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A ART E DE

P E N : SAR

M a rtin s Fontes
isbn as-aab-iBBs-s

Coleção Ferramentas

Os manuais reunidos nesta coleção


oferecem a instrumentação necessária
p a ra o trabalho intelectual nos
diferentes níveis e nas mais diversas
áreas. 0 estudante que prepara o
vestibular, o pesquisador de humanas
ou exatas que escreve uma tese, o
funcionário que redige um documento
etc. encontrarão aqui informações
preciosas e orientações inteligentes
p a ra o seu trabalho.

m
A ARTE DE PENSAR
A ambição desta obra não é tornar você mais

erudito, e sim mais inteligente, isto é, fazer


frutificar sua inteligência. Não se trata de
acrescentar um livro a sua biblioteca, mas de

fazer você ler os livros que já estão nela e, antes


de mais nada, se for preciso, dar-lhe o gosto

dessa leitura. 0 homem, muito freqüentemente,


dá a impressão de que sua inteligência é um

veículo que, tendo esquecido que possui cinco


marchas, se arrasta em primeira. Foi repetido
nos últimos anos que exploramos apenas 10%

de nosso cérebro; seria mais correto dizer


10% de nosso espírito. De fato, todos nascemos
com uma inteligência, mas ninguém nasce com

o manual de instruções para utilizá-la. Cabe à

educação fornecê-lo. Mas jamais vi, nem na


escola nem na faculdade, um curso intitulado
Arte de pensar ou Como administrar seus
recursos intelectuais. É lamentável. Este livro
gostaria, no limite das competências de seu
.tutor, de preencher essa lacuna.

I«|ID
> ijmIIhi A./‫ ״‬.i ll.iimm‘Ih m iiJb i eM exanthe M artins Fontes
A ARTE DE PENSAR

Pascal Ide

Tradução
PAULO NEVES

Revisão da tradução
MARINA APPENZELLER

Martins Fontes
São Paulo 2000
Prefácio

PO R QUE UMA ARTE DE PENSAR?

‫ )(׳‬homem é apenas um caniço, o mais fraco tia natureza;


nus 1■ um caniço pensante”, dizia Pascal1. As preocupações, as
‫■ו יו‬,‫׳‬,iludes da vida, encarregam-se regularmente de mostrar-lhe
‫ יוון׳‬é um caniço bastante vulnerável. Mas será que lhe dizem
iiIk ienlemente que ele é pensante, isto é, que a faculdade de
‫ויי׳ ן‬is.ir, juntamente com a capacidade de amar, é sua grande no-
liir/.a‫) ( ׳׳‬ra, o indivíduo não nasce mas se torna animal pensante.
A ambição desta obra não é tornar você mais erudito, e sim
ui,1i·‫ ׳‬inteligente, isto é, fazer frutificar sua inteligência. Não se
ii 11,1 di· acrescentar um livro à sua biblioteca, mas de fazer você
b 1‫ ־‬os livros que já estão nela e, antes de mais nada, se for preci-
‫ יי‬dar lhe o gosto dessa leitura. O homem, muito freqüente-
inciile, dá a impressão de que sua inteligência é um veículo
‫ ·וון׳‬lendo esquecido que possui cinco marchas, se arrasta em
‫׳ ן‬limeira. Foi repetido nos últimos anos que exploramos apenas
I·)"!‫ ו‬de nosso cérebro; seria mais correto dizer 10% de nosso es-
pirllo De fato, todos nascemos com uma inteligência, mas nin-
‫׳‬,nem nasce com o manual de instruções para utilizá-la. Cabe á
• durae.‫ סו‬fornecê-lo. Mas jamais vi, nem na escola nem na facul-
1.1 ‫ (׳‬le, um curso intitulado Arte de pensar ou Como administrar
! /o recursos intelectuais. É lamentável. Este livro gostaria, no li-
‫ין‬111‫ י‬das competências de seu autor, de preencher essa lacuna.
Nao tenho, aliás, pretensões de originalidade. Uma boa
pii a ‫ ׳‬das noções que serão desenvolvidas já foram detalhadas
1• ·»‫ ן‬um dos maiores filósofos gregos, Aristóteles, numa série de
1‫׳‬bra·· as quais ele deu o sugestivo nome de Organon, ou seja,
1n1111‫׳׳‬mento. Tamanha era a necessidade, para ele, de aparelhar

I l \ ‫׳‬nsí>es. n264 ‫״‬, ecl. Chevalier, e nQ 347, ed. Brunschvicg, in Oeuvres


‫«״‬///‫׳‬/171‫׳‬s. B iN iothèque d e la P lêiade”, Paris, Gallimard, 1954, pp. 1156-7.

VII
a inteligência para poder pensar de maneira adequada. Infeliz-
mente, depois de Aristóteles, fizeram desse ensinamento uma ciên­
cia à qual foi dado o nome abstrato de lógica, ao passo que ela
é uma arte, ou seja, uma disciplina que se pratica para melhor
viver e, aqui, para melhor pensar. A arte de pensar está para a
razão assim como a ginástica para o corpo.
Esta obra é também o resultado de um curso dado muitas
vezes e cujos frutos pude constatar. E eu mesmo utilizo com en­
tusiasmo, há uns dezessete anos, o método que vai ser desen­
volvido.
Este livro destina-se tanto ao estudante secundário quanto
ao universitário que têm necessidade de um maior rendimento
intelectual. Também é escrito para todos os que gostam de ler e
que gostariam que sua leitura não fosse apenas uma boa lem­
brança, sua apreciação reduzida a um frustrante e lacônico:
“Gostei.” Dirige-se igualmente aos que devem redigir um texto
com rigor - as leis da escrita são muito próximas das da leitura,
que são as do pensamento. O pensamento é primeiramente re­
ceptivo, depois criativo ou produtivo; antes de produzir seu fru­
to, a árvore recebe a luz do sol e os sais minerais da terra.
Enfim, como utilizar este livro? Não existe prêt-à-porter in­
telectual, existe apenas sob medida, pois cada um é único. Por
isso cada capítulo contém numerosos exercícios. Eles não foram
escritos para serem contemplados, mas para serem feitos! Do
mesmo modo, você encontrará uma série de exercícios no final
do livro, que recapitulam todas as noções desenvolvidas nos di­
ferentes capítulos. Jean-Claude Lamy, que entrevistou mais de
duzentos “craques”, constata que “os bons em matemática prati­
cam muitos exercícios; eles não se detêm a decorar as lições,
mas dedicam 80 a 90% de seu tempo a empregar seus conheci­
mentos em exercícios”. Faça o mesmo se quiser que essa peque­
na obra tenha proveito. Eis aqui uma outra constatação interes­
sante do mesmo autor: o “cerne do segredo dos bons alunos” é
“uma gestão de seu capital intelectual que vise ao pleno empre­
go de suas capacidades crescentes”2.
E, agora, coragem.

2. Vive les cracks. “Vie et m oeurs des ‘bêtes à coneours’ ”, Paris, Jean-Clau­
de Lattès, 1989, pp. 24-5.

VIII
PALAVRAS-CHAVES

Abstração: é o processo cia inteligência que extrai (do la-


im! iihsiraberé) das realidades sensíveis, materiais, sua essência
mirhgivel e universal. O abstrato não é um anexo cristalizado
•11· i! uh ri-io múltiplo e abundante, é o cerne desse concreto. Por
‫ ׳‬xrmplo, dizer de um determinado ser que ele é um homem ou
>iin.i pessoa é extrair do real sua essência e dizer o que ele tem
•1· nuis profundo, muito mais do que se contentar em descrevê-
I>‫ ׳‬I nqiianto os sentidos se detêm no sensível, somente a inteli-
·> in i.i e capaz de conhecer o que é abstrato. O fruto da abstra-
>,im e o conceito (cf. Introdução).

<ionceito: conceito vem de concepção. O conceito é portan-


i>>>i fruto da atividade da inteligência. É o que exprime o célebre
>iso do poeta Boileau: “O que bem se concebe, enuncia-se cla-
i.imente.” Hoje, conceito é sinônimo de idéia (cf. Introdução).

Dedução: é um raciocínio que vai do universal ao singular.


im se deve confundi-lo com o silogismo, como ocorre freqüen-
I‫ ׳‬mente: o silogismo permanece no universal, e sobretudo ofe-
nve a causa (cf. capítulo III).

Definição: é uma operação ou um instrumento da inteli-


·.■> ia ia (no caso, a primeira das três operações da inteligência)
pela qual ela diz distintamente o que é a coisa. Por exemplo, a
Icliniçao de “looping” é: “acrobacia aérea que consiste em uma
alça no plano vertical” - o que diz precisamente o que ele é (cf.
( apítulo V).

Divisão: é um instrumento da inteligência que lhe permite


por ordem no múltiplo, no confuso. Assim a inteligência irá dis-

IX
tinguir as rochas em sedimentares, vulcânicas e metamórficas
para pôr ordem no interior desse vasto gênero formado pelas di­
ferentes rochas. A divisão segue regras lógicas precisas (cf. capí­
tulo IV).

Entimema: é um dos quatro tipos de raciocínio. O que ca­


racteriza o entimema é que ele se baseia num sinal ou num lu­
gar-comum, isto é, numa idéia aceita por todos. Por exemplo, “o
mistral sopra, não teremos chuva” (cf. capítulo III).

Exemplo (raciocínio pelo): no sentido técnico, que é o


nosso, é um dos quatro tipos de raciocínio. O que caracteriza o
raciocínio pelo exemplo é que ele se baseia numa analogia com
o sujeito da problemática. O raciocínio pelo exemplo não tem
portanto o sentido habitual de exemplo ou de ilustração. Trata-
se de um raciocínio muito fraco, pois a similitude está distante
da causa. Ele busca mais convencer do que provar, mostrar do
que demonstrar. “Prost dirige lentamente na estrada” (subenten­
dido, você também deve dirigir lentamente) é um raciocínio pe­
lo exemplo (que não foi formulado) (cf. capítulo III).

Figura: chama-se figura de silogismo a forma deste. Essa


forma é ditada pelo grau de universalidade do termo médio
comparado ao do termo maior e do termo menor. Distinguem-se
assim três figuras de silogismo (cf. capítulo III).

Indução: é um dos quatro tipos de raciocínio. O que ca­


racteriza a indução é que ela se baseia numa enumeração de ca­
sos singulares para se elevar ao universal. Por exemplo, Claude
Bernard observa que certos animais em jejum têm urinas claras
(ácidas) e conclui disso que todos os animais em jejum têm uri­
nas claras (cf. capítulo III).

Inteligência: é uma faculdade própria ao homem cujo ato


é compreender a essência das coisas. A etimologia de inteligên­
cia é: “intus legere”, ler dentro. A inteligência é, portanto, como
que a capacidade de ler no interior das realidades o que elas
são, ao passo que os cinco sentidos se detêm nas aparências ex­
teriores.

X
\ inteligência tem três operações, que vão da mais simples
, ,,, i! >‫׳ ׳‬iiiplexa: a apreensão (cujo objetivo é a definição), o juí-
. i . 11|i >«»hjelivo é enunciar o verdadeiro e o falso) e o raciocí-
.... (. ii|‫ ׳ ׳‬objetivo 6 estabelecer o juízo) (cf. Introdução).

fin/.o: e a operação da inteligência que une dois conceitos


i 11|i im e predicado) atribuindo um ao outro (o predicado ao
111« ii‫ ׳‬i), com o objetivo de enunciar o verdadeiro ou de denun-
, i! ‫ ״‬lalso. Por exemplo, “Os XVI Jogos Olímpicos de Inverno
,, !.im em Albertville” é um juízo (no caso, verdadeiro) (cf.
Inliodução).

Nível de leitura: o nível de leitura é a intenção do autor


111, 11■i ligiu o texto. Ele escreveu para informar, mover ou co-
.... i i !‫ ׳‬Determinar o nível de leitura é o primeiro momento
,. 1.!m-.iK>ri<> da leitura de qualquer texto (cf. capítulo I).

Plano: é o ordenamento de um texto ou de um discurso.


i i,· ·,egue regras muito precisas (cf. capítulo VI).

Predicado: é um dos dois conceitos que formam a proble-


Ml !im .i Mais precisamente, o predicado é o que é atribuído, é o
, l,l( i dito do sujeito. Assim ele é mais universal ou, pelo me-
,,,, uio universal quanto o sujeito. Ele responde à questão: “O
, |,|, · e dito dele (do sujeito)?”
() predicado do exem plo dado ao definirmos juízo é:
, „ , ii reram em Albertville” (cf. capítulo II).

Premissa: é um juízo (portanto um enunciado ou uma


I,,i !posição compostos de dois conceitos) que fundamenta uma
..... . lusào. O raciocínio comporta sempre duas premissas. A pre­
mi .,.i comporta sempre o termo médio, mas não a conclusão, já
1111‫ ׳‬o termo médio tem por objetivo unir os termos da conclu-
.1.) (cf. capítulo III).

Problemática: de maneira rigorosa, a problemática é a for­


mulação interrogativa do juízo. Por exemplo: “Os XVI Jogos
‫» ׳‬limpicos de Inverno ocorreram em Albertville?” Mas muito fre­
quentemente, no texto, a problemática terá o sentido de uma te-

XI
se, isto é, de enunciado afirmativo, e nào o sentido interrogativo
de juízo (cf. capítulo II).

Raciocínio: é a terceira operação da mente. O raciocínio


ou argumentação é um discurso da razão cuja finalidade é de­
monstrar uma tese. Existem quatro grandes tipos de raciocínio
(ver Termo médio'). Todo raciocínio é composto de duas premis­
sas e de uma conclusão (cf. capítulo III).

