrecalcar uma agressividade contra os pais.
A ética tem uma extrema necessidade desse tipo de raciocí
nio, se não quiser permanecer no nível dos princípios univer
sais. Com efeito, o discurso ético deve juntar-se à nossa ação
que é singular, contingente, e o mero raciocínio geral pode ser
perverso se for aplicado sem nuances às realidades concretas.
Vamos dar dois exemplos disso:
-Primeiro exemplo: o homem e a mulher são feitos para
se casar; ora, sou um homem (sou uma mulher); logo,
devo me casar.
-Segundo exemplo (em política): a pena de morte é um
direito natural que é da competência do Estado; ora, a
França é um Estado; logo, a legislação francesa deve au
torizar a pena de morte.
129
Em ciência
O raciocínio por analogia é freqüentemente utilizado pelos
pesquisadores, por ser fecundo. Aristóteles já usava o método
analógico: “Muitas características comuns são apresentadas por
um grande número de animais, ora absolutamente como os pés,
as asas, as escamas e outras características desse tipo, ora segun
do a analogia. Entendo por analogia o fato de alguns possuírem
um pulmão, outros não, mas estes, no lugar do pulmão que os
primeiros possuem, apresentarem um outro órgão; uns têm o
sangue, outros algo de análogo, isto é, que desempenha o papel
desempenhado pelo sangue nos animais sangüíneos.”52 Vamos
dar dois exemplos mais atuais.
Como foi descoberta a aspirina, que continua sendo o me
dicamento mais vendido no mundo? O pastor Edmund Stone,
do condado de Oxford, há mais de 200 anos, experimentou da
casca de salgueiro (Salix alba) e “ficou surpreso com seu ex
traordinário amargor. A semelhança com o gosto da casca de
uma árvore peruana, a quinquina, que era então um remédio
raro e caro contra a febre, levou-o a estudar durante seis anos
os efeitos clínicos dos extratos de casca de salgueiro. Quando
escreveu enfim sua célebre carta [à Royal Society, em 25 de
abril de 1763], revelou que a casca de salgueiro era eficaz con
tra as doenças febris”53.
A noção de onda luminosa surgiu da comparação entre as
propriedades da luz e do som, em particular através das franjas
de interferência. E Huygens soube “aproveitar isso maravilhosa
mente; mais tarde, a mesma analogia levou Malebranche, e em
seguida Young, a representar uma luz monocromática por uma
fórmula semelhante à que representa um som simples”54.
Em suma, como observava Einstein: “Muitas vezes se efe
tuou, em física, um progresso essencial graças á analogia rigoro
sa estabelecida entre fenômenos que, aparentemente, não têm
nenhuma relação entre si.”55
130
Em filosofia
É particularmente o caso de Platão: que se pense na famo
síssima alegoria da Caverna (A República, livro VII). Paul Ricoeur
reatou hoje com essa tradição quando, ao interrogar-se sobre a
existência do mal e sua origem, considera que a abordagem
mais legítima dessa questão é a via simbólica, a análise dos mi
tos de origem’6.
A tese do autor é que o homem não pode passar sem o
pensamento mítico. Em outras palavras, a filosofia, a metafísica,
tem necessidade de mitos. A razão última parece ligada ao
próprio ser do homem que não é puro espírito, mas ser concre
to, carne e espírito, e sobretudo encarnado no tempo e na histó
ria. Ora, o mito “nos remete à imaginação, às paixões, à afetivi
dade, enquanto o intelecto não poderia admitir nenhuma influên
cia dessa ordem”’7, (p. 354) Mas a filosofia é pura obra do inte
lecto. O mito tem também uma relação privilegiada com o tem
po. Segundo a bela expressão de Kierkegaarcl que Gusdorf cita
in fin e : “A mitologia consiste em manter a idéia de eternidade
na categoria do tempo e do espaço.”’“ ״A consciência mítica” é
“expressão do homem integral, ela legitima, ao sublimá-las, to
das as aspirações humanas...”565789
E, de fato, a similitude, o símbolo, ganha em riqueza evo-
cadora aquilo que perde em rigor e precisão. Mas não queremos
abordar aqui em detalhe essa delicada questão das relações en
tre vida imaginária, vida simbólica e vida intelectual.
Esse tipo de raciocínio é muito utilizado nas filosofias ou
nas religiões orientais.
O pequeno Svetazetu quer ter o conhecimento. Ele pede-o
a seu pai, o qual lhe responde por parábolas:
Põe este sal na água e vem me ver amanhã de manhã.
O filho fez o que lhe fora dito. Na manhã seguinte, o pai
disse:
- Traz-me o sal que puseste na água.
131
O filho procurou-o mas nào conseguiu encontrá-lo; pois o
sal, evidentemente, havia se dissolvido. O pai disse:
-Experimenta a água da superfície do recipiente. Como é?
-Salgada. [Ele faz a mesma coisa em relação à água do
meio e do fundo.]
O pai disse:
-Joga fora a água, e volta então para junto de mim.
O filho fez isso; mas o sal não se perdeu, pois o sal existe
para sempre. Então o pai disse:
- Assim também, aqui, nesse corpo que é teu, meu filho, não
percebes o Verdadeiro; mas em realidade ele está aí. Na
quilo que é a essência sutil, tudo o que existe tem seu si
mesmo. Eis aí o Verdadeiro, eis aí o Si mesmo, e tu, Sveta-
zetu, tu és Isso.”60*
O que é?
Exposição
Esse raciocínio não é uma ilustração ou um exemplo; por
isso ele seria melhor chamado raciocínio por analogia do que
raciocínio pelo exemplo. Ele se baseia na similitude de duas rea
lidades ou de dois conceitos para concluir.
Sua formulação sistemática é mais complexa do que as fi
guras que já vimos, já que o raciocínio pelo exemplo compõe-se
de dois raciocínios: um prossilogismo e um silogismo.
Prossilogismo (é na verdade uma indução enfraquecida,
nào um silogismo de terceira figura): D é A; ora, D é B; logo, to
do B é A.
Silogismo (que se faz em primeira figura): todo B é A; ora,
C é B; logo, C é A.
A similitude se estabelece entre C e D. Percebe-se também
que a conclusão é na maioria das vezes singular e não universal.
Se você diz a uma criança: “Coma espinafre, ficará forte co
mo Popeye”, seu raciocínio é implicitamente o seguinte: Popeye
(D) come espinafre (A); ora, Popeye (D) é forte (B); logo, todos
os que querem ser fortes (B) comem espinafre (A). Ora, você
132
(C) quer ser forte (B); logo, (C) coma espinafre (A). Você perce
be que a força (e a fraqueza) da argumentação vem sobretudo
da identificação que seu filho (C) realiza com Popeye (1))...
O raciocínio aparente é às vezes ainda mais curto e deixa à
pessoa a tarefa de buscar a similitude: “Olivier levanta-se às sete
da manhã”, diz uma mãe a seu filho, “ele só dorme até mais tar
de nas férias.” Esse argumento supõe que a criança operará es
pontaneamente a similitude entre ela e Olivier, já que ela vê
neste um ídolo.
133
ta, e não comer lá.” E a mãe se extasiou com a sabedoria de sua
filha. De fato, a similitude é bem concebida, mas a aplicação é
enganosa. A mãe poderia replicar: “Sim, mas quando você vai a
uma recepção, antes se prepara, e não come sem lavar as
mãos!” Não nos deixemos enganar pelas lantejoulas e os guizos
da analogia. Nem tudo o que brilha é ouro.
O esoterismo, em particular, adora esse resumo e tende ex
cessivamente a reduzir o gênero demonstrativo à mera analogia.
O pensamento analógico, e intuitivo de maneira geral, é muito
superior ao árduo e paciente pensamento discursivo, a super-
consciência de que fala a sofrologia, muito mais desejável que
a consciência simplesmente humana.
• Leitura do texto
Eis aqui um exemplo tirado de um texto escrito pelo fun
dador de uma das seitas mais temíveis atualmente, a FBU (Fra
ternidade Branca Universal).
Tudo o que o homem faz, diz ele, é programado, registra
do, fotografado. Mas onde? Resposta: “Trata-se de uma bobina
minúscula, um átomo. Vocês dirão que é impossível que tudo se
registre num átomo. Não é. Por quê? Vejam, no início, quando
fabricavam válvulas de rádio, elas eram enormes; mas agora, ca
da vez mais, descobre-se o meio de reduzir e de fazer circuitos
cada vez menores com uma pintura metálica, e a corrente circu
la exatamente conforme as linhas que foram traçadas. Consegue-
se reduzir, diminuir tanto o peso dos aparelhos, que um dia cer
tamente teremos televisões de bolso. Pois bem, a natureza ultra
passou os humanos: ela diminuiu a tal ponto o tamanho de suas
bobinas que as reduziu a um átomo. Quando o homem morre,
ele apresenta esse átomo perante seus juízes e todo o filme de
sua existência começa a desenrolar-se.”61*
• Análise do texto
Estamos diante de um exemplo típico de demonstração por
analogia, extremamente frágil, baseando-se no fato de que a
conclusão é admitida (por causa da carga passional que ela im
plica), mas requer uma aparência de justificação.
134
Como?
- Em primeiro lugar, a tese refere-se em geral a um sujeito
singular, e não a uma idéia universal, já que o ponto de
impacto do raciocínio é a similitude entre dois singulares.
- Encontram-se às vezes observações explícitas tais como
“Façamos uma comparação...”, ou mais alusivas: “assim
como...”
- O texto dedicará muito tempo a detalhar um exemplo ou
um caso que não é imediatamente aquele ao qual se re
fere a problemática.
- Em conseqüência, todo o esforço crítico consiste em sa
ber se o artigo se pretende científico, rigoroso: em geral,
ele não consegue ser; e, se o for, convém ter cautela, não
se deixar iludir: a multiplicação das analogias, tão comum
nas revistas de parapsicologia ou de esoterismo, não en
gendra grande certeza: a imaginação é seduzida, mas a
inteligência anestesiada não é mais esclarecida. Assim
também, a multiplicação de soldagens incertas não torna
o avião mais apto a voar. Convém acrescentar a esses cri
térios lógicos critérios de ordem mais psicológica. Disto
se falará mais adiante a respeito do entimema: com efei
to, raciocínio por analogia e entimema são geralmente
utilizados no mesmo contexto, que é mais persuasivo
que demonstrativo.
Eis aqui, por exemplo, o que Rosser Reeves, antigo presi
dente da agência Ted Bates, nos Estados Unidos, escreveu em
favor da universidade de Tel Aviv, seus 11 mil estudantes e 2.000
professores: “Se Albert Einstein vivesse hoje, para que escola en
viaria seus filhos? Acreditamos que os enviaria à universidade de
Tel Aviv e há 2.000 razões para isso. (...) Quais são as ‘2.000 ra
zões’? As ‘2.000 razões’ são os 2.000 professores da universidade,
exatamente um professor para oito estudantes.”6־
Ora, é evidente que esse texto não tem, a princípio, uma
finalidade informativa...62
135
O ENTIMEMA
O que é?
A palavra assusta, mas abrange uma realidade muito sim
ples de perceber.
Definição
O entimema apresenta duas características, sendo que ape
nas a primeira é essencial. Enquanto o silogismo é um raciocínio
que procede de premissas certas e nos fornece a causa, o enti
mema nos dá apenas um sinal ou se baseia em premissas veros
símeis. O entimema é portanto um silogismo provável.
□ O primeiro é o sinal
Aristóteles dizia que “o entimema é um silogismo que parte
de premissas verossímeis ou de sinais”63.
Por exemplo, o sinal de que o computador não é inteligen
te é que ele é incapaz de mentir. O humorista inglês Chesterton
já havia pressentido isso bem antes da era dos computadores.
“Em minha opinião, essa máquina não consegue mentir.” “Ne
nhuma máquina consegue mentir”, diz o padre Brown, “aliás,
nem dizer a verdade... Mas a outra máquina (o homem), a que a
fazia funcionar, cometeu um erro.”*64*
Às vezes, um sinal é insuficiente para promover a adesão
da inteligência. Recorre-se então a um conjunto de sinais que
convergem para a conclusão. É assim que raciocina Djinn, o jo-
63· Organon III. Premiers Ana lytiques, Liv. II, cap. XXVII, 70 a 10. Trad. fr.
Tricot, “Bibliothèque des textes philosopliiques”, Paris, Vrin, nova ed., 1971, p.
323; todo o capítulo trata do entimema.
64. George-K eith CHESTERTON, Father Brown, Paris, NRF Gallimard,
1954, pp. 72 e 74.
136
vem e inseparável amigo de Bernard Prince (herói da revista em
quadrinhos do mesmo nome) e de Barney: “Atraíram-nos para
cá de propósito. Impedem-nos de sair. Pagam-nos. Logo, têm
necessidade de nós. C orreto?Percebe-se que ê a soma desses
indícios convergentes que permite concluir, pois um só constitui
ria um sinal insuficiente.
Conseqüência
Não é por acaso que apresentamos o entimema sob uma
forma aparentemente não rigorosa ou não totalmente explicita
da. Com efeito, você pôde constatar que deveríamos ter acres
centado uma premissa: “Mentir é sinal de inteligência. Ora, a
máquina é incapaz de mentir. Logo...”
De fato, se o entimema fornece apenas um indício ou um
sinal, é porque ele não busca primeiramente demonstrar mas
convencer. Como o raciocínio pelo exemplo, ele é do domínio
do persuasivo e não da lógica rigorosa. Eis por que o entimema
tira sua força de seu caráter alusivo, apresentando-se, na maioria
das vezes, como um “silogismo truncado”, como um raciocínio
ao qual falta uma premissa. E, já que o entimema tece todas as
nossas conversas correntes, vê-se o quanto seria ridículo falar
explicitando totalmente os silogismos.65
65. HERiMANN e GREG, Bernard Prince, 11. Im forteresse des brumes, Bru
xelas, Éd. du Lombard, 1977, p. 6.
1
Por quê?
O entimema é muito útil por diferentes razões. Em primei
ro lugar, ele se baseia em premissas muito manifestas, muito co
nhecidas. É o caso do lugar-comum, mas também cios sinais. O
sinal tem a propriedade de ser mais evidente que a causa. A me
dicina não cessa de constatá-lo: uma coisa é saber que você está
doente porque emagreceu 10 quilos em um mês sem regime,
outra é conhecer a razão disso.
Em segundo lugar, as premissas do entimema podem ser
facilmente concedidas. Elas evitam o longo desvio do silogismo.
Por isso os políticos adoram o entimema, pois sabem que a ca
pacidade de atenção do público é muito limitada. Aqui, trata-se
de persuadir, não de convencer. Por exemplo, há duas maneiras
de criticar uma política econômica governamental: ou analisá-la
de maneira minuciosa e rigorosa (silogismo), ou, mais grosseira
mente, mas também eficazmente, assinalar que a inflação ou o
desemprego aumentaram desde que o governo foi eleito (enti
mema); ora, estes últimos são apenas sinais, não efeitos necessá
rios: pode haver outras causas que não a incompetência do go
verno.
Enfim, o entimema é às vezes necessário quando as causas
faltam: por exemplo, para explicar a atitude de uma criança fu-
jona, e agir em conformidade com isso; para convencer um in
terlocutor inacessível ao raciocínio. Assim, a única explicação
eficaz que convenceu um chefe de aldeia fatalista, para persua
di-lo a mandar vacinar os bebês, foi o seguinte entimema: “Veja,
os bebês vacinados da aldeia vizinha não morreram este ano e
eles puderam fazer uma colheita melhor.”
Como?
Critérios lógicos
138
Além disso, com um pouco de experiência, rapidamente se
reconhece o artigo oco que se baseia apenas em lugares-comuns,
em idéias prontas: é o caso típico dos jornais de partido, dos dis
cursos de propaganda. Poder-se-ia diagnosticar um pertencer po
lítico pela freqüência de “trabalhadores”, “combate por mais justi
ça”, “liberdade” etc. Mas o entimema não é apenas um raciocínio
desvalorizado; às vezes é a única possibilidade de argumentar
quando estamos reduzidos a conjeturas, o que é freqüentemente
o caso em matéria judiciária, em ciências, na vida corrente...
Como o entimema conclui mais em função de seu conteú
do que de sua forma, nào é raro que esta não respeite as regras
do silogismo estabelecidas antes. Não me refiro ao impasse so
bre uma das premissas, o que é acessório. Mas, por exemplo, é
freqüente que o entimema se apresente com a forma de um silo
gismo de terceira figura66. O TM, no caso o sinal, é duas vezes
predicado nas premissas com duas premissas afirmativas. Ele po
de concluir, embora de maneira não necessária, pois sua força
provém do princípio de manifestação que é o sinal, o qual une
os termos da problemática.
Por exemplo: os patrões exploram; ora, os patrões são ri
cos; logo, os ricos exploram.
• Leitura do texto
Leia as seguintes passagens de um texto do doutor Toma-
tis; elas resumem uma de suas teses principais67.
“Com exceção das vísceras, o homem, como a grande maio
ria dos seres vivos, é simétrico. Por que diabos decidimos um
dia atribuir a um de nossos lacios uma vantagem funcional? O
que há de mais notável é que essa especialização parece ser
própria ao homem. Os animais não têm, propriamente falando,
lateralizaçào. (...) O homem, desde os tempos mais remotos, pa
rece ter sido lateralizado e, mais do que isso, em todos os pon
tos do mundo onde o homem surgiu, sua lateralidade foi em re
gra dominante à direita.”
139
Ora, “parece que a lateralidade e a linguagem caminha jun
tas”. Com efeito, o que se observa? Um fato entre muitos: “O
não-aparecimento da lateralidade é constante na não-aquisição
da linguagem. Alvez Garcia, em seu livro sobre os Distúrbios da
linguagem, (...) propõe a cifra estatística, espantosa à primeira
vista, de 100% de ambidestria da escrita entre os surdos-mudos.”
Tornatis tenta mais adiante explicar o porquê dessa consta
tação indutiva: “A linguagem humana, em seu modo articulatório,
exige, como vimos, um controle cibernético particularmente ela
borado. Ela implica a presença de um captor. Este ultimo pode
não ser único, mas deve ser unilateral. Sem essa condição pri
mordial, as liberdades internas, que todo sistema não conforme a
essa exigência autorizaria, deixariam introduzir-se múltiplos er
ros, impedindo o fluxo normal para o ritmo humanamente adota
do. Foi da linguagem e para controlar essa linguagem que surgiu
a necessidade de estruturar uma lateralização. Essa lateralizaçâo
tem primeiramente por objeto o controle sensorial de nossa auto-
escuta; ela nos torna conscientes de nossa linguagem, rompe
com os automatismos que só podem levar a uma linguagem pu
ramente expressiva. (...) Todo o nosso ser é portanto controlado
por um único lado, e devemos isso à linguagem.”
• Análise do texto
A lese é que a lateralizaçâo tem a linguagem por causa (cf.
a última frase que é conclusiva).
Ora, Tornatis a estabelece primeiramente pela experiência
de Garcia, a qual é um entimema: ela fornece apenas um sinal
(primeiro critério); o autor está reduzido a isso, como acontece
freqüentemente em ciência (segundo critério); enfim, ela é colo
cada sob a forma de silogismo de terceira figura com duas pre
missas universais (último critério): os surdos-mudos têm distúrbios
de linguagem (por definição); ora, todos os surdos-mudos têm
distúrbios de lateralização.
No último parágrafo, em compensação, Tornatis tenta ela
borar um raciocínio causal (que se baseia aqui na causa final). O
TM é então a noção de controle: a segurança do controle supõe
a unilateralidade ou a lateralização; ora, a linguagem supõe ou
exige um controle preciso. A comparação com o entimema per
mite mostrar claramente a diferença entre sinal e causa: aqui, a
140
luz é bem mais profunda, ela busca penetrar a razão de ser da
lateralização, enquanto o sinal mostrava sua existência mas não
seu fundamento.
Critérios psicológicos
A importância de saber a que faculdade se dirige o texto é
imensa, já que o entimema tem primeiramente por função per-
suadir. Pergunte-se, após a leitura, se você está mais inflamado
ou mais esclarecido. Para tanto, tente reformular o artigo, sua te-
se e seus argumentos: isso permite avaliar bem o seu impacto,
intelectual ou afetivo. Você pode demonstrar a tese permane-
cendo frio e neutro (o que não quer dizer rebarbativo)?
Mas, já que a convicção conduz tanto ao inferno quanto ao
paraíso, convém em seguida avaliar o caráter formador ou alie-
nante do texto.
141
nas horas vagas, dá uma explicação figurada disso (cf. o quadro
na página seguinte).
Por exemplo, a lei da queda dos corpos permanecerá sem
pre verdadeira: esse é um fato, ou melhor, um dado universal (a
saber, que um corpo cai segundo uma velocidade uniformemen
te acelerada, o que é uma aplicação da lei da atração universal
descoberta por Newton), estabelecido por indução a partir de
um grande número de casos singulares. Ela foi incluída como
uma conseqüência no grande edifício da teoria mecânica de
Newton, mas a mecânica relativista elaborada por Einstein, mais
precisa, a substituiu: uma teoria expulsa a outra, dando uma
imagem cada vez mais aproximada, cada vez mais provável do
real. Do mesmo modo, os indícios podem convergir para a cau
sa, ou a análise cada vez mais minuciosa de uma fisionomia, de
uma escrita, revela um caráter.
Enfim, não esqueçamos o domínio da ficção. Sherlock Hol-
mes não levou a dedução até a ciência, como afirma Sir Arthur
Conan Doyle (em O signo dos quatro), mas sim a teoria. Os Du-
pin (Edgar Poe) e as Miss Marple (Agatha Christie) são antes de
tudo especialistas da conjetura testada pelos fatos. Isso não é
surpreendente, uma vez que, no domínio criminal, o equivalente
da causa é a confissão ou o flagrante delito; ora, sabe-se a rari
dade disso (era a obsessão de Max-Michel Piccoli no filme de
Claude Sautet: Max et les ferrailleurs)·, donde a necessidade de
restringir-se aos indícios.
O que é um a teoria?
Em primeiro lugar, a teoria é uma hipótese. Essa hipótese é
feita para explicar, isto é, dar a razão ou a causa de uma tese
(de uma lei científica, por exemplo). Portanto ela poderá ser
enunciada na forma de um silogismo. Seja por exemplo a tese:
Paulo está atrasado. A teoria ou a hipótese é: Paulo ficou preso
num engarrafamento; ora, quem está num engarrafamento se
atrasa; logo...
Mas, em segundo lugar, só há teoria válida se a hipótese
pode ser verificada. A teoria é uma hipótese que foi ou que po
de ser verificada. E isto é feito de duas maneiras: ou por ela
mesma, mas trata-se então de uma verdadeira causa, conhecida,
e não há mais hipótese (recaímos no caso clássico do silogis-
142
mo); ou por conseqüências que dela podem ser tiradas: verificá
veis, elas tornam a hipótese provável.
No contexto de nosso exemplo: quem fica preso num en
garrafamento nào pode telefonar para avisar; ora, Paulo não te
lefona... Ou então: o engarrafamento é frequente na época da
volta das férias. Ora, Paulo estava retornando de férias.
Mas essas conseqüências tiradas são apenas sinais, indícios.
Aliás, os raciocínios que as sistematizam estão em terceira figura
e não podem formalmente concluir: são entimemas. A hipótese
portanto não é certa. Se, em compensação, se tirasse uma con-
seqüência necessária que pudesse ser verificada, a hipótese ad
quiriria foros de causa. Por exemplo, “o rádio acaba de anunciar
um engarrafamento monstro no túnel de Fourvière; ora, Paulo ti
nha necessariamente que passar por ele”.
143
simples e explicará domínios cada vez mais extensos de suas
impressões sensíveis. Ele poderá assim crer na existência de
um limite ideal do conhecimento que o espírito humano po
de alcançar. Poderá chamar esse limite ideal a verdade ob
jetiva."
Alberi EINSTEIN e Léopold INFEID, Levolution des idées en physique, Paris, Flammarion,
1948, pp. 3 5 6 ־.
• Leitura do texto
- Constatam-se dois fatos:
Por um lado, do ponto de vista psicológico, a evolução do
Mickey mostra que ele se humaniza. No início, ele é inclusive li
geiramente sádico. Em sua primeira aparição na tela, Steamboat
Willie (1928), “Mickey e Minnie espancam e maltratam os ani
mais que se acham a bordo do barco a vapor (...). Fazem um
pato guinchar num abraço apertado, giram o rabo de uma cabra
como uma manivela, torcem as tetas de uma porca, utilizam os
dentes de uma vaca como um xilofone e brincam de gaita de fo
les com suas mamas”.
Por outro lado, do ponto de vista orgânico, fisiológico,
Mickey rejuvenesce. “As crianças, quando comparadas aos adul
tos, têm cabeça e olhos maiores, queixo menor, um crânio mais68
144
proeminente e arqueado, e pés e pernas menores e mais gros
sos.” Ora, Mickey percorreu o caminho orgânico inverso: “Para
dar-lhe as pernas mais curtas e grossas de uma criança, diminuí
ram-lhe o tamanho e cobriram-lhe as pernas esguias com urna
espécie de calça ondulante. (...) Sua cabeça tornou-se relativa
mente maior e seus traços mais juvenis. O tamanho do focinho
do Mickey não variou, porém, mais sutilmente, é um espessa-
mento mais pronunciado que o faz parecer menos saliente. O
olho do Mickey aumentou” (p. 114) e o crânio também.
Em suma, a silhueta do Mickey rejuvenesceu, ao mesmo
tempo em que seu psiquismo e sua moralidade melhoraram. Es
sa tese é estabelecida indutivamente.
145
Mickey, permanece mais adulto em suas formas, com um bico
para a frente e uma testa mais inclinada.
Os ratos maus, adversários do Mickey, apresentam, ao con
trário, sempre uma silhueta mais adulta, embora tenham geral
mente a mesma idade cronológica que ele.” (pp. 119-20).
• Análise do texto
A tese é clara: Mickey rejuvenesce ao mesmo tempo que
seu caráter melhora.
A primeira parte do texto mostra isso indutivamente a par
tir de diferentes parâmetros: o tamanho do crânio, dos olhos etc.