Raciocínio pelo exemplo: ver Exemplo.

Razão: é a inteligência a discorrer, isto é, partindo de um


ponto para chegar a outro. O ato próprio da razão é o raciocí­
nio. A razão não é uma faculdade distinta da inteligência, mas é
a inteligência na medida em que exerce a terceira de suas três
operações (cf. Introdução).

Silogismo: é um dos quatro tipos de raciocínio. O que ca­


racteriza o silogismo é que ele se baseia numa causa que une o
sujeito e o predicado da problemática. Como a causa é o víncu­
lo mais forte para mostrar a união, o silogismo é o raciocínio
mais rigoroso e o mais demonstrativo. Contrariamente à indução
e ã dedução, o silogismo vai do universal ao universal. Por
exemplo, “meu futuro depende de minha liberdade; ora, os as­
tros nào podem determinar minha liberdade; logo, os astros nào
podem predizer meu futuro” é um silogismo, pois o termo mé­
dio é uma causa (aqui, é “a liberdade”). Distinguem-se três figu­
ras de silogismo em função do grau de universalidade do termo
médio (cf. capítulo III).

Sujeito (de uma problemática): é um dos dois conceitos


que formam a problemática. Mais precisamente, o sujeito é aqui­
lo de que se fala, aquilo a que se atribuem as determinações.
Assim, ele é menos universal que o predicado. Ele responde à
questão: “De que se fala?”
No exemplo dado ao definirmos juízo, o sujeito é: “Os XVI
Jogos Olímpicos de Inverno” (cf. capítulo II).

Termo: é o nome que se dá aos conceitos que formam a


problemática (eles são dois) ou o raciocínio (são três, às vezes

XII
‫ ׳‬pi um>). lies têm nomes diferentes conforme o papel que de-
« «i11)cnliam:
na problemática, distinguem-se o sujeito e o predicado;
no raciocínio, distinguem-se o termo maior, o termo me­
nor e o termo médio. Há ainda o termo semelhante no
raciocínio pelo exemplo (cf. capítulos II e III).

Termo médio (abreviado TM): é o fundamento do raciocí-


......... que lhe permite concluir e julgar o que é verdadeiro e o
I‫׳‬H <· !also. Há quatro grandes tipos de TM que estão na base dos
‫ ׳‬I·i !li‫ ״‬lipos de raciocínio: a causa (base do silogismo), a enume-
i i\ái»de singulares (base da indução), o sinal (base do entimema)
i similitude (base do raciocínio pelo exemplo) (cf. capítulo III).
I <1· · termo médio que depende a força do raciocínio.

Tese: no! sentido técnico por nós utilizado, é a problemáti-


* formulada de maneira afirmativa. É portanto o enunciado de
nu |uí/.o. As teses (de universidade) têm esse nome porque seu
·‫׳‬b|eiivo é demonstrar, defender uma tese (no sentido restrito,
qiit c o nosso) (cf. capítulo II).

XIII
.
In t r o d u ç ã o

l IM DISCURSO DOS M ÉTODOS

III
Ií>.ã7 , René Descartes escrevia uma obra cuja influência
icnlc uma das mais decisivas na história do pensamen-
l·'* I1 "·‫׳‬
pis,■urso cio método, primeira obra de filosofia editada em
ti 1 ‫ ן‬sse “cavaleiro francês que partiu com um passo tão fir-
...... (ivpiiy), esse “herói” (Hegel), nos propôs quatro leis do
!‫{))|( ·יו‬.|1to que ele considera universais:
IM'II' ( ) primeiro [preceito] era não admitir como verdadeiro
n.ida que eu não soubesse evidentemente o ser (...)·”
a ) segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu
,·xaminasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis
e quantas fossem necessárias para melhor resolvê-las.”
‫ )<׳‬terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, co-
meçando pelos objetos mais simples e mais fáceis de co-
nliecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até
o conhecimento dos mais compostos
I‫׳‬: o último, fazer em toda parte enumerações tão exaus-
rivas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de na-
da omitir.” 1
Inlélizmente, a experiência mostra que essas regras não são
muito aplicáveis: aliás, ninguém, nem mesmo seu inventor, as
!‫׳ ן‬Imi >11 com total rigor. De fato, foram inspiradas ao filósofo
‫ י׳‬im rs pela matemática, cujo método, julgado ideal, ele sonha-
‫ ׳ ׳‬,(tender ao estudo de todo o real. Ora, e iremos repetir, se o
1" '!‫·׳‬mo é ideal para perfurar o granito, ele o é bem menos para
" mi o nervo de um dente. Se o método matemático é eficaz pa-
' 1 ‘ 11.11 modelos da física de partículas, ele o é bem menos
‫ ׳‬I'·‫וי‬ndo se trata de discorrer sobre a liberdade ou sobre Deus. É

I / >iscurso do método , segunda parte, Oeuvres et lettres, “Bibliothèque de


1' ·‫׳‬l''';1de", Paris, Gallimard, 1953, pp. 137-8.

1
um preconceito positivista continuar a afirmar que a ciência é si­
nônimo de método matemático e que a certeza da razão rima
com quantificação e axiomatização.
Eis por que tomamos* a liberdade de apresentar a você um
novo discurso do método, ou, mais exatamente, um discurso dos
métodos.
As quatro leis que serão propostas nos parecem respeitar
melhor a vida tão rica e tão complexa da inteligência. E o pro­
pósito deste livro sobre a arte de pensar será aprofundar a ter­
ceira lei. Nossa fonte foi, em boa parte, Aristóteles. Para as duas
primeiras leis, em particular, recorremos ao capítulo I do livro I
da Física, que constitui, segundo Heidegger, “a introdução
clássica à filosofia; ainda hoje ele torna supérfluas bibliotecas
inteiras de obras filosóficas. Quem compreendeu esse capítulo
pode arriscar-se a dar os primeiros passos no caminho cio pen­
samento”2.
- A primeira lei vale para todo conhecimento (animal, hu­
mano ou outro).
- As três outras aplicam-se apenas ao espírito humano: a
segunda dá a dinâmica geral característica do progresso
da inteligência humana (ela é tão fundamental quanto es­
quecida); a terceira mostra os diferentes atos que a inteli­
gência efetua diante de cada problema; e a quarta, de
que maneira ela deve comportar-se em face de situações
diversas.
A primeira lei dá à inteligência seu comprimento (a primei­
ríssima dimensão), a segunda sua altura, a terceira sua profundi­
dade e a última sua largura. Ou melhor, no universo quadridi-
mensional que é o nosso, a partir de Einstein, a terceira lei situa
o espírito humano no tempo, enquanto as outras medem nosso
espaço.

2. Martin HEIDEGGER, Le principe de raison, Paris, Gallimard, 1962, p. 153·


Para o pensador alem ão, a Física de Aristóteles é a obra fundamental da filosofia
ocidental. Cf. op. cit., p. 151; cf. também Q u ’appelle-t-on penser?, Paris, Gallimard,
1959.

2
r ‫ ׳‬imi iu a l.i‫׳‬:i Proceder do conhecido ao desconhecido

‫ ״ ׳‬.///>‫ ־‬e !)rcciso proceder do conhecido ao desconhecido?


I ,1 lei cie toda exploração: não entro em uma região cles-
'iilit i ul.i ,1 não ser partindo de uma terra conhecida (já que
‫ ׳‬I 1 im· encontro). Avanço então do conhecido onde estou para
I‫ ׳ · ׳‬mhecido no qual estarei. Pascal diz que “é preciso come-
• *1 1 pentear a cabeleira pelo alto da cabeça”.
‫ ״■׳‬poderemos entrar num livro de matemática se tivermos
..... noção, ainda que confusa, do que é um número. “Assim
1‫· ׳‬mo o homem não pode avançar a não ser colocando um pé
....... . do outro, o espírito naturalmente deve colocar um pé dian-
ii «lo i ■utro. Além disso, o pé tem como ponto de apoio o chão;
........também a inteligência apóia‫־‬se num conhecimento do
1‫ ׳ ״‬I 1 la tem certeza .”3
( )·. começos da medicina psiquiátrica ilustram bem essa lei:
\ ··ligem da psiquiatria pode (...) resumir-se assim. Há séculos
‫ ׳‬ui‫ ׳‬dicos conhecem e tratam em seus hospitais - por ocasião
d‫ ׳‬I‫ ׳‬bres. de traumatismos cranianos, de infecções diversas, de
1..... ligados à idade - alucinações, distúrbios da memória,
1· · ‫ ·׳ ״‬de fúria, comportamentos estranhos; a natureza mórbida
I ‫ ׳‬latos não é posta em dúvida. A psiquiatria, disciplina mé-
li‫ ׳ ׳‬nasce a partir do momento em que os médicos aceitam re-
! 1· 111.11« ‫ ׳‬o primeiro conjunto de fatos a um segundo, tido até en-
............no repugnante, condenável, demoníaco, na medida em
1‫ ״‬. um certo número de sinais conhecidos no primeiro se verifi-
1!11 1. ‫ ׳‬segundo .”4
I eis o contra-exemplo. Leia-se o começo deste artigo de
Im ·intua: “Entre os fenômenos de encadeamento transfrástico
I‫·! ׳״‬.seguram a isotopia textual, conforme a regra de recorrên-
II pi oposta pelos gramáticos do texto, a anáfora e a catáfora
1■ 1 iiipenham um papel preponderante .”5 Límpido, não é mes-

\ ( l.imlc BERNARD, Introduction ã Vétude de la m édecine expérimentale,


1 1111 ‫ ·׳‬. t ;ip. II, s. 5, lo g o n o início.
1 1 ; LANTERI-LAURA, G. DAUMEZON e R. LEFORT, art. “Psychiatrie”,
1 ·‫׳‬i i ‫ ׳‬lii/nirilui Universalis, Paris, 1980, vol. 13, pp. 750-5.
‫ ׳‬Marie-José REICHLER-BEGUELIN, “Anaphore, cataphore et m ém oire
' 11 ‫׳ ׳‬r.lv>·" in Pratiques, ny 57, Metz, março d e 1988, pp. 15-43; aqui, p. 15.
mo? Ora, se esse artigo é incompreensível, o que não é impossí­
vel, é simplesmente porque você não consegue ligá-lo a noções
já conhecidas.

Conseqüências
O professor ou o conferencista deve constantemente cuidar
para engatar o vagão de seu pensamento ao de seus ouvintes,
sob pena de, como se diz familiarmente, “passar por cima da ca­
beça deles”. É a verdade do adágio: “Para ensinar geometria a
Pedro, é preciso conhecer Pedro tão bem quanto a geometria.”
Esse procedimento da inteligência é o do explorador que
se lança às terras desconhecidas onde “a mão do homem ainda
não pôs o pé”! A novidade é afetivamente ambivalente. Ela é
fonte tanto de alegrias quanto de tensões: abrir um novo livro,
começar um novo curso, comporta, por um lado, o prazer da
descoberta e, por outro, pode trazer alguma apreensão: terei co­
ragem de ler tudo, de chegar ao fim, de fazer o esforço intelec­
tual para assimilar a novidade? É tão mais confortável contentar-
se com autores ou gêneros de obras com os quais se está familia­
rizado! Partir do que é conhecido de seu auditório é a única ou,
em todo caso, a melhor maneira de captar sua atenção.
A vida corrente é um inesgotável fornecedor de exemplos
familiares a todos. Disseram-me que um aluno arrebatava sem­
pre os primeiros prêmios de eloquência; ele costumava começar
seus discursos por uma frase do gênero: “Outro dia eu estava no
metrô. Vejo uma menininha que...”
A descoberta de um setor de conhecimento radicalmente
novo necessita a presença de um mestre ou de alguém mais ex­
periente. Ele saberá guiá-lo na floresta virgem que são sempre
os conhecimentos ainda ignorados por você, e isso lhe poupará
muitas perdas de tempo.
A inteligência cultivada é uma inteligência que soube en­
contrar seus mestres, dar-lhes sua fé durante um certo tempo e
permanecer-lhes fiel. E a fidelidade (que não exclui, posterior­
mente, um distanciamento sem ingratidão) de modo nenhum é
o servilismo, assim como o mestre verdadeiro não é um guru.
Enfim, em cada matéria, existem alguns bons livros peda­
gógicos que fazem ganhar um tempo precioso porque buscam
estabelecer passagens entre o que você sabe e o novo domínio

4
1 <■·.‫) ן‬Iu1.tr. Tal é, por exemplo, o caso da coleção Que sais-je?,
limitas vcv.es notável por sua clareza. Mas, aí também, é preciso
1ui‫־‬,ar colocar a soberba e o esnobismo sob o capacho. Um rabi-
in! diz que “citar suas fontes é fazer avançar o Reino de Deus”;
1. ‫ו! ן‬, r menos brilhante citar uma pequena enciclopédia de bolso
■l<‫ י‬que a enorme obra de referência em língua original.
r. assim que François Russo assinala “o forte contraste entre
•111.1■. enciclopédias francesas separadas por um século: a Grande
I in ydopédie du XIXe siècle, e a Encyclopaedia universalis. A pri-
mm·ira, tão rica em definições e comentários claros e inteligentes
•ibre o presente e o passado das técnicas; a segunda, muito po-
Im1. ‫ ־‬esse respeito, ou cujos artigos sobre as técnicas atuais e
p.iv.adas são certamente redigidos por especialistas, mas sem
tiin.i preocupação verdadeira de se fazerem compreender por
n.it ) especialistas6‫״‬. Traduzamos em nossa perspectiva: essa falta
de preocupação pedagógica é típica. O autor especialista não
busca tornar-se acessível ao leitor não-especialista.

S | <,1INDA LEI: A INTELIGÊNCIA VAI DO MAIS UNIVERSAL


\O MAIS PARTICULAR7

F.is o que Aristóteles escrevia há 24 séculos: “A marcha


n.ilural Ido intelecto] é ir das coisas mais conhecíveis e mais
• Iaras para nós às que são mais claras em si e mais conhecí­
veis. (...) Ora, o que para nós é primeiramente manifesto e cia-
ii i são os conjuntos mais misturados; é só depois que, dessa
indistinção, os elementos e os princípios se destacam por meio
da análise .”8

6. Introduction à l ’histoire des techniques, Paris, Librairie scientifique Al-


I m ‫ ־‬i i Blanchard, 1986, nota 1, p. 72.
7. Michel BOY ANCE, “Le savant et le philosop h e. Notes sur la connaissan-
I r com m u n e”, in Actualité de la Philosophie, Atas do C ongresso d e 13 e 14 de
iiiilulm ) d e 1989, Paris, N ouvelles Editions Latines, 1989, pp. 61-80.
8. ARISTÓTELES, Physiques, I, 1, 184 a 24-b l2, trad. fr. Carteron, Paris,
<iiiillaume Budé, “Les B elles Lettres”, t. I.

5
Por que o espírito deve proceder
do m ais ao m enos universal?
Essa segunda lei precisa a primeira: o conhecido do qual
parte o espírito é um mais universal, e o desconhecido ao qual
ele chega é um mais particular. O progresso, aqui, compreen­
de-se melhor na dimensão vertical. A inteligência parte do alto
da montanha; de lá ela tem uma visão global do vale. Mas, se
quiser conhecê-lo melhor, deverá descer e sua visão se fará
mais detalhada. Assim como o montanhês sente-se feliz ao vol­
tar para sua casa no vale, também a inclinação natural (é o caso
de dizer) da inteligência é dirigir-se ao mais particular e não
permanecer nas generalidades‘’. O sociólogo e filósofo Edgar
Morin observa que "... ninguém pode passar sem idéias gerais -
sobre o homem, as mulheres, o amor, a vida, a sociedade, o
mundo -, inclusive o especialista, o qual está condenado às
idéias gerais mais ocas e menos controladas”910.
Houve um tempo em que os novos manuais escolares de
história e de geografia privilegiavam a abordagem temática, que
é muito particularizada. Estudavam, por exemplo, o desenvolvi­
mento da metalurgia em diferentes países representativos. Tema
em si interessante, mas faltava saber o que são esses países, sua
estrutura física etc. Ora, esse método redundou num fracasso re­
tumbante, e naturalmente o ensino voltou ao estudo geral e não
mais temático, aplicando, sem saber, o princípio aristotélico que
é, antes de mais nada, um bem comum do bom senso.
Aristóteles (Física, Liv. I, cap. 1) manifesta essa profunda
verdade a partir de alguns exemplos concretos. Existe, de fato,
uma proporção, uma analogia entre o conhecimento sensível
(principalmente visual) e o conhecimento da inteligência, quan­
to à sua marcha:

Exemplo do cam inho


Você se encontra num longo caminho. De repente avista
alguma coisa no fim desse caminho. Você diz: “É alguma coisa.”

9. Cf. as explanações cie Tomás de AQUINO, Suma teológica, I, q. 85, a.


3: “Esse artigo é talvez o m ais profundo que Santo Tomás escreveu sobre a g ê­
n ese do conhecim ento intelectual”, observa Webert, La pensée humaine, in Som-
me théologique, la Revue des Jeunes, Paris, D esclée, 1930, p. 246.
10. Edgar MORIN, entrevista em Le Monde,. 26 de novem bro de 1991, p. 2.

6
I >**| x >i,s, ao se aproximar, percebe que a coisa se move: “É um
■· i vivo.” Continuando a se aproximar, você se dá conta de que
i» 1•>•‫ ׳‬vivo e mais precisamente o animal (pois só o animal é ca­
pa/ de se mover por si mesmo) é bípede e tem o andar de um
In >mem: “É um homem.” E, ao se aproximar ainda mais, comple-
ianilo a precisão de seu conhecimento: “Ora vejam! É Sócrates!”
\ semelhança do sentido da visão, a inteligência passa do mais
geral ao mais distinto.

Guilherme de Baskerville,
Umberto Eco e Aristóteles

Pela boca de um de seus heróis, Guilherme de Baskerville,


I co não faz senão retomar o exemplo de Aristóteles, mas curio­
samente sem o citar. Guilherme explica a seu discípulo Adso
de que maneira conseguiu descobrir um cavalo: "Se vires al­
guma coisa ao longe e não compreenderes de que se trata,
contentar-te-ás em defini-lo como um corpo de grande exten­
são. Quando ele tiver se aproximado um pouco, tu o definirás
então como um animal, mesmo que não saibas se é um cava­
lo ou um jumento. Finalmente, quando estiver mais perto, po­
derás dizer que é um cavalo, mesmo que não saibas ainda se
é Brunel ou Favel. E, somente quando estiver muito próximo,
verás que se trata de Brunel (ou seja, deste cavalo e não de
um outro, não importa como decidas chamá-lo)".

Umberto ECO, ie nom de la rose, "Livre de poche" nB 5 8 5 9 , Paris, Grasset, 198 2 ,


p. 4 2 .

Exemplo do todo e das partes


Quando você olha um quadro ou uma paisagem, não perce­
be de imediato o detalhe de cada parte, mas, após uma visão de
conjunto, reconhece “aspectos” mais particulares que à primeira
vista lhe haviam escapado. Você sabe que está lendo atualmente
em seu quarto, mas certamente ignora o número de tábuas que
compõem o assoalho de seu quarto. E se acaso o souber, ó útil

7
erudição!, você talvez ainda não tenha tido tempo de contar o nú­
mero de nós que se acham na madeira...

Exemplo da criança
Passemos do registro espacial a uma imagem tirada do
tempo. A criança a princípio não sabe diferenciar um terra-nova
de um labrador. Ela aprende em primeiro lugar a reconhecer um
cão. passando depois à distinção das espécies. É assim que Aris­
tóteles assinala com profundidade: “A criança pequena chama
todo homem papai.” De fato, seu conhecimento é, no início, de­
masiado geral para distinguir os diferentes homens, assim ela
nomeia a todos com o nome que utiliza para o homem que co­
nhece melhor. A psicologia atual confirma abundantemente esse
fato, em particular a teoria de Winnicot relativa ao que ele cha­
ma de objetos transicionais.

Do confuso ao distinto, pelo objeto transicional

David W innicot criou o conceito de "espaço intermediário"


e de objeto transicional, nem subjetivo, nem objetivo; criado
pela imaginação da criança, ele é caminho para o objeto.
Com efeito, a criança tem necessidade de objetos não-eu,
relacionados ora à realidade interior, ora à realidade parti­
lhada, situados entre o mesmo e o outro. Assim ela é "leva­
da a reconhecer progressivamente o que tal experiência tem
de lúdico, de ilusório (ilusão-que confunde o real e o imagi­
nário). Quando a ponta de tecido, o canto de lençol, o urso
de pelúcia e a boneca vierem, por volta dos seis, oito ou
dez meses, substituir o polegar, nesse espaço de separação
entre a criança e sua mãe, W innicot verá nisso a forma pri­
mária dos fenômenos transicionais".

C. GEETS, "la pari de l'illusion. Problématique actuelle de 1'illusion en psychanalyse‫״‬,


in Revue de 1'lnstitut C olholique de Paris, abril-junho de 1990, p 13. C(. D. W . W IN ­
NICOT, Jeu et réalité, col. "Connaissance de íinconscient", Paris, Gallimard, 1975.
Sobre o conjunto da obra de Winnicot, ver C. GEETS, W innicot, Paris, Jean-Pierre De-
large, 1981.

8
Estendamos ao adulto: imaginemos que você precise expli­
car o que é uma mucosa. Eu lhe direi que se trata de uma espé­
cie de epitélio. Ora, entre os epitélios, alguns têm todas as suas
células vivas e outros as camadas celulares superiores mortas.
( )s primeiros são as mucosas (no interior da boca, por exem­
plo), os segundos têm a pele como representante. Mas não é to­
la linente improvável que você não saiba o que é um epitélio. Eu
lhe direi então que é uma espécie particular de tecido. Com
eleito, existem duas espécies de tecidos: aqueles cujas células
estão juntas (sem nada mais entre as células), e que chamamos
epitélio, e aqueles cujas células não estão juntas, e que compor­
iam, além das células, uma substância dita fundamental, fibras
etc. Você poderia também não saber o que é um tecido.
Ora, nesse exemplo, procede-se do mais geral ao mais par­
ticular para explicar. E, toda vez que encontramos uma ignorân­
cia, a melhor maneira de reduzi-la é certamente retornar a partir
de um conhecido, conforme vimos, mas também proceder de
uma noção mais universal e, por divisão, chegar a uma noção
mais particular.

Uma objeção poderia surgir. O conhecimento humano não


começa pela experiência sensível? Ora, o que é sensível é me­
nos universal do que o que é inteligível: por exemplo, determi­
nada maçã observada pela visão é um ser singular, enquanto a
maçã concebida pela razão é um conceito universal aplicável a
todas as maçãs que existem.
O dinamismo de que falamos (a saber, a passagem do uni­
versal ao singular) diz respeito a um plano só, o do sentido ou o
da inteligência, e não à passagem de um plano a outro. Com
efeito, o sentido, assim como a inteligência, passa do geral ao
particular. O mesmo já não acontece no processo de abstração,
que, de fato, se eleva do singular sensível ao universal inteligível
(o que, portanto, é inteiramente oposto ao movimento que des­
crevemos). Mas a abstração precede ou segue o processo que
estamos analisando.

9
Conseqüên cias

As noções mais universais são tam bém as mais confusas


Confuso nào deve ser entendido no sentido de misturado,
mas no sentido de não distinguido e contendo em potência to­
das as distinções ulteriores. Por exemplo, a criança que tem a
noção de planta tem apenas uma idéia muito embrulhada do
que ela é e cias múltiplas espécies de plantas. Não obstante, sua
primeira apreensão da planta contém em germe todas as distin­
ções futuras que ela fará.
Um sinal disso é que tais conhecimentos jamais anularão essa
primeira apreensão, mas irão pressupô-la e repousar sobre ela. É
assim que, se um físico perde sua concepção muito comum do
movimento, todas as conclusões extremamente minuciosas que ele
tira dos diversos tipos de movimento se tomam ininteligíveis, e is­
to mesmo que ele tenha a impressão de que esse conhecimento
comum de maneira nenhuma faz parte de seu discurso científico.

Por outro lado, esse m uito universal é m uito certo


A distinção entre o vivo e o inerte é muito certa, ao passo
que a distinção entre o Homo habilis de Leakey e o Australopi-
thecus gracile o é bem menos (já que essa diferença foi refuta­
da!). Ora, o Humo habilis de Leakey e o Australopithecusgracile
são realidades extremamente particulares em comparação com a
universalidade da distinção existente entre inerte e vivo. Poria
minha mão no fogo pelo fato de que o movimento existe, mas
poria apenas a sua pela afirmação de que o europeanum (que é
um dos últimos elementos da tabela de Mendeleiev) existe!
Precisemos. A certeza é a “firmeza da adesão do potencial
de conhecimento a seu objeto conhecível”".
Ora, o fundamento do conhecimento comum está ligado
aos sentidos. “A partir do conhecimento sensível, tendo por obje­
to o singular como tal, a inteligência, em suas primeiríssimas
apreensões, extrai um conceito universal muito confuso. Todavia,
em razão da proximidade do sentido, ele é muito certo.” 12 Vê-se

11. Ill Sent., d. 26, q. 2, a. 4, c. Para uma exposição mais detalhada, reme­
temos ao capítulo de Roger VERNEAUX, in Epistémologiegénérale ou critique de
la connaissance, “Cours de philosophic”, Paris, Beauchesnes, 1959, pp. 93-101.
12. Michel BOYANCE, art. citado (ref. p. 16), aqui, p. 67.

10
o quanto a inteligência humana não se alimenta apenas de idéias
claras e distintas. De fato, “há conhecimentos confusos. A inteli­
gência não se engana em sua primeira apreensão, mas ela não
esgota a realidade do que conhece”. For quê? A razão última é a
seguinte: “Esse conhecimento comum decorre do modo de co­
nhecimento da menos perfeita das substâncias intelectuais, ainda
com a intermediação obrigatória das faculdades sensíveis.”
O que está dito acima não é um convite a permanecer no
confuso; ao contrário, todo o dinamismo da ciência se opõe a is­
so. É “um sinal de acuidade intelectual buscar sempre idéias
mais distintas, mais acabadas”1314. Donde esta frase profunda de
Faseai: “À medida que se tem mais espírito, descobre-se que há
mais homens originais. As pessoas do vulgo não vêem diferença
entre os homens .” 11

O filósofo inglês sir Karl Fopper propõe uma crítica clássi­


ca da certeza do conhecimento comum (em sua obra O terceiro
mundo). Ele toma como exemplo o nascer cotidiano do sol.
Com efeito, o que há de mais comum do que esse conhecimen­
to? Todo o mundo sabe que o sol nascerá amanhã assim como
nasceu hoje. Ora, isso não é um conhecimento absolutamente
certo, embora comporte um certo índice de probabilidade! Não
c impossível que amanhã de manhã o sol não nasça, por exem­
plo, por causa de uma catástrofe cósmica em grande escala. Do
mesmo modo, por muito tempo todos os homens acreditaram
que a Terra era imóvel e situada no centro do mundo, e, em to­
do caso, que o Sol girava ao redor dela; ora, esse conhecimento
comum não é apenas incerto, ele é redondamente falso.
A objeção repousa de fato sobre uma ambigüidade e per­
mite um útil esclarecimento. O comum que qualifica o conheci­
mento dito comum pode ser entendido em dois sentidos bem
diferentes:
- seja do lado do sujeito que conhece, e, neste sentido,
quanto mais pessoas aderirem a um enunciado, tanto mais

13. J. WEBERT, La pensee humaine, in Somme theologique, La Revue des


leuncs, Paris, D esclee, 1930, pp. 247 e 282.
14. PASCAL, Pettsees, ny 17, ed. Chevalier, na 213, ed. Brunschvicg, in
<)eueres completes, “Bibliotheque de la Pleiade”, Paris, Gallimard. 1954, p. 1091.