Mas a inteligência permanece insatisfeita e pede uma cau
sa. Baseando-se nos trabalhos de Lorenz, Gould propõe na ver
dade uma hipótese (o que chamamos uma teoria) na segunda
parte de seu texto: os desenhistas querem que seu herói seja
acolhido; ora, um herói com traços infantis é sempre acolhido;
logo... Você percebe que esse raciocínio não pode concluir
quanto à disposição de seus termos: com efeito, o TM é duas
vezes predicado; ora, ele deveria ser uma vez sujeito e uma vez
predicado quando as premissas são afirmativas e universais. Tra
ta-se apenas de um entimema: não lidamos realmente com uma
causa certa, mas somente com uma causa provável.
Assim, o biólogo Gould teve de contentar-se em mostrar
sua tese por um duplo raciocínio que não engendra a certeza: a
indução e o entimema.
146
lidade infantil, o superego...) eram apenas hipóteses para seu
autor; aliás, as escolas, em geral, endurecem o pensamento de
seu mentor, tornando certo o que era somente provável ou con
jetural (hipótese fecunda). Todo pesquisador e todo homem de
boa vontade deveria ler esta bela carta escrita a Charles Darwin
por sua esposa e as breves palavras acrescentadas abaixo pelo
grande observador da natureza.
147
Como?
Perceber uma teoria é delicado e requer, não treino, mas
atenção, sobretudo se experiências ou fatos sustentam a hipótese.
- O melhor meio é perguntar-se diante da explicação pro
posta: sobre o que ela se fundamenta? Apenas sobre in
dícios ou sobre provas necessárias? O que supõe um
exame minucioso e objetivo do pensamento, quando
nossa atitude habitual é recusar a hipótese porque não
estamos de acordo com a tese.
- Pergunte-se também: uma outra causa seria capaz de ex
plicar a mesma tese?
O S P S E U D O -R A C IO C ÍN IO S
148
O raciocínio dialético
É o raciocínio amaldiçoado pelos professores de francês ou
de filosofia - e com razão. Esse tipo de demonstração justapõe
uma proposição e seu contrário (tese e antítese); além disso,
com freqüência, ela opina, tergiversa, passa de uma à outra sem
concluir e deixa o leitor na incerteza entre as duas.
Leia o seguinte trecho'״: ‘“Você é mau’, Isso não se faz’,
(...). Eis aí cantilenas que há séculos as crianças ouvem ao longo
dos dias [tese]. É verdade que esses anjinhos têm necessidade de
barreiras, de limites, no interior dos quais possam dar vazão às
suas idéias devastadoras [antítese], Mas atenção! Essas fórmulas
anódinas às vezes provocam danos. É que as crianças são candi
datos privilegiados à culpa-veneno, aquela que gruda no cora
ção e na mente por toda a vida [tese]. (...) Não pense porém que
é preciso abster-se de dizer não a seus filhos, por temor de feri-
los profundamente para o resto da vida [antítese]” etc.
A tese é a seguinte: a culpabilidade é um erro pedagógico; a
antítese é portanto: a culpabilidade é necessária na educação. Vo
cê percebe assim que é constantemente remetido da tese à antíte
se. A conclusão, aliás, é reveladora: “O jogo da culpa entre pais e
filhos se parece, em última análise, a uma armadilha infernal.
Quanto mais os pais forem o joguete de sua própria culpa, mais se
arriscam a repercutir os efeitos dela sobre sua progenitura.” Acaba
mos por nos perguntar se a culpa dos pais é que é essa “armadilha
infernal” ou se essa não é antes o vaivém indeciso da dialética!
C o nclusão
149
- fique atento à certeza dos argumentos, sobretudo se eles
não se dirigem só à inteligência e buscam mais persuadir
que demonstrar. Cuidado com o brilho atraente de uma
analogia bem escolhida; ela não vale o rigor, às vezes
um pouco árido, de uma exposição silogística.
- Cada tipo de raciocínio tem seu mérito próprio e convém
saber variar os gêneros literários. Cansamo-nos de ler
tanto Santo Tomás como Santo Agostinho, tanto Descar
tes como Pascal; o que não impede as afinidades eleti
vas. O silogismo instrui, mas acaba por aborrecer; a ana
logia seduz, mas acaba por não mais instruir.
- Enfim, tocamos aqui um dos limites da formalização do
pensamento. Certamente, e nós própios o fizemos, é
possível colocar um entimema ou uma analogia em es
trutura. Mas, em primeiro lugar, esse esforço de esclareci
mento necessário à inteligência lhe retira todo impacto e
todo valor literário. É o que toma tão indigesta a ética
geométrica de Espinosa: como vimos, a ética, mesmo se
deve alimentar-se de princípios universais, é por excelên
cia o domínio do concreto, portanto do provável e do
exemplo. Além disso, e sobretudo, a máquina se detém
na forma: o conteúdo, seu grau de certeza, a distinção
causa-sinal, supõem que a inteligência volte a se relacio
nar com o real; isto a máquina sempre será incapaz de
fazer, pois seu funcionamento é apenas circular, fechado
em si mesmo, sem aquele referente exterior que é o úni
co a dar sentido7".70
150
E x e r c íc io s
Exemplo I
• Leitura do texto
“Se o homem é o caminho fundamental e o caminho da
Igreja, compreende-se bem por que a Igreja atribui uma impor
tância particular ao período da juventude: ele é o período chave
na vida de todo homem." (João Paulo II, Carta apostólica a to
dos os jovens do mundo por ocasião do Ano internacional da
juventude, 31 de março de 1985, Vaticano, Ed. tipográfica Vati
cano, n. 1. Sublinhado no texto.)
• Análise do texto
A problemática é tanto mais clara quanto está em itálico no
texto: a Igreja atribui uma importância particular à juventude.
A demonstração apóia-se num silogismo de primeira figura
cujas premissas estão distribuídas de um lado e de outro da pro
blemática, no caso: antes (para a maior) e depois (para a menor).
- O homem é o caminho fundamental da Igreja.
- Ora, a juventude é um período chave na vida de todo
homem.
151
Exemplo II
• Leitura do texto
Este fragmento foi extraído de uma revista sobre televisão e
trata da série de filmes De volta para o futuro, por ocasião do
lançamento do terceiro (e último) da série.
“O primeiro episódio da trilogia ‘Marty MacFly’ havia entu
siasmado os espectadores, ao passo que a continuação decep
cionou. Para Steven Spielberg, a explicação é evidente: ‘O pri
meiro episódio era linear. Contava uma história fantástica, mas
em suma muito simples. Para o segundo episódio, utilizamos a
técnica dos videogames, em que o jogador-espectador é trans
portado a toda velocidade de uma situação a outra sem ter tem
po de respirar. Isso podia agradar as crianças, mas desorientava
os pais. Retornamos a um modo de narração mais tradicional no
terceiro episódio.’”
(‘“ Retour vers le futur IIP, ce que vous verrez”, in revista
Télémoustique, de 15 de março de 1990, p. 39.)
• Análise do texto
A tese é: o segundo episódio da trilogia “Marty MacFly”
(De volta para o futuro II) decepcionou. Essa é a constatação, o
juízo. Por quê?
É preciso estabelecer a causa, e portanto raciocinar. O au
tor cita Spielberg, que faz - certamente sem o saber! - um duplo
raciocínio: um raciocínio pelo exemplo e um silogismo de se
gunda figura (pois, de fato, a conclusão é negativa: o segundo
episódio não agradou).
Spielberg faz um raciocínio pelo exemplo partindo do pri
meiro episódio, que é o análogo mais próximo do segundo epi
sódio.
Prossilogismo: o primeiro episódio agradou.
Ora, o primeiro episódio era de estilo linear.
Logo, o estilo linear agrada.
Silogismo: ora, De volta para o futuro II não era linear: ado
tou o estilo narrativo videogame (que procede por flashbacks
constantes: “o jogador-espectador é transportado a toda veloci
dade de uma situação a outra”).
Logo...
152
O silogismo de segunda figura: as crianças, mas não a ge
ração precedente, os pais, estão habituadas a uma situação nar
rativa não linear (de fato, estão acostumadas com videogames;
ora, os videogames utilizam uma técnica narrativa não linear).
Ora, De volta para o futuro II não era linear.
Logo, De volta para o futuro II estava destinado a decepcio
nar uma parte do público.
Exemplo III
• Leitura do texto
“Um embrião humano é um ser vivo humano e não um ser
vivo de uma espécie qualquer. Que coerência há em vituperar o
racismo e o apartheid em nome da comunidade genética da es
pécie, e em fazer ao mesmo tempo do direito de nascer um caso
de apreciação pessoal?"
(M. NODE-LANGLOIS, “Individualité et personalité: 1’embryon
humain, une personne”, in Communio XIV-6, nov.-dez. 1989,
pp. 89-99, aqui p. 96.)
• Análise do texto
A tese é: o direito de nascimento não é uma questão de
apreciação pessoal. Em outras palavras: ninguém tem o direito
de decidir a seu favor sobre a vida de uma criança por nascer
(subentendido: o que o aborto faz).
A demonstração é um raciocínio por analogia, pelo exem
plo. Ele se baseia na analogia profunda existente entre o racis
mo e o aborto.
Prossilogismo: o racismo e o apartheid não são uma ques
tão de apreciação pessoal. Ora, o racismo e o apbarteid são
condenados em nome da comunidade genética da espécie. Lo
go, o que se fundamenta na comunidade genética da espécie
não é uma questão de apreciação pessoal.
Silogismo principal (cuja premissa maior é a conclusão do
prossilogismo): ora, o embrião é um ser vivo pertencente à co
munidade genética da espécie humana. Logo, o direito de nasci
mento do embrião não é uma questão de apreciação pessoal.
153
Exemplo IV
• Leitura do texto
“Se o poder político tem por função primeira dar sua força
ao direito das liberdades a despeito dos poderes, ele deve per
manecer independente destes. Ele deve, exatamente, ter poder
sobre os poderes, sobre toda força que tenda a se exercer contra
a liberdade dos fracos. Disso resulta que ele não pode ser ne
nhum dos poderes. Nem o poder econômico, nem o poder ideo
lógico, nem o poder religioso. Tampouco pode identificar-se
com o poder mais prestigioso e eficaz, o da ciência e das técni
cas que ele engendra. Em particular e forçosamente, pois seu
poder afeta diretamente o espírito, a ciência médica. Por isso a
medicina não deve tornar-se competência do Estado.”
(Claude BRUAIRE, Une éthique pour la médecine, Paris,
Fayarct, 1978, p. 132.)
• Análise do texto
A tese é clara. É enunciada pela última frase: a medicina
não é uma competência do Estado.
De que maneira o filósofo Bruaire demonstra isso? Por um
silogismo de segunda figura.
O poder político não pode ser nenhum dos poderes.
Ora, a ciência médica é um poder.
Logo, a medicina não pode ser uma instância de poder po
lítico (em outras palavras: uma competência do Estado).
Bruaire estabelece também as duas premissas de seu racio
cínio.
Em relação à maior, ele a demonstra por um novo silogis
mo de segunda figura cujo termo médio é muito justo: o poder
político tem por função principal a liberdade dos mais fracos;
ora, os poderes, sejam quais forem, tendem a esmagar os mais
fracos (justamente por serem fortes e não fracos).
Em relação à menor, Bruaire não faz demonstração, mas
divide o sujeito “poderes” em suas diferentes espécies: econômi
ca, ideológica, religiosa, tecnocientífica. Ora, a medicina é uma
das espécies do prestigioso poder tecnocientífico.
154
Exemplo V
• Análise do texto
A tese do antropólogo francês é que as ciências humanas
não merecem ser classificadas no gênero das ciências.
Para demonstrá-lo, ele procede na verdade por entimema,
o que é muito freqüente nos diálogos, mas pode mascarar para
logismos, como acontece aqui.
Ele parte (premissa maior implícita) da identidade entre or
dem real e ordem da razão; ora, o menos não pode compreen
der o mais, nem o igual o igual (é preciso até certo ponto domi
nar seu objeto para compreendê-lo), e o próprio de uma ciência
é “controlar” seu objeto; mas a ordem real, o objeto estudado
pelas ciências humanas, é o homem, e o sujeito que conhece
(“os meios intelectuais”) é também o homem; logo, as ciências
humanas não podem compreender seu objeto; por isso as ciên
cias humanas não são verdadeiras ciências.
A premissa maior que identifica as duas ordens (real e racio
nal) fundamenta-se, na verdade, no estruturalismo: a única dife
rença entre os seres é a diferença de estrutura e portanto de
complexidade; ora, real e racional, mais ou menos complexos,
são ambos estruturados.
Exemplo VI
• Leitura do texto
As histórias em quadrinhos podem nos reservar surpresas
lógicas. Asterix e Obelix acabam de desembarcar no que será
155
mais tarde o continente americano. Eles descobrem vestígios de
índios. Mas Obelix está convencido de que se trata de romanos.
Vejam como ele raciocina:
Talvez não sejam romanos - diz Asterix, prudente.
- São sim! - assevera Obelix, categórico. - É coisa dos
romanos isso de nos espreitar na floresta e ter medo de nos en
frentar.”
(UDERZO e GOSCINNY, La grande traversée, Dargaud éditeur,
1987, p. 20.)
• Análise do texto
O raciocínio é na verdade um entimema. Você pode adivi
nhá-lo antes mesmo de formalizá-lo: Obelix baseia-se em dois
indícios ou sinais.
Os romanos espreitam na floresta e têm medo de nos en
frentar.
Ora, os sinais são de pessoas que espreitam na floresta e
têm medo de nos enfrentar.
Logo, são romanos.
Exemplo VII
• Leitura do texto
Blond nos fala dos cachalotes: “A idade sempre traz algu
ma pequena desgraça. (...) Navegar nos mares quentes ou tem
perados é muito agradável. Mas todos sabem que os piolhos
também preferem o calor.”
(Georges BLOND, La grande aventure des baleines, “Le livre de
poche”, 545-546, Paris, Le Livre contemporain, 1953, p. 71.)
• Análise do texto
A tese do autor é que os cachalotes mais velhos conhecem
desgraças, a dos piolhos.
Por quê? Blond faz o seguinte raciocínio: os cachalotes
mais velhos navegam nos mares quentes. Ora, os piolhos tam
bém proliferam apenas no calor.
Aqui também lidamos com um entimema. De fato, o calor
é apenas um sinal, não é a causa. Ainda é necessário que pio-
156
lhos haja... Aliás, o raciocínio tem a forma cie um silogismo de
segunda figura, embora nenhuma das premissas seja negativa.
Exemplo VIII
• Leitura do texto
“A distinção entre consoantes e vogais, que se baseia em
critérios vocais, será puramente convencional? Um recente estu
do italiano de dois casos clínicos indica que vogais e consoantes
escritas constituem duas entidades tratadas diferentemente pelo
cérebro. Os pacientes estudados, vítimas de lesão cerebral após
um enfarto, apresentam ambos uma deficiência seletiva na escri
ta das vogais. O primeiro paciente escreve as palavras omitindo
sistematicamente as vogais, e deixando um espaço em branco
no lugar delas. Assim, o sobrenome do paciente, FONDACARO,
torna-se F ND C R . O segundo paciente, por sua vez, comete
numerosos erros na escrita das vogais, o mais freqüente sendo a
substituição, numa palavra, de uma vogal por outra. É a primeira
vez que deficiências específicas na escrita de uma das duas clas
ses de letras são assim evidenciadas. Esses dois casos são fasci
nantes, pois mostram a que grau de detalhe pode chegar a re
presentação da linguagem no cérebro.”
(Resenha do artigo de R. CUBELLI, Nature, 353, 258, 1991, em
La Recberche, nQ237, novembro de 1991, vol. 22, p. 1270.)
• Análise do texto
A tese é que o reconhecimento das vogais é uma função
especializada do cérebro.
A prova é a seguinte:
- alguns pacientes (no caso, dois) têm uma lesão cerebral
(decorrente de um enfarto);
- ora, alguns pacientes apresentam distúrbios seletivos de
reconhecimento, da escrita das vogais.
Trata-se, evidentemente, de uma indução. Mas a indução é,
na verdade, quase uma intuição, quando se tem em si o esque
ma da teoria das localizações cerebrais.
Cumpre notar que essa pequena resenha descobre um
meio de tirar duas conseqüências.
157
Ora, o cérebro é um dado de natureza, não convencional;
logo, a distinção vogal-consoante é natural (e não apenas con
vencional).
Ora, o reconhecimento das vogais é especializado; logo, o
cérebro tem um conhecimento especializado da linguagem.
Exemplo IX
• Leitura do texto
Eis aqui uma frase bem típica de Balthasar: “Se, por esse
caminho, a religião israelita da promessa - apesar de seu caráter
de unicidade cada vez mais marcado à medida que Israel com
preende melhor que sua missão não tem equivalente - leva ao
Cristo o fundo religioso geral da humanidade, o Cristo, cumprin
do nele a mensagem de promessa de Israel, é posto em contato
por esse mesmo Israel com as formas religiosas da humanidade,
e responde assim não apenas à expectativa de Israel, mas às as
pirações de todos os povos.”
(Hans Urs von BALTHASAR, La gloire et la croix. Les as-
pects esthétiques de la Révélation. I. Apparition, “Théologie”,
nQ6l, Paris, Aubier, 1965, p. 421.)
• Análise do texto
A tese é que o Cristo responde às aspirações religiosas da
humanidade.
O raciocínio é dado também na mesma frase. Trata-se de
um silogismo de primeira figura, do qual Israel é o TM - Israel
contém o fundo religioso da humanidade; ora, o Cristo cumpre
as promessas de Israel; logo...
Pode-se portanto reler a frase conceitualmente muito car
regada, manifestando sua articulação e seu grande rigor lógico:
“Se, por esse caminho, a religião israelita da promessa leva ao
Cristo o fundo religioso geral da humanidade [premissa maior],
o Cristo, cumprindo nele a mensagem de promessa de Israel
[menor], é posto em contato por esse mesmo Israel com as for
mas religiosas da humanidade, e responde assim não apenas à
expectativa de Israel, mas às aspirações de todos os povos [con
clusão].”
158
Exemplo X
• Leitura do texto
As descobertas da técnica “tiveram por conseqüência divi
dir domínios até aqui confundidos: sexualidade, procriação, ma
ternidade, educação. Ora, quando se dividem domínios nos
quais se pode agir seletivamente, as escolhas possíveis são intro
duzidas e multiplicadas: cria-se uma liberdade”. A mulher é as
sim “cada vez mais desalienada em relação à natureza graças às
ciências da natureza”.
(Evelyne SULLEROT, “Le fait féminin”, in Le fa it féminin.
Qu’est־ce qu’une femme?, Centre Royaumont pour une Science
de 1’homme, Paris, Fayard, 1978, p. 18.)
• Análise do texto
A tese é a seguinte: a técnica permite o advento da liberda
de da mulher. Em outras palavras, ela desaliena a mulher.
O raciocínio será: as novas técnicas dividiram, separaram, se
xualidade, procriação, maternidade, educação; ora, esses diferentes
componentes constituíam a natureza feminina; ora, dividir é multi
plicar a escolha; ora, a liberdade é capacidade de escolha; logo, a
técnica é fonte de liberdade e desaliena a mulher de sua natureza.
Trata-se portanto de um polissilogismo cujo termo médio é
a natureza e, mais precisamente ainda, a alienação da natureza.
Exemplo XI
• Leitura do texto
A atriz Fanny Ardant participou em 1991 de um filme inti
tulado Rien que des mensonges [Nada a não ser mentiras] em
que ela encarna uma bela mentirosa consumida por suas infide
lidades secretas. Entrevistada, ela faz uma apologia da mentira:
“Normalizar me aborrece, banalizar me apavora. A gente só tem
uma vida, é preciso saboreá-la ao máximo. A verdade não é se
não a sombra da mentira. Manejada por um sádico, ela pode
causar um mal terrível. Em compensação, a mentira alivia. Aliás,
a famosa proibição ־não mentirás ׳não se encontra nas Tábuas
da Lei. Verifiquei. Isso me tranqüilizou.”
(Declarações recolhidas por Marine VIGEL, Figaro-Magazine, 7
de dezembro de 1991, p. 144.)
159
• Análise do texto
A tese é que a mentira é um bem.
Em poucas linhas, a atriz condensa diferentes argumentos.
Esboçados, misturados, temos, sucessivamente:
- um silogismo: dizer a verdade é a norma (o regular, o
banal); ora, o bem é a vida, a mudança; logo, a mentira é
um bem;
- resposta a uma dificuldade por uma distinção: a verdade
enquanto tal e a verdade do sádico;
- um entimema: é bom o que alivia. Ora, a mentira alivia;
- um outro silogismo: o que o Decálogo não proíbe é um
bem; ora, o Decálogo não proíbe a mentira etc.
Cumpre notar que não exploramos todo o texto. O sentido
da frase “Manejada por um sádico, ela pode causar um mal terrí
vel” não é esgotado pela distinção (a dupla espécie de verdade)
indicada acima.
Exemplo XII
• Leitura do texto
“Mas não, quisemos tudo, desejamos tudo, tomamos tudo,
obtivemos tudo. Devoramos tudo como as vítimas de bulimia
em que nos transformamos. E, assim que tivemos tudo, precisa
mos nos voltar para outra coisa. A satisfação não é do nosso
mundo. Um grande amor? Precisamos de um filho. Um filho?
Precisamos de dois, depois de três ou de quatro. Um marido?
Precisamos de um amante. Um emprego? Precisamos chegar ao
topo. As alturas? Precisamos também do dinheiro. O êxito com
pleto? Precisamos da felicidade. Tudo ao mesmo tempo? Con
tinua não sendo bom, enche ser superwoman...”
(Michèle FITOUSSI, Le ras-le-bol cies Superwomen, Paris, Cal-
mann-Lévy, 1987, p. 195.)
• Análise do texto
A tese é que o homem (aqui a mulher) tem um desejo infi
nito (donde a conseqüência que é o próprio título do livro: as
mulheres estão cheias de brincar de Superwoman).
A prova é indutiva. Ela percorre alguns domínios de ativi
dade da mulher atual e mostra de que maneira o desejo de infi-
160
nito frustrado, a insatisfação, os atravessa: a mulher atual deseja
o amor, os filhos, o marido, o trabalho, as alturas, o êxito; ora,
em cada domínio, é o “sempre mais” que é buscado; logo...
Silogismos na bíblia
Exemplo I
“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue perma
nece em mim e eu nele. Assim como vive o Pai que me enviou
e eu vivo pelo Pai, assim também o que me comer viverá por
mim. (...) Quem comer desse pão viverá para sempre.” (Jó 6, v.
56 a 58)
Eis como Santo Tomás comenta esse trecho (cap. VI, liv. VII):
Tese: “Aqui, o Senhor mostra que o alimento espiritual dá a
vida eterna.
E, para isso, ele emprega o seguinte argumento: Quem co
me minha carne e bebe o meu sangue se une a mim; ora, quem
se une a mim, tem a vida eterna. Logo, quem come minha carne
e bebe meu sangue tem a vida eterna.
Por isso o evangelista procede assim: em primeiro lugar,
estabelece a premissa maior: ‘Quem come minha carne e bebe
161
meu sangue permanece em mim e eu nele.’ Depois, estabelece a
menor: ‘Assim como vive o Pai que me envia, eu vivo pelo Pai.’
De fato, ele mostra que quem se une ao Filho tem a vida por
uma similitude: o Filho recebe a vida do Pai pela unidade que
mantém com o Pai; assim como quem está unido ao Cristo rece
be dele sua vida. Enfim, ele estabelece a conclusão: Quem co
me esse pão tem a vida eterna.’ ”
Exemplo II
“Ninguém as tirará (as ovelhas) de minha mão. Meu Pai,
que mas deu, é maior do que todos. Nada pode ser tirado da
mão do Pai. Eu e o Pai somos um.” (Jó 10, v. 28 a 30)
Resumamos o comentário de Santo Tomás (cap. X, liv. V).
Tese: ninguém tomará o que está na mão do Cristo.
Argumento: “Ninguém pode tomar o que está na mão de
meu Pai. Ora, a mão do Pai e a minha são a mesma, o que se
deduz de que ‘Meu Pai e eu somos um’. Logo, ninguém também
poderá tomar o que está em minha mão.”
Exemplo I
• Leitura do texto
“Todos os atenienses são mortais, todos os habitantes do
Pireu são mortais, portanto todos os habitantes do Pireu são ate
nienses.”
(Umberto ECO, Le pendule de Foucault, Paris, Grasset, 1990,
cap. X, p. 73.)
• Resposta
Leiamos a continuação do diálogo: O que é verdade.
- Sim, mas por acaso.”
Esse raciocínio não pode concluir. Com efeito, trata-se de
um silogismo de segunda figura em que nenhuma das premissas
162
é negativa. Ora, em segunda figura, o silogismo só pode concluir
se uma das premissas for negativa, a menos que uma delas seja
conversível (isto é, que o sujeito tenha a mesma universalidade
que o predicado), o que não é o caso aqui (“mortal ״é mais uni
versal que ateniense e que habitante do Pireu).
Exemplo II
• Leitura do texto
“Essas aves de rapina são más; aquele que fosse uma ave
de rapina o mínimo possível - e inclusive o contrário, um cor
deiro - não será bom?”
(Friedrich NIETZSCHE, Généalogie de la morale, I, 13, trad. fr.,
Paris, Union Générale d’éditions, 1974, p. 150.)
É o que Deleuze chama o “silogismo do cordeiro” e forma
liza da seguinte maneira: “Suponhamos um cordeiro lógico: as
aves de rapina são más (isto é, as aves de rapina são todas más,
os maus são aves de rapina); ora, eu sou o contrário de uma ave
de rapina; logo, sou bom.”
(Gilles DELEUZE, Nietzsche et la pbilosophie, “Bibliothèque de
philosophie contemporaine”, Paris, PUF, 5a ed., 1977, p. 140.)
• Resposta
Trata-se de um silogismo de segunda figura e ele é sofísti
co por duas razões.
Por um lado, a premissa maior é universal? Por outro, o
que vale a oposição de contrariedade aqui utilizada? “... o paralo
gismo do ressentimento repousa sobre a ficção de uma força se
parada do que ela pode” (p. 140). Ora, segundo Nietzsche-De-
leuze, o cordeiro só é bom porque nada pode, porque é fraco.
163
gica é uma arte a serviço do verdadeiro, e nào uma ginástica de
esteta ou um esporte cerebral. Para isso há jornais...