11
a informação contida nesse enunciado será comum (sen­
do comum a várias pessoas);
- seja do lado do objeto conhecido, e então o conhecimen­
to será dito comum na medida em que disser respeito a
objetos comuns, isto é, universais.
Os exemplos acima (os de Popper e os demais) entendem
o adjetivo de conhecimento comum no primeiro sentido. Ora, o
Sol, o movimento da Terra são objetos muito particulares do
ponto de vista objetivo. Mas o conhecimento comum de que fa­
lamos é um conhecimento comum no sentido objetivo, um co­
nhecimento que diz respeito a um objeto universal. Por exem­
plo, esse tipo de conhecimento não falará das estrelas mas do
céu, do universo. Ora, a existência de um céu e de movimentos
em seu interior, de uma ordem do universo são constatações
muito comuns e muito certas que não sofrem refutação, ao pas­
so que não se pode dizer o mesmo da natureza dos quasares ou
da existência de lentes gravitacionais.

A ordem do real não é a ordem da inteligência


O que existe realmente são as realidades concretas, ligadas
entre si por vínculos de dependência, de causalidade. Mas a in­
teligência não descobre de imediato* a natureza delas; detém-se
primeiro no que é mais superficial e no que se manifesta. Lem­
bro-me da maneira como os médicos cooperantes, em serviço
na África, se esforçavam por fazer os autóctones compreen­
derem que as doenças eram devidas a microorganismos: eram
mostradas as agressões ligadas a grandes animais, como um bú­
falo ou um crocodilo; depois, a um pequeno, como um rato,
uma aranha, mostrando-se a gravidade disso; e daí tentava-se
passar (por recorrência) às bactérias e aos vírus. A realidade da
epidemia, porém, não passa por todos esses meandros!...

Aristóteles e Descartes
É provavelmente nesse ponto que nossa oposição a Des­
cartes é maior (a segunda oposição, que será dada na exposição
da quarta lei, é apenas uma conseqüência): este sonhou com
uma matemática universal. Ora, as matemáticas apagam ;1 distin­
ção confuso-distinto: em primeiro lugar, elas dão a primazia à
construção do espírito. Além disso, em matemática, todas as
concepções da inteligência têm o mesmo grau de clareza e de
distinção. Claro que a noção de número natural é mais simples
que a de quatérnion e a de conjunto, mais imediata que a de
grupo abeliano, mas de uma à outra a relação não é do confuso
ao distinto; é uma relação, com um mesmo grau de limpidez, do
simples ao complexo. De maneira análoga, um relógio a quartzo
é tão evidente quanto uma clepsidra, mas é mais complexo, e
não mais confuso ou mais universal.

Terceira Lei: A inteligência tem três atos


Por q u ê?
A inteligência manifesta sua atividade em três operações,
que chamamos intuição, juízo e raciocínio. Com efeito, as duas
(juestões da criança são: “O que é? Por quê?” E todas as questões
procedem dessas duas interrogações fundamentais. Ora, a pri­
meira operação do espírito permite responder ã primeira ques­
tão: “O que é uma perna? - É um órgão que permite o andar.” E
a segunda e a terceira operações respondem à segunda questão;
a segunda operação une dois conceitos e coloca uma questão:
“Mamãe, os barquinhos que andam na água têm pernas?”, e a
terceira responde à questão: “Claro que sim, meu burrinho, se
não tivessem, eles não andariam.”
Ora, a arte de pensar se baseia na atividade da inteligência.
Em conseqüência, ela comporta três grandes partes:
- a arte da definição, pela qual aprendemos a dizer correta­
mente o que são as coisas (o que é uma perna);
- a arte da enunciação, segundo a qual colocamos um pro­
blema, isto é, unimos ou separamos dois conceitos (barco
e perna);
-enfim , a arte da demonstração, pela qual a razão resolve
o problema ao determinar a causa da união dos dois con­
ceitos (que é um terceiro conceito: o andar; esse concei­
to, aliás, foi fornecido pela definição).

C onfirm ação fo rn ecid a pela gram ática


A gramática estuda as palavras, enquanto a lógica se inte­
ressa pelos conceitos. Mas as duas não deixam de ter relação, já
que as palavras são os signos dos conceitos. Quando digo “bor­
boleta”, a palavra remete à idéia de borboleta.

13
Ora, globalmente, podem-se distinguir três entidades gra­
maticais de complexidade crescente: a palavra (que é o átomo,
já que uma sílaba isolada é por definição incompreensível, des­
provida de sentido), a frase (conjunto ordenado de palavras) e,
finalmente, o parágrafo, que é uma molécula de frases e uma
macromolécula de palavras.
Na maioria das vezes, a palavra é o significante de um con­
ceito; a frase mais simples, isto é, de estrutura sujeito-verbo-ob­
jeto, é a formulação típica de uma enunciação (cf. adiante o que
diremos da tese), e uma frase, por mais complexa que seja, po­
de sempre reduzir-se a um conjunto de enunciados simples que
acabam de ser evocados. Finalmente, o parágrafo lembra, mas
de forma mais distante (devido à variedade dos modos de expo­
sição), o raciocínio.

Recapitulação

Primeira Segunda Terceira

As operações
Intuição ou
da razão Juízo Raciocínio
abstração
(psicologia)

Instrumentos
da razão Definição Enunciação Argumentação
(lógica)

Paralelo com
Palavra Frase Parágrafo
a gramática

Questões O que é? Por quê?

Corolários
Q ual é a prim eira operação do espírito?
Primeira se diz em dois sentidos diferentes: a bolota é pri­
meira em relação ao carvalho quanto ao tempo, mas é segunda
quanto à perfeição. Apliquemos essa distinção.

14
A definição é temporalmente primeira. Evidentemente é
preciso saber o que é uma coisa (o que depende da primeira
operação) antes de poder afirmá-la de uma outra (o que depen­
de da segunda operação do espírito).
Mas a operação mais decisiva, final, é a segunda operação
do espírito. Esta, portanto, é a primeira na ordem da perfeição.
Com efeito, as duas outras lhe são subordinadas: ninguém fala
com conceitos isolados, estes servem para formar juízos e os
próprios raciocínios servem para estabelecer esses enunciados.
Além do mais, a meta da operação intelectual é o verdadeiro;
ora, é o juízo e somente ele que enuncia a verdade (ou a falsi­
dade).
O raciocínio, entregue a si mesmo, não tem motivos para se
deter: ele só encontra sua perfeição no juízo que o põe em con­
lato com as coisas e constata que o termo do raciocínio está con­
forme (ou não) à realidade, portanto, que é verdadeiro (ou errô­
neo). Há uma maneira de discutir, de praticar um pingue-pongue
verbal, que reduz o espírito ao mero raciocínio (como iremos ver
adiante). É encerrando o computador num raciocínio sem fim
(ganhar contra si próprio no jogo da velha) que o pequeno “gê­
nio" informático de War Games [Jogos de guerra] desvia a
máquina de sua contagem regressiva e evita o conflito nuclear.

I diferença entre inteligência e razãuP


Razão e inteligência não são duas faculdades diferentes,
mas operações distintas de uma mesma faculdade que chama­
mos inteligência (donde a ambigüidade, devida à polissemia do
irrmo inteligência). Falando com precisão, a inteligência, no
sentido de operação e não de faculdade, abrange as duas pri­
meiras operações do espírito, enquanto a razão concerne apenas
i terceira operação, justamente denominada raciocínio.
De fato, a experiência mostra-nos que, para chegar ã ver-
dade, a inteligência deve percorrer caminhos longos e às vezes

Is. Em relação a essa questão capital, o texto m ais desenvolvido d e Santo


I <>m.is é a QD De Veritate, q. 15, a. 1. Remetemos ao artigo simples e pedagógi-
<‫ ׳ ׳‬de Georges-Marie-Martin COTTIER, “Intellectus et ratio” in Revue Thomiste,
I WXVIII (1988), pp. 215-28. Cf. também, bem mais completo: Julien PEGHA1RH.
Intellectus" et “ratio” selou saint Thomas d A q u in , publicações d e 1’Institut
‫ ׳‬I I tudes m édiévales d Ottawa, VI, Paris, Vrin, 1936.

15
penosos. Mais precisamente, a compreensão do verdadeiro é ora
imediata (por exemplo, “o todo é maior que a parte”), ora media­
ta (por exemplo, para compreender que o sol é necessário ao
crescimento dos vegetais clorofilados, é preciso passar por uma
etapa intermediária: a compreensão do processo de fotossínte-
se). Ora, “inteligir (manifestar inteligência) é pura e simplesmen­
te apreender a verdade inteligível. Simetricamente, raciocinar é ir
de um objeto inteligido a um outro, a fim de conhecer a verda­
de inteligível”16. Segundo imagens classicamente utilizadas por
Santo Tomás de Aquino, a razão está para a inteligência assim
como a linha está para o ponto, ou o tempo (a duração, a suces-
sividade) para o instante.

A razão existe para a intuição

"Não há outro conhecimento que não o intuitivo. A dedução


e o discurso, impropriamente chamados conhecimentos, são
apenas instrumentos que conduzem à intuição. Quando esta
é atingida, os meios utilizados para atingi-la apagam‫־‬se dian­
te dela."

Jean-Paul Sartre, L'être el le néant. Essai d'ontologie phénoménologique, Paris, Galli‫־‬


mard, 1943, p. 220.

Devemos portanto perceber claramente que utilizamos


então o termo inteligência em dois sentidos diferentes. Assim
como homem pode designar tanto a natureza humana e
“envolver a mulher”, segundo a expressão de Sacha Guitry (é o
sentido do alemão Mensch ou do latim bomo), quanto o ho­
mem de sexo masculino que se distingue da mulher (é o
Mann alemão ou o vir romano), também a inteligência designa
primeiro a faculdade intelectual e, a seguir, um dos modos de
funcionamento dessa única faculdade que opera seja de ma­
neira imediata (e é a inteligência no sentido restrito), seja por

16. Tomás de AQUINO, Suma teológica, I, q. 79, a. 8.

16
modo de discurso (e é a razão): falaremos daqui por diante de
inteligência nesse segundo sentido, salvo se o contexto disser
evidentemente o contrário. A inteligência (no sentido restrito)
implica portanto uma espécie de intuitividade, se não a opu­
sermos ao conhecimento intelectual, como fazia Bergson. Po­
de-se então distinguir razão e inteligência como discurso e in­
tuição; opô-las como análise e síntese seria, ao contrário, bem
menos preciso, pois a síntese comporta sempre um discurso, e
portanto uma intervenção da razão.

Consideremos as relações razão-inteligência de um ponto


de vista não mais lógico, mas dinâmico. A inteligência está no
princípio e no fim do ato da razão. Com efeito, o raciocínio de­
ve partir de proposições (ou premissas) que são imediatas, evi­
dentes por si mesmas e que não há necessidade de demonstrar;
caso contrário, seria preciso utilizar uma outra demonstração pa­
ra manifestá-las e regressaríamos ao infinito sem jamais nos de-
lermos, de modo que nada jamais se provaria. Se quiser, por
exemplo, mostrar que o homem é livre, partirei do fato de que o
homem é capaz de escolher (ou de alguma outra premissa). Na
outra extremidade, a razão só encontra seu repouso e seu termo
num ato de inteligência: esse é, em parte (e apenas em parte,
como veremos), o sentido da quarta regra do Discurso cio méto­
do de Descartes dada no início deste capítulo. Com efeito, para
retomar a mesma ilustração, o raciocínio só ajuda e esclarece o
espírito quando compreende num relance por que o homem é
livre, isto é, quando compreende a conclusão e sua razão (que é
a capacidade de decidir). Ora, é justamente essa visão global,
unificada e unificadora, que caracteriza a inteligência. Eis por
que, segundo a expressão de Isaac Disraeli inspirada em Santo
l'omás, “a razão desperta à sombra da inteligência”'7.

Mas por que a inteligência é obrigada a arrastar a razão co­


mo uma corrente de ferro? Por que esse oneroso discursus da
razão é necessário ao exercício da inteligência?
É pelo fato de o conhecimento intelectual ter sua raiz nos
sentidos que encontramos no homem esse binômio inteligência-17

17. Cf. J. PEGHAIRE, op. cit.. pp. 79 ss.

17
razão. Com efeito, o espírito consegue, progressivamente, separar
o núcleo inteligível do real, não apesar, mas a partir de suas de­
terminações sensíveis, abstraindo-o destas. Assim o anjo (e segu­
ramente Deus, a fortiori), ignorando a condição corporal, tam­
pouco conhece a imperfeição dos longos meandros racionais: sua
inteligência é muito propriamente intuitiva, imediata18. Do concei­
to de número ou de lugar, a criatura imaterial chega imediatamen­
te ao conhecimento total da matemática (com uma profundidade
que depende da penetração de sua luz intelectual, evidentemen­
te): isso dá o que pensar! Como diz muito bem Georges Cottier,
“a razão é um nome da humildade que significa que um homem
se encontra no grau ínfimo da intelectualidade”. Essa conclusão
de grande importância nos convida a recusar duas concepções
opostas e igualmente errôneas tanto uma como a outra.