Eis aqui alguns exemplos de problemática. Mas você pode
descobrir outros. Um único conselho: varie as características de
suas teses, isto é, empregue problemáticas ora universais, ora
particulares, ora afirmativas, ora negativas.
- O escravagismo é desumanizante.
- Certas empresas nacionalizadas não são rentáveis.
- Os mamíferos que dormem menos são mais vulneráveis.
- Algumas cóleras justificam-se.
164
C a p ít u l o IV
Por q u e dividir?
165
Releiamos a tese, o núcleo do romance filosófico de Ver-
cors, Les animaux dénaturés [Os animais desnaturados]: “Con
fundido com a natureza, o animal não pode interrogá-la. Eis aí,
parece-me, o ponto que buscamos. O animal forma um com a
natureza. O homem forma dois. Para passar da inconsciência
passiva à consciência interrogativa, foi preciso essa cisão, esse
divórcio, foi preciso essa separação. Não está aí, justamente, a
fronteira? Animal antes da separação, homem depois dela? Ani
mais desnaturados, eis o que somos.”3 A definição do homem à
qual se chega é portanto: animal desnaturado. Veremos mais
abaixo que “animal” é o gênero e que “desnaturado” é a dife
rença específica. Ora, o autor chegou a isso apenas distinguindo
o gênero animal (no sentido amplo que engloba o homem): de
um lado, o animal (no sentido restrito que exclui o homem), do
tado de natureza, de outro, o homem (desprovido de natureza).
Aliás, todo esse livro centrado na definição do homem
(sem jamais deixar de ser um bom romance, o que não é fácil)
oferece uma série de ilustrações da necessidade da divisão preli
minar à definição.
3· Les anim aux dénaturés, “Livre de p och e” nQ 210, Paris, Albin Michel,
1952, p. 322. Sublinhado no texto.
166
Na verdade, a maior parte dos nutricionistas constata de
forma unânime que a diminuição do consumo de pão (este foi
dividido por cinco em um século) foi acompanhada de um au
mento, nas rações, da parcela dos açúcares e gorduras animais
nitidamente mais geradores de obesidade.”'
A tese é transparente: está contida ao mesmo tempo no tí
tulo e na primeira frase do boxe: “O pão não é fator de obesida
de”. Ora, o raciocínio que a estabelece baseia-se inteiramente
numa distinção: a dos açúcares simples e dos açúcares comple
xos (o amido); ora, o amido não faz engordar, enquanto os açú
cares simples (os dos doces e guloseimas) fazem engordar; mas
o pão é composto de açúcares complexos. Logo... Não é raro,
porém, comer-se pão com geléia, mel etc. Ora, estes são açúca
res simples. Assim a distinção permite explicar uma causa verda
deira da obesidade e a razão do injusto ataque dirigido contra o
pão. Esse ataque deve-se ao acidente, no sentido que demos a
essa expressão ao falarmos do raciocínio por acidente! (cf. Capí
tulo III, Os pseudo-raciocínios).
O QUE É A DIVISÃO?
Definição da divisão
A divisão enquadra-se particularmente na segunda lei da
inteligência definida na introdução. Como procede o espírito pa
ra ir do comum ao distinto?
Voltaremos a falar nisso ao tratarmos da definição. A inteli
gência só pode compreender o que é geral distinguindo, sepa-4
167
rando porções na massa para torná-la mais assimilável. A crian
ça, no ponto de partida, não sabe distinguir os sons: passa do
caos dos ruídos à melodia e à harmonia, especial mente por in
termédio da voz materna, como mostra bem Marie-France Casta-
rède5. Ela lança a hipótese engenhosa e promissora de que a
música e a voz da mãe permitem à criança aprender a aceitar a
distância do tempo, a enfrentar a separação.
Winnicot já havia observado: “Partindo dessa definição, o
balbucio do recém-nascido, a maneira como a criança maior re
toma, antes de dormir, seu repertório de canções e melodias, to
dos esses comportamentos intervêm na área intermediária en
quanto fenômenos transicionais.”6 Tal é a função do estribilho:
“Uma criança no escuro, amedrontada, tranqüiliza-se cantarolan
do. Ela anda e pára ao sabor de sua canção. Perdida, protege-se
como pode ou orienta-se bem ou mal com sua pequena canção.
Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabiliza
dor e calmante, no meio do caos. Pode ocorrer que a criança
salte ao mesmo tempo que canta, acelere ou diminua sua mar
cha; mas é a canção, ela própria, que já é um salto: ela salta do
caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslo
car-se a cada instante.”7
A divisão é esse estribilho que põe ordem na confusão
(que não é caos) e na generalidade das idéias e das coisas. De
maneira mais rigorosa, a divisão é o instrumento de que se serve
a inteligência para passar do confuso ao distinto.
168
A distinção do todo integral em suas partes integrais
Esse é o sentido mais espontâneo de todo e de partes, pois
é a significação mais material. Essa distinção é a que se aplica na
divisão do bolo ou na, geralmente menos prazerosa, da herança.
Aqui, o todo não se encontra na totalidade de sua essência
em cada uma de suas partes, mas ele é tal que as partes são ne
cessárias à integridade (ou integralidade) da coisa. A totalidade
do bolo não se encontra em nenhuma de suas partes, todas as
crianças da terra sabem disso.
Recapitulando
Quando divido meu dinheiro, cada um recebe apenas uma
parte dele: essa é a distinção do todo integral em suas partes in
tegrais.
169
Quando partilho meu conhecimento, quando partilho a fa
la, cada um recebe a totalidade de minha fala, de meu saber: é a
distinção do gênero em suas espécies.
Quando partilho meu tempo, quando me dedico a meu tra
balho, a meus filhos, a minha esposa, trata-se da distinção do to
do em suas partes virtuais.
A anatomia divide o homem segundo suas partes integrais:
cabeça, tronco, membros. A etnologia divide o homem segundo
suas partes específicas: esta etnia, aquela etnia etc. A psicologia
divide o homem segundo suas partes virtuais: inteligência, von
tade, sensibilidade etc.
Os limites da divisão
Não se torne, porém, rei do microescalpelo lógico. Esse foi
um dos males da escolástica decadente. Não tente passar, por di
visão, da categoria última substância ao gênero dos sifonápteros,
família dos pulicídeos, espécie pulex{a pulga, se preferir!).
Duas razões limitam o exercício da divisão.
- A primeira tem a ver com nossa inteligência. Temos uma
dificuldade tremenda em apreender as realidades materiais,
pois a inteligência humana deve passar muito tempo a
abstrair. Esse é todo o paciente trabalho dos pesquisado
res, dos taxonomistas em geologia (em petrologia), em
botânica, em zoologia; e suas classificações são perpetua
mente recolocadas em questão.
São conhecidas cerca de 900.000 espécies de insetos (e o
número pode ser duas a cinco vezes maior, segundo os especia
listas). Conhecemos apenas 200 partículas elementares subatômi
cas; por que a lista estaria encerrada?
- A segunda razão deve-se às coisas. Tendo chegado à es
pécie última, não se pode mais dividir, não é possível se
não confrontar indivíduos. É o caso da espécie homem. A
espécie homem não se divide em homem e mulher, e
com menos razão ainda em raças. Um sinal disso é que,
entre duas espécies, uma é sempre mais perfeita que a
outra: estabelecer uma divisão da espécie homem é impli
citamente pregar o machismo ou o racismo’.9
170
Desse ponto de vista, em vez de falar de gênero masculino
e feminino (não seria nem mesmo exato dizer “espécie”, pois a
distinção sexuada é infraespecífica), seria preferível falar de
“subespécie masculina-feminina”!
Como dividir?
Os quatro critérios
Toda divisão rigorosa obedece a quatro critérios. De um
ponto de vista mais metodológico, falaríamos de regras.
171
Assim, falar de uma divisão tripartite dos pecados em ve
nial, grave e mortal é, em última instância, inadmissível, em ter
mos de clareza teológica. Com efeito, a distinção venial-mortal
exclui qualquer terceiro termo:
- ou o pecado desvia o homem do fim último e tira a vida
da graça: a falta é portanto mortal;
- ou o pecado concerne apenas ao caminho para esse fim,
sem pôr em questão a ordenação em direção a ele; o peca
do não impede a vida da graça: a falta é apenas venial1״.
Donde o esclarecimento do papa João Paulo II: “Durante a
assembléia sinodal, alguns padres propuseram uma distinção tri
partite dos pecados: conviria classificá-los em pecados veniais,
graves e mortais. Essa distinção tripartite poderia evidenciar o fa
to de que entre os pecados graves existe uma gradação. Mas
continua sendo verdade que a distinção essencial e decisiva é
aquela entre o pecado que destrói a caridade e o pecado que
não mata a vida sobrenatural: entre a vida e a morte, não há lu
gar para um meio-termo.”"
Desconfiemos de uma passagem demasiado impaciente do
comum ao muito distinto.
10. Cf. Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, I-II, q. 88, a. Is.
11. João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Reconciliação e peni
tência, 2 de dezem bro de 1984, n‘-’ 17. Paris, Téqui, 1984, p. 64.
12. UDERZO e GOSCINNY, Dargaud Éditeur, 1987, p. 23·
172
- O capacete de Asterix foi tirado:
ou por ele mesmo, portanto de maneira intencional. É
preciso dividir esse primeiro caso: “Asterix só tira seu ca
pacete para comer e dormir.”
ou por uma causa não intencional, por uma outra causa
que sobreveio, ou seja, por um acontecimento inesperado.
- Ora, Asterix não estava comendo nem dormindo.
- Em conseqüência, resta a última hipótese: “Logo, aconte
ceu-lhe alguma coisa!”
173
estrutura é uma noção mais formal, enquanto a matéria refere-se
à observação mais imediata; aliás, a matéria tem uma estrutura,
caso contrário seria inobservável); além disso, é operar uma so
breposição parcial dos termos (uma vez que, por exemplo, a vi
da pertence à natureza).
Tente resolver o enigma seguinte. Para ajudá-lo, saiba que
ele repousa sobre uma divisão incorreta. Três homens vão a um
café e fazem seus pedidos a 10 francos para cada um. Quando
vem a conta, cada um põe seus 10 francos, o que dá um total de
30 francos. Ora, no momento de receber, o caixa observa que
na verdade os clientes consumiram ao todo apenas 25 francos,
restando cinco francos de troco. Os clientes decidem deixar 2
francos de gorjeta para o garçom. Portanto, eles pagaram 10
francos menos 1, ou seja, 9 francos; ora, 3 x 9 francos = 27 fran
cos + 2 francos de gorjeta = 29 francos. O que foi feito do franco
restante? O contador irá arrancar-se os cabelos...
A resposta geralmente dada é que ele está no bolso do gar
çom. O que nos parece um pouco apressado. É muito raro que
se remonte até a solução profunda, até o vício exato de raciocí
nio. Quanto mais simples a charada, tanto mais o pensamento
se embaraça, tanto mais o princípio no qual se baseia o parado
xo deve ser decisivo. Com efeito, a solução depende do princí
pio de lógica que ordena que uma divisão seja feita de maneira
homogênea. Não se pode dividir o gênero legume em azul e
não-azul ou em metálico e não-metálico. Também aqui, contra
toda a aparência, os 30 francos não são divididos de maneira
homogênea quando se adicionam os 3 x 9 francos + 2 francos
de gorjeta.
174
i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados
com um pincel muito fino de pêlo de camelo, 1) etcétera, m)
que acabam de quebrar a moringa, n) que de longe se asseme
lham a moscas’. No maravilhoso dessa taxonomia, aquilo que se
alcança num salto, aquilo que, por meio do apólogo, nos é indi
cado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o li
mite do nosso: a impossibilidade nua de pensar isso.”13
Ora, por que não se pode “pensar isso”? Porque isso vai
contra todas as leis mais elementares da divisão e, na verdade,
da estruturação do mundo e de nosso universo mental. Essa di
visão não é intrínseca, nem exclusiva, nem exaustiva, nem dico
tômica, nem de mesma perspectiva. Ora, o riso tem sobretudo
por função exorcizar o invivível e o desumanizante (na ordem
não apenas ética, mas intelectual)...
Critérios lógicos
Na verdade, não existem realmente critérios lógicos que
permitam descobrir as divisões presentes num texto. Isso requer
certa prática.
Veremos adiante os critérios metalingüísticos mais univer
sais a utilizar: eles valem para todos os textos, e é preciso sem
pre buscá-los.
Critérios literários
As divisões são em geral claramente indicadas e fáceis de
reconhecer: “em primeiro lugar..., a seguir..., enfim...” São os
“por um lado... por outro...” etc.
Não é raro também que encontremos um “depois” ou um
“além disso” isolado. É o sinal de que o autor passa a uma outra
idéia e é portanto um convite a remontar acima no texto para
reencontrar a ou as primeiras idéias.
Também é freqüente que o autor não dê seu plano no
ponto de partida, mas o introduza aos poucos, resumindo seu
parágrafo anterior: isso pode explicar-se seja por razões a príori
13. Les rnots et les cboses. Une archéologie des Sciences humaines, “Biblio-
thèque des Sciences humaines”, Paris, Gallimard, 1966, p. 7.
175
(por exemplo, de ordem literária: proceder assim torna o estilo
mais leve), seja por razões a posteriori (por exemplo, de ordem
metodológica: o autor descobre, ao terminar seu parágrafo, que
tem uma nova coisa a dizer diferente do que acaba de ser dito).
Eis aqui, por exemplo, o que escreve o bom pedagogo Jean-
Baptiste Fages: “A designação do inconsciente inaugura a época
da psicanálise. O psiquismo apresenta-se então como um mun
do em três graus: o consciente, o pré-consciente e o inconscien
te.” Segue-se uma apresentação desses três graus e inicialmente
do primeiro. Um parágrafo começa a tratar do inconsciente. Eis
como começa o parágrafo seguinte: “O primeiro traço do in
consciente - numa abordagem original que o designa como tal -
é portanto sua profundeza dificilmente sondável. A esse traço
junta-se um segundo: o dinamismo, o aspecto energético ou
‘pulsional’.”״
As palavras “primeiro traço do inconsciente...” convidam
deste modo a voltar acima para redescobrir o plano (o que não
exige aqui nenhum esforço: trata-se do parágrafo precedente
que corresponde ao primeiro ponto).
Você logo descobrirá que existem dois, ou melhor, três ti
pos de autores:
- Os que têm um plano, e o anunciam: é a minoria (muito
apreciada). E acabamos de ver que é preciso distinguir
ainda: os que o anunciam de imediato, desde o ponto de
partida (é o ideal do ponto de vista do rigor e da econo
mia de tempo, mas é perder em prazer estilístico o que
se ganha em eficácia: o útil contra o belo) e os que o
anunciam aos poucos ou posteriormente (o que faz per
der mais tempo).
- Os que têm um plano mas que não o anunciam. Cabe a
nós descobri-lo se quisermos compreender bem o pensa
mento do autor e não ficar nas impressões. Você encon
trará no capítulo VII um bom número de exercícios desti
nados a familiarizá-lo com esse gênero de prospecçào.
- Os que não têm plano e que não têm sequer a insolência
de anunciá-lo, e às vezes nem a consciência para se da
rem conta disso...
176
Exercícios
P r im e ir o t i p o d e e x e r c í c io s : d e t e r m in a r a s d iv is õ e s
Exemplo /
• Leitura do texto
“As crianças de creche têm duas personalidades: a persona
lidade de objeto de sociedade, e a personalidade de um sujeito
que fica em pane quando os pais resolvem colocá-las na creche
sem tê-las prevenido, sem dizer-lhes o quanto vão ficar tristes
por colocá-las na creche, mas que isso é necessário. E, sobretu
do, quando as mães não abraçam seu filho ao chegarem à cre
che para buscá-lo.”
(Françoise DOLTO, Toiit est langage, “Livre de poche” ns 6613,
Paris, Vertiges du Nord/Carrère, 1987, pp. 97-8.)
• Análise do texto
- A divisão distingue as partes no interior de um todo. Que
todo é esse? Trata-se da personalidade da criança que é
colocada na creche.
- A divisão é clara: personalidade de objeto de sociedade,
e personalidade de sujeito (de indivíduo, independente-
177
mente do pertencer social). E essa divisão permite à psi
canálise explicar as dificuldades (por exemplo, as insô
nias) das crianças postas na creche.
- Natureza da divisão:
Não se trata da divisão de um gênero em suas espécies
(pois é a mesma criança que apresenta essas duas personalida
des), nem de um todo em suas partes (pois a criança inteira está
presente nesses dois tipos de personalidade); trata-se da divisão
de um todo em suas partes virtuais (a criança está mais ou me
nos presente, dinâmica, nessas duas personalidades).
Exemplo II
• Leitura do texto
“A justiça particular ordena-se a uma pessoa privada, que
mantém com a sociedade uma relação comparável à da parte com
o todo. Ora, uma paite comporta uma dupla relação: primeiro a de
parte a parte, à qual corresponde na sociedade a relação de indiví
duo a indivíduo. É essa ordem de relação que a justiça comutativa
dirige, ela que tem por objeto as trocas mútuas entre duas pessoas.
Entre o todo e as partes considera-se uma outra ordem, à
qual se assemelha a ordem do que é comum aos indivíduos. Essa
ordem é a que dirige a justiça distributiva, chamada a distribuir
proporcionalmente o bem comum da sociedade. Há portanto duas
espécies de justiça, uma distributiva, outra comutativa.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 6l, a. 1.)
• Análise do texto
- O todo que é dividido: é evidentemente a justiça.
- Divisão: a justiça se divide em justiça distributiva e comu
tativa.
- Natureza da divisão: é a distinção de um gênero em suas
espécies.
Exemplo III
• Leitura do texto
Este texto divertido é tirado do romance do lingüista Um-
berto Eco. Não podemos citá-lo por inteiro em virtude de sua
178
extensão. Remetemos à sua leitura para os detalhes, sobretudo
por conter uma série de ocasiões para nos exercitarmos na práti
ca do raciocínio (errôneo).
Um dos heróis, Belbo Casaubon, declara: “No mundo há os
cretinos, os imbecis, os estúpidos e os loucos.” Ele precisa: “Ca
da um de nós, de vez em quando, é cretino, imbecil, estúpido
ou louco.”
“Espero que você não tenha levado a sério a teoria. Não
estou pensando em colocar o universo em ordem. Estou falando
do que é um louco para uma editora.”
Depois ele tenta justificar sua divisão, mas de maneira não
dicotômica. Esta será sua tarefa.
“O cretino nem sequer fala, ele baba, é espástico. Crava
seu sorvete na testa, por falta de coordenação. (...) Ele não nos
interessa, você o reconhece de imediato, e ele não freqüenta
editoras. (...)
Ser imbecil é mais complexo. É um comportamento social.
Imbecil é aquele que fala sempre fora de hora. (...) em termos
comuns, é aquele que comete gafes, que pede notícias de sua
encantadora esposa ao sujeito que acaba de ser abandonado pela
mulher. (...)
O estúpido não se engana em seu comportamento. Enga
na-se em seu raciocínio. É aquele que diz que (...) todos os
grandes símios antropomorfos descendem de formas de vida in
feriores, os homens descendem de formas de vida inferiores, lo
go todos os homens são grandes símios antropomorfos. (...) O
estúpido é mais insidioso. O imbecil, a gente reconhece de
imediato (sem falar do cretino), ao passo que o estúpido racioci
na quase como você e eu, salvo uma diferença infinitesimal. Ele
é um mestre dos paralogismos.” Segue-se toda uma série de
exemplos divertidos.
“O louco, a gente reconhece de imediato. É um estúpido
que não conhece os truques. O estúpido procura demonstrar
sua tese, sua lógica é extravagante, mas ele tem uma. O louco,
ao contrário, não se preocupa em ter uma lógica, ele procede
por curtos-circuitos. (...) O louco tem uma idéia fixa, e tudo o
que descobre lhe serve para confirmá-la.” E ele dará o exemplo
do esoterismo, do interesse pelos Templários.
(Umberto ECO, trechos de Le pendule de Foucault, Paris,
Grasset, 1990, cap. X, pp. 70-6.)
179
• Conselhos de trabalho
O texto é um pouco longo e difícil. Para isso, pode ser útil
proceder em duas etapas:
- Primeiro, assinale os índices de divisão. Descubra as divi
sões dicotômicas. Siga o texto e busque uma divisão que
vale para o membro anterior e para todos os membros
posteriores. Por exemplo, no início do texto, procure um
critério de divisão que vale para o cretino, de um lado, e
para o imbecil, o estúpido e o louco, de outro. Se isso
lhe parecer difícil, pode ser mais astucioso começar pelo
fim. Recapitule e veja se suas divisões são coerentes.
- Então você poderá justificar sua divisão e aplicar-lhe os
critérios mencionados. E poderá também perguntar-se de
que tipo de divisão se trata.
• Análise do texto
- Em primeiro lugar, qual é o gênero? Não é a humanidade
pura e simplesmente. Em todo caso, é a humanidade con
siderada de um certo ângulo.
Casaubon fala “do que é um louco para uma editora”; ele
não distingue os diferentes tipos de homem que existem no uni
verso.
- As divisões:
Os critérios de divisão dicotômica utilizados são os seguin
tes: sociável ou não, loquaz ou não, inconveniente ou não, que
o editor reconhece de imediato ou não, que comete paralogis
mos ou não, que é lógico ou não.
Donde a árvore seguinte que segue a ordem do texto:
- O que nem sequer fala e é (portanto) insociável: o cretino.
- O que fala e é (portanto) sociável:
o inconveniente (que se reconhece de imediato): o imbecil,
o não-inconveniente (que não se reconhece de imediato):
- Que raciocina e comete erros involuntários (paralogis
mos): o estúpido,
- Que não raciocina, não tem lógica (pois procede por cur
tos-circuitos, guiado por uma idéia fixa): o louco.
Assim, ao cabo de suas divisões, Casaubon chega à defini
ção do que é um louco.
- Natureza da divisão:
180
Ela é análoga à de um gênero em suas espécies, embora a
humanidade não seja propriamente um gênero.
Exemplo IV
• Leitura do texto
Santo Tomás vai tentar explicar a distinção das três virtudes
teologais - fé, esperança e caridade -, distinção que é um dado
das Escrituras muito certo. Por que três e não duas ou quatro?
“As virtudes teologais ordenam o homem à beatitude so
brenatural (...). Ora, isso é feito de duas maneiras: por meio da
inteligência (...) e pela retidão da vontade.” Mas “foi preciso
que a esses dois pontos algo fosse sobrenaturalmente acres
centado ao homem para ordená-lo a seu fim sobrenatural. Em
primeiro lugar, no que se refere à inteligência, certos princípios
sobrenaturais são acrescentados ao homem, princípios esses
captados numa luz divina, e é a questão do crer, sobre a qual
incide a fé. A seguir, a vontade é ordenada para o fim sobrena
tural, e quanto ao movimento de intenção que tende para esse
fim como para uma coisa possível de obter - e é a questão da
esperança e quanto a uma certa união espiritual pela qual a
vontade é de certo modo transformada nesse fim, o que se faz
pela caridade.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 62, a. 3.)
• Análise do texto
- O gênero, o ponto de partida, é a virtude teologal, isto é,
a virtude que tem Deus por termo (e por causa).
- Divisão: seu princípio se baseia nas diferentes faculdades
e operações do homem. Ora, há três atos do espírito do
homem (conhecer, esperar e amar) e esses três atos po
dem ser unidos a Deus.
- Natureza da distinção: é a divisão do gênero em suas es
pécies. Pois cada uma das virtudes comprova claramente
a definição da virtude teologal.
181
Seg u n d o t ip o d e e x e r c íc io s
Em filosofia
- As dez categorias de Aristóteles: substância, quantidade,
qualidade, relação, ação, paixão, tempo, lugar, situação,
posse (cf., por exemplo, Santo Tomás de AQUINO, Co
mentário da Física, Liv. 3, 1. 5, nQ322, Turim, Ed. Mari-
tetti, 1965, pp. 158-9; e Comentário da Metafísica, Liv. 5,
1. 9, n2 891892־, mesmo editor, 1964, pp. 2389 ;־a dis
tribuição é aqui ligeiramente diferente).
- As quatro causas: material, formal, eficiente, final (sobre
a qual falaremos um pouco no próximo capítulo).
Em teologia
Colocaremos entre parênteses os lugares onde Santo To
más, grande especialista da divisão, dá uma justificação da re
partição dicotômica que ele tenta da enumeração (outras podem
ser encontradas). Eis aqui alguns ricos exemplos entre muitos:
- Os sete dons do espírito Santo: sabedoria, inteligência,
ciência, conselho, piedade, força, temor (cf. Is 11, 2-3;
Suma teológica, I-II, q. 68, a 4);
- As sete beatitudes (cf. Mt 5, 312 ;־Suma teológica, I-II, q.
69, a. 3);
- Os sete pedidos do Pai Nosso (cf. Mt 6, 913 ;־Suma teo
lógica, II-II, q. 83, a. 9);
- Os sete pecados capitais: a glória vã (o orgulho), o ciú
me, a cólera, a acídia (ou a tristeza espiritual), a avareza,
a gula e a luxúria (cf. Suma teológica, I-II, q. 84, a. 4).
182
C a p ít u l o V
A FINIÇÃO DA DEFINIÇÃO
183
concede à ciência a capacidade de poder circunscrever com ri
gor o real (por exemplo, a biologia tentará nos dizer o que é
uma bactéria, e um astrônomo, o que é uma estrela dupla). Mas
será negado à filosofia o poder de definir os conceitos que lhe
são próprios, para fazer deles matéria de opinião pessoal. É as
sim que se dirá que não existe definição do amor, da vida, do
homem, do tempo etc., mas que cada um tem a sua.
Essa prevenção com respeito à definição deve-se primei
ramente ao fato de que as realidades que a filosofia busca defi
nir são acessíveis a todos e que cada um pode, certamente
com maior ou menor dificuldade e inabilidade, dizer a nature
za dessa realidade, enquanto o real apreendido pela ciência
não é fácil de reconhecer. Por exemplo, cada um tem sua idéia
sobre a liberdade e percebe ao menos confusamente que ela
faz parte da dignidade do homem e comporta uma certa au
sência de coerção.
A seguir, aquilo de que a filosofia trata tem uma grande in
cidência na vida cotidiana, inclusive bem mais do que a ciência,
contrariamente a uma opinião que prevalece. Ora, quanto mais
uma questão nos for próxima e vital, no sentido próprio do ter
mo, tanto mais a inteligência concentrará seus esforços nela,
mesmo sem dar-se conta disso. Por exemplo, enquanto a desco
berta da existência de novas espécies de escaravelhos quase não
tem influência sobre nossa vida cotidiana e portanto não engen
dra muitas opiniões e reflexões no grande público, toda pessoa
tem sua opinião sobre a felicidade ou sobre a família.
Enfim, essa tese baseia-se com freqüência em postulados fi
losóficos, também eles mais ou menos conscientizados. Por
exemplo, quem diz que "definir o movimento é congelá-lo ou é
tentar mostrar o dinâmico pelo estático de uma fotografia”, ba-
seia-se numa filosofia de clima bergsoniano que teria tudo a ga
nhar se fossem analisadas as críticas pertinentes que foram feitas
ao grande filósofo francês. Do mesmo modo, quem disser que o
homem é de uma riqueza quase infinita, que nenhum conceito
em sua finitude congênita é capaz de encerrá-lo, é tributário de
uma visão empirista da realidade.
184
Ciências para todos ou filosofia para todos?
185
O QUE É A DEFINIÇÃO?
186
A seguir, a palavra se relaciona à idéia
de três maneiras diferentes
“Um termo é unívoco quando pode ser atribuído a diversos
sujeitos segundo uma ‘razão’ idêntica, como diz Santo Tomás,
ou seja, no mesmo sentido, se for uma palavra, ou com uma
compreensão idêntica, se for um conceito. Por exemplo, o nome
de animal atribuído ao boi e ao cavalo.
Um termo é equívoco quando pode ser atribuído a diversos
sujeitos em sentidos inteiramente diferentes; por exemplo, o no
me de cão atribuído ao animal e à constelação. Tal termo só po
de ser um termo oral, uma dessas palavras que chamamos homô
nimas em gramática, e que têm vários sentidos; pois um conceito
não pode apresentar à inteligência essências diferentes.” Outros
exemplos de termos equívocos: render, coral, importar.
“Um termo é análogo quando se aplica a diversos sujeitos
num sentido que não é nem absolutamente idêntico, nem abso
lutamente diferente. O termo análogo é portanto intermediário
entre o unívoco e o equívoco. E como isso é possível? Quando
coisas essencialmente diferentes têm entre si uma certa relação."0
187
Uma colheita inesperada
188
culex quer dizer: mosquito, em latim) pipiem (é a diferença: pi
pieris quer dizer: que pica, em latim).
O filósofo grego Temisto diz que o trabalho do espírito
que leva a uma definição é comparável ao de um escultor. Este
desbasta pouco a pouco seu mármore e dele faz “sair”, por as
sim dizer, sua escultura, cada vez mais precisamente. Assim tam
bém, a inteligência vai retirando aos poucos do mais universal,
que é o gênero, aquilo que será a essência que designa a dife
rença.
A etimologia de definição sugere uma outra analogia, a do
agrimensor-geômetra. O termo latino definire significa, com efei
to, delimitar (subentendido um campo). Ora, para delimitar um
terreno, é preciso primeiro indicar em que zona ele se encontra,
depois diferenciá-lo dos terrenos vizinhos. Assim também, para
definir um conceito, deve-se primeiro dar o gênero e a seguir
estabelecer sua diferença.
189
profunda dessa definição: com efeito, a inteligência consegue
apreender essa essência (ou espécie) particular que é a essência
humana a partir do que é mais universal. Ora, o que é mais uni
versal, o que significa homem de maneira comum? É o animal.
Assim a espécie humana classifica-se no gênero animal. Por ou
tro lado, o gênero animal pode ser distinguido, o que permitirá
chegar a um conhecimento mais distinto, e a diferença que pos
sibilita dividir o gênero animal mais profundamente é a capaci
dade de raciocinar. Eis por que o homem define-se como animal
dotado de razão. A definição por gênero e espécie reproduz em
seu arcabouço lógico a dinâmica da inteligência em busca de
conhecimento distinto.
Aliás, é assim que procedemos espontaneamente quando
tentamos nos dizer ou dizer a alguém o que é uma coisa. Por
exemplo, quero definir o que é uma habanera. Direi primeiro
que é uma dança (coloco-a numa categoria mais universal, isto é,
num gênero), depois que é espanhola, que provém de Havana,
qual o seu ritmo etc., características que permitem chegar à dife
rença e designar o que é absolutamente próprio a essa dança.
Enfim, distinguem-se gênero próximo e gênero distante. O
gênero próximo é imediatamente mais universal que a diferença
e que o termo definido, o gênero distante é mais universal em
um grau. Por exemplo, ser vivo é o gênero distante de homem,
enquanto animal é o gênero próximo. O dicionário Petit Robert
define “halle” como um vasto local fgênero distante] coberto !gê
nero próximo] onde funciona um mercado [diferença].”
190
aquilo que chamamos hoje seu “conceito”. A causa eficiente: o
construtor. A causa final: o uso rodoviário.
A causa, com efeito, deve ser entendida num sentido bem
mais amplo que o que lhe damos habitualmente, a saber, o de
causa motora, eficiente. Na verdade, é causa aquilo de que uma
coisa depende tanto em seu ser quanto em seu devir: por exem
plo, nosso corpo (que é causa material) é efetivamente causa do
que somos. Essas quatro causas, agrupando tudo aquilo de que
uma coisa depende, são capazes de dizer o que é essa coisa e,
portanto, de defini-la. Além disso, essa definição será muito
completa, já que a perspectiva das quatro causas é totalizante e
exaustiva.
O etólogo Tinbergen dá a seguinte definição do instinto:
“O instinto é um mecanismo nervoso organizado hierarquica
mente, sensível a certos influxos iniciadores, disparadores ou
condutores de origem tanto interna quanto externa, e que res
pondem a esses influxos por movimentos coordenados que con
tribuem para a conservação do indivíduo e da espécie.”'־
Ora, examinando de perto, você encontra aí as quatro cau
sas: material (“mecanismos nervosos”), formal (“organizado hie
rarquicamente...”), eficiente (“influxos de origem tanto interna
quanto externa...”) e final (“que contribuem para a conservação
do indivíduo e da espécie”).
Enfim, não é raro que se defina a partir de uma só das cau
sas. Por exemplo, segundo a causa única:
- material: “O que é isso, perguntam, mostrando uma pe
dra? - É bauxita.”
- formal: “O que é isso, perguntam, mostrando uma figura
matemática? - É um pentágono regular.”
- eficiente: “O que é isso, perguntam, mostrando um qua
dro? - É um Rembrandt.”
- final: “O que é isso, pergunta uma criança, mostrando
um compasso? - Isso serve para traçar círculos.”
191
parte de um mais universal (os elementos da definição situam-se
na maioria das vezes no mesmo nível de universalidade que o
definido, constatação a ser corrigida pelo que vai ser dito em se
guida), tem a vantagem de ser mais completo e de dar uma no
ção mais exaustiva do ser a conhecer. Como vemos, esses dois
modos se completam mais do que se opõem.
Mas essa diversidade não exclui uma sobreposição parcial.
Sem querer entrar demasiado no detalhe, notemos que, muitas
vezes, a causa material comporta-se como um gênero (isto é, co
mo um mais universal) e a causa formal como uma diferença
(como uma noção mais particular, mais determinada). O caldei
rão, diz o Larousse, é um “grande recipente metálico no qual se
aquece, cozinha etc.” Recipiente é mais a forma e a diferença,
enquanto metálico é a matéria e o gênero. Mas isso não é obri
gatório. O lingüista Claude Hagège define a escrita do seguinte
modo: “técnica de re-presentaçâo da palavra por um traço dei
xado num suporte conservável”5. Essa definição mistura os dois
tipos de definição que acabamos de distinguir. Com efeito, “téc
nica” é o gênero distante e “re-presentaçâo da palavra” o gênero
próximo, mas também a causa final; “traço” é ao mesmo tempo
a diferença específica e a causa eficiente; “suporte conservável”
é a causa material.
Do mesmo modo, se defino um pedal como “um órgão de
transmissão acionado pelo pé” (definição do Larousse), a dife
rença (“acionado pelo pé”) é também causa eficiente.
192
descreve seu objeto como tendo três características: tamanho
muito pequeno (inferior ao décimo de mícron), presença de um
único tipo de ácido nucléico (DNA ou RNA) e parasita obrigató
rio. Ela não ousa sequer classificá-lo num gênero vivo ou inerte
(já que é parasita obrigatório, enquanto o ser vivo é tido como
autônomo).
Os limites da definição
Nem tudo é definível. A definição experimenta seus limites
nas duas extremidades da escala da universalidade.
193
Um outro monstro do bestiário da arte de pensar:
os predicamentos.
194
observa J. W. Dunne, por mais que um cego de nascença se
aprofunde no conhecimento da física eletromagnética (particu
larmente das ondas visíveis), ele jamais saberá o que é a “ver
melhidão do vermelho”: “A vermelhidão pode muito bem não
ser uma coisa, mas não deixa de ser um fato. Olhe a seu re
dor...” Ora, “a linguagem da física, em razão de uma falta fun
damental de adaptação, é incapaz de fornecer uma definição
disso”ft.
Essa é toda a verdade da objeção ouvida classicamente:
“Como dizer o que é o amor? É algo próprio a cada um, algo ine
fável. Ninguém pode sentir o que sinto.” De fato. E não se trata
justamente de dizer o que é o amor de Virgínia por Paulo, mas
de dizer o que é o amor em geral, pois, se não houvesse uma
certa natureza comum do amor, não se poderia sequer nomeá-la.
Contudo, para exprimir o amor que alguém sente por al
guém, a arte e a literatura vêm em socorro da filosofia e das
ciências.
Além disso, não é raro que seja preciso enumerar, o que
mal chega a ser uma definição: “Um antepassado é teu pai, tua
mãe, ou o pai de teu pai, o pai de tua mãe etc.”
O “caso” de Deus deve ser colocado à parte. Deus não é
apenas indefinível por ser indivíduo, porém, mais profundamen
te, por ser de essência infinita; ora, todo conceito, toda repre
sentação é finita, já que o espírito que concebe é limitado; para
um cristão, apenas o Verbo de Deus é capaz de dizer Deus ade
quadamente, e portanto revelá-lo, porque ele é o próprio Deus
e infinito (sobre esse ponto difícil, ver Santo Tomás de Aquino,
Suma teológica, I, q. 12, especialmente a. 1 a 7).
Como d e f in ir ?
195
Os critérios da definição correta: como definir bem
A exemplo da divisão, uma definição correta requer critérios
rigorosos. A definição deve ser mais clara que o que é definido,
ser positiva e breve. Vejamos essas diferentes características que
são ao mesmo tempo negativas e positivas:
Critérios positivos
196
nação (gênero distante) de um corpo solúvel (gênero próximo)
por meio de um tratamento pela água (diferença e causa eficien
te)”. Mas isso é um caso raro, quando não a exceção. Com fre
qüência temos de nos contentar com definições descritivas.
Critérios negativos
Há dois principais:
- A definição não deve retomar o termo a definir.
Eis um contra-exemplo de definição. Ela contém, com efei
to, o definido: “Lembremos o que os físicos chamam um sistema
linear: é um sistema cujas equações de evolução são lineares em
relação a todas as variáveis, os efeitos sendo então proporcio
nais às causas.”10
- A definição não deve ser negativa.
Dito de outro modo, a definição deve, tanto quanto possí
vel, delimitar afirmativamente a realidade a definir.
Um contra-exemplo é dado pelo Larousse, que define o ve
getarianismo da seguinte maneira: “É um sistema de alimentação
que suprime as carnes e mesmo todos os produtos de origem
animal (vegetalismo).” Dora Vallier começa seu livro sobre a arte
abstrata da seguinte maneira: “A arte abstrata nasce quase com o
século. Primeiro na pintura, depois na escultura, aparecem for-
197
mas que não contêm a imagem do m undo exterior.’’" Ela não
propõe uma definição formal; esta é dada por acréscimo negati
vo. Mas trata-se apenas de uma primeira abordagem que procu
ra delimitar o terreno.
Uma objeção, com o devido respeito! Se a realidade desig
nada pelo term o for ela própria de essência negativa (p o r
exemplo, a sombra, que é ausência de luz, a cegueira, que é
privação da vista, etc.), será que não convém defini-la negativa
mente? Já deparam os com essa dificuldade. Ela é freqüente; as
sim vale a pena insistir nela. A objeção confunde, na verdade, a
ordem da razão e a ordem da realidade: uma coisa são os re
quisitos da inteligência, outra a ordem do real. Isso não quer di
zer que nosso discurso não alcance sistematicamente esta (seria
cair no idealismo), mas apenas que a inteligência não tem aces
so imediato ao núcleo do real, devendo aceitar sua encarnação
e a longa peregrinação da razão em busca do sentido. A liber
dade, a inteligência são, em si, noções simples, mas como é di
fícil defini-las! Lembre-se da célebre frase de Santo Agostinho
ao dissertar sobre o tempo: “O que é, pois, o tempo? Se nin
guém me perguntar, eu sei; mas, se me perguntarem e eu qui
ser explicar, não sei mais.”112*
Apliquemos o que acabamos de dizer ao caso da definição
dos termos de essência privativa ou negativa. E perfeitamente
certo que a sombra não tem realidade positiva, como tam pouco
o nada. Não obstante, a definição exprimirá isso positivamente:
a surdez é a ausência de audição, de capacidade de ouvir; o di
cionário não dirá: a surdez não é... E o fará em razão das exi
gências de nossa inteligência: com efeito, se eu definisse em ter
mos negativos, não saberia afinal o que é a coisa, permaneceria
na dúvida. Imaginemos que eu diga: “Ser cego é não ver.” Isso
parece correto, mas é uma ilusão, pois, ignorando o sentido da
palavra, posso ainda perguntar-me: “Será então a qualidade da
quele que ouve bem?” Dizer o que não é tal coisa é apenas afas
tar um sentido, não é precisar o que ela é.
11. Dora VALLIER, L'arl a bst m it < col. “Pluriel”, Paris, Librairie G en erale
F1an 9ai.se, 1980, p. 5.
12. Les confessions, Liv. XI, cap . XV, Paris, G arnier-F lam m arion, 1964,
p. 264.
198
Austin define assim a filosofia: “Creio que a única forma de
definir o objeto da filosofia é dizer que ela se ocupa de todos os
resíduos, de todos os problemas que permanecem ainda insolú
veis, depois de experimentados todos os métodos praticados em
outra parte.”13 Se o conteúdo é negativo (a filosofia é um não-...),
o enunciado é positivo e portanto correto do ponto de vista da
forma, o que deixa intacta a questão do fundo...
199
po a flexibilidade de pensamento. Por essas duas razões, em par
ticular, o emprego da etimologia é dos mais preciosos.
Mas a utilização da etimologia está sujeita a uma dupla con
dição. Por um lado, é preciso certificar-se de sua verdade. Sabe-
se o quanto Paul Claudel gostava de ver na palavra francesa con-
naitre (conhecer) um co-naitre (um nascer com, junto), mas, in
felizmente, trata-se de uma pseudo-etimologia. Do mesmo modo,
sexo não vem do sugestivo verbo latino secare, cortar. Ora, mui
tas origens semânticas mergulham na noite dos tempos, e mesmo
o recurso ao sânscrito nem sempre é esclarecedor.
200
For outro lado, o sentido atual não é obrigatoriamente o
sentido primitivo. As palavras têm uma vida, portanto uma evolu
ção: a dos homens e dos pensamentos. Os escolásticos já distin
guiam o “id a quo imponitur nomen” (a etimologia, a origem da
palavra) e o “id ad quod imponitur nomen” (o sentido atual). Por
exemplo, “formidable” significava outrora “temível”, o que en
gendra o temor; agora, quer dizer “cujo tamanho, cuja força é
muito grande” (definição do Petit Robert). Do mesmo modo,
“genre[ ״gênero] vem de engendrar (encontramo-lo na palavra
muito próxima “gendre” [genro], o que conserva apenas uma re
lação distante com o sentido atual tornado muito abstrato.
Deplorar que as palavras mudem de sentido é coisa ou de
um tradicionalismo muito fixista, ou de um controle indevido da
ciência sobre todo o domínio do conhecimento. Com efeito, a
sistematização, a axiomatizaçâo, o caráter muito aguçado (no
sentido de não universal) do discurso científico explicam que os
termos unívocos (de um único sentido) nele prevaleçam; como
as palavras são em geral de origem erudita, a leitura de sua eti
mologia torna sua significação transparente. Mas as ciências não
são a totalidade do saber. A maior parte dos termos do vocabu
lário corrente são análogos (com vários sentidos apresentando
uma sobreposição parcial), pois seu uso é freqüente e o sentido
das palavras varia com o uso que delas se faz, em função do
contexto cultural que é o nosso. Enfim, a inteligência tem como
que uma tendência natural para a univocidade, o que é uma fa
cilidade prejudicial à nossa clara leitura do real. Escutemos esta
observação apaixonante desse grande especialista dos costumes
intelectuais que era Maurice Dionne: a razão “está inclinada para
a univocidade, porque é muito mais fácil confundir do que dis
cernir. (...) quem tem a inteligência fraca é levado à confusão,
porque ele é incapaz de discernir suficientemente. E, se é leva
do à confusão, será inclinado para a univocidade”15.
201
Sobre o amor·. “O que chamo cristalização é a operação do espí
rito que tira de tudo o que se apresenta a descoberta de que o
objeto amado possui novas perfeições.”16 Mas o autor pode tam
bém não avisar. É o caso de Valéry Giscard d’Estaing em Démo-
cratie française. “Alguns julgaram encontrar uma resposta na
idéia de autogestão: ‘o coletivo dos trabalhadores’ elege e con
trola os dirigentes da empresa, ela mesma previamente naciona
lizada.”17 A definição explícita, embora não anunciada, é portan
to que a autogestão é a eleição e o controle da empresa (nacio
nalizada) pelos trabalhadores.
Suponhamos que o autor não diga explicitamente que defi
ne o conceito, mas o texto procura circunscrever seu sentido. É
preciso então iniciar a pesca, buscando sob que conceitos mais
universais ele situa seus termos. Mas isso só vale a pena se as
palavras utilizadas forem difíceis ou ambíguas.
202
E x e r c íc io s
Exemplo I
• Análise da definição
Trata-se claramente de uma definição pelas quatro causas:
-causa material: informação (ou sua emergência e circula
ção);
-causa formal: “ou ainda não confirmadas, ou...”;
- causa eficiente: o corpo social enquanto distinto das fon
tes oficiais;
-causa final: ela não é indicada na definição, pois parece
não existir (o rumor, com efeito, surge espontaneamente,
sem razão).
203
Exemplo II
• Análise da definição
Trata-se de urna definição por gênero e diferença:
- gênero distante: “grande renome”;
- gênero próximo: “difundido num público muito vasto”;
- diferença (que a causa eficiente dá aqui): “e que se deve
a méritos, ações ou obras julgadas notáveis”.
Exemplo III
• Análise da definição
Eis aqui uma definição que procede sobretudo por gênero
e diferença:
- o gênero: “conduta”,
- a diferença específica: “característica da espécie conside
rada”. E o autor desenvolve a diferença detalhando abun
dantemente a causa eficiente (mas sem dizer nada da
causa final do comportamento): “ligada à sua constituição
anatomofisiológica, às suas grandes funções...”
204
Exemplo IV
• Análise da definição
Trata-se de uma definição por gênero (“conjunto de estru
turas celulares e extracelulares”) e diferença (“especializadas em
vista de uma mesma função”), a diferença dando também a fina
lidade.
Identifique definições
Exemplo 1
• Leitura do texto
“A tristeza tem por objeto um mal pessoal. Ora, acontece
que o bem de outrem seja considerado como um mal pessoal.
Sob esse aspecto, o bem de outrem pode ser objeto de tristeza.
E isso de duas maneiras: ou nos entristece o bem de outrem
porque nos ameaça com algum dano; é o caso do homem que
se entristece com a elevação de seu inimigo, pois teme vir a so
frer com isso. Tal tristeza não é inveja: ela é antes um efeito do
temor, segundo Aristóteles. Ou então o bem de outrem é consi
derado como um mal pessoal porque tem como resultado dimi-
205
nuir nossa glória e nosso êxito próprios. É assim que a inveja se
entristece com o bem de outrem.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 36, a. 1.)
• Análise do texto
- o termo a definir: a inveja;
- o gênero: tristeza ligada ao bem de outrem;
- divisão do gênero: ou o bem de outrem atinge o bem
próprio; ou ele não o afeta, mas simplesmente diminui
nossa glória própria;
- donde, enfim, a definição da inveja: tristeza ligada ao
bem de outrem que diminui nossa glória própria.
Exemplo II
• Leitura do texto
“A arte do traçado é simplesmente a arte de desenhar tudo
o que o operário tem necessidade de ver representado grafica
mente para levar a cabo seu trabalho. O que ele tem necessida
de de ver representado: e não o desenho ideal que teria em si
valor próprio e já seria, por si mesmo, um êxito. Não é preciso
necessariamente ser bom desenhista para ser bom operário. Al
guns operários podem executar com perfeição uma obra, mes
mo difícil, sem o menor esquema. Entretanto, desde os tempos
mais remotos, a arte do traçado fez a superioridade dos Compa
nheiros. E, para poder dispensá-lo, é preciso, como se diz, ‘ter o
compasso no olho’.”
(Bernard de CASTERA, Le compagnonnage, Culture ouvrière,
“Que sais-je?” nQ1203, Paris, PUF, 1988, p. 75.)
• Análise do texto
Evidentemente, a definição é dada pela primeira frase. Mas
o interessante é a maneira como o autor procede para definir:
- ele parte do gênero desenho (ou arte de desenhar);
- subdivide-o em duas espécies: o desenho ideal que é um
fim em si mesmo; e o desenho útil, com a finalidade de
ver representada a obra a executar;
- donde a definição por gênero e diferença: “A arte do tra
çado é simplesmente a arte de desenhar [gênero] tudo o
206
que o operário tem necessidade de representar grafica
mente para levar a cabo seu trabalho [diferença].” A dife
rença inclui também a causa eficiente (o operário) e a
causa final.
• Estrutura do texto
- enunciado da definição (primeira frase);
- exposição da definição (segunda frase);
- conseqüência (terceira frase);
- dificuldade oposta à definição (quarta frase) e resposta
(quinta e sexta frases).
Exemplo III
• Leitura do texto
O Ensaio sobre a dádiva é provavelmente o artigo mais ori
ginal e mais fundamental do etnólogo Marcei Mauss (ele teve
uma profunda repercussão intelectual). Sua idéia fundamental é
que a troca reúne todos os aspectos da vida coletiva e que não
tem por objeto apenas bens e produtos.
“Nas economias e nos direitos que precederam os nossos,
jamais se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de
riquezas e de produtos nas transações feitas entre os indivíduos.
Primeiro, não são indivíduos, são coletividades que se compro
metem mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao
contrato são pessoas morais (...). Além do mais, o que eles tro
cam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis,
coisas úteis economicamente. São antes de tudo cortesias, festins,
ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras,
das quais o mercado não é senão um dos momentos, e nas quais
a circulação das riquezas é apenas um dos termos de um contra
to bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas presta
ções e essas contraprestações realizam-se de uma forma antes
voluntária, através de presentes, brindes, embora no fundo sejam
rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou públi
ca. Propusemos que isso fosse chamado o sistema das prestações
totais. O tipo mais puro dessas instituições nos parece ser repre
sentado pela aliança de duas fratrias [numa sociedade arcaica, é a
reunião de vários clãs] nas tribos australianas ou norte-america-
207
nas em geral, onde os ritos, os casamentos, a sucessão de bens,
os vínculos de direito e de interesse, quadros militares e sacerdo
tais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas meta
des da tribo. Por exemplo, os jogos são muito particularmente re
gidos por elas. Os Tlingit e os Haida, duas tribos do noroeste
americano, exprimem fortemente a natureza dessas práticas ao
dizerem que ‘as duas fratrias se mostram respeito’.”
“Mas nessas duas últimas tribos do noroeste americano e
em toda essa região, aparece uma forma típica, certamente, mas
evoluída e relativamente rara, dessas prestações totais. Propuse
mos chamá-la potlatcb, como fazem aliás os autores americanos
ao se servirem do nome cbinook que se tornou parte da lingua
gem corrente dos brancos e dos índios de Vancouver ao Alaska.
Potlatcb quer dizer essencialmente ‘alimentar’, ‘consumir’. Essas
tribos, muito ricas, que vivem nas ilhas ou na costa ou entre as
Rochosas e a costa, passam seu inverno numa perpétua festa:
banquetes, feiras e mercados, que são ao mesmo tempo a assem
bléia solene da tribo. Esta dispõe-se aí segundo suas confrarias
hierárquicas, suas sociedades secretas, freqüentemente confundi
das com as primeiras e com os clãs; e tudo, clãs, casamentos, ini
ciações, sessões de xamanismo e de culto dos grandes deuses,
dos totens ou dos antepassados coletivos ou individuais do clã,
tudo se mistura numa trama inextricável de ritos, de prestações
jurídicas e econômicas, de fixações de posições políticas na socie
dade dos homens, na tribo e nas confederações de tribos, e mes
mo internacionalmente. Mas o que é notável nessas tribos é o
princípio da rivalidade e do antagonismo que domina todas essas
práticas. Chega a haver batalhas, morte dos chefes e nobres que
se enfrentam nesses combates. Por outro lado, chega-se até à
destruição puramente suntuária das riquezas acumuladas a fim
de eclipsar o chefe rival e ao mesmo tempo sócio (...).
Propomos que seja reservado o nome potlatcb a esse tipo
de instituição que se poderia chamar, com menos perigo e mais
precisão, mas também de forma mais extensa: prestações totais
de tipo agonístico [agonístico significa em forma de combate].”
(Marcei MAUSS, “Essai sur le don. Forme et raison de 1’échange
dans les sociétés archaiques”, in L année sociologique, nova sé
rie, I, 1923-1924, retomado em Sociologie et antbropologie, Paris,
PUF, 3â ed., 1966, aqui pp. 1503 ·־Sublinhado no texto.)