D uas concepções errôneas da vida intelectual


Não é raro que o homem faça do ato do raciocínio uma fi­
nalidade e esqueça que ele está a serviço da inteligência. Esse
grave desvio que afasta o espírito de sua verdadeira função e de
seu desabrochar verifica-se naquele que multiplica os cálculos e
as teorias e não sabe deter-se para contemplar o verdadeiro. Em
última instância, o intelectual é mais seduzido pelo funcionamen­
to de sua razão, por sua habilidade de encadear as demonstrações
e fazer conjeturas: é completamente o inverso dessa genuflexão
interior da inteligência que, centrada não no eu, mas na realidade
extramental, apaga-se diante de seu objeto, tornando-se esse obje­
to. “A mais alta atividade do homem e sua maturidade não consis­
tem na busca de uma idéia, por mais elevada e santa que seja,
mas na aceitação humilde e alegre do que é, de tudo o que é... a
profundidade de um homem está em seu poder de acolhimen­
to.”19 Quanto ao cerebral raciocinante, ele não conhece mais, ele
pensa, só isso. Aliás, por estender excessivamente um raciocínio,
não se sabe mais se ele diz a verdade. Roger Caratini dá o exem­
plo de um teorema de quinze mil páginas, cuja própria extensão
desencoraja de saber se ele enuncia alguma verdade20.

18. Cf. Suma teológica, I, q. 58, a. 3 e 4.


19■ Eloi LECLERC, Sagesse d im pauvre, Paris, ed. Franciscaine, 1959, p. 135.
20. L année de la science 1987, Paris, Robert Laffont, 1987, pp. 385-6.

18
A segunda tentação, inteiraniente oposta e igualmente im‫־‬
portante, quer uma inteligência sem razão. Esse angelismo é tí­
pico de toda uma corrente da filosofia moderna desde Espinosa,
que desejava o que ele chamava de conhecimento de terceiro ti­
po, a apreensão intuitiva. Aqui, no limite, o discurso e o método
lomam-se uma “ascese purificadora” de que algum dia o homem
lia prescindir. É esquecer que abandonar a razão é despojar o
Iminem. Encontramos essa ilusão e essa aspiração à “supracons-
i lenda”, que permitiria enfim transcender a penosa racionalida­
de. em numerosos discursos atuais de obediência esotérica ou
hcrmetista. É verdade que, em si, um conhecimento realmente
Intuitivo é igualmente eficaz, mas, na realidade, e em razão de
nossa condição encarnada, ele está fora de nosso alcance.
De maneira mais geral, contra todas as fantasias alimenta­
das por certas obras de ficção científica ou certas correntes neo-
gnósticas, é absurdo sonhar com uma capacidade de conheci­
mento radicalmente diferente da inteligência ou dos sentidos,
que seria para o intelecto o que este é para os sentidos. De fato,
a distinção sentido-inteligência é exaustiva. De que maneira, aliás,
considerar uma faculdade que seria mais aberta que a inteligên­
cia:‫ ׳‬Será que esta é coextensiva ao ser e pode, segundo a ex­
pressão clássica de Aristóteles, “transformar-se em todas as coi­
sas"? A única diferença entre as inteligências não é de natureza,
nus de modo, racional ou intuitivo, e de grau na penetração. A
inteligência divina é evidentemente um caso à parte: a supere­
minente simplicidade divina exige que o próprio ser de Deus se
identifique com sua inteligência (sempre em ato), como também
com seu querer em ato, isto é, com seu amor.
Recusemos esse desprezo da razão e essa busca de um ou-
in> tipo de atividade cognitiva pretensamente oculta num cére­
bro, a respeito do qual se repete, sem jamais demonstrar, que
apenas dez por cento de suas capacidades são exploradas. Tal­
vez haja, porém, uma verdade “a salvar”, como diria Santo Inácio
cie Loyola21, nessa tendência (mais do que tentação) a alçar a in­
teligência humana acima de si mesma. A busca de uma supra-
eonsciência, de uma visão intuitiva, não será a tradução canhes­
tra e nostálgica daquele eros (desejo) natural de verdade e, mais

21. Exercices spirituels, nü 22, “Sagesse”, Paris, Seuil, 1982, p. 59·

19
ainda, do desejo “transnatural” (segundo a expressão de Maritain)
de ver Deus acima de toda inteligência? “Somente a visão de
Deus pode realmente apaziguar a capacidade de conhecer, de in-
teligir, de um ‘intellectus’ criado. Kis uma doutrina de extrema
audácia, certamente a mais audaciosa da história da metafísica.”22234

Quarta Lei: Tal objeto, tal inteligência

A inteligência adapta seu método ao objeto que ela estuda.


Esquecer isso é ferir profundamente o espírito, [á o dissemos.
“Hardin, sentado à ponta da mesa, perguntava-se por que
os cientistas eram tão maus administradores. Talvez fosse porque
estivessem muito habituados a fatos inflexíveis e não o bastante a
pessoas facilmente influenciáveis.” Assim se exprime uma das
obras que deu foros de nobreza à literatura de ficção científica25.
A necessidade de uma pluralidade de métodos foi bem evi­
denciada por Aristóteles num dos capítulos mais profundos de
sua Metafísica. Leiam-no atentamente: "... alguns só admitem
uma linguagem matemática; outros querem apenas exemplos;
outros pretendem que se recorra à autoridade de algum poeta;
outros, enfim, exigem para todas as coisas uma demonstração ri­
gorosa, enquanto outros julgam esse rigor excessivo, seja por in­
capacidade de seguir a cadeia do raciocínio, seja por temor de
perder-se nas futilidades. Há, com efeito, algo disso na afetação
do rigor. Assim alguns a vêem como indigna de um homem li­
vre, tanto no comércio da vida como na discussão filosófica. Por
esse motivo é preciso ter aprendido quais exigências devem ser
feitas em cada espécie de ciência (...). Em particular, não se deve
exigir em tudo o rigor matemático, mas apenas quando se trata
de seres imateriais”2*.

22. G. M. M. COTTIER, art. cit. p. 24, aqui p. 224. Cf. também o livro decisi­
vo sobre esse assunto de Jorge LAPORTA, La destinée de la nature humaine selou
Thomas d ’A quin, col. “Etudes de Philosophic médiévale”, Paris, Vrin, 1965, n° 55.
23. Isaac ASIMOV, Fondation, “Presence du futur”, Paris, Denoél, 1966, p. 58.
24. Metafísica, Liv. II, cap. Ill (995a 5 a 16), trad. fr. Tricot, Paris, Vrin,
1953, t. II, p. 118. Sublinhado por nós. Cf. também ST, I-II, 47, 9, ad 2um; in F.th.
Nicom., 1, 3 e o comentário por F. DELERUE, Le système moral de saint Alphonse
de Liguori. Éaide historique et philosophique, Saint-Étienne, 1929, pp. 109-10.

20
Muitas sào as pessoas que suportam apenas um único tipo
de raciocínio25: o matemático quer matematizar tudo e só se sa­
tisfaz com a exposição se ela tem o rigor de uma axiomática e
se a realidade está estreitamente atada numa rede de equações;
o cstruturalista porá a estrutura em toda parte. O médico terá
tendência a substituir a escuta silenciosa e respeitosa da pessoa
do outro por um questionário diagnóstico de sufocante precisão
e trocará a compaixão pela entrega de uma receita eficaz e rigo­
rosa, com bons conselhos abundantemente testados em outros
pacientes.
De onde vem essa tendência à uniformização dos métodos?
Para resumir, digamos que, no Discurso do método, Descartes
decretou que o caminho para chegar à verdade era único: a via
matemática. Ora, essa exigência é tão absurda quanto pedir para
se utilizar um cinzel de escultor ou um maçarico como ferra­
menta universal. Há materiais inteligíveis para os quais a mate­
mática é tão inadequada quanto um maçarico para operar um fí­
gado! Se a inteligência está a serviço do verdadeiro, portanto da
compreensão do real, seus meios de investigação devem procu­
ra ‫ ׳‬ser tão ricos e variados quanto a realidade.
1

Como remediar esse grave desvio? Digamos simplesmente


que a redescoberta de uma arte de pensar faz parte das “tera­
pêuticas” a empregar para nosso tempo. Na Idade Média, os es­
tudos universitários começavam por uma longa aprendizagem
da lógica, tanto se percebia que é inútil e perigoso fazer funcio­
nar a inteligência no real antes de saber como ela funciona: tam­
bém ela tem necessidade de uma habilitação de dirigir antes de
lançar-se nas estradas exaltantes mas perigosas da verdade. A ló­
gica, por certo, assim como o bom senso, é uma inclinação na-*i

25. O psicólogo Jean PIAGET oferece um bom exem p lo de m onism o m e­


todológico em sua única obra de filosofia (Sagesse et illusions de la pbilosophie,
A la pen sée”, Paris, PUF, 1965). O fundador da epistem ologia genética procla­
ma o m onism o cognitivo: “Só há uma espécie d e conhecim ento, o conhecim ento
i m itifico (...)." Ao fazer essa afirmação, Jean Piaget situa-se nos antípodas de
l.icques MARITAIN, que, em seus Degrés du savoir (],aris, D esclée, 1935), se es­
torça precisamente por mostrar a pluralidade dos conhecim entos: vulgar, pré-cien-
tifiCG ou pré-filosófico, científico, teológico, m ístico... Aliás, ao tomar "partido
pelo monismo cognitivo, Jean Piaget situa-se no prolongam ento do cientificismo
positivista” (G eorges KALINOWSKI, Impossible métapbysique, Paris, Beauches-
nes, 1981, p. 50).

21
tural, inata; mas nossa natureza ferida perdeu o manual de
instruções para utilizá-la. É preciso, pois, um “organon" (um ins­
trumento), como dizia Aristóteles: essa é a arte de pensar que
este livro propõe.

A ordem mais rigorosa, a que seguem os manuais, exigiria


que se estudassem sucessivamente as três operações do espírito:
lógica da deíiniçào, lógica da enunciação, lógica da argumentação.
Mas proceder assim, por um lado, seria bastante rebarbati-
vo, por outro, e sobretudo, comportaria o risco de fazer da lógi­
ca uma ciência e não uma arte de pensar; em outras palavras, a
lógica se reduziria a não ser mais que uma disciplina suplemen­
tar a assimilar. A lógica tem por objetivo tornar inteligente, e
não erudito.
Mas como não sucumbir à tentação de cerebralismo ou de
erudição? Como fazer da lógica uma disciplina prática? Há uma
única solução. A lógica é um instrumento, um órgão que permi­
te multiplicar as capacidades de nossa inteligência. É preciso,
pois, partir das situações concretas nas quais nosso espírito se
exerce: é nelas que a arte de pensar tem condições de servir.
Partimos da inteligência em atividade. Ora, dupla é a ativi­
dade do espírito (e tomaremos emprestado nosso vocabulário,
mas não nossos conceitos, de Roger Vittoz):
- ou ela está em situação receptiva ou situação de acolhi­
mento; mas receptividade não é passividade: aquela está
para esta assim como escutar está para ouvir, como olhar
está para ver...
- ou ela está em situação emissiva. A inteligência é de fato
chamada a restituir o que ela compreendeu. Essa atitude
vem apenas em segundo lugar, pois só é possível dar o
que se recebeu e se assimilou. Não falaremos da desco­
berta propriamente dita ou da invenção, que é um dos
aspectos da emissividade (uma disciplina, a heurística,
encarrega-se mais particularmente de estudá-las).
Ora, a inteligência pode exercer sua atividade num duplo
registro. Essa distinção, menos importante, tem a ver com nosso
condicionamento orgânico e com a maneira pela qual as infor­
mações nos chegam e pela qual as transmitimos. Mas os dois
sentidos informativos por excelência são a visão e a audição:
- a mediação visual: ler, escrever;
- a mediação auditiva: escutar, dizer (formular).

22
Capítulo i

O NÍVEL DE LEITURA

i >QUE 6?

Na análise de um texto, antes mesmo de você perguntar


M*i isamente o que ele diz, convém interrogar-se sobre o que
1 1

■Ir engendra (ou provoca) em você. Será:


o saber - esse texto busca ensinar algo a você? Ele mos­
tra o que é verdadeiro ou falso, apresenta o estado de
uma questão?
o mover - esse texto leva você a agir ou a reagir, orienta
sua ação, suas intenções, num certo sentido? Ora, pode-se
agir de maneira humanizante ou alienante. A questão coro­
lário imediata é, portanto: esse texto faz você crescer em
humanidade a serviço dos outros homens ou não?
- o comover - esse texto sensibiliza você? Ora, isso pode
ocorrer de maneiras diferentes: pode alegrá-lo ou, ao
contrário, entristecê-lo, animar sua esperança ou atiçar
sua cólera.

Por que esses efeitos múltiplos? É que o próprio homem é


múltiplo. Mais particularmente, há três grandes tipos de faculda­
des no homem: a inteligência (cujo ato é saber), a vontade (cujo
.!1( > é mover) e a afetividade, a sensibilidade (cujo ato é como­
ver). Simbolicamente: a cabeça, o coração, as entranhas.
Assim, uma maçã pode dirigir-se:
- à sua sensibilidade: o texto do Gênese, 3, v. 6, diz que
Eva encontrou um fruto “bom para comer e de agradável
aspecto”. E essas duas características comovem a sensi­
bilidade;
- ou à sua inteligência: Newton pergunta-se por que ela
cai sobre a terra, enquanto a lua, pelo menos aparente­
mente, não cai;

23
- ou à sua vontade: o texto do Gênese prossegue desta
forma: o fruto era “desejável para adquirir o discernimen­
to”. Ora, o desejo de discernimento é um ato do querer.
Do mesmo modo, todo texto pode dirigir-se a essas diver­
sas faculdades.