208
• Análise do texto
Esse texto define o que é o potlatch. Para tanto, com um
grande rigor, Mauss fará distinções, indo do mais comum ao
mais específico.
- A primeira parte (cap. I) precisa o que é o sistema eco
nômico nas sociedades anteriores às nossas: é um siste
ma de prestação total. O gênero é portanto prestação e a
diferença é total.
Como Mauss estabelece a diferença? Ele considera a troca:
aquele que troca, aquilo que é trocado, e a modalidade da troca.
Ora, aquele que troca é ou um indivíduo, ou um grupo (o que é
mais total que o indivíduo); o que é trocado é ou somente bens,
ou também atos e pessoas (o que é mais total que os simples
bens materiais). Desses dois pontos de vista, a troca arcaica é
portanto total. Quanto à modalidade, a troca é obrigatória e não
livre e voluntária.
- A segunda parte (cap. 11) define a espécie particular de
prestação que é o potlatch. Para isso, Mauss divide o gê
nero das prestações totais próprias às sociedades arcaicas
em função da seguinte diferença: o caráter agonístico,
combativo ou não das trocas.
- Ele chega assim à definição última do potlatch·, prestações
[ou troca: é o gênero distante] totais [gênero próximo] de
tipo agonístico [diferença].
Exemplo IV
• Leitura do texto
“Não é um amor qualquer que domina a amizade, mas so
mente o amor acompanhado de benevolência, aquele que impli
ca que queremos o bem a quem amamos. Se, em vez de querer
mos o bem das realidades amadas, buscarmos para nós o que
elas têm de bom, (...) não será mais um amor de amizade, mas
um amor de cobiça (...).
Entretanto, a benevolência não é suficiente para constituir
a amizade; é preciso que também haja reciprocidade de amor,
pois um amigo é o amigo daquele que é por sua vez seu ami
go. Ora, tal benevolência mútua está fundada numa certa co
municação.
209
Portanto, já que há uma certa comunicação do homem
com Deus pelo fato de este nos tornar participantes de sua bea-
titude, é preciso que uma certa amizade se fundamente nessa
comunicação. É a respeito desta que São Paulo diz: ‘Ele é fiel, o
Deus por quem vós fostes chamados à comunhão de seu Fi
lho...’ (I Co 1, 9). É portanto evidente que a caridade é uma ami
zade do homem para com Deus.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 23, a. 1.)
• Análise do texto
- o termo a definir: a caridade; e, para defini-la, Santo To
más utilizará três diferentes divisões;
- o gênero: o amor;
- divisão do gênero: o amor divide-se em amor do outro
pelo outro e amor de cobiça; o amor do outro pelo outro
subdivide-se por sua vez em amor unilateral e amor recí
proco; este último divide-se enfim em amor entre um ho
mem e outro homem e amor entre homem e Deus;
- donde finalmente a definição da caridade: é uma amiza
de do homem para com Deus.
Exemplo V
Assim como a Sagrada Escritura oculta silogismos, ela tam
bém pode conter definições. Vamos dar um exemplo. Remete
mos ao texto de Hebreus 11, 1 (tradução da Vulgata), no qual,
juntamente com outros doutores da Igreja, Santo Tomás vê uma
definição não formalizada, mas precisa, da virtude teologal da fé
(cf., por exemplo, Suma teológica, II-II, q. 4, a. 1.). Leia esse ar
tigo que é um primor de rigor e clareza. Vamos dar um outro
exemplo.
• Leitura do texto
Leia atentamente o início da primeira epístola de São João:
“Nós vos anunciamos a vida eterna que estava junto ao Pai e
que se manifestou a nós: o que vimos e ouvimos, nós vos anun
ciamos, a fim de que também comungueis conosco; quanto à
nossa comunhão, ela é com nosso Pai e com seu Filho Jesus
Cristo.” (I João 1, 2 3 ־.)
É evidente que esse texto não tem o estilo sistemático de
um dicionário nem de um artigo de Santo Tomás. Além disso,
210
discernir nele uma definição não é esgotar todo o seu conteúdo.
Enfim, não nos permitiríamos julgar que essa passagem das Es
crituras contém uma definição se isso não nos tivesse sido inspi
rado pelo próprio Concílio Vaticano II.
Pergunte-se primeiro qual termo é definido, antes de for
malizar essa definição. De que tipo de definição se trata? Será
uma definição por gênero e diferença? A formulação sugere uma
outra pista.
• Resposta
Cf. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática sobre a Re
velação divina, Dei Verbum, 1965, ns 1. E a passagem de I Jó 1,
2-3 está no centro desse número introdutório. Cf. também o co
mentário sistemático que Henri de Lubac faz da citação da pas
sagem da primeira epístola de João em La Révélation divine,
“Traditions chrétiennes”, Paris, Cerf, 3a ed., 1983, pp. 2531־.
O texto da epístola de João dá os quatro elementos consti
tutivos da definição da Revelação divina:
- O objeto da Revelação: é a Vida eterna (que estava junto
ao Pai). Ora, para São João, a Vida é o mais radical dos
atributos de Deus. (Louis BOUYER, Le quatrième Evangi-
le, Paris-Tournai, Casterman, 1955, p. 48). Por isso, con
clui de Lubac, “o objeto da revelação divina, quer o cha
memos Dei Verbum ou Vita Aeterna, é portanto o pró
prio Deus” Cp. 25).
- O modo dessa Revelação: é a manifestação: e que se ma-
nijestou a nós. Mais precisamente, de que maneira? o que
vimos e ouvimos. Assim, explicita de Lubac, “o modo sob
o qual Deus se revela é portanto a manifestação dele
mesmo em Jesus Cristo” (p. 25).
- A transmissão da Revelação: nós vos anunciamos. E, para
João, o anúncio é um testemunho, aquele dos apóstolos
até as extremidades da terra e até o fim do mundo.
- Enfim, a finalidade da Revelação: essa finalidade é dupla:
próxima e distante. Próxima, é a comunhão estabelecida
entre os discípulos de Cristo; a conseqüência dessa trans
missão é uma primeira comunhão: a fim de que também
comungueis conosco. Mas essa comunhão, comenta de
Lubac, “essa primeira reunião da Igreja (...) aí ainda não
211
é senão o sinal de uma ‘comunhão’ melhor, que lhe dá
todo o seu sentido” (p. 29): quanto à nossa comunhão,
ela é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.
Essa definição se aproxima muito mais de uma definição
pelas quatro causas que de uma definição por gênero e diferen
ça específica. Com efeito, o objeto apresenta as causas formal e
material; o modo e a transmissão, a causa eficiente; e a finalida
de, a causa final.
212
C a p ít u l o V I
O PLENO DO PLANO
213
Tal afirmação depara com várias dificuldades. O que pro
ponho não será desumano? Eu disse apenas: cabe a nós saber o
que queremos, distrair-nos ou informar-nos.
Com muita freqüência, também, somos tentados a perma
necer nas idéias vagas e confusas. Na verdade, há uma tentação
de angelismo em querer dispensar do paciente trabalho de pla
nificação: seria bem mais simples se pudéssemos abarcar de saí
da e num relance o tema completo! Mas essa simplicidade está
no término do trabalho, não no ponto de partida, assim como a
simplicidade do gesto do dançarino é o fruto finalmente visível
de todo um invisível e encarniçado trabalho que desbasta,
abranda e domina, em suma, ordena o corpo e o gesto para co
locá-los a serviço do belo.
Mas tudo o que já estudamos, a descoberta da problemáti
ca e do ou dos raciocínios que a estabelecem, não é então sufi
ciente? Já não é uma ordenação?
É raro, porém, que os textos se apresentem sob essa forma
simples. Além disso, um texto, e com mais razão ainda um livro,
desenvolve, às vezes e mesmo com freqüência, várias teses (vá
rias idéias, como se costuma dizer).
Há uma razão principal, que nos é dada pela segunda lei
que mencionamos (cf. cap. I). Ela afirma que a inteligência pro
cede do mais universal ao menos universal, é o que se chama a
ordem de determinação. Por exemplo, numa exposição, começa
remos por tratar do que é comum antes de falar do que é pró
prio etc. Ora, a ordem de demonstração não procede da mesma
maneira, pois se situa num mesmo plano de clareza, de determi
nação: ela é homogênea. Mas a descoberta da tese e dos raciocí
nios que a estabelecem depende da ordem da demonstração. E
assim a ordem de demonstração (a determinação da tese e de suas
provas) situa-se no interior da ordem de determinação, o que sig
nifica concretamente que é preciso começar por estabelecer a
primeira quando lemos um texto. Os exemplos e conselhos con
cretos dados a seguir esclarecerão nosso propósito.
O QUE É A ORDENAÇÃO?
214
plano tem limites que é preciso conhecer, sob pena cie nos tor
narmos um bomo informaticus que gira sobre si mesmo e de
matarmos o bomo rationalis que se volta para a realidade.
215
Exemplo
Juntamos à leitura do texto, entre colchetes, sua ordem de
determinação (que é portanto apenas um aspecto de seu arca
bouço lógico). O célebre pedagogo La Garanderie expõe uma
de suas descobertas mais fundamentais e mais originais: o gesto
mental constitutivo, segundo ele, da memorização. Todo o capí
tulo orbita em torno da tese; extraímos suas passagens principais
para mostrar de que maneira seu estatuto lógico inclui-se numa
das categorias que acabam de ser distinguidas.
[- Tese:]
“Por mais paradoxal que possa parecer, o gesto mental pelo
qual se deve memorizar consiste num projeto de manter ã dis
posição do seu futuro aquilo que se está querendo obter. Disso
resulta que o lugar de conservação das lembranças não está
nem no cérebro propriamente dito, nem no que chamaríamos
psicologicamente a memória, mas no imaginário do futuro. (...)”
[- Conseqüência da tese:]
(Memória e imaginação não são duas funções da vida psí
quica que se excluem como o passado e o futuro. A partir do
momento em que nos preocupamos em observar o segredo do
gesto mental adaptado a seu fim, isto é, a partir do momento em
que, em vez de permanecermos psicólogos, nos queremos pe
dagogos, percebemos o apelo mútuo que as funções psíquicas
se dirigem, o apoio que elas devem fornecer uma à outra
216
pio pessoal: um arquiteto me fizera visitar a igreja Saint-Louis cie
Brest, que acabava cie ser reconstruída segundo seus planos. Ele
me dera detalhes sobre as relações entre o material utilizado (o
granito amarelo) e os efeitos luminosos etc. Ao escutá-lo, eu ha
via pensado num arqueólogo que dava esta definição: ‘Um mo
numento é belo pelas ruínas que promete.’ Propus-me falar-lhe
desse encontro e comunicar-lhe as explicações do arquiteto. Uns
meses mais tarde, durante um jantar, falava-se de arquitetura e
tive vontade de mencionar essa visita à igreja de Brest. Mas me
foi impossível lembrá-la. Eu tinha claramente a lembrança de
uma certa visita a... Mas nada além disso. Então tive a idéia de
mergulhar num passado que estava como que perdido, dirigi
meu espírito à pessoa para a qual gostaria de ter falado dessa vi
sita... Prontamente a imagem de meu arqueólogo foi evocada e
com ela a igreja de Saint-Louis de Brest... Donde esta lei psico-
pedagógica, que diz respeito à economia mental: a caixa-forte
do futuro é o melhor lugar para conservar lembranças que se
quer recuperar.”
217
[- Objeção:]
“Uma objeção, que o bom senso parece inspirar, não deixa
de vir se opor a essa teoria: é justamente o fato de que faço o
projeto cie reter que esqueço, e é o que me prometo esquecer
que me volta incessantemente à memória.
Essa objeção reforça nosso ponto de vista.
Com efeito, se eu tiver apenas o projeto de reter; sem ins
crever em meu futuro o conteúdo e a forma desse ‘a reter’, é
perfeitamente normal que não me lembre dele. O projeto de re
ter é, em suma, um gesto mental contraditório: está voltado, en
quanto projeto, para o futuro, e, enquanto exigência de reter,
para o passado. Sendo assim, compreende-se que, por não ter
inscrito o ‘a reter’ no próprio futuro, ele não faça parte desse fu
turo. Está ligado a ele apenas indiretamente. No limite, vamos
nos lembrar de alguma coisa que conviria lembrar sem que pos
samos dizer o quê. Inversamente, o que me prometo esquecer
está como que inscrito em meu futuro. (...)”
f- Conseqüência (prática):]
“Pensamos que a análise que estamos fazendo esclarece
um conselho pedagógico: diz-se em geral que é bom estudar ou
ler sua lição na véspera e revê-la de manhã. Precisemos que a
causa fundamental da eficácia desse procedimento permaneceu
na sombra. De fato, explicavam-no por um trabalho do incons
ciente que, durante a noite, teria continuado o consciente da
véspera. Pensamos que é o projeto de retomar a lição no dia se
guinte que já situava seu conteúdo no futuro e, por esse motivo,
assegurava sua conservação.”1
218
O texto apresenta-se como uma árvore cujos ramos são as
ramificações do plano e os frutos ou as folhas são as demons
trações.
Obviamente, como tornaremos a ver daqui a pouco, sendo
o plano uma divisão do texto, e portanto uma distribuição efe
tuada de maneira lógica, um bom plano respeitará as regras de
divisão de que falamos acima.
• Leitura do texto
Este texto foi escrito por um dos especialistas internacionais
em cancerologia: “Os riscos do charuto e do cachimbo, embora
consideráveis, são nitidamente menores que os do cigarro: inala-
se muito menos a fumaça do cachimbo, que é muito acre, que a
do cigarro. Entretanto, entre os grandes fumantes de cigarro que,
preocupados com a saúde, mudam para o charuto, a necessidade
de nicotina faz com que esses grandes intoxicados venham a ina
lar a fumaça do charuto, sem mesmo se darem conta disso. Nesse
caso, o charuto pode ser tão tóxico, ou até mais, que o cigarro.
O modo de fumar é muito importante. O risco é maior se a
fumaça for inalada, se a ponta do cigarro for conservada na bo
ca entre duas tragadas e se o cigarro for fumado até o fim, pois
as últimas tragadas são as mais tóxicas.
O uso de um filtro reduz o risco, o que explica que 70%
dos cigarros vendidos atualmente na França o possuam, contra
92% nos Estados Unidos.”2
• Análise do texto
Esse texto não tem uma única problemática, o que não sig
nifica que seja uma pura rapsódia, uma justaposição em mosaico
de pensamentos díspares. Pelo contrário, pode-se determinar o
tema de que o texto fala: muito precisamente, ele fala do risco
cancerígeno do hábito de fumar; mas ele não procura demons
trar a existência desse risco. Na verdade, o tema comporta-se co
mo um todo que o autor (implicitamente) irá dividir segundo
uma ordem de determinação:
- risco ligado ao que se fuma (§ 1);
219
- risco ligado à maneira como se fuma: inalação da fumaça
(§ 2), presença de um filtro (§ 3)·
Além disso, cada um desses parágrafos comporta também
uma ordem: o § 2 divide-se também segundo uma ordem que é
de determinação (o professor Tubiana distingue no interior do
gênero “inalação da fumaça”); em contrapartida, o § 1 segue
mais uma ordem de demonstração. Assim, por que o cachimbo
apresenta menos riscos? O autor responde por um entimema:
não se inala uma fumaça acre; ora, a fumaça do cachimbo é
acre. Ele buscou portanto demonstrar.
□ A literatura de distração
Leiamos o começo de Silmarillion de J. R. R. Tolkien (que,
em particular, embasa toda a mitologia - mais henoteísta que
monoteísta - do Senhor dos Anéis)■. “Houve Eru, o Primeiro, que
em Arda chama-se Iluvatar; ele criou primeiro os Ainur, os aben
çoados, que ele engendrou com seu pensamento, e estes existi
ram junto com ele antes que alguma outra coisa fosse criada. E
ele lhes falou, lhes propôs temas musicais; eles cantaram para
ele, e ele ficou feliz.”3
Qualquer planificação faria a poesia do texto escapar ou o
reduziria à sua mera inteligibilidade conceituai. Nem falemos de
uma poesia...
220
□ A história
- O plano, a ordenação, jamais é inútil. E isto mesmo em
relação a um puro relato de acontecimentos; pois, embo
ra correlacionados, os fatos podem mesmo assim indivi
dualizar-se e portanto colocar-se em ordem, isto é, ser
identificados e separados (por questão de clareza: a or
dem do espírito não é a ordem fatual). Ademais, isso fa
vorece a memorização e também a compreensão das re
lações causais (um relato contínuo pode fazer pensar
num determinismo fatalista).
A fortiori, os estudos mais globais dos fatores em jogo ou
das conseqüências têm todo o interesse em ser sistematizados
para o esclarecimento da inteligência do acontecimento.
- Acontece que, especialmente num relato, o plano não
pode ser dicotômico: freqüentemente deve contentar-se
em alinhar os fatos segundo a ordem de sucessão tem
poral.
Mas a história requer, sobretudo, um pensamento sintético
e sistêmico (pluridisciplinar): os fenômenos apresentam interco-
nexões muito complexas, tanto do ponto de vista das causas co
mo dos efeitos (estes e aquelas jamais são únicos). É onde o uso
de quadros com entradas múltiplas é não somente útil mas in
dispensável.
Mais do que isso, a complexidade dos fenômenos do acon
tecimento concreto convida ao emprego de novos instrumentos
pedagógicos, como o que chamamos hoje “multimídia” e que a
informática possibilita. A técnica multimídia é uma revolução da
pedagogia (não do pensamento): ela deveria estender-se a ou
tros setores do saber, pois a inteligência gosta de funcionar mu
dando de nível e variando os instrumentos (auditivos, visuais,
textuais). Mas ela deve disciplinar-se: o pensamento saltatório,
de elementos soltos ou analógico, não avança de maneira rigo
rosa e acaba por nada demonstrar. Será vantajoso acompanhá-la
de uma arte de pensamento provida de lógica mais clássica: a
realidade é complexa em organização; mas lembre-se uma vez
mais que as exigências do racional não são as do real.
Enfim, tenha cuidado para que uma sistematização demasia
do grande não o conduza a visões da história simplificadas e re
dutoras.
221
□ O relato descritivo
Entende-se por relato descritivo tanto a descrição de uma
experiência científica quanto a de uma caminhada.
As observações são idênticas às dirigidas à história. Não es
queça aqui a grande articulação fim-meio. Além do mais, e essa
observação vale para a literatura, a leitura pede para ser “plural”,
pois em geral os interesses do texto são múltiplos. Um relato de
exploração me diz várias coisas: fala-me tanto das técnicas utili
zadas quanto das relações interpessoais no grupo, dos costumes
dos países atravessados etc. Há portanto aqui uma pluralidade
de teses.
Do mesmo modo, a Eneida de Virgílio apresenta múltiplos
centros de interesse (uma lenda movimentada, um estudo psico
lógico aprofundado, uma apresentação da mitologia greco-roma-
na, da vida da época, uma releitura de Homero etc.). O sinal de
que a tese não é única é que se pode ler várias vezes a Eneida e
descobrir sempre coisas novas, ainda que a conheçamos de cor:
basta mudar o enfoque. Já um artigo científico lido atentamente
(eventualmente resumido) fornece seus segredos desde a pri
meira leitura!
Critérios lógicos
Antes de mais nada, leia o texto atentamente. Depois colo
que-se esta primeiríssima questão: o texto comporta uma única
problemática? Se for o caso, basta redescobrir nele a ordem esta
belecida mais acima (tese, prova, conseqüência etc.). Mas nem
sempre todas as “casas” ou divisões estão presentes; e também
não espere sempre do autor um rigor extremo: pode ser que ele
resolva intercalar uma conseqüência ao longo de uma demons
tração, ou lançar uma objeção e resolvê-la antes de demonstrar
a tese etc.
222
O único problema verdadeiro é o colocado pelo segundo
caso de íigura. Hm relação ao primeiro, com efeito, remetemos a
tudo o que foi dito antes sobre os critérios de identificação da
tese, dos diferentes tipos de argumentos etc. A questão, portan
to, é descobrir a ordem de determinação (em outras palavras, fa
zer um plano) e não a ordem de demonstração.
Observações gerais
Primeiro é preciso aplicar os critérios de divisão e respeitar
a ordem de universalidade. É bom ler manuais ao invés de ex
posições compactas e indigestas. Assinale as obras bem organi
zadas. Mas não nos enganemos: aprender a fazer planos requer
uma longa experiência e sobretudo o convívio com autores rigo
rosos; impregnamo-nos de seus habitus por imitação (que não é
mimetismo) e por simbiose.
Treine bastante, inclusive com jornais ou revistas, sobretu
do porque virou hábito, há muitos anos, mesmo para as revistas
científicas, nào explicitar o plano dos artigos: sua presença, po
rém, permitiria ganhar um tempo precioso na leitura.
Obrigue-se a numerar. Se um parágrafo apresenta as dis
tinções existentes entre axônio e dendrito, entre golfinho e mar-
suíno, anote-as separando-as: seu pensamento ganha em preci
são. Pergunte-se ao final do capítulo ou do texto: quantas são as
causas que o autor apresenta do conflito Irâ-Iraque? Não é preci
so dizer que esse trabalho prévio é um alívio considerável para
a memória: a confusão é rainha da amnésia, a razão estrutura a
lembrança e facilita a retenção.
Certos romances bem construídos podem até ser oportu
nidades de trabalho agradáveis: um Agatha Christie ou um Sher-
lock Holmes, por exemplo.
Critérios particulares
Há certos planos típicos que encontramos com freqüência.
Vamos dar alguns casos, ilustrando-os. A fim de evitar repetições,
indicaremos o plano, no interior do texto citado, entre colchetes.
□ A análise de fatos
Ela segue com freqüência o plano prático: fato-causa. Hélè-
ne Carrère cfEncausse interroga-se sobre o misterioso destino
atual da União Soviética:
223
[O fato problemático: I “A situação presente da URSS é es
pantosa. Em termos de potência militar, o Estado soviético con
serva capacidades de ação quase ilimitadas. A despeito de acor
dos de desarmamento que subscreveu, sua potência está ainda
praticamente intacta. Exército muito numeroso, soberbamente
equipado, poder estratégico considerável, tudo isso não pode
ajudar a deter o desmembramento do país? Pois o fim do Impé
rio significa, a curto prazo, uma derrocada do poderio estratégi
co. [Questão sobre a causa:] Como imaginar que os que encar
nam o poder - Estado, exército, KGB - assistem passivamente à
sua destruição, quando dispõem ainda de meios para reagir?
[Resposta: a causa, ou melhor, as duas hipóteses de causa:]
Entretanto, cumpre constatar que, descontados alguns sobressal
tos - em Tbilissi ou no Azerbaijão -, o poderio soviético e os
que o detêm parecem aceitar sua própria liquidação. Voluntaria
mente, ou porque esse próprio poderio já se encontra gangrena
do como o Império?”4*
□ O estudo prático
Todo procedimento prático visa um objetivo. Portanto ele
comporta, no mínimo, dois tempos: o fim visado e o caminho,
isto é, os meios para chegar ao fim. Às vezes juntam-se a isso os
atores, os instrumentos etc.
O ponto essencial a registrar é a especificidade, a originali
dade desse procedimento comparado a um especulativo ou teó
rico: este último analisa, decompõe; o procedimento propria
mente prático, ao contrário, sintetiza, pois compõe o fim com os
meios adequados para alcançá-lo.
Disso decorre um ponto importante: a ordem prática, a
bem dizer, não contém problemática, pois aqui não se trata de
demonstrar uma tese mas de alcançar uma finalidade.
Leiamos um trecho de um artigo de Jean Daniel. Ele não
nos fará mudar de registro de exemplos, pois também concerne
ao pós-comunismo soviético.
[- A finalidade:] “Como todos os reformadores que o prece
deram na história - Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Catarina, a
224
Grande, Alexandre II, Lenin e mesmo Kruchev -, Gorbachev
certamente empreendeu a tarefa gigantesca de modernizar seu
país sem com isso abandonar uma ambição imperial.” (...)
[- Meio. Eis aqui, particularmente, um que nào é anunciado
como um meio:] “Aposto como Gorbachev se resignará a uma
secessão da Lituânia, por menos camuflado que seja o termo de
independência.” A continuação, dois parágrafos adiante, é ainda
mais clara (falo do ponto de vista lógico): “Se adotarmos essa hi
pótese de trabalho, a questão, para a União Soviética, será saber
por que meios ela pode permanecer imperial abandonando ao
mesmo tempo o imperialismo.”5
A união, a fecundação do plano precedente (fato-causa) e
deste resulta na famosa distinção tripartite: ver-julgar-agir (os
dois primeiros tempos correspondem ao plano: fato-causa; o se
gundo faz atravessar a linha de demarcação entre os dois pri
meiros tempos, de um lado, e o terceiro, de outro).
□ O estudo de um mal
Dizemos “mal” no sentido mais geral do termo: do infarto
do miocárdio ao craque de 1929· O plano é então naturalmente
o seguinte:
- o diagnóstico, isto é, o julgamento que identifica o que é
o mal. O diagnóstico subdivide-se às vezes em dois: in
vestigar sintomas e investigar causas (a medicina fala de
diagnóstico respectivamente positivo e etiológico);
- o tratamento ou remédio. Também aqui pode-se subdivi
dir: por exemplo, em tratamento sintomático e causal (o
que retoma a distinção dos dois tipos de diagnóstico), em
preventivo e curativo, em meios terapêuticos e resultados
(prognóstico, com e sem tratamento) etc.
A análise completa de um mal é também um estudo de or
dem prática, pois busca um fim que é a saúde ou, de maneira
mais geral, o restabelecimento do bem; assim, nesse caso igual
mente, o texto não se ordena em torno de uma problemática
mas de um fim a restaurar.
225
Paul Lemoine, pediatra, fala da crise de personalidade que
ocorre no momento da adolescência6:
[- Diagnóstico sintomático:] “É a revolta brutal: ele quer ser
‘grande’: até então aceitava-se como uma criança igual às outras:
‘a gente imitava os outros’, me dizia um deles. (...)”
Mas ele está ofendido■, pois não se sente levado a sério pe
los adultos. Não tem mais direito como antes e é ferido por ser
tratado como pequeno, sujeito ainda às proibições e às ordens
que pesaram sobre ele até então (...).
Ao mesmo tempo ele está angustiado diante do caminho
rumo ao desconhecido. De vez em quando inquieto com as
transformações que se operam nele e que ele espreita com im
paciência, e inquieto com aquilo que o espera: ‘Jamais serei ca
paz.’ Essas angústias são muitas vezes agravadas pelos adultos;
por suas reflexões irônicas: ‘é só o começo, coisas piores virão’,
quando ele se debate em suas dificuldades (...).
Nessa incoerência, sentindo-se humilhado em sua imaturi
dade, ele tem necessidade de afirmar-se diante de si próprio e
dos outros; e o fará pela oposição e pelas extravagâncias.”
[- Necessidade de diagnóstico causal:] “Ante a rudeza dessa
crise, os pais, habituados a um filho bem educado e obediente,
não compreendem o que está acontecendo. ‘Não o reconhece
mos mais’ (...)”
[- Diagnóstico causal:] “E no entanto esse conflito é nor
mal, sua ausência é que poderia causar inquietação: não se po
de em dois anos passar da infância à maturidade sem se desfazer
de roupas, mas também das boas relações familiares; e isso é
necessário ao desenvolvimento da personalidade: é preciso uma
ruptura com o apego excessivo aos pais, e, por outro lado, o
‘eu’ aprende a se afirmar lutando. (...)”
[- Remédio; e este é antes de tudo preventivo, como o au
tor tem o cuidado de nos advertir:] “O mais importante, como
sempre em medicina, é o tratamento preventivo. O conflito é
inevitável e é saudável! Mas sua intensidade irá variar muito
conforme tiverem transcorrido as etapas anteriores. (...)”
I- Remédio curativo:] “Quando a crise chegar, tratemos de
obter uma compreensão mútua. (...)”
226
Critérios literários
227
Isso significa que você eleve sempre efetuar sua leitura com
um recuo, como que em dois níveis:
- o nível imediato (o texto): é o sentido imediato do texto
que você lê;
- o nível mediato (o metatexto): é o de sua construção ló
gica. A descoberta desse nível supõe um recuo constante
e, sobretudo, uma atitude ativa de leitura. Claro que o
autor está longe de sempre indicar esse nível; compete
muitas vezes ao leitor decifrá-lo. Isso se traduz por dois
tipos possíveis de anotações: uma é um resumo do que
você lê, a outra é a ordenação lógica; não falo aqui da
avaliação crítica nem das observações pessoais que não
interessam ao próprio texto.
Em suma, trabalhe sempre com óculos de foco duplo: tex
tual e metatextual. Decifre a todo momento o nível em que você
se encontra. No começo, isso retardará sua leitura e até romperá
penosamente seu desenrolar fluido e contínuo; mas, com o trei
no e a experiência, esse exercício se tornará uma segunda natu
reza e fará suas leituras renderem consideravelmente.
228
bactérias.” Ora, vejam como termina o parágrafo precedente: “A
indução ocasiona uma sucessão de ativações biológicas que re
sultam, por um lado, na reação inflamatória que cria um meio
hostil ao desenvolvimento das bactérias e providencia elementos
necessários à reparação dos tecidos lesados pela infecção, e, por
outro lado, na destruição das bactérias por fagocitose.” O subtí
tulo corresponde portanto ao primeiro ponto e caberia esperar
um outro subtítulo referente ao segundo ponto, a saber, “a des
truição das bactérias por fagocitose”; na verdade, ele está incluí
do no parágrafo de mesmo subtítulo910.
Também não nos enganemos com a função dos trechos
postos em destaque nos artigos ou entrevistas: eles procuram
evidenciar frases-choque, mais do que traduzir o pensamento do
autor. Assim, eis o que se pode ler em quadro numa entrevista
com Gérarcl Demuth, filósofo, psicólogo e sociólogo, executivo
da Cofremca: “Ainda funcionamos demasiadamente como uma
sociedade de gorilas”, “As pessoas buscam competência e emo
ção”, “Seria preciso instalar detectores de exclusão”111. Ora, o
conteúdo da entrevista é bem mais rico e profundo do que fa
zem supor essas frases de interesse acima de tudo geral.
229
A inclusão pocle ser portanto o sinal cie uma problemática.
Ela corresponde, em todo caso, à grande lei metafísica e espiri
tual do exitus-reditus: tudo o que vem de Deus retorna a Deus.
Seu uso é universal: vale tanto em literatura quanto em fi
losofia; encontramo-lo freqüentemente empregado na Sagrada
Escritura (não é por acaso que o evangelho de Lucas começa e
termina no Templo). Estende-se também aos meios audiovisuais:
o filme de Claude Lelouch, Itinéraire d'un enfant gâté, é enqua
drado pela mesma cena, mas que se desenrola com anos de in
tervalo, o que lhe dá uma grande força sugestiva; Os trinta e no
ve degraus de Alfrecl Hitchcock começa e termina pela cena no
music-ball e pelo número do Senhor Memória.
230
- Leia os mesmos autores e observe seus “tiques”, suas ma
neiras de proceder: eles fazem resumos de seu artigo? os
capítulos são introduzidos em posições chaves? seus títu
los são bem escolhidos? Isso permite, aliás, selecionar os
jornalistas, os escritores mais pedagógicos ou com os
quais você tem mais afinidade.
Assim, lendo o livro de Bernard Sesboue, Les récits du salut
[Os relatos da salvação], você rapidamente perceberá que o au
tor geralmente anuncia no início do parágrafo aquilo de que irá
falar; mais precisamente ainda, a primeira frase do parágrafo é
quase sempre sua problemática, o que mostra o raro rigor da
construção, além de tornar a leitura tão fácil quanto agradável e
permitir um percurso fluente sem inconveniente algum. Leiamos,
por exemplo, a primeira frase dos três parágrafos abrangidos pe
lo subtítulo: “Uma estrutura doutrinal inscrita na trama dos rela
tos”: “A estrutura fundamental da salvação cristã é a da aliança
consumada entre Deus e a humanidade pela vida, a morte e a
ressurreição do único mediador, Jesus, o Cristo” ( le parágrafo).
“As articulações dessa estrutura estão presentes no relato recapi-
tulador que é o Credo” (2e parágrafo). “Por outro lado, há ho
mens, criados para ver Deus e situados no desejo e na necessi
dade do dom de Deus” (3S parágrafo). A leitura de “por outro la
do” convida a voltar atrás para achar o “por um lado” que é,
com efeito, a segunda frase do segundo parágrafo: “Por um la
do, há Deus que se revela como Pai, Filho e Espírito.”12
Quanto tempo a leitura desse tipo de livros (ou de artigos)
faz ganhar! Comece por eles antes de se lançar em obras mais
complexas e menos bem ordenadas.
Conselhos gerais
De maneira geral, elimine a leitura demasiado escrupulosa.
Se tantas pessoas não conseguem ler livros volumosos, é porque
elas imaginam que é preciso ler tudo com a mesma atenção.
12. Jésus-Christ Vunique médiateur. II. Les récits chi salut , “Jésus et Jésus-
Christ" 51, Paris, D esclée, 1991, pp. 35-6.
231
Uma leitura eficaz é antes de tudo uma leitura muito ativa;
ela jamais procede de forma contínua. Proceda, grosso modo, da
seguinte maneira:
- primeiro, leitura atenta do resumo eventual na contraca
pa do livro;
- depois, percurso atento do índice de assuntos, tentando
compreender sua disposição;
- depois, leitura também atenta da introdução, a fim de
delimitar o objeto e o método da obra;
- a seguir, leitura sempre atenta da conclusão: quais são as
conclusões a que chega o autor? Perca o hábito de ler os
livros de informação como se fossem romances policiais
cuja leitura do último capítulo é preservada para não des
vendar a trama!
- se o livro contém conclusões parciais, prossiga. Aplique
o princípio aristotélico que consiste em ir sempre pro
gressivamente do mais geral ao mais particular, o que
respeita o ritmo natural da inteligência;
- então é possível começar uma leitura capítulo por capítu
lo; também aí, identifique os esquemas que economizam
longos desenvolvimentos; observe igualmente o começo
e o final do capítulo para saber se o autor resume neles
seu pensamento;
- enfim, no extremo detalhe, examine a construção dos pa
rágrafos. De novo, vá ao começo e ao fim: o autor resu
me neles seu desenvolvimento? Se for o caso, você eco
nomizou tempo e energia. Examine o meio: acaso ele
acrescenta uma idéia nova ou contenta-se em desenvol
ver a idéia principal enunciada no início? Percorra rapida
mente um capítulo que não tem a ver com seu tema de
pesquisa;
- faça anotações tanto sobre o texto imediato que está
lendo quanto sobre o texto em geral, as idéias mais glo
bais; não hesite em fazer - de passagem, quando lhe
convém e à parte - observações de todos os tipos, como
foi dito mais acima: sobre o conteúdo, sobre seu interes
se, sobre o estilo etc.13
232
Exemplo
• Leitura do texto
Eis aqui um livro sobre Pascal e Sào João da Cruz". De
acordo com os princípios acima, lemos rapidamente a contraca
pa, depois o plano (pp. 5 6 )־comentado na p. 36 e, sobretudo,
transportamo-nos sem demora à conclusão. Aqui está o que le
mos (pp. 297 a 299■ Para não estender demais a citação, tivemos
que omitir sem prejuízos à análise alguns parágrafos):
f§ 1] ',Pascal discípulo de João da Cruz não é uma afirma
ção a priori, uma tese a defender; não é sequer uma questão co
locada de início. É o fruto de uma longa investigação cuja expo
sição dos resultados mascarou as hesitações, os retoques, os
desvios, e que, deixando, como reconhecemos, muitos pontos
obscuros, não está encerrada. Nossas três partes se completam e
se convocam uma à outra. As relações da família Pascal com os
carmelitas descalços ocasionaram uma influência do Carmelo. A
marca carmelita constatada nos textos pascalianos supõe esses
contatos. E, se Pascal é um místico, a união a Deus não se im
provisa, apesar do gênio e da independência. (...)
[§ 2] O estudo das edições mostra que a leitura do doutor
místico por Pascal foi muito possível, em particular na tradução
do padre Cipriano que lhe foi contemporânea e que ainda hoje
não envelheceu. (...) Em suma, o contexto histórico permite su
por que a influência ocorreu. (...)
[§ 31 Estávamos em busca de alguma passagem que permi
tisse revelar uma possível influência de João da Cruz sobre Pas
cal. Ora, o confronto dos textos também produziu resultados
inesperados. Apesar da eventual possibilidade de fontes co
muns, o número de idéias e temas idênticos, a similitude das ex
pressões nos surpreendeu: coincidências muito impressionantes
para vidas diferentes e diferentes projetos! Assim podemos dizer
que Pascal leu o doutor místico. (...)
[§ 4] No plano espiritual também, em sua vida e em sua
obra, essa alma apaixonada pelo absoluto elevou-se muito. Pas
cal, portanto, não apenas tomou emprestadas muitas idéias ou
233
.d
Exem plo 11
• Leitura do texto
O artigo seguinte utiliza vários tipos de plano. Seu título é:
“Adolescência e desespero. Anorexia, bulimia e suicídios aumen
tam. E os pais geralmente não assumem suas responsabilidades.”
(La Cmix-VEvénement, quinta-feira, 31 de julho de 1986, p. 6.)
Dividimos o texto em parágrafos, a fim de facilitar a colo
cação em plano ulterior.
[§ 1) “Depressão, anorexia, suicídio: a recrudescência de
atos de desespero entre os jovens (quando não é a droga ou a
delinqüência) inquieta os psiquiatras. O Congresso mundial de
psiquiatria da infância interessou-se particularmente pelas con
dutas alimentares perturbadas. Vários estudos americanos assina
lam inclusive que 50% dos adolescentes americanos sofrem de
anorexia ou de bulimia. Esse tipo de comportamento verifica-se
dez vezes menos entre rapazes, mas estes apresentam igualmen
te cada vez mais tais distúrbios.
[§ 2J O professor Philippe Jeammet (Universidade Paris VI),
que constata também um nítido aumento da anorexia e da buli
mia na França, comenta: ‘Não são doenças, mas respostas que os
adolescentes encontram para os conflitos da adolescência.’ E ele
insiste na necessidade de intervir precocemente para evitar que
esses problemas persistam vários anos e se tornem verdadeiras
doenças, evoluindo para graves distúrbios da personalidade, o al
coolismo, o encolhimento do cérebro e até mesmo a morte.
[§ 31 O psiquiatra observa que as jovens anoréxicas e bulí-
micas são com freqüência ‘crianças imagens’, isto é, moças que
se desenvolveram mais em função do que a mãe ou seu meio
esperava delas do que em função de seus próprios desejos. Ao
se separarem da mãe no período da adolescência e ao descobri
rem seu corpo e sua sexualidade, elas ficam desnorteadas e pro
curam dominar o que não entendem ‘controlando’ seu corpo.
l§ 4] Para evitar que os jovens se fechem nesse tipo de ati
tude, os professores Jeammet e Remschmidt (R.F.A.) pregam ‘a
aliança terapêutica com a família para restabelecer trocas vivas e
sair do impasse’ e notam que a maior ou menor severidade dos
pais não interfere no aparecimento ou na reparação de tais dis
túrbios.
236
[§ 5] Nos países ocidentais, a angústia e a depressão dos jo
vens se traduzem por um aumento do número de tentativas de
suicídio e de suicídios consumados.
I§ 6] Causa de morte mais importante entre os jovens (vin
do logo abaixo os acidentes na estrada), o suicídio concerne so
bretudo aos maiores de 16 anos que vivem geralmente em famí
lias desunidas, em que um dos pais está desempregado e em
que o recurso a calmantes é usual. Em geral são utilizados os
medicamentos que a família compra na farmácia.
[§ 71 Para o professor Serge Lebovici, os adolescentes não
conseguem identificar-se com seus pais, eles próprios muitas ve
zes em crise. ‘É preciso, diz ele, que os pais deixem de ser imi
tadores, que deixem de se colocar no lugar dos filhos e de
tomar, por exemplo, a iniciativa para lhes propor a pílula. Pou
quíssimos pais sabem declarar nos dias de hoje: a responsabili
dade é sua, mas não estou de acordo.”’
• Análise do texto
A primeira frase do primeiro parágrafo é introdutória. Ela
não apresenta exatamente a problemática, e sim seu objeto, que
é “a recrudescência de atos de desespero entre os jovens”. E, se
não existe tese, é porque o plano seguido é mais prático: não se
trata primeiramente de demonstrar, mas de resolver um proble
ma prático que aparece como um mal. Ora, vimos acima o pla
no de estudo sistemático de um mal.
-Primeira parte: primeiro mal estudado: os distúrbios de
alimentação dos adolescentes.
Diagnóstico positivo: § 1.
Diagnóstico causal: § 2 (na verdade esse parágrafo é com
plexo: ele fala também do prognóstico e trata igualmente dos si
nais e do remédio) e 3.
Remédio proposto (preventivo): § 4.
-Segunda parte: segundo mal estudado: o suicídio dos
adolescentes.
A ordem seguida é globalmente simétrica.
Diagnóstico positivo: § 5·
Diagnóstico causal: § 6.
Remédio proposto: § 7.
237
- Qual é a distinção entre as duas partes?
Isso diz respeito à ordem de determinação. O artigo parte
de um todo (o tema) que ele divide: “os atos de desespero entre
os jovens”. Prova disso é que o título do artigo e a exposição
começam desse modo (“a recrudescência de atos de desespero
entre os jovens”), e a segunda parte (início do parágrafo 5) co
meça por chamar de volta o todo dividido, portanto, por um re
torno ao mais universal: “a angústia e a depressão dos jovens”.
Qual é a divisão? É a divisão do gênero em algumas de suas
espécies: as condutas alimentares (divididas, por sua vez, como
um gênero em suas espécies, segundo o excesso e a falta: a bu
limia e a anorexia) e os suicídios são duas espécies de ato de
desespero do jovem.
238
C a p ít u l o V I I
EXERCÍCIOS VARIADOS
Conselhos gerais
239
zer respeito tanto ao predicado quanto ao sujeito da pro
blemática. De que natureza é a divisão? (gênero-espécies,
todo integral-partes etc.) Embora o capítulo III, que trata
do raciocínio, preceda o capítulo IV, que tem por objeto
a divisão, vimos que um dos interesses desta é preparar
o raciocínio. Daí a ordem adotada.
- Quarto momento: quais são os raciocínios empregados
para a demonstração? Qual a natureza desses raciocínios?
Determine primeiro o TM e depois formalize o raciocínio.
São as divisões que em geral fornecem o TM.
- Quinto momento: qual é o plano do texto?
- Sexto momento, eventual: uma ou várias observações crí
ticas.
• Leitura do texto
Título: “Troco na mão”
“Em minha série Pego-o-metrô-francamente-não-é-nada-
divertido, eis uma cena (...):
- Um carnê de dez bilhetes, por favor, pede o primeiro a
chegar, estendendo uma nota de 50 francos.
- Não tenho troco, vá trocar no café!
[E a mesma cena se repete pelo menos seis vezes. C. Sar
raute comenta:]
O golpe do troco, conheço, já me passaram cem vezes, a
você não? Vai ver que é de propósito! Querem nos fazer enjoar
dos transportes públicos, nos incitar a pegar nosso calhambeque
e a engarrafar Paris pelo prazer de estender a seguir uma mão
exigente diante de um pedágio de auto-estrada. Dinheiro na
mão. Lá eles jamais o recusam, como também aceitam cheques
e cartões de crédito, mesmo para quantias irrisórias. Chique e
choque, o bilhete da R.A.T.P.? Toma-lá-dá-cá, isto sim!”
(Claude SARRAUTE, “Sur le vif”, Le Monde, sábado, 12 de outu
bro de 1991, p. 36.)
240
uma cumplicidade. É verdade que um texto que descreve uma
cena da vida cotidiana poderia informar, mas esse não é o caso
mais frequente. O último parágrafo, sobretudo, baseia-se num
raciocínio pelo exemplo, geralmente utilizado nos textos que
buscam mais convencer do que demonstrar. O argumento do
engarrafamento é manifestamente polêmico. Ele caricaturiza a
posição segundo um processo que vimos: com efeito, afirma
que a única alternativa ao problema da falta de troco no metrô é
o automóvel. Ora, há muitas outras soluções a considerar antes.
• Leitura do texto
“Ontem à noite, de volta de Paray-le-Monial, escoteiros da
Europa de minha paróquia me confiam seu mal-estar diante do
241
‘condicionamento’ carismático que sofreram enquanto aguarda
vam a chegada do Papa.
Fui formado numa religião em que as mediações desempe
nham um papel fundamental. E eis que me é proposto o IMEDIA-
TISMO: imediatismo da Palavra, apreendida através do texto;
imediatismo da presença, apreendida através da experiência;
imediatismo da relação, expressa pela ‘palavra em línguas’.”
(A. M. de LA MORANDAIS, pároco da igreja Notre-Dame-du-Tra-
vail, “Le retour de l’Esprit?”, La voix de Montroiige et Montsouris.
Journal chrétien d’information du l4e, ne 212, novembro de
1986, p. 1.)
242
Texto de Carrel
• Leitura do texto
“Não podemos empreender a restauração de nós mesmos e
de nosso meio antes de haver transformado nossos hábitos de
pensamento. Com efeito, a sociedade moderna cometeu desde
sua origem um erro intelectual. Erro que repetimos sem cessar
desde o Renascimento. A tecnologia construiu o homem não se
gundo o espírito da ciência, mas segundo concepções metafísi
cas errôneas. Chegou o momento de abandonar essas doutrinas.
Devemos romper as barreiras que foram levantadas entre as pro
priedades dos objetos.
É numa interpretação equivocada de uma idéia genial de
Galileu que consiste o erro de que padecemos hoje. Galileu dis
tinguiu, como se sabe, as qualidades primárias das coisas, di
mensões e pesos, que podem ser medidas, de suas qualidades
secundárias, forma, cor, odor, que nào são mensuráveis. O
quantitativo foi separado do qualitativo. O quantitativo, expresso
em linguagem matemática, nos deu a ciência. O qualitativo foi
negligenciado. A abstração das qualidades primárias dos objetos
era legítima. Mas o esquecimento das qualidades secundárias,
nào. Ele teve conseqüências graves para nós. Pois, no homem, o
que nào se mede é mais importante que o que se mede. A exis
tência do pensamento é tão fundamental quanto a dos equilíbrios
físico-químicos do soro sangüíneo.
A separação do qualitativo e do quantitativo tornou-se mais
profunda quando Descartes criou o dualismo do corpo e da al
ma. A partir de então, as manifestações do espírito tornaram-se
inexplicáveis. O material foi definitivamente isolado do espiri
tual. A estrutura orgânica e os mecanismos fisiológicos adquiri
ram uma realidade muito maior que o prazer, a dor, a beleza.
Esse erro fez nossa civilização tomar o caminho que conduziu a
ciência a seu triunfo e o homem à sua decadência. (...)
Certamente, o qualitativo é mais difícil de estudar que o
quantitativo. Os fatos concretos nào satisfazem nosso espírito,
que gosta do aspecto definitivo das abstrações. Mas a ciência
nào deve ser cultivada apenas por ela mesma, pela elegância de
seus métodos, por sua clareza e sua beleza. Ela tem por objetivo
243
o benefício material e espiritual do homem. Devemos dar tanta
importância aos sentimentos quanto à termodinâmica.”
(Dr. Alexis CARREL, L bomme cet inconnu, Paris, Plon, 1935, pp.
338-9.)
□ Divisão do sujeito
O conhecimento do real é de dois tipos: ou é um conheci
mento do que é qualitativo (as “qualidades secundárias”), ou é
um conhecimento do que é quantitativo (as “qualidades primá
rias”). Aplicada ao homem, essa divisão produz dois conheci
mentos diferentes: o conhecimento da alma (do espiritual, dos
sentimentos...) e o conhecimento do corpo (do orgânico etc.).
O tipo da divisão deve ser considerado segundo os dois as
pectos do todo que é dividido: trata-se ao mesmo tempo do real
e do conhecimento. Em relação ao real, é a divisão de um todo
integral em suas partes. Em relação ao conhecimento, é a divi
são de um gênero em suas espécies.
□ Divisão do predicado
O homem divide-se em homem de ontem (que errou inte
lectualmente) e em homem de hoje (e de amanhã) que deve se
corrigir intelectualmente. É a divisão de um sujeito em seus aci
dentes.
Como vemos, as duas divisões se recobrem e permitem as
sim fundamentar o raciocínio que virá a seguir.
244
Quarto momento: quais são os raciocínios
empregados p a ra a dem onstração?
O TM é a divisão do predicado que é uma quase-defínição.
O conhecimento integral do real abrange o qualitativo e o quan
titativo. Ora, o homem de hoje deve unir conhecimento do qua
litativo e do quantitativo (a prova é histórica e se fundamenta na
divisão do sujeito dada acima). Logo...
Texto de Lévi-Strauss
• Leitura do texto
Lévi-Strauss procura a origem da exogamia, isto é, da
proibição de casar-se com uma mulher de dentro da tribo, do
clã. Em outras palavras, a proibição do incesto.
“Quer seja de uma forma direta ou indireta, global ou espe
cial, imediata ou adiada, explícita ou implícita, fechada ou aber
ta, concreta ou simbólica, é a troca, sempre a troca, que sobres
sai como a base fundamental e comum de todas as modalidades
da instituição matrimonial. Se essas modalidades podem ser
aceitas sob o termo geral de exogamia (...), é com a condição de
perceber, por trás da expressão superficialmente negativa da re
gra de exogamia, a finalidade que tende a assegurar, pela
proibição do casamento nos graus proibidos, a circulação, total
e contínua, desses bens do grupo por excelência que são suas
mulheres e suas filhas.
O valor funcional da exogamia, definida no sentido mais
amplo, foi, com efeito, precisada e afirmada ao longo dos capí-
245
tiilos precedentes. Esse valor é primeiramente negativo. A exo-
gamia fornece o único meio de manter o grupo como grupo,
evitar o fracionamento e a compartimentaçào indefinidos que a
prática dos casamentos consangüíneos acarretaria: se se recor
resse a eles com persistência, ou com demasiada freqüência, es
tes nào tardariam a fazer ‘explodir’ o grupo social numa quanti
dade de famílias que formariam outros tantos sistemas fechados,
mundos sem portas nem janelas (...). Acontece portanto com as
mulheres o mesmo que com a moeda de troca cujo nome elas
com freqüência carregam (...) Em face da endogamia, tendência
a impor um limite ao grupo, e a discriminar no interior do grupo,
a exogamia é um esforço permanente para uma maior coerência,
uma solidariedade mais eficaz, e uma articulação mais flexível.
É que a troca, com efeito, não vale apenas o que valem as
coisas trocadas: a troca - e conseqüentemente a regra de exoga
mia que a exprime - tem, por si mesma, um valor social: ela for
nece o meio de ligar os homens entre si e de sobrepor, aos la
ços naturais do parentesco, os laços doravante artificiais, visto
que subtraídos ao acaso dos encontros ou da promiscuidade fa
miliar, da aliança regida pela regra.”
(Claude LÉVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté,
Paris, Éd. Mouton, 2- ed., 1967, cap. XXIX, pp. 548-50.)
□ Divisão do sujeito
A exogamia apresenta um duplo valor:
- negativo: ela impede o fechamento do grupo em si mesmo;
- positivo: ela permite a troca.
246
□ Divisão do termo médio
A própria troca apresenta um duplo aspecto: um funda
mento (uma causa material) natural, que é o parentesco, e uma
finalidade cultural, artificial.
• Leitura do texto
“Se a humanidade superar as terríveis ameaças de escravi
dão e de desumanização que enfrenta hoje em dia, ela terá sede
de um novo humanismo e ansiedade de redescobrir a integrida
de do homem, bem como de pôr fim às divisões internas que
tanto pesaram sobre a era precedente. Para corresponder a esse
humanismo integral, deveria ser promovida uma educação inte
gral - aquela cujas principais características tentei esboçar neste
livro.