O texto que se dirige à sensibilidade


Nesse caso, o texto busca, por exemplo, agradar, distrair (é
o caso da história em quadrinhos ou do romance policial) ou
suscitar a piedade, a angústia, a excitação etc.
Os três exemplos a seguir não se dirigem manifestamente à
inteligência, mas à sensibilidade, o primeiro para comover, o se­
gundo para fazer sorrir, o terceiro para escarnecer.

As armas da manhã são belas e o mar. A nossos cavalos


{entregue a terra sem amêndoas
o céu incorruptível nos protege. E o sol não é nomeado, mas
[suaforça está entre nós
e o mar de manhã como uma presunção do espírito.*'

Daninos começa assim seus Cadernos do Bom Deus·.


“887.707. Esse número representa o total de anos transcorridos
desde que o homem surgiu na Terra. Muito recentemente, em
suma. Fico feliz em poder dar esse detalhe aos especialistas que,
há séculos, hesitam em pronunciar-se sobre o assunto e cujas
estimativas variavam entre 250 e 600 mil anos.”‫־‬
Nosso último exemplo é tirado da revista Le Canard Enchai-
né\ n*1233724, com o título “Mylène natural”: “Candidata da chapa
tapista do Var, liderada portanto por Daniel Heehter, a atriz Mylè-

* “Les armes du matin sont belles et la mer. A nos chevaux livrée la terre
sans amandes / nous vaut ce ciel incorruptible. Et le soleil n'est point nommé,
mais sa puissance est parmi nous / et la mer au matin com me une présomption
de l’esprit.”
1. Saint-John PERSE, “Anabase”, I, Oeuvres complètes, “Bibliothèque de la
Pléiade”, Paris, Gallimard, 1972, p. 93.
2. Pierre DANINOS, Les carnets du Bon Dien. “Le Livre de poche” nB 2181,
Paris, Plon, sen! data, p. 7.
3. 11 de março de 1992, p. 1.

24
nt* Demongeot falou um pouco mais a ‘VSD’ (5/3) cie suas convic­
ções políticas: ‘Não sou de direita nem de esquerda. Sempre fui
ecologista.’ Ta pie e Hechter, novos arautos dos verdes? O luto elei­
toral deve ser a tendência prêt-à-porter..."

Que um texto comova, nào é um mal, pelo contrário. E in­


clusive uma riqueza, pois à sua capacidade de ensinar ele pode
juntar o prazer que sustenta a atenção. Ele une então o sorrir ao
dizer. Dilatando a inteligência e a afetividade, dá uma impressão
de desabrochamento. É por isso que as aventuras vividas roman­
ceadas ou as reportagens televisadas sobre animais ou países
desconhecidos têm tanto sucesso.
Mas atenção! A afetividade, em si, é neutra: é a vontade
que lhe confere seu clima ético. Por exemplo, desejar comprar
um carro é neutro; esse desejo torna-se bom quando é integra­
do num projeto profissional que implica deslocamentos por au­
tomóvel, e mau quando se busca apenas suscitar a inveja dos
vizinhos.
Do mesmo modo, diante de um texto que comove e se as
paixões despertadas são fortes, será preciso indagar que tonali­
dade ética estas assumem: com vistas a que são elas remexidas?
Qual a finalidade buscada?
Leiamos o final deste texto muito elaborado, esteticamente
muito sedutor, que é o soneto Vénus Anadiomene, de Arthur
Rimbaud:

O lombo é um pouco avermelhado, e tudo exala um odor


Estranbamente horrível; notam-se sobretudo
Singularidades que convém olhará lupa...
Nas costas, duas palavras gravadas: Clara Vénus;
E todo esse corpo agita e ostenta seu grande traseiro
Medonhamente belo com urna úlcera no ânus*

* “L’echine est un peu rouge, et le tout sent un gout / Horrible etrange-


ment; on remarque surtout / Des singularites qu’il faut voir a la loupe... / Les
reins portent deux mots graves: Clara Venus·. / Et tout ce corps remue et tend sa
large croupe / Belle hideusement d’un ulcere a l'anus.”

25
Outro exemplo, tirado do poema O mal:

Ele é um Deus que ri para as tualbas adamascadas


Os altares, o incenso, os grandes cálices de ouro;
Que no embalo dos hosanas adormece,
E desperta, quando mães, encolhidas
Na angústia, e chorando sob a velha touca negra,
Lhe dão um vintém embrulhado no lenço.**4

O texto que se dirige à inteligência


Esse é o objetivo do livro que você está lendo atualmente, pe­
lo menos assim espero! É também o caso dos textos seguintes do
moralista Santo Tomás de Aquino e do geólogo Claude Allègre; eles
são desprovidos de qualquer floreio e de qualquer efeito retórico.
“O que é de direito humano não poderia infringir o direito
natural ou o direito divino. Ora, segundo a ordem natural estabe­
lecida pela providência divina, os seres inferiores estão destinados
a prover às necessidades do homem. Por isso sua divisão e sua
apropriação, obra do direito humano, não impedem que eles sir­
vam para prover às necessidades do homem. Eis por que os bens
que alguns possuem em excesso devem-se, por direito natural, à
alimentação dos pobres.”‘5 Ora, teria sido possível escrever um
texto polêmico sobre o sofrimento dos pobres e sobre o egoísmo
do Ocidente industrializado. Nesse caso, o texto talvez fosse pri­
meiramente endereçado aos sentimentos e não à razão.
Assim também:
“Os granitos são as rochas mais abundantes dos continen­
tes terrestres. Eles não foram descobertos nem na Lua nem nas
rochas de origem extraterrestre, que são os meteoritos.”6

* “II est im Dieu, qui rit aux nappes damassées / Des autels, à l’encens,
aux grands calices d’or; / Qui dans le bercement des hosannah s ’endort, / / Et se
réveille, quand des mères, ramassées / Dans l’angoisse, et pleurant sous leur vi-
eux bonnet noir, / Lui donnent un gros sou lie dans leur mouchoir!”
4. Arthur RIMBAUD, “Vénus Anadyomène”, in Oeuvres poétiques, Paris,
Garnier-Flammarion, 1964, p. 43; “Le mal”, idem, p. 51.
5. Suma teológica, II-1I, q. 66, a. 7.
6. Claude ALLÈGRE, Uécume de la Terre, “Le temps des sciences”, Paris,
Fayard, 1983, p. 355.

26
0 texto que se dirige à vontade
É o caso de uma fábula de La Fontaine que, justamente, ter­
mina com uma “moral”, de uma parábola evangélica, de um relato
de aventuras vividas ou fictícias. Aqui o texto deseja mover, não
•·edu/,indo mas propondo o que é bom ou mau para o homem.
Vejam-se os seguintes textos:
“Pode-se encolher os ombros, pode-se ficar indignado dian­
te da maré negra, verde e vermelha dos grafites que invadem
nossos metrôs, nossos trens, nossas estradas. Pode-se calcular a
despesa inútil, pode-se gritar que é uma loucura. O que ainda
resta a compreender é o que se passa na cabeça de um jovem
da periferia que corre todos os riscos para deixar sua sigla eriça­
da de K e de X, em letras computadorizadas, sobre o inofensivo
assento do trem de subúrbio. Há alguns anos, um estudo sobre
a·, depredações sofridas pelas cabines telefônicas na França
mostrou que elas eram praticadas sobretudo por jovens muito
isolados que se vingavam por não ter praticamente ninguém
1 mu quem conversar.
O fenômeno das pichaçòes é certamente da mesma ordem.
<,..) Mais do que uma vontade de poluir ou de degradar, ele é
um grito, informe, monstruoso, contra a imagem de uma socie-
d.ide da abundância (...). Quando se esperou indefinidamente
um auxílio-desemprego sonhando com o aparelho de som que
m· poderá comprar, quando se consumiu o dinheiro em poucos
dias e se tem a perspectiva de vinte outros de ‘trabalhos força­
dos’, (...) o que se quer é fazer calar, mais dia menos dia, esse
apelo insolente ao consumo (...) e afirmar de todos os modos a
propria existência, dizer que também se tem um estilo.” Conclu­
são que manifesta claramente a intenção: “Não é uma desculpa,
ia·m uma justificação. Mas talvez uma explicação e um apelo a
icsponder a esse grito. De outra forma.”7

E aqui está o final de uma fábula de La Fontaine:

Tinha razão a morte. Seria melhor, nessa idade,


sair da vida como se sai de um banquete,

7. Michel GITTON, “L’âge du tag”, in Famille chrétienne, 26 de setembro


de 1991, p. 55.

27
agradecendo ao anfitrião, e am im ar as malas;
pois, por quanto se pode adiar a viagem?
Tu resmungas, ancião! Vê os jovens morrerem,
vê como eles andam, como correm
para mortes, é verdade, gloriosas e belas,
no entanto certas, e algumas vezes cruéis.
É em vão que te grito; meu zelo é indiscreto:
o mais semelhante aos modos é o que mais lamenta morrer**

Diferença entre os textos que se dirigem à inteligência


e os textos que se dirigem à vontade
Pascal assinalou bem a diferença entre os pensamentos (e
os textos) que visam à inteligência e os que visam à vontade: a
passagem merece ser citada na íntegra:
“O coração tem sua ordem; o espírito tem a sua, através de
princípios e demonstrações; o coração tem outra... Jesus Cristo e
São Paulo têm a ordem da caridade, não do espírito; pois eles
queriam inflamar, não instruir. Santo Agostinho também. Essa
ordem consiste principalmente na digressão sobre cada ponto
que se relaciona com o fim, para mostrá-lo sempre.”*89 Percebe-se
bem essa diferença ao comparar Descartes e Pascal, Santo To­
más de Aquino e Santo Agostinho, Paulo VI e João Paulo II.

Obviamente, é raro que um texto se dirija apenas a uma


só faculdade. O caso quimicamente puro nem mesmo é desejá­
vel, pois, como veremos mais adiante, o bom escritor, como o
bom orador, deve dirigir-se ao homem inteiro: tente ler atenta­
mente durante quinze minutos a lista telefônica! É por isso que

* “La mort avait raison. Je voudrais qu’à cet âge / On sortit de la vie ainsi
que d’un banquet / Remerciant son hôte, et qu’on fit son paquet; / Car de com-
bien peut-on retarder le voyage? / Tu murmures, vieillard! vois ces jeunes mou-
rir, / Vois-les marcher, vois-les courir / A des morts, il est vrai, glorieuses et bel­
les, / Mais sures cependant, et quelquefois cruelles. / J’ai beau te le crier; mon
zèle est indiscret: / Le plus semblable aux morts meurt le plus à regret.”
8. LA FONTAINE, Im mort et le mourant (liv. VIII, fábula 1).
9· Blaise PASCAL, Pensées, n° 72, ed. Chevalier in Oeuvres completes, “Bi-
bliothèque de la Plêiade”, Paris, Gallimard, 1954, p. 1102; n- 283, ed. Brunsch-
vicg. ( Pensamentos, trad. bras. Sérgio Milliet, São Paulo, DIFEL, p. 123.)

28
|i .ii■■ e os grandes mestres espirituais falavam freqüentemente
pni parábolas.
Nao ()!‫»־‬stante, um texto se dirige prioritariamente ao espíri­
to ao coração ou à afetividade. Leia este retrato de La Bruyère
t \ § õ): “Arrias leu tudo, viu tudo (...); é um homem universal, e
‫ ׳‬I*· se tem por tal (...). Fala-se, à mesa de um nobre, de uma
i orle tio Norte: ele toma a palavra, e tira-a dos que iam dizer o
que sabem a respeito; orienta-se nessa região longínqua como
.c t o s s e originário dela ( ...) . Alguém se arrisca a contradizê-lo, e
prova lhe claramente que ele diz coisas que não são verdadei-
i.i‫■־‬
· Arrias não se perturba, pelo contrário, inflama-se contra
quem o interrompeu: *(...) Recebi essa informação de Sethon,
i inbaixador da França nessa corte (...).’ Ele retoma o fio de sua
narração com mais confiança do que havia começado, quando
um dos convidados lhe diz: ‘É a Sethon que você fala, ele pró­
prio, e que retorna de sua embaixada.’ ”
Aqui, o autor, como bom humorista, dirige-se obviamente
a sensibilidade, mas com uma finalidade ética: ele procura edifi-
<ar, traçando-nos o retrato do tagarela. Em última análise, é por-
i.uito á vontade que ele fala.

I*()R QUE O DISTANCIAMENTO CRÍTICO?

Um exemplo permitirá economizar longas demonstrações.


I.eia estes dois relatos de um mesmo acontecimento e observe
suas reações. Eles tratam do “caso Touvier”, após os resultados
11(>estudo que o arcebispo de Lyon pediu a historiadores.
Eis o que diz a respeito o editorial de Noél Copin no jornal
la Croix de 7 de janeiro de 1992: “O volumoso relatório publica­
do pela comissão de história, reunida por iniciativa do próprio
cardeal Decourtray, mostra claramente que eclesiásticos se em­
penharam em subtrair Touvier à justiça ou em obter seu indul-
lo.” Ele conclui assim: “O risco da clareza valia portanto a pena
ser corrido. E valeria a pena mesmo se as conclusões tivessem
sido ainda mais arrasadoras. É preferível saber que homens da
Igreja, por fraqueza, cometeram erros, mas que a Igreja tem a
coragem da verdade” (p. 1).