O individualismo burguês acabou. O que terá importância
capital para o homem de amanhã são as conexões vitais do ho
mem com a sociedade, isto é, não apenas com o meio social
mas também com o trabalho comum e o bem comum. O proble-
247
ma é substituir o individualismo da era burguesa, não pelo tota
litarismo ou o coletivismo da colmeia, mas por uma civilização
personalista e comunitária baseada nos direitos humanos e que
atenda às aspirações e às necessidades sociais do homem. A
educação deve pôr fim à discordância entre a exigência social e
a exigência individual dentro do próprio homem. Este deve de
senvolver, portanto, ao mesmo tempo o senso de liberdade e o
senso de responsabilidade, o dos direitos humanos e o das obri
gações humanas, a coragem de assumir riscos e de exercer a au
toridade em favor do bem geral juntamente com o respeito à
humanidade em cada pessoa individual.
A educação de amanhã deverá também acabar com a cliva
gem entre a inspiração religiosa e a atividade secular no ho
mem, se é verdade que um humanismo integral deve contar en
tre seus traços principais com um esforço de santificação da
existência profana e temporal. E a educação de amanhã deverá
igualmente acabar com a clivagem entre o trabalho ou a ativida
de útil e a floração de vida espiritual e de alegria desinteressada
que o conhecimento e a beleza oferecem. Percebemos aqui o
caráter autenticamente democrático da educação de amanhã. Ca
da um deve trabalhar, ou participar do fardo da comunidade hu
mana, segundo suas capacidades. Mas o trabalho não é um fim
em si: o trabalho deve proporcionar o lazer para a alegria, a ex
pansão e o deleite do espírito.”
(Jacques MARITAIN, Poiir une philosopbie de 1’é ducation, Paris,
Fayard, 1966, p. 102.)
248
cidade? O texto o diz explicitamente. Mas o conhecedor de Mari-
tain o encontrará com mais facilidade, pois é o título de uma de
suas obras principais (Humanisme integral, Paris, Cerf, 1968).
Eis aí a tese: a educação de amanhã deve promover o hu
manismo integral. É mais ou menos o que diz a segunda frase do
primeiro parágrafo (invertendo predicado e sujeito, por razões
extralógicas). Trata-se de uma proposição universal afirmativa.
□ Divisão do predicado
Encontramos três divisões do predicado distribuídas no 2-
e no 3S parágrafos:
Um humanismo integral integra diferentes elementos. O
que ele une?
- em seu agir: as exigências individuais e sociais (§ 2);
- em seu espírito: secular e religioso (§ 3);
- em seu “fazer”: ao mesmo tempo trabalho e lazer (§ 3).
Ora, a ação, a atividade do espírito e o “fazer” abrangem
toda a atividade do homem (os três H: bearl, bead, band). Tra
ta-se aqui, portanto, da divisão de um todo em suas partes inte
grais: o lerino humanismo integral, caro ao autor de Distinguer
pour unir [Distinguir para unir], tem assim também uma conso
nância lógica.
□ Divisão do sujeito
A educação divide-se em educação de ontem (a do indivi
dualismo burguês e a do totalitarismo, a que divide o homem
em vez de unificá-lo) e em educação de amanhã. É a divisão de
um acidente em seus acidentes.
249
A premissa menor é manifestada pelo exemplo contrário
do individualismo burguês, portanto pela divisão do sujeito e
não mais do predicado.
• Leitura do texto
“Penso que a resposta a nossas duas questões foi suficien
temente preparada. Vamos encontrá-la ao voltar os olhos para a
gênese psíquica das idéias religiosas. Essas idéias que professam
ser dogmas não são o resíduo da experiência ou o resultado fi
nal da reflexão: elas são ilusões, a realização dos desejos mais
antigos, mais fortes, mais prementes da humanidade; o segredo
de sua força é a força desses desejos. Já vimos: a impressão ater
radora da angústia infantil havia despertado a necessidade de
ser protegido - protegido e amado -, necessidade que o pai sa
tisfez; o reconhecimento do fato de que essa angústia dura a vi
da inteira fez com que o homem se apegasse a um pai, a um pai
desta vez mais poderoso. A angústia humana diante dos perigos
da vida tranqüiliza-se ao pensamento do reino benevolente da
Providência divina, a instituição de uma ordem moral do univer
so assegura a realização das exigências da justiça, tão seguida
mente deixadas irrealizadas nas civilizações humanas, e o pro
longamento da existência terrestre por uma vida futura fornece
os quadros de tempo e de lugar em que esses desejos se realiza
rão. Respostas às questões colocadas pela curiosidade humana
diante destes enigmas: a gênese do universo, a relação entre o
corporal e o espiritual, elaboram-se de acordo com as premissas
250
do sistema religioso. E é um formidável alívio para a alma indi
vidual ver os conflitos da infância emanados do complexo pater
no - conflitos jamais inteiramente resolvidos —serem-lhe, por as
sim dizer, retirados e receberem uma solução aceita por todos.
Quando digo: tudo isso são ilusões, cumpre que eu delimite
o sentido desse termo. Uma ilusão não é a mesma coisa que um
erro, uma ilusão tampouco é necessariamente um erro. A opinião
de Aristóteles, segundo a qual os vermes seriam engendrados pe
lo lixo (...) era um erro (...). Era uma ilusão da parte de Cristóvão
Colombo acreditar ter descoberto um novo caminho marítimo
das índias. (...) O que caracteriza a ilusão é ser derivada dos de
sejos humanos; deste modo ela se aproxima da idéia delirante
em psiquiatria, mas também separa-se desta, mesmo sem levar
mos em conta a estrutura complicada da idéia delirante.
A idéia delirante está essencialmente - sublinhamos esse
caráter - em contradição com a realidade; a ilusão não é neces
sariamente falsa, isto é, irrealizável ou contraditória com a reali
dade. Uma jovem de condição modesta pode, por exemplo, criar
a ilusão de que um príncipe virá buscá-la para casar. Ora, isso é
possível; alguns casos do gênero realmente ocorreram. (...)
Dadas essas explicações, voltemos às doutrinas religiosas.
Tornaremos a dizer: as doutrinas religiosas são todas ilusões,
não se pode verificá-las, e ninguém pode ser obrigado a tê-las
por verdadeiras, a crer nelas.”
(Sigmund EREUD, L avenir d ’une illusion, Paris, PUF, 7a ecl.,
1987, pp. 43-5.)
251
çào. É o que faz também sua vulnerabilidade, como se compreen
de facilmente.
□ Divisão do sujeito
Freud, que não é filósofo e muito menos teólogo, não se
detém em definir a religião, mas destaca algumas de suas carac
terísticas para ele decisivas: os dogmas (e crenças) referentes a:
- Deus em sua natureza de Pai e de Providência;
- o universo em sua origem e em sua ordem providencial;
- o homem em sua estrutura (material e espiritual) e em
sua vida.
É como a divisão de um gênero em suas espécies.
□ Divisão do predicado
Freud procede por divisões para chegar à definição da ilu
são. Remetemos ao que foi dito antes. Ele a define em compara
ção com o erro e o delírio. Sistematizando:
- o erro é um enunciado contrário ao verdadeiro de causa
intelectual;
- o delírio é um enunciado contrário ao verdadeiro de cau
sa afetiva (cuja causa é um desejo, ou uma angústia);
- a ilusão é um enunciado de causa afetiva que pode ser
falso ou verdadeiro. Sua lógica é a do desejo, eis tudo.
Poderíamos estabelecer uma divisão dicotômica da seguin
te maneira:
- conhecimento errôneo de causa intelectual: o erro propria
mente dito (Freud não o distingue aqui explicitamente da
mentira que é um erro intelectual, mas de causa intencio
nal, voluntário);
- conhecimento de causa afetiva:
- sempre errôneo: o delírio (que é uma doença psiquiátrica);
- às vezes errôneo, às vezes verdadeiro: a ilusão; e temos
aí nossa definição da ilusão. Trata-se de um conhecimen
to de causa afetiva (o gênero) que é às vezes correto (di
ferença).
252
Quarto momento: quais são os raciocínios
empregados para a dem onstração?
Freud estabelece sua tese por um silogismo de primeira figu
ra. A esse silogismo vem misturar-se uma indução que estabelece
a premissa menor: partindo da menor, chega-se a seguir ao mais
universal. Por razões pedagógicas, seguiremos a ordem inversa.
□ A premissa maior
É a definição da ilusão: a ilusão é uma crença “derivada
dos desejos humanos”. Uma definição, por si, não se demonstra.
Na verdade, Freud procede de uma dupla maneira:
- De um lado, manifesta sua definição a partir de um
exemplo. Efetua uma indução-abstração. Um único caso
singular é suficiente para manifestar o universal que está
contido: o exemplo de Cristóvão Colombo mostra clara
mente que foi um desejo que causou a cegueira e a ilu
são. Os diferentes exemplos dados no 3e parágrafo são
uma confirmação que se poderia estruturar como uma
indução.
- De outro lado, Freud procede por divisões para chegar à
definição da ilusão. Veja o que foi dito acima.
□ A premissa menor
Ora, tal é o caso da religião: ela baseia-se no desejo. É o
que foi estabelecido antes: os dogmas realizam os “desejos mais
antigos, mais fortes, mais prementes da humanidade”.
Freud o demonstra assim: o consolo da aflição, da angús
tia, é um desejo muito antigo e muito poderoso. Ora, o homem
tem três angústias fundamentais: os perigos da vida, as injusti
ças, a morte. E a idéia de Providência apazigua a angústia dos
perigos da vida, a instituição de uma ordem moral apazigua a
angústia da injustiça e a crença na vida futura apazigua a angús
tia da morte. Portanto a religião apazigua as angústias (que fa
zem parte da vida afetiva) do homem.
□ Conclusão
O começo do 4S parágrafo a enuncia, recordando a premis
sa menor: “ninguém pode ser obrigado a tê-las por verdadeiras,
a crer nelas”.
253
O silogismo é muito rigoroso, uma vez que se baseia na
própria definição do predicado, a saber, a ilusão.
• Leitura do texto
Leia o seguinte texto, que apresenta uma das intuições
mais fundamentais de um antropólogo original e infelizmente
pouco conhecido, Marcei Jousse (especialista em transmissões
orais nas civilizações de tipo semítico).
“O lance genial para o homem foi tomar clara consciência
do Mimema que brotou espontaneamente em seus músculos mo
delados. Esse ‘Mimema’, com efeito, não é senão a reverberação
do gesto característico ou transitório do objeto no Composto hu
mano, nessa viva e misteriosa síntese que podemos ver atuar glo
balmente, mas da qual não saberíamos dissociar o elemento que
seria espírito puro e o elemento que seria corpo puro.
Do nosso ponto de vista, que é rigorosamente antropológi
co e de modo nenhum metafísico, temos portanto apenas o di
reito de falar de Composto humano. Lidamos com um complexo
que é completamente espiritualizado, se ouso dizer, e quase
completamente materializado, no sentido de que ele não poderá
se exprimir, a si mesmo e aos outros, a não ser por intermédio
dos mimemas gestuais.
É pelo Mimema que o homem constrói sua primeira ex
pressão que é portanto, não o que se chamou de Linguagem,
mas a Mimagem. É graças a essa ‘Mimagem’ que funciona o
Pensamento. O Pensamento sendo simplesmente uma intelecçâo
de ‘Mimemas’.
254
Essa Antropologia do Mimismo nos dá a solução funda
mental do grande problema que, de uma forma ou de outra, os
meios étnicos mais diversos, concretos ou algebrizados, por toda
parte e sempre colocaram: o problema do Conhecimento.
O homem só conhece o que ele acolhe em si mesmo e o
que ele repete. É o mecanismo do Conhecimento por nossos
gestos de repetição. Jamais poderemos conhecer o que está to
talmente fora de nós. Só podemos conhecer aquilo que intussus-
cepcionamos mais ou menos perfeitamente. Cada indivíduo dife
re como intussuscepçâo. Depois que a intussuscepção se operou
e se repetiu em nós, há a conservação pessoal das repetições.
Essa conservação, vitalmente pessoal, depende da riqueza das
intussuscepções e da força da personalidade, pois nem todos so
mos iguais. Nessas profundezas, o homem é inteira e intuitiva
mente invadido e modelado pelo real. É como que possuído por
seu invasor, que ele exprime e sopesa conforme a estrutura de
seu organismo. O Imitador torna-se, de certo modo, o ser imita
do e conhecido em seus gestos, e faz disso como uma nova en
carnação.
Aristóteles, com uma espécie de intuição genial, havia dito:
‘O Homem é o mais imitador de todos os animais, e é pelo Mi
mismo que ele adquire todos os seus conhecimentos’ (Poética,
IV, 2).
Com mais precisão antropológica, dizemos: o Anthropos é
um animal interacionalmente imitador. Ou seja, apenas o Ho
mem ‘intelige’ as interações do real. Aqui, poderão intervir as
afetividades, as sensibilidades. Mas o caráter específico do ho
mem consiste em inteligir as Interações do real. Precisamos sem
pre partir da Interação. Em realidade, não somos senão recepto
res de Interações.”
(Marcei JOUSSE, L antbropologie du geste, col. “Voies ouvertes”,
Paris, Gallimard, 1974, pp. 54-5.)
255
Segundo m om ento: q u a l é a p ro b le m á tic a ?
A tese universal afirmativa do autor condensa toda a suá
antropologia: “o homem é um animal interacionalmente imita
dor”. É a primeira frase do último parágrafo. Como se compreen
derá facilmente, essa problemática, para o autor, é uma defini
ção. Com efeito, “homem” desempenha o papel de gênero e “in
teracionalmente imitador” o de uma diferença.
□ Divisão do predicado
“Precisamos sempre partir da interação.” A interação existe
em dois universos: o primeiro tipo de interação encontra-se na
natureza, o segundo tipo existe no homem e provém do real
que é sua origem. Ora, como o homem acolhe essas interações,
sendo ele “receptor de interações”? Jousse distingue diferentes
atos no homem: mimagem, linguagem, intussuscepção, repeti
ção, conservação, pensamento. Todos esses processos são agru
pados sob o termo vago e geral de conhecimento. Com base no
que o texto deixa perceber, estamos diante da distinção de um
todo em suas partes virtuais: as interações do real são primeira
mente intussuscepcionadas (isto é, repetidas e imitadas), depois
são conservadas, podendo enfim nascer o pensamento e a lin
guagem, assim como a afetividade e a sensibilidade.
□ Divisão do sujeito
O sujeito, que é o homem, pode ser considerado sob dois
pontos de vista diferentes: metafísico e antropológico. Segundo
a primeira perspectiva (§ 1 e 2), é preciso dividir o homem em
corpo e espírito (distinção de um todo em suas partes integrais);
segundo a outra perspectiva (§ 2), como reconhece explicita
mente Jousse, o homem é uno, embora composto, não cabendo
à antropologia diferenciar as partes. Ora, é o mimema que ex
prime e causa essa unidade.
256
nhece; logo, quem conhece deve repetir as interações, isto é,
imitá-las.
Q u in to m om ento: q u a l é o p la n o do texto?
- Precisões preliminares (§ 1 a 5).
—Definição do homem: primeiro esboço por Aristóteles (§ 6);
definição precisa (§7).
• Leitura do texto
Este texto muito rico, que requer uma leitura atenta, forne
ce uma das teses essenciais do pensamento de Girard sobre a
origem do que ele chama a “crise sacrificial”, em outras palavras:
a origem da violência.
“... não é necessário postular um instinto de morte ou de
violência. Uma terceira via se oferece à pesquisa. Em todos os
desejos que observamos, não havia apenas um objeto e um su
jeito, havia um terceiro termo, o rival, ao qual se poderia tentar,
por uma vez, dar a primazia. (...) O rival deseja o mesmo objeto
que o sujeito. (...) A rivalidade não é o fruto de uma convergên
cia acidental dos dois desejos pelo mesmo objeto. O sujeito de
seja o objeto porque o rival também o deseja. (...)
Ao nos mostrar no homem um ser que sabe perfeitamente o
que deseja, ou que, se parece não sabê-lo, tem sempre um ‘in
consciente’ que sabe por ele, os teóricos modernos não percebe-
257
ram talvez o domínio no qual a incerteza humana é mais flagran
te. Uma vez satisfeitas suas necessidades primordiais, e às vezes
até antes, o homem deseja intensamente, mas não sabe exatamen
te o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser do qual ele se sente
privado e do qual um outro lhe parece provido. O sujeito espera
desse outro que ele lhe diga o que se deve desejar para adquirir
este ser. (...) Nâo é por palavras, é por seu próprio desejo que o
modelo designa ao sujeito o objeto supremamente desejável.
Voltamos a uma idéia antiga mas cujas implicações talvez
sejam desconhecidas; o desejo é essencialmente mimético, ele
está calcado sobre um desejo modelo (...). O mimetismo do de
sejo infantil é universalmente reconhecido. O desejo adulto não
é em nada diferente, salvo que o adulto, em particular em nosso
contexto cultural, tem vergonha, na maioria das vezes, de se
modelar a partir de outrem; ele tem medo de revelar sua falta de
ser. (...)
Dois desejos que convergem para o mesmo objeto opõem-
se mutuamente. Toda mimese que envolve o desejo desemboca
automaticamente no conflito. Os homens são sempre parcial
mente cegos a essa causa da rivalidade. O mesmo, o semelhante
nas relações humanas, evoca uma idéia de harmonia: temos os
mesmos gostos, gostamos das mesmas coisas, somos feitos para
nos entendermos. O que acontecerá se tivermos realmente os
mesmos desejos?”
(René GIRARD, La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972, pp.
204-5.)
258
Girarei distingue também o desejo em desejo infantil e desejo
adulto: trata-se da divisão de um todo em suas espécies, a rigor,
em suas partes virtuais.
Voltando-nos para o predicado, constatamos que Girard
parte das relações humanas. Ele distingue duas: as relações har
moniosas e as relações violentas ou conflitivas; as primeiras são
fundadas no mesmo, no semelhante, as segundas no outro e no
diferente. É a divisão do gênero em suas espécies.
259
Quinto momento: qual é o plano do texto?
Premissa maior:
-T ese enunciada: § 1.
- Prova dedutiva: § 2.
- Prova indutiva: § 3■
Premissa menor: § 4.
• Leitura do texto
“A palavra ‘amor’ nào tem o mesmo sentido para um e para o
outro sexo, e essa é uma origem dos graves mal-entendidos que os
separam. Byron disse com razão que o amor é apenas uma ocupa
ção na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher. É
a mesma idéia que Nietzsche exprime em A gaia ciência·.
‘A mesma palavra amor’, diz ele, ‘significa de fato duas coi
sas diferentes para o homem e para a mulher. O que a mulher
entende por amor é bastante claro: não é apenas a dedicação, é
uma doação total de corpo e alma, sem restrição, sem nenhuma
consideração pelo que quer que seja. É essa ausência de condi
ção que faz de seu amor uma fé, a única que ela possui. Quanto
ao homem, se ele ama uma mulher, trata-se do amor que ele
quer dela; portanto ele está muito longe de postular para si o
mesmo sentimento que para a mulher; se houvesse homens que
sentissem também esse desejo de abandono total, podem estar
certos, nào seriam homens.’
Há homens que em certos momentos de sua existência po
dem ter sido amantes apaixonados, mas não há um único que
possamos definir como ‘um grande apaixonado’; em seus arre
batamentos mais violentos, eles jamais abdicam totalmente; mes
mo se caem de joelhos diante da amada, o que eles desejam
260
ainda é possuí-la, anexá-la; permanecem no centro de suas vidas
como sujeitos soberanos; a mulher amada é apenas um valor en
tre outros; eles querem integrá-la à sua existência, não absorver
sua existência inteira nela. Para a mulher, ao contrário, o amor é
uma demissão total em proveito de um senhor.”
(Simone de BEAUVOIR, “Uamoureuse”, Le cleuxième sexe, “Fo-
lio-Essais”, Paris, Gallimard, t. II, cap. II, pp. 376-7.)
□ Divisão do predicado
A alienação é definida como “total demissão em proveito
de um senhor”. Essa demissão irá dividir-se como um gênero em
suas espécies: existe a alienação do operário, da mulher etc.
□ Divisão do sujeito
O amor é uma relação; e a relação distingue-se, de um la
do, segundo os termos em relação e, de outro, segundo a natu
reza de seu fundamento. O que vem a ser essa relação no amor?
Para a autora, o amor é abandono total da vontade em proveito
do homem.
- Os termos em relação sào evidentemente o homem e a
mulher: ele é o amado e ela a amante, por essência.
- Qual o fundamento da relação amorosa? É um funda
mento único: a paixão da mulher; ora, essa paixão acaba
por identificar-se à mulher.
26l
Quarto m om ento: quais são os raciocínios
em pregados p a ra a demonstração?
O raciocínio será um silogismo de primeira figura. Ele
baseia-se na definição do amor:
- o amor é total entrega do próprio ser nas mãos de um
senhor. Ora, é isso a alienação. Logo, o amor é alienação.
• Leitura do texto
Este texto é extremamente denso. Um estudo lógico cerra
do permite revelar pouco a pouco a argumentação sutil e com
plexa que embasa a simplicidade aparente da idéia.
“Assim que uma mulher transpõe a fronteira do território
masculino, a natureza do combate profissional muda. As virtu
des que se exigem então de uma mulher, pergunta-se quantos
homens seriam capazes de mostrá-las.
262
Eu disse há pouco que a evolução atual das mulheres, a
forma que ela assumirá - e pode fracassar é a meu ver o tema
de perturbação mais profundo das sociedades desenvolvidas,
juntamente com a partilha do poder de decisão. Ateou-se um in
cêndio que diz respeito ao essencial das coisas, e em primeiro
lugar à família. A origem é a pílula, naturalmente. Não porque
ela permite evitar os filhos - esse é o aspecto acessório, por
mais cômodo cjue seja - e sim porque, pela primeira vez na his
tória da humanidade, cabe às mulheres a decisão sobre o objeti
vo mais fundamental. Biologicamente. E não apenas lhes cabe a
decisão, como elas não podem escapar dela, uma vez que não
tomá-la é uma forma de tomá-la.
E claro que essa responsabilidade maior está na origem do
movimento de fundo que se manifesta neste momento, e que
ela conduz à exigência de responsabilidades sociais.
Mas tudo isso é complicado. As mulheres não têm medo de
perder o que elas não têm, não é mesmo?... A autoridade, o co
mando, o poder, em suma, a decisão exercida por alguém que
não se sente ameaçado em sua virilidade ou obrigado a tranqüili-
zar-se a seu respeito, não terá nem os mesmos efeitos nem o
mesmo caráter. Portanto, todo acesso em massa das mulheres a
postos de responsabilidade deveria ter conseqüências considerá
veis, inestimáveis, na condução dos assuntos humanos.”
(Françoise GIROUD, Si je mens, Librairie Générale Française,
1974, Paris, pp. 140-1.)
263
volucionário”) não é designado: a tese está portanto oculta. Em
sua crueza e radicalidade, ela seria recusada por muitos leitores.
No entanto, é exatamente essa a intenção de F. Giroud. A idéia
está aí, ainda que as palavras não estejam.
□ Análise do predicado
Em primeiro lugar, o texto identifica revolução e “perturba
ção do poder”, isto é, mudança de poder. Por sua vez, o poder
é identificado com a autoridade e a força. Para a autora, essas
identificações são quase-defínições. Enfim, e chegamos à distin
ção, o poder divide-se como um todo em suas partes virtuais,
em autoridade detida pelo homem e autoridade detida pela mu
lher. Ora, de fato (por causa da situação social atual), mas não
de direito, a autoridade pertence atualmente apenas ao homem.
□ Análise do sujeito
Pode-se considerar a mulher numa dupla perspectiva: so
cial e biológica; no plano social, é preciso subdividir: a mulher
responsável que toma a pílula (e se “masculiniza”) e a mulher cul
pada, irresponsável (que recusa tomar a pílula e permanece mu
lher).
Cabe notar que a primeira divisão é a de um todo virtual
em suas partes, e a segunda (subdivisão de social), a de um aci
dente em suas partes.
264
Sexto momento: observação crítica
Após esse “descascamento", percebe-se melhor o interesse
da lógica: ela explicita e revela o que uma simples leitura deixa
ria despercebido; ela sobretudo desativa as bombas intelectuais
que esse gênero de textos fazem explodir em nós, freqüente
mente sem o sabermos: com efeito, mesmo e sobretudo se não
desarticularmos esse tipo de escrito, o impacto intelectual-afetivo
permanecerá intacto.
Ora, o texto é de inspiração marxista. A discussão em ter
mos de poder (identificado com a autoridade) e a dialetização
das relações (particularmente homem-mulher) são dois sintomas
típicos disso.
Se quiséssemos entrar nos detalhes, é cada proposição do
catassilogismo que seria preciso avaliar:
- Será a revolução proletária o motor da história?
- A autoridade é a totalidade do poder político?
- A mulher é mulher em seu corpo ou também em seu psi
quismo?
- Pode a pílula mudar a natureza (sexuada) da mulher?
Ela pode negar artificialmente uma de suas dimensões (a
saber, a procriação); mas interfere na dimensão erótica
ou das relações?
265
C a p ít u l o V I I I
267
ou de grau de dificuldade, não de natureza, em relação a outros
tipos de dissertação filosófica, como a de licenciatura.
O mais simples e mais pedagógico será tomar um único
exemplo que servirá ao longo de toda a exposição. Seja o tema
de dissertação filosófica arquiclássico: “Será o homem apenas
consciência?”
Para as questões de organização, de material, de técnica de
anotações, permitimo-nos remeter ao nosso livro Travailler avec
métbode c ’est réussir [Trabalhar com método é obter êxito]1.
268
risco é sair cío tema. E sair cio tema é tão arriscado quanto sair
da pista...
269
a técnica do brain-storming tem uma eficácia reduzida:
retêm-se apenas algumas idéias por cento. Mergulhar no
dicionário ou nos livros de filosofia para ver o que os fi
lósofos antes de você pensaram a respeito do tema. Você
recolherá uma grande quantidade de opiniões, mas como
juntar em feixe trigo, beterraba e abacaxi? Não se começa
uma casa acumulando pedras, mas perguntando-se que
tipo de casa se deseja; se for na montanha, há de se pre
ferir talvez a madeira à pedra...
- Dividir o tema em palavras não é muito melhor. Esse ti
po de método conduz diretamente à dissertação-salsicha,
que é um gênero a proscrever formalmente. Com efeito,
seria regredir ao nível da primeira operação do espírito.
Ora, ela está a serviço do juízo (segunda operação do es
pírito) colocado pela problemática. É verdade que a or
dem da inteligência supõe que se passe do mais comum
(o tema) ao mais distinto, dividindo; mas primeiro con
servando sua estrutura molecular, não pulverizando-a.
□ Por quê?
Dedicamos um capítulo inteiro a essa questão tão importan
te, se não for a mais importante. Ela é tão essencial que conheço
um professor que aconselha a seus alunos escrever em letras
maiusculas bem visíveis, no dia do exame, no alto da folha de
rascunho: QUAL É A QUESTÃO QUE ESTÃO ME PROPONDO?
□ O que é?
Quais são os critérios da verdadeira problemática? É o mo
mento de aplicar o que estabelecemos no capítulo II. Uma ver
dadeira problemática comporta dois conceitos e apenas dois. Es
se é o critério decisivo. Um bom número de dissertações ficam
comprometidas porque são compostas de múltiplos conceitos,
porque seu autor (o aluno) quer sempre dizer tudo na proble
mática, encerrando ao mínimo o TM com ela. Quem muito abar
ca, pouco une.
270
Além disso, o predicado é mais universal que o sujeito.
Enfim, uma problemática deve colocar uma verdadeira
questão, deve mobilizar a atenção e o interesse do leitor. Se vo
cê se perguntar: “É o homem consciente?”, a resposta tem mui
tas chances de ser positiva e sem surpresa, e o desenvolvimento
enfadonho.
□ Como?
Do tema proposto pelo professor à problemática escolhida
pelo aluno.
De um estrito ponto de vista lógico, segundo os critérios
empregados na primeira parte, é possível distinguir três tipos de
problemáticas:
- O tema que é um juízo colocado sob forma interrogativa.
Cumpre ainda distinguir se há dois ou mais conceitos, e
sobretudo se a resposta é dada por sim ou não ou se im
plica outras respostas possíveis. Por exemplo: “O que
nos ensinam do homem as ciências do homem?” é um
tema que pede uma resposta complexa.
- O tema que tem a forma de um juízo em modo afirmati
vo. “Eu é um outro”. Essa forma é mais rara.
- O tema que não tem mais a forma de um juízo, mas de
uma justaposição de um ou de vários conceitos. Por
exemplo: “Ver” (um único conceito) foi um tema de filo
sofia proposto no concurso de ingresso à Escola Normal
Superior em filosofia: “Verdade e evidência”, “Natureza e
cultura” (dois conceitos).
De um ponto de vista bem mais prático-habitual sem fun
damento lógico rigoroso, mas muito cômodo, distinguiremos as
problemáticas claras e as problemáticas obscuras.
- As problemáticas claras:
No caso ideal, é a problemática de dois conceitos proposta
em forma interrogativa que pede uma resposta por sim ou não.
E preciso também que os termos não sejam nem difíceis (técni
cos), nem ambíguos. Fazem parte ainda das problemáticas claras
as afirmações com dois conceitos, a exemplo da que propuse
mos mais acima: “Será o homem apenas consciência?”
A tendência do vestibular tem sido propor cada vez mais
temas que correspondam aos critérios da problemática clara.
271
- As problemáticas obscuras■.
Num ano, foi colocada esta questão: “Será a inconsciência
o álibi do inconsciente?” O termo “álibi” já não é simples de
compreender; além disso, a repetição da mesma palavra (“in
consciente”) numa problemática não é propícia à compreensão:
o aluno tem medo de se atrapalhar, e com razão.
272
seu sentido. Jamais se deixe encerrar numa formulação. Por
exemplo, sua problemática é: “Será o homem apenas consciên
cia?”. Você pode traduzi-la: “Pode-se reduzir o homem à cons
ciência?”, “Uma parte da pessoa humana é não consciente?”, “A
totalidade do homem se resume à consciência?”, “Encontra-se
nele outra coisa além da consciência?” etc.
Você verá que proceder assim torna a inteligência livre,
pois isso coloca à sua disposição um “teclado” ampliado de pa
lavras (não de conceitos); a melodia será mais variada, a leitura
mais agradável. A boa gestão das palavras flexibiliza o espírito.
273
A dificuldade logo surge: mas como saber de imediato a
resposta ao tema? Não será cair no dogmatismo? Na verdade,
uma armadilha muito mais temível o ameaça, que é o ceticismo
sincretista. Além disso, a experiência mostra claramente que, se
você não responder de imediato à questão, jamais a responderá.
É uma questão de boa navegação: se quiser avançar, já deve ter
uma idéia da direção de seu objetivo. Não digo ter a conclusão
na cabeça com todos os detalhes. Por outro lado, o plano, que
constitui a quarta etapa, permitirá escapar às tentações de rigi
dez intelectual. Enfim, fixar a resposta é prova de comedimento,
não de prometeísmo; ignorar onde você vai é começar um tra
balho que não tem fim. Por exemplo, quando interromper a co
leta de material? Muitas das angústias e das tentativas de aborda
gem que nunca chegam a abordar devem-se ao fato de o objeti
vo, portanto o termo, não ter sido fixado: ele se afasta à medida
que se acredita tocá-lo. Confunde-se objetivo com horizonte. E
fica-se às voltas com divisões de tempo do gênero: tema dado
há três semanas, dez dias para juntar a documentação e uma
noite em claro para redigir às pressas uma dissertação enciclopé
dica desossada que lembra deploravelmente a mesa de trabalho
de Gaston Lagaffe [personagem trapalhão de uma história em
quadrinhos francesa],
A atitude a tomar é portanto refletir por um momento dian
te de sua problemática e decidir a resposta que lhe parece ver
dadeira.
A questão em questão
274
um projeto, psicologicamente não nos sentimos mais ligados
por ele e todas as suas determinações. Todos sabem por ex
periência que uma tarefa inacabada - mesmo se ela expõe
coisas inacabadas como aqui - é obsedante. Se jamais
conseguíssemos concluir, mesmo muito modestamente, não
teríamos nenhuma liberdade. Devemos procurar resolver pro
blemas, ainda que saibamos que suas conclusões finais per
tencem a um futuro muito distante. N o entanto trabalhamos
neles sem descanso porque queremos concluir. A questão é
importante - a conclusão o é ainda mais."
275
Isso não quer dizer que jamais se deva concluir, já que dis
semos o contrário na etapa precedente. Mas esse tipo de plano
conclui em excesso e demasiado cedo.
- Inversamente, há o plano que não conclui jamais - é o
famoso plano dialética, tese-antítese-síntese. Diga-se de
passagem, nem as palavras nem o sentido habitual dado
a essas palavras é hegeliano, trata-se antes de uma cari
catura.
Esse plano, com efeito, é sempre do gênero: 1)A. 2) não-
A. 3) junto os pedaços e não concluo. Por exemplo: 1) O ho
mem é consciência. 2) O homem não é consciência. 3) O homem
é ao mesmo tempo dotado de consciência e inconsciente.
- Evite, por fim, o plano-salsicha dividido em função dos
conceitos da problemática, isto é: 1) O sujeito. 2) O pre
dicado. 3) A união dos dois. Por exemplo: 1) O homem.
2) A consciência. 3) Será o homem apenas consciência?
Com efeito, a experiência mostra que as duas primeiras
partes em geral nada têm a ver com o tema: você começa a falar
do homem em geral, para encher o vazio da folha em branco
(“O importante é conseguir encher quatro (ou dez) páginas!”).
Além disso, é raro que a terceira parte se fundamente nas análi
ses e nas conclusões das duas primeiras.
□ Por quê?
Todos os professores da terra martelam os ouvidos de seus
alunos com esse famoso plano que constitui, juntamente com a
problemática, uma das duas chaves do êxito da dissertação. No
final das contas, talvez eles tenham razão!
E que o plano dita as idéias. Lembre-se sempre do princí
pio de Tomás de Aquino: “A ordem entre as idéias vale mais do
que as próprias idéias”, que remete a este outro, de seu mestre
Aristóteles: “O próprio do sábio é pôr ordem.”3 Livre-se da ilu
são constante de que as idéias secretam o plano.
276
□ O que vem a ser um plano?
Ocupamo-nos abundantemente do plano no capítulo VI.
Lembremos apenas que não se deve confundir a ordem do pla
no (ou ordem de determinação) e a ordem do raciocínio.
□ Como?
Vimos os planos a evitar cuidadosamente. Mas, então, que
plano propor? Você talvez se lembre que havíamos distinguido
dois tipos de plano, conforme o texto girasse em torno de uma
ou de várias problemáticas (cf. capítulo VI). Aqui, voluntaria
mente, estruturamos a dissertação a partir de uma única proble
mática. Mas a grade então proposta para a leitura (tese, provas,
conseqüências, objeções) não é aplicável tal e qual, pois não le
va em conta suficientemente o trabalho da escrita, a vida da in
teligência em busca do verdadeiro, como tornaremos a ver den
tro de um instante.
Proporemos dois planos-padrão. Assim como os conselhos
que damos, eles são extremamente formais e gerais. Cabe a vo
cê completá-los e aplicá-los pelos exercícios. O primeiro tipo de
plano é o mais fácil de praticar. Comece por se familiarizar com
ele.
Exemplo
- Tese: “O homem é consciência.”
- Prova: você pode tomá-la da filosofia de René Descartes.
- Dificuldades: aqui, Sigmund Freud será bastante útil.
- Responda às objeções, disponha sua tese em função das
críticas feitas por Freud. Por exemplo: a consciência não
é a totalidade do homem, mas ainda assim constitui o es
sencial.
277
O plano é portanto tripartite. Nào se iluda com a aparên
cia: ele nada tem em comum com o plano dialético. Se quisésse
mos encontrar-lhe uma origem na história, ele lembra antes o
modelo dos requisitórios romanos (a defesa adota com freqüên
cia o seguinte plano: “Por certo, meu cliente é culpado... Mas
queiram considerar as múltiplas circunstâncias atenuantes, o fato
de ele ser jovem, sua infância infeliz... Por isso não posso senão
pedir a indulgência do júri...”) ou o princípio medieval compro
vado das questões disputadas (leia-se, por exemplo, um artigo
da Suma teológica de Santo Tomás cie Aquino).
A vantagem imensa desse tipo de plano é que ele é um
discurso a várias vozes que integra a diversidade das opiniões, e
sobretudo porque respeita a atitude da inteligência certamente
questionadora, mas orientada para o verdadeiro e a conclusão.
Respondemos assim à objeção de dogmatismo levantada
mais acima.
278
Quinta etapa: construir o raciocínio
279
seus termos médios, isto é, os conceitos capazes de unir os ter
mos da problemática. Mas não hesite em variar os tipos de racio
cínio: recorra a entimemas, raciocínios pelos exemplo, induções.
Isso varia o estilo e mantém a atenção, sem fazê-lo de maneira
nenhuma afastar-se de sua problemática.
Além disso, utilize os raciocínios para demonstrar não ape
nas a tese principal, mas também para manifestar cada subtese
enquanto ela não for suficientemente evidente.
Enfim, lembre-se do que dizíamos sobre o plano de um
texto articulado em torno de uma problemática: é possível intro
duzir conseqüências ou objeções, desde que não se tornem de
masiado invasoras, sem jamais perder o fio de sua argumenta
ção, bastando indicá-lo com uma frase (“Uma conseqüência in
teressante é...”; “Observe de passagem...” etc.)
Por exemplo, na primeira parte de sua dissertação, você
quer demonstrar que o homem é consciência, que ele é dotado
de consciência.
Você pode proceder assim: o homem é pensamento; ora, o
pensamento é consciência; logo, o homem é consciência. Esse é
o raciocínio principal que estrutura toda a sua primeira parte.
Cada proposição pode constituir um parágrafo.
Mas não se detenha em tão bom caminho. É preciso agora
expor cada uma das premissas.
- O homem é pensamento. Com efeito, o homem é dota
do de linguagem; ora, não há linguagem sem pensamen
to; logo...
- O pensamento é consciência. Você pode apelar para
Descartes, mas lembrando-se dos conselhos que foram
dados: nada de citações quilométricas. Você pode tam
bém elaborar um raciocínio, por exemplo, um entimema:
o animal não é dotado de consciência; ora, o animal não
pensa.
280
- com efeito, o animal não é dotado de consciência;
- ora, o animal não pensa;
- logo, o pensamento é consciência.
Portanto, o homem é consciência.
281
vorece, sobretudo se as referências são de segunda mão (tiradas
de um dicionário, por exemplo). Ela não engana ninguém, prin
cipalmente o professor que sabe o que seus alunos leram e po
dem ler; sem falar que em geral ele conhece os manuais à dis
posição deles. A inteligência, o saber, não se manifestam na
quantidade, mas na escolha judiciosa das citações.
- Enfim, seja flexível. Se, ao pesquisar o material, você
perceber que não levou em conta uma idéia essencial, in
tegre-a em seu plano, alterando o mínimo possível sua
ordenação. Também aí o melhor é muitas vezes o inimi
go do bom. Não existe plano ideal. Pratique um vaivém
entre o plano e os materiais, adaptando o primeiro aos
segundos. Se não encontrar mármore na pedreira, retire
as colunas da fachada!
282
pre é praticável, sobretudo no dia do exame quando, de fato, no
papel, você deve efetivamente começar pela introdução. Proce
da então assim:
- No rascunho: respeite a ordem de que falamos:
Plano detalhado o máximo possível (juntamente com os ra
ciocínios: portanto você entrelaça a ordem de determinação com
a ordem de demonstração); a experiência mostra que, por ques
tão de tempo, raramente é possível redigir todo o texto no ras
cunho. Mas às vezes é bom, e até necessário, redigir no rascu
nho uma parte mais delicada, difícil.
Redação da conclusão.
Redação da introdução.
- Ao passar a limpo: redação de todo o texto, na ordem da
leitura.
- Quanto à introdução:
A introdução ideal responde às seguintes questões: de que
se está falando? (o leitor gosta de saber aonde vai) Por que se
está falando? Como se está falando disso? É inútil comentar essa
ordem: você pôde vê-la praticada em todo este livro e perceber
sua eficácia. Uma boa introdução contém portanto, e nesta or
dem, os seguintes pontos: o objeto do trabalho (isto é, a questão
ou problemática), seu interesse, as grandes balizas do plano (dê
apenas as duas ou três partes principais; as subdivisões serão
evidentes ou anunciadas à leitura de cada parte).
- Quanto ao desenvolvimento:
Um plano muito preciso é sua bússola. “Carnalize” seu pla
no, ilustre, recorra às citações, dê alguns corolários sugestivos
etc. Mas não perca jamais o fio de Ariadne que é o plano. Toda
dissertação é sempre suscetível de se mover num labirinto no
qual quem corrige seria o impiedoso Minotauro, sem nenhum
Teseu para salvá-lo no dia do exame.
- Quanto à conclusão:
Uma boa conclusão é tanto fechamento quanto abertura.
Ela lembra o que foi dito ao resumir os pontos principais, e con
clui com firmeza ao responder à problemática (essa é sua fun-
283
ção essencial); depois ela mostra que o tema nào está esgotado,
que ele comporta ainda eventuais dificuldades, que há corolários
fecundos. A conclusão compreende assim duas partes: recapitu-
lativa e aperitiva. Mas a primeira é a mais importante: é necessá
rio que, no final, a inteligência esteja em um repouso relativo.
Resumo
Retomemos a analogia da construção da casa, pois é uma
parábola eloqüente da dissertação. Quem quer construir uma ca
sa passa pelas seguintes fases: em primeiro lugar, pergunta-se se
irá construir uma casa (primeira e segunda etapas); depois, ne
cessariamente, responde (terceira etapa); então procura um ar
quiteto e determina o plano, global (quarta etapa) e mais deta
lhado (quinta etapa); somente então é que se acumula o material
(sexta etapa) e que estruturas e acabamentos são executados
(sétima etapa).
Lembremos enfim que esses conselhos valem para a disser
tação filosófica, mas que é fácil aplicá-los, mediante adaptação,
aos outros “gêneros literários” de dissertação.
284
Há necessidade de outros meios além dos que foram
expostos?
Sei que alguns professores e manuais propõem técnicas de
dissertação bem mais sofisticadas. Isso me parece uma complica
ção inútil quando as regras enunciadas acima foram devidamen
te assimiladas e sobretudo quando se compreendeu seu funda
mento lógico. Além do mais, a multiplicação das regras corre o
sério risco de fazê-lo cair no pensamento padronizado (ou na
redação padronizada) que acabamos de fustigar com rigor.
285
CONCLUSÃO
287
se nenhuma verdade estanca definitivamente a sede da inteli
gência, esta busca o apaziguamento da resposta, não a angústia
do questionamento perpétuo. A verdade não é uma amante ru
de, mas antes uma rainha da qual a inteligência é a serva alegre
e fecunda.
Concretamente, isso significa que você deve agora pôr em
prática a arte de pensar e continuar (ou começar) a se cultivar.
A verdade é feita para o amor. A pessoa, com efeito, é ser
de doação; o ser só recebe a verdade das coisas (diástole) para
inclinar-se para elas e amá-las (sístole). E o que dizer então
quando se trata de pessoas?
Mas, em seu próprio dinamismo, a verdade chama o amor.
Por quê? Gostaria aqui de passar a palavra a um dos maiores
pensadores de nosso tempo, Hans Urs von Balthasar. Estas bre
ves reflexões são de uma riqueza que ultrapassa qualquer co
mentário. Merecem que você medite sobre elas longamente e
com freqüência: “Podemos ser tomados de pavor ao constatar o
quanto as coisas no fundo são desnudas, apesar de toda prote
ção de que possam se cercar, a que ponto também elas nos en
caram, por assim dizer, sem o menor intermediário, a que pro
fundidade podemos, por nosso lado, sondá-las com o olhar até
o núcleo delas, o quanto enfim elas próprias se traem, ou me
lhor, são já traídas antes mesmo de terem pensado em se expri
mir de uma maneira consciente. É nessa nudez que a verdade
lança seu grito para implorar a proteção de um amor que com
preenda. No ato do conhecimento como tal, deve haver uma ati
tude de benevolência, senão de compaixão, que acolha o objeto
sem defesa envolvendo-o numa cálida atmosfera de amor e de
discrição.”
E mais: “O mistério do ser, como dissemos, é um mistério
essencial, um mistério irredutível, um mistério cuja grandeza in
teira só irrompe vitoriosa no momento em que a verdade parece
plenamente revelada e desvelada. É muito simplesmente o mis
tério da profundidade, da interioridade, do valor inestimável do
ser. É nessa profundidade que se enraíza tanto a possibilidade
como a realidade do amor. Ora, se o amor vive no coração do
ser, e se esse coração permanece sempre íntimo e misterioso
por essência, é o mistério, portanto, que quer para si mesmo
permanecer mistério. O amor, que é o sentido e o fim de todas
288
as coisas, de modo nenhum aspira a chegar ao fundo de si mes
mo sem deixar mistério, ele é mistério tão substancial que será
sempre, a seus próprios olhos, uma maravilha inconcebível. Ele
próprio se oculta de si mesmo porque se considera demasiado
luminoso, demasiado evidente para si mesmo. Ele é o coração
adorável de todas as coisas, mas ele próprio nào se adora, ao
contrário, desvia de si seu olhar num movimento inexprimível."
(Pbénoménologie de la vérité, Paris, Beauchesnes, 1952, pp. 1956־
e 202; cf. toda a passagem pp. 195-205 )
289
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
291
ed. francesa, trad. Tricot, “Bibliothèque des textes philo-
sophiques”, Paris, Vrin, 5 tomos (nova edição, 1969 a
1974). Essa é a obra de base, fonte inesgotável à qual se
deve sempre voltar.
- Alain ARNAUD e Pierre NICOLLE, La logique ou Vart de
penser contenant, outre les regies communes, plusieurs
observations nouvelles, propres à former le jugement, col.
“Champs”, Paris, Flammarion, 1970. Um clássico.
- Robert BLANCHE, Le raisonnement, “Bibliothèque de
Philosophie contemporaine”, Paris, PUF, 1973· Claro e
minucioso.
- BOSSUET, Logique du dauphin, col. “Les grandes leçons
de philosophie”, Paris, Editions Universitaires, 1990. Um
tratado completo de lógica clássica cujo interesse é mais
do que histórico.
- Lewis CARROLL, Logique sans peine, trad, francesa, Paris,
Hermann, 1966. Esse livro do autor de Alice no pais das
maravilhas é divertido e muito claro.
- François CHEN1QUE, Elements de logique classique. I.
Part de penser et de juger, II. L'art de raisonner, Paris,
Dunod, 1975. Livro muito claro. Exercícios. Amplamente
inspirado na obra seguinte (do cônego Collin).
- Henri COLLIN, Manuel de philosophie thomiste. I. Logique
formelle. Notions de métaphysique générale, de Cosmolo-
gie et d ’Esthetique, Paris, Téqui, reed. Muitos exercícios e
quadros esclarecedores.
- Gilbert DLSPAUX, La logique et le quotidien. Une analyse
dialogique des mécanismes d ’argumentation, col. “Argu
ments”, Paris, Minuit, 1984. Concreto e original.
- Gilles DOYON e Pierre TALBOT, La logique du raisonne
ment. Theorie du syllogisme et applications, col. “Philoso
phie”, Sainte-Foy, Le Griffon, 1985. Centrado no silogis
mo. Múltiplos exercícios.
- Paul FOULQUIÉ, Traité élémentaire de philosophie. II. Lo
gique et morale, Paris, Editions de 1’école, nova ed., 1950.
Claro, mas muito geral.
- Henri-Dominique GARDEIL, Initiation à la philosophie de
St Thomas d ’A quin. I. Introduction et Logique, Paris, Cerf,
1952. Muito claro.
292
-Je a n GLUTTON, Apprendre à vivre et à penser, “Le Signe”,
Paris, Fayard, 1970.
- Régis JOLIVET, Traité de philosophie. /. Logique et cosmo-
logie, Lyon-Paris, Emmanuel Vitte, 7- ed., 1965. Claro.
-Jacques MARITAIN, Elements de philosophie. II. L’ordre
des concepts, Paris, Téqui, 1923· Completo, claro e bem
documentado.
- P. MOUY, Logique, Paris, Hachette, 1944.
-P ie rre OLERON, L argumentation, “Que sais-je?” 2087,
Paris, PUF, 1983; idem, Le raisonnement, “Que sais-je?”
1671, Paris, PUF, 2a ed., 1982.
- Chaim PERELMAN e Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Traité
de Vargumentation, Bruxelas, Editions de 1’Université de
Bruxelles, 5â ed., 1988. Livro original e interessante, ainda
que incrimine demais o raciocínio forçado.
- Charles SERRUS, Traité de logique, Paris, Aubier, 1945■
-Jo h n STUART MILL, Système de logique inductive et de
ductive, trad, francesa, Paris, Alcan, 1889■
- Jean TRICOT, Traité de logique formelle, Paris, Vrin. Limi
tado ao aspecto formal da lógica clássica. Sistemático e
minucioso.
- Roger VERNEAUX, Introduction générale et logique,
“Cours de philosophie”, Paris, Beauchesnes, nova ed.,
1964. Escolar, límpido.
293
- Roland FRAISSE, Cours de logique matbématique, Paris,
Gauthier-Villars, 3 tomos, 1971-1975. Técnico.
-Jean-Blaise GRIZE, Logique moderne, Paris, Gauthier-
Villars, 1973, 3 tomos. Ultrapassa o quadro de uma in
trodução.
- Gilbert HOTTOIS, Penser la logique. Une introduction
technique, théorique et pbilosopbique à la logique formel-
le, Bruxelas, Éditions Universitaires, 1989· Apresenta a ló
gica ‘clássica e a lógica formal contemporânea. Claro.
- Stephen C. KLEENE, Logique matbématique, trad. france
sa, série “Epistémologie”, col. “U”, Paris, Armand Colin,
1971. Um clássico. Bastante difícil.
- Denis VERNANT, Introduction à la pbilosopbie de la logi
que, “Philosophie el langage”, Liège-Bruxelas, Pierre Mar-
gada, sem data. intermediário entre lógica clássica e lógi
ca formal.
Livros de retórica
294
ÍNDICE
I. O NÍVEL DE LEITURA........................................................... 23
O que é?..................................................................................... 23
O texto que se dirige à sensibilidade................................. 24
O texto que se dirige à inteligência.................................... 26
O texto que se dirige à vontade........................................ 27
Diferença entre os textos que se dirigem à inteligência e
os textos que se dirigem à vontade.................................... 28
Por que o distanciamento crítico?............................................. 29
Primeira razão..................................................................... 30
295
Segunda razão................................................................... 31
Como proceder?......................................................................... 33
Primeiro, observar suas reações imediatas......................... 33
A seguir, determinar friamente o nível do texto................ 34
Em particular, como reconhecer um artigo, um texto sus
cetíveis de manipulação?.................................................... 35
Exercícios................................................................................... 46
296
O que é a indução?............................................................ 119
Como?................................................................................ 127
O raciocínio por similitude...................................................... 128
Por quê?............................................................................. 128
O que é?............................................................................. 132
Como?................................................................................ 135
O entimema............................................................................... 136
O que é?............................................................................ 136
Por quê?............................................................................. 138
Como?................................................................................ 138
Uma forma particular de entimema: a teoria...................... 141
Os pseudo-raciocínios............................................................... 148
O raciocínio por acidente.................................................. 148
O raciocínio dialético......................................................... 149
Conclusão.................................................................................. 149
Exercícios................................................................................... 151
297
Como definir?............................................................................. 195
Os critérios da definição correta: como definir bem.......... 196
Localização da definição que está no texto........................ 201
Avaliação dessas definições................................................ 202
Exercícios................................................................................... 203
298
Quinta etapa: construir o raciocínio................................... 279
Sexta etapa: reunir o material............................................. 281
Sétima etapa: redigir........................................................... 282
Resumo............................................................................... 284
Alguns conselhos gerais............................................................ 284
Existem receitas para fazer uma boa dissertação?......... 284
Há necessidade de outros meios além dos que foram
expostos?........................................................................... 285
Uma reflexão freqüentemente ouvida: a dissertação
filosófica é um gênero difícil?.......................................... 285
Conclusão................................................................................... 287
299
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
YANGRÀF
GRÁFICA E EDITORA LTDA.
TEUFAX.: (011) 218-1788
RUA: COM. GIL PINHEIRO 137
Coleção Ferramentas
Madeleine Arondel-Rohaut
Exercícios rilosóficos
Pascal Ide
A Arte de Pensar