29
Eis aqui, no mesmo dia, o artigo do cronista religioso do
jornal Le Monde: “O relatório dos historiadores entregue pelo sr.
René Rémond ao cardeal Decourtray é arrasador para a Igreja.”
E Henri Tincq concluirá desta forma: ”Mesmo se esse caso refe-
re-se ao passado, todos hào de lembrar que a Igreja sempre foi
mais rápida em condenar seus padres-operários ou seus teólo­
gos de vanguarda do que seus clérigos comprometidos com os
regimes conservadores” (p. 12).
A diferença das conclusões é chocante e permite avaliar o
quanto os mesmos fatos podem ser interpretados em termos di­
versos, e até despertar sentimentos e reações opostas: indulgên­
cia ou cólera.
Há alguns anos, Franco mandou executar um certo número
de generais. Dois jornais de tendências opostas noticiaram mais
ou menos o seguinte: Franco mata tantos generais; Franco pou­
pa a vida de tantos generais.
Mas por que é tão importante tomar esse recuo em relação
ao texto? Há duas razões principais.

P rim eira razão


É preciso saber que atitude adotar em relação ao que se
lê. Com efeito, a conduta não será a mesma diante de um texto
de evasão que se dirige à sensibilidade e de outro que informa
a inteligência, mesmo se você tiver inteira confiança em seu au­
tor: o primeiro caso não supõe nenhuma mobilização do espíri­
to, que pode permanecer passivo e contentar-se em distrair-se;
o segundo supõe uma acolhida atenta, eventualmente critica:
uma informação não fecunda uma memória ou um espírito
adormecidos e, em todo caso, só terá então uma eficácia míni­
ma. Ler um gibi não é ler a Ética a Nicômaco de Aristóteles.
Aliás, a confiança em relação a um autor jamais dispensa uma
atenção: o espírito só pode estar em repouso se estiver seguro
do que lhe foi dito.
Na mesma ordem de idéias, não esconda de você mesmo
o quanto a paixão pode encobrir sua objetividade. Assim, noti­
ciando as conclusões do estudo genealógico ascendente dos in­
divíduos acometidos de uma mesma forma hereditária de glau­
coma, em relação a seus antepassados comuns, o Le Monde de

30
1 ile‫ ־‬abril de 1991 escrevia: “Trinta mil descendentes de uma
mesma família do século XV correm o risco de ficar cegos. A
identidade deles é conhecida, mas a lei proíbe preveni-los.” Es-
■>,i informação provocou um forte desassossego na população
envolvida de Pas-de‫־‬Calais. Mesmo em outra parte sua leitura
nos impressiona. Ora, isso é deixar a paixão dominar a inteli­
gência do texto que, involuntariamente, joga com duas signifi­
cações, e portanto com duas leituras do termo “correr o risco”:
"primeiro aquela (sentido corrente) segundo a qual 30 mil pes­
soas ‘vão’ ficar cegas se não forem prevenidas; em seguida, a
outra (sentido probabilista menos familiar para o grande públi­
co), segundo a qual 30 mil pessoas correm um risco, isto é, têm
uma probabilidade (talvez muito pequena, o que era o caso) de
ficarem cegas: a continuação do artigo evita fazer uma estimati­
va. No entanto, o cálculo é simples: após quinze gerações, a
probabilidade de ter recebido um gene do casal ancestral é pre­
cisamente igual a 1/2 na potência 15, ou seja, um pouco menos
de uma ‘chance’ em 32.000!”10
Além do efeito passional, a compreensão errônea baseia-se
num termo com muitos sentidos (o que chamaremos no capítulo
V um termo análogo): “correr o risco”.

Segunda razão
A manipulação dos espíritos existe. Não sejamos ingênuos.
Não imaginemos que a pretensa liberdade de imprensa e a au­
sência de censura nos protegem do terrorismo intelectual e da
influência das modas. Escutem bem esta advertência de Alexan­
dre Soljenitsin: “O Ocidente, que não possui censura, pratica no
entanto uma seleção minuciosa ao separar as idéias em moda
daquelas que não o estão, e, ainda que estas últimas não sofram
nenhuma proibição, elas não podem se exprimir verdadeiramen­
te nem na imprensa periódica, nem pelo livro, nem pelo ensino
universitário. O espírito de vossos pesquisadores é de fato livre
juridicamente, mas cercado de todos os lados pela moda.”11

10. Jean-Louis SERRE, “Biologie et médias: les dangers do ‘sc o o p ’”, in La


Recherche n- 239, janeiro de 1992, vol. 23, pp. 86-8.
11. Le déclin du courage, Paris, Seuil, 1978, p. 30.

31
Por que a manipulação?
Seria demasiado longo examinar isso em detalhe12. Já em
1833, o general prussiano von Clausewitz, em sua obra agora
clássica sobre a guerra, observava que as armas psicológicas sào
superiores às armas militares (essa observação não poderia ter
mais atualidade).
A manipulação tem por objetivo não tanto informar, e sim
impelir à ação neste ou naquele sentido (por exemplo, para der­
rubar um governo, fazer pressão...), ou, ao contrário, comover e
assim ocultar a inteligência e paralisar suas reações (esse é o
sentido de muitos atos terroristas, dos crimes atrozes, cuidadosa­
mente retransmitidos pela mídia). O perigo, então, é que só
aflore à consciência a informação (o suposto alimento da inteli­
gência), e que a ação primordial sobre a vontade ou a sensibili­
dade não transpareça imediatamente ou não pareça imputável
àquele que fala ou escreve.
Por exemplo, certas instâncias tentam apresentar o aborto
como um simples meio de contracepção e como um procedi­
mento de controle da natalidade. Foi o que disse o dr. Lagroua
Weill-Hallé a respeito das conclusões do congresso realizado
em Dacca, de 28 de janeiro a 5 de fevereiro de 1969: “Pela pri­
meira vez oficialmente, num congresso da Federação Internacio­
nal do Planejamento Familiar (IPPF), o aborto é apresentado
como um meio de contracepção (...), como um método de con­
trole da natalidade.”13

Como?
O domínio de eficácia por excelência da manipulação é evi­
dentemente o audiovisual. Com efeito, o impacto de uma ima­
gem é imenso. “Uma imagem vale por dez mil palavras”, diz um
provérbio chinês. Ora, ela apresenta uma dupla vantagem imedia-

12. Ver Alexandre DOROZYNSKI (ed.), La manipulation des esprits... et


comment s'en proteger, Paris, ed. G. Le Prat, 1981; R. JACQUARD, La guerre du
mensonge. Histoire secrète de la désinformation, Paris, Plon, 1986; Vladimir VOL-
KOFF, La désinformation. arme de guerre, Paris, Julliard-L’Age d'homme, 1986.
Esses estudos dizem respeito sobretudo à URSS, mas os mecanismos descritos
verificam-se também em outros países.
13. Lagroua WEILL-HALLÉ, L’a vortement de papa. Essai critique pour une
vraie reforme, Paris, Fayard, 1971, p. 21. Sublinhado no texto.

32
i.i sobre a idéia: requer um esforço mínimo (ela se acomoda pas-
.ivamente dentro de nós); e é mais atraente à primeira vista, po-
■lendo inclusive parecer mais rica quando não se compreendeu o
quanto o abstrato liberta o coração do concreto. O impacto da
imagem é então de tal ordem que a inteligência se inibe. Basta
mostrar o sofrimento de uma mulher que não pode abortar para
mobilizar um país inteiro contra a proibição do aborto.
Mas a desinformação existe também no domínio da escrita.
I )c maneira mais geral, a manipulação incidirá sobre palavras:
veja se, por exemplo, a conotação pejorativa de uma palavra tão
inocente, no sentido original, como “burguês”, habitante de um
burgo. A manipulação envolve também as idéias, como a de ra-
■ismo, fórmula vazia dos políticos, acusação que se estende por
Iodas as latitudes, apesar de sociólogos pouco suspeitos de com­
placência, como P. A. Tagnieff, denunciarem a ambigüidade in­
trínseca dessa noção.

( ]()MO PROCEDER?

Concretamente, como responder a esta questão: o texto


visa minha cabeça, meu coração ou minhas entranhas?

Primeiro, observar suas reações im ediatas


Tome um recuo em relação a si próprio e constate após
determinada leitura, determinada reportagem, o que emerge es­
pontaneamente em você. Não para ceder a isso, mas para saber
o que foi despertado. Singularmente, esse exercício é interessan­
te para saber qual afeto foi suscitado, pois a censura da razão
opera rapidamente e encontra pretextos a posteriori que oblite­
ram e camuflam as reações primeiras da sensibilidade.
Sob esse aspecto, não seja vítima da ilusão clássica: sentir-
se bom não é ser bom. Ao terminar a leitura de um artigo sobre
a situação no Líbano ou no Sudão, você se sente perturbado e,
por uma introspecção muitas vezes involuntária, pensará: “Não
sou tão mau assim, já que a infelicidade dos outros me entriste­
ce." Mas vimos que comover não é mover: a sensibilidade é
neutra e não tem efeito duradouro se não é assumida por um
querer esclarecido.

33
A seguir, determ inar fria m en te o nível do texto
Acalme suas emoções e reflita. A palavra, sob esse aspecto,
permite livrar-nos do domínio imediato da paixão; signo e ex­
pressão do pensamento, ela é condição necessária para instaurar
um ato de liberdade. O Comitê encarregado da Vigilância da Pu­
blicidade pediu que os filmes publicitários fossem projetados nas
salas de cinema com a luz acesa e não na obscuridade; a luz,
com efeito, coloca o espectador em relação com seus vizinhos e
permite-lhe portanto um distanciamento em relação ao filme pu­
blicitário, graças à mediação possível que a linguagem autoriza;
ora, a linguagem, que é signo e expressão do pensamento, é
condição necessária para instaurar um ato de liberdade.
Feito isso, como determinar se um texto se dirige mais à
inteligência, à vontade ou à sensibilidade? Trataremos da mani­
pulação à parte.
Os critérios são de diferentes ordens:

Critérios lógicos
Um bom critério é fornecido pelos tipos de raciocínio em­
pregados. Eles serão estudados em detalhe no capítulo III. Assi­
nalemos, desde já, que um texto que se dirige:
- à inteligência utiliza todos os tipos de raciocínio, mas so­
bretudo o silogismo e a indução; algumas vezes o enti-
mema e mais raramente o exemplo, e isso em geral acon­
tecerá tanto na fase de descoberta quanto na exposição
pedagógica;
- à vontade utiliza às vezes silogismo e indução, mas so­
bretudo os argumentos mais fracos como o entimema e o
argumento pelo exemplo;
- à sensibilidade utiliza exclusivamente entimema e exem­
plo. Em particular, o raciocínio pelo exemplo apela com
freqüência às paixões para concluir.
Mas procuremos não esquematizar. Seja o seguinte texto:
“Essas florestas são um elo essencial do equilíbrio planetário: 7%
das terras emersas produzem 25% do oxigênio (e o mesmo de
C02). Elas participam da regulação do clima, e sua combustão li­
beraria gás carbônico aumentando o efeito estufa. Ora, essas flo­
restas desaparecem hoje a um ritmo acelerado: 100 mil quilôme­
tros quadrados desmaiados por ano na Amazônia. A esse ritmo,

34
.i 11()resta terá desaparecido completamente no ano 2040.”“ Cer-
1.1 mente esse texto fala com rigor, sua demonstração é silogísti-
ca. Mesmo assim ele desperta em nós sentimentos, especialmen-
te de temor, e até mesmo inclinações da vontade (como fazer
para deter essas devastações?)

Critérios literários ou gramaticais


Um texto que se dirige à inteligência utiliza com maior fre­
quência o indicativo, eventualmente o subjuntivo ou o condicio­
nal, ao passo que o texto que se dirige à vontade ou à sensibili­
dade, para ser incitativo, não hesitará em utilizar o imperativo
(ou sua forma atenuada que é o futuro do indicativo). Assim, o
texto a seguir, com uma abundância de imperativos sob a forma
de futuro do indicativo, dirige-se manifestamente à vontade:
“As férias são o momento ideal para se livrar, com a con­
cordância de seu médico, de certos medicamentos. Você estará
nas condições ideais para diminuir progressivamente seu trata­
mento, protegido do estresse. Os soníferos que você ingere há
muito tempo poderão finalmente ser interrompidos. Se você
dormir menos bem nos primeiros dias, as conseqüências não se­
rão as mesmas do que se tivesse uma jornada de trabalho.”“

Hm !)articular, como reconhecer um artigo,


um texto suscetíveis de m anipulação?
Na verdade, vamos estabelecer critérios que visam a reco­
nhecer textos manipuladores, mesmo que o sejam involuntária e
inconscientemente. Lembremos que há manipulação quando um
texto move ou comove sem fundamento objetivo real: ele faz
mais do que diz. Isso pode advir, certamente, de uma fraqueza
ou de uma fragilidade do receptor. Mas nos interessaremos aqui
apenas pelo emissor, pelo comunicador.
Na maioria das vezes, os textos nos manipulam através de
nossa afetividade sensível. Aplique em primeiro lugar, portanto,
os critérios que acabam de ser enunciados: uns são mais formais145

14. Christian BRODHAG, Object'if teure. Les Verts, de lecoiogie ä la politi-


que, Paris, Ed. du Felin, 1990, p. 249.
15. Christian GAY e Alain GERARD, Le guide des tranquillisants et autres
[)sychotropes, “Connaissance et Sante”, Paris, Denoel, 1991, p. 335.

35
e nào exigem que se saiba se o que é afirmado é verdadeiro ou
falso; basta que se analise o próprio texto; outros, que qualifica­
remos de materiais, exigem uma informação exterior que avalia
a verdade do texto.
Entre os critérios formais, procure reconhecer dois tipos de
defasagem, sempre extremamente reveladoras:
- entre a intenção declarada e o que é efetivamente escrito;
-entre o que chamaremos a tese, aquilo que o texto afir­
ma, e a demonstração que ele oferece dela.
Um critério, sutil mas muito precioso, servirá de transição:
o caráter refutável ou não-refutável do texto.
Já os critérios materiais dizem respeito ao valor de verdade
do texto; eles supõem que o conteúdo seja conhecido.

Primeiro critério formal: clefasagem entre


a intenção declarada e o que d iz o texto
“Um cartaz nos muros de Paris representava o sr. de Calon-
ne, ministro das Finanças, cercado de contribuintes e dizendo a
eles: ‘Eu os reuni para perguntar com que tempero vocês que­
rem ser devorados.’ ‘Mas não queremos ser devorados’, eles res­
pondiam. ‘Vocês não estão respondendo à questão’, concluía o
ministro.”16*Do simples ponto de vista lógico, é verdade, a res­
posta é improcedente. Assim também, muitos textos e artigos fa­
lam de coisa diferente da que haviam anunciado.
E sinal de que se deve estar vigilante. O autor declara que
vai falar de um assunto a fim de atrair a atenção de seu ouvinte
ou leitor, e acaba não dizendo uma palavra a respeito.

Segundo critério formal: defasagem entre


a tese e sua demonstração proposta
É igualmente fácil observar quando um texto afirma muito
e demonstra pouco. Esse texto é como um homem que se apoias­
se sobre a cabeça ou um triângulo sobre o vértice. Ora, o que
camufla em geral o equilíbrio instável do edifício conceituai é a
magia da frase e do estilo; mas essa é também uma maneira de
raciocinar que estudaremos mais adiante em detalhe - em par-

16. Antoine de LA GARANDERIE, La motivation. Son éveil, son dévelop-


pement, Paris, Le Centurion, 1991, pp. 8-9.

36
in ni.ii, o ‫׳‬abuso de analogias (o que chamaremos raciocínio pelo
rxemplo) e de simples ilustrações à guisa de prova. Sempre me
Impressionou o emprego quase sistemático desse gênero de ar­
gumentos nas obras de divulgação em esoterismo.
Ho mesmo modo, o convívio cada vez mais assíduo com a
televisão fecha-nos a qualquer argumento que não seja o “caso
de fulano” (ou caso individual). Ora, é muito raro que se possa
chegar à conclusão universal tendo percorrido apenas alguns
exemplos ou situações singulares; e no entanto é o que fazemos
demasiado espontaneamente, e que um discurso manipulador
incita habilmente a fazer.

• Leitura do texto
Eis a apresentação de um programa da série Graneis Repor­
tares, na TV, com o título “Sexorama”. Ele fala da liberdade se­
xual total na Espanha, hoje em dia. “Entretanto, recentemente,
um jovem pintor aceitou queimar suas obras, consideradas de­
masiado eróticas pelo clero local. A Espanha da Inquisição ainda
não desapareceu completamente!”17

• Análise do texto
A conclusão (que é a última frase) ultrapassa as premissas e
se apóia num lugar-comum: Inquisição (sobretudo espanhola) =
Intolerância. Mas há vício de raciocínio. Com efeito, a Inquisição
era um tribunal que julgava e eventualmente condenava, as sen­
tenças sendo executadas pelo braço secular; ora, o clero atual
não tem nenhum poder de jurisdição no domínio civil. Por outro
lado, é minimizar claramente a inteligência e a liberdade do artis­
ta, que pode muito bem ter se curvado às razões do clero.

• Um caso particular: o uso do argumento de autoridade


Santo Tomás notava que, salvo no domínio da Revelação,
o argumento de autoridade era o mais fraco de todos. Temos

17. Télé 7jours, de 24 a 31 de agosto de 1991, p. 99: cabe notar, ali‫׳‬ás, que
o Figaro magazine TV de 26 de agosto a 1Qde setembro de 1991, p. 41, começa
a apresentação da mesma maneira, mas não acrescenta a última frase com o co­
mentário.

37
sempre o direito de pedir as fontes e os fundamentos das asser­
ções. Entretanto, compreender alguém supõe um mínimo de
concessões (não se pode a todo momento demonstrar tudo), as­
sim como a crítica ou a desconfiança sistemáticas não permitem
acolher outrem e a verdade que ele enuncia.
Precisemos: o recurso à autoridade nem sempre é explícito;
na verdade, quanto maior a defasagem entre a afirmação e a de­
monstração, tanto mais a autoridade é implicitamente exigida e
maiores as chances para que o leitor adira. Quanto mais “incrí­
vel” a afirmação, mais ela se mantém e se torna crível (“Não se
pode dizer tal coisa a menos que haja boas razões!”). É assim
que Las Casas ousa contar que Cortês matou, sozinho, numa
noite, e passando pelo fio da espada, cerca de seis mil homens!
Leiamos o texto seguinte. O que está em jogo não é vital,
mas isso não é uma razão para enunciar um juízo intempestivo.
“Foi em 1605 que Kepler descobriu que a órbita de Marte
era elíptica. (...) Pode-se dizer sem exagero que essa é a maior
descoberta científica de todos os tempos. Kepler dá uma respos­
ta completa a questões que vinham mobilizando há séculos os
melhores espíritos da humanidade, Eudóxio de Cnido, Aristarco
cie Patmos, Ptolomeu, Copérnico.”18*
O que quer demonstrar o autor? É o que a segunda frase
enuncia: a descoberta de Kepler “é a maior descoberta científica
de todos os tempos”. De que maneira ele o demonstra? É o que
nos diz a terceira frase. Ora, o mínimo que se pode dizer é que
o argumento proposto não é muito convincente e que prova
bem menos que aquilo que a tese propõe. Um sinal entre mui­
tos: a lista dos “melhores espíritos da humanidade”, singular­
mente, limita-se a cientistas, e mais: a astrônomos! Os biólogos,
os artistas e os filósofos não receberam convite. Por quê? Isso
não é dito. Em suma, Ekeland pensa que se dará crédito à sua
autoridade.

Desconfie também dos discursos ‘‘não falsificáveis ”


Tomamos esse neologismo do vocabulário do filósofo Karl
Popper: ele é sinônimo de não-refutabilidade (“non-falsifíability”,

18. Ivar EKELAND, Le calcul, Vimprévu. Les figures du temps de Kepler à


Thom, “Sciences”, Paris, Seuil, 1984, p. 16.

38
!■ui inglês). Essa noção original é sobretudo eficaz em ciências
humanas.

J () que quer dizer não-refutável?


Curta cena entre dois amigos num restaurante. Os dois
pedem um bife. O garçom traz um pequeno e um grande. Um
dos amigos serve-se de imediato e, sem escrúpulo, pega o bife
maior:
Mas você, hein? - exclama o outro. - Que atrevimento!
- Por quê?
- Pegou o maior.
- E daí? O que você teria feito se tivesse se servido primeiro?
- Eu? Teria pego o menor!
- Do que está reclamando então? Está aí o seu!”
Ora, se o segundo tivesse dito (o que é pouco provável!):
Tu teria pego o maior”, a resposta do primeiro teria sido: “Ora,
li/, o que você teria feito! Logo, não há por que se espantar.” O
sistema é não-refutável.
Qualifica-se como “refutável” uma noção que uma experiên­
cia pode refutar, cuja falsidade ela é capaz de provar. Isso signi­
fica que o real permanece sempre o critério último de verdade.
E o que traduz, num plano ético, esta observação profunda: o
melhor sinal do orgulho é jamais ter cometido erro. Seu sistema
interior é não-falsificável. O próprio da humildade, portanto, é
ler um pensamento vulnerável, criticável, e conseqüentemente
aberto. Num outro registro, a psicanálise lacaniana assinala que
o preço do acesso à idade adulta é a aceitação do fracasso, da
íalibilidade (o ovo se quebrou). A noção de nào-refutabilidade é
assim de grande alcance na vida cotidiana, tanto em nosso agir
quanto em nosso discurso.
Ora, Karl Popper19 considera que a ciência se detém e que
começa o arbitrário da ideologia (com seu temível corolário que

19. Cf. La logique de la clécouverte scientifique, Paris, Payot, 1982, prefácio


cie Jacques Monod. Para unia apresentação geral de Popper, ver Renée BOIIVE-
RESSE, Karl Popper; Paris, Vrin, 1981; Jean BAUDOIN, Karl Popper, "Que sais-
je?” n2 2440, Paris, PUF, 1989· Sobre a recepção francesa do pensam ento de Pop­
per e sobre sua influência; Karl Popper et la Science cl aujourd bui , Atas do coló­
quio organizado por Renée BOUVERESSE no centro cultural de Cerisy-la-Salle,
de l 2 a 11 de julho de 1981, Paris, Aubier, 1989.

39
é o totalitarismo) no momento em que a teoria proposta não é
mais refutável. As duas ilustrações por excelência de non-falsifia-
bility são, para nosso autor, o marxismo e o freudismo: nenhum
fenômeno histórico escapa à explicação da luta de classes e,
mais precisamente, quando se faz uma crítica ao sistema, ela é
logo interpretada, não como uma reivindicação legítima, mas co-
mo a expressão da classe dos opressores ou da tendência reacio-
nária ou fascista. Também Freud com freqüência interpretou as
críticas de seus adversários como resistências psicológicas in-
conscientes à novidade perturbadora de sua doutrina. A refuta-
ção torna-se assim impossível. Com efeito, uma refutação requer
que exista uma realidade (e portanto uma experiência baseada
no real) exterior ao sistema; ora, a priori, esse sistema engloba,
totaliza: nada lhe é estranho. Há algo de prometéico nesse dese-
jo de onisciência, caminho obrigatório da onipotência totalitária.
Também aí, a humildade, a aceitação de seus limites e de seus
erros, é o único caminho para a verdade.

□ Exemplos de nào-refutabilidade
Um texto sistemático que lança a suspeita sobre toda crítica
e a interpreta nos termos de sua construção deve deixar você
com a pulga atrás da orelha: há risco de manipulação. Diferen-
tes exemplos serão tirados de mestres da suspeita, Freud e Mao.
Freud pergunta-se por que sua doutrina das perversões sexuais
demora tanto a ser aceita: “Eu não sabería dizê-lo, mas parece-me
que se deve ver a causa disso no fato de as perversões sexuais se-
rem o objeto de uma proscrição particular que repercute na teoria
e se opõe ao estudo científico delas. Dir-se-ia que as pessoas vêem
nas perversões uma coisa não apenas repugnante, mas também
monstruosa e perigosa, que temem ser induzidas por elas em ten-
taçâo, e que no fundo são obrigadas a reprimir em si mesmas,
diante dos que são seus portadores, uma inveja secreta.”20
Isto lembra a crítica de Françoise Dolto às pessoas que le-
varam a Jesus a mulher adúltera (João, 8, 1-11). Se eles a acu-
sam, é porque têm um problema a resolver com sua própria cul-
pabilidade, portanto com seu desejo inconfesso...

20. Sigmund FREUD, lntroduction à la psycbanalyse, Paris, Petite Biblio-


thèque Payot, n8 6, 1963, p. 301; cf. também pp. 283 ss. e 291.

40
Outro exemplo: “Todas as guerras da história dividem-se,
no final das contas, em duas categorias: as guerras justas e as
guerras injustas. Somos a favor das guerras justas e contra as
guerras injustas. Todas as guerras contra-revolucionárias sào in­
justas, todas as guerras revolucionárias são justas.”21 A universali­
dade absoluta e englobante do discurso é suspeita.
Enfim, tomemos de Soljenitsin um exemplo vivido. O antigo
ministro Semichastny fez-lhe um dia “uma de suas estranhas acu­
sações (...): ‘Soljenitsin sustenta materialmente o mundo capitalis­
ta porque ele não reivindica seus direitos’ sobre certo livro”, no
caso, Uma jornada de Ivan Denissovitcb. Mas, continua Soljenit­
sin, “eis a pilhéria [que toma o raciocínio não-falsificável]: quem
aceita os honorários do Ocidente é vendido aos capitalistas,
quem não os aceita apóia-o materialmente - tertium non datur
Inão há terceiro termo, donde a não-refutabilidade]”22 .
Eis finalmente um exemplo de pensamento não-falsificável
em exegese: "... católicos hesitam em admitir a autenticidade
das palavras de Jesus, ora porque podem se explicar pelas con­
cepções de seu meio judeu, ora porque se afastam demasiado
das idéias comumente aceitas no tempo de Jesus”2324.
Relacionar isso com as severas observações do padre Be-
noit: “Jesus não tem o direito nem de falar como as pessoas de
seu tempo, nem de dizer algo diferente do que eles dizem. O
que lhe resta senão guardar silêncio? Não conheço melhor ma­
neira de amordaçar um homem.”2'

21. MAO-TSÉ-TUNG, Im guerre révolutionnaire, col. “10/18”, Paris, Éd. So­


ciales, 1955, p. 18.
22. Alexandre SOLJENITSIN, Les droits de 1’écrivain, seguido de Discours
de Stockholm, Paris, Senil, 1969, pp. 54-5.
23· André FEUILLET, L 'accomplissement des prophéties ou les annonces
convergentes du Sauveur messianique dans I Anden Testament et leur réalisation
dans te Nouveau Testament, “Bibliothèque de Theologie”, Paris, Desclée, 1991,
p. 49·
24. “Jesus et le Serviteur de Dieu”, cm Jesus aux origines de la Christologie,
p. 139, citado por Feuillet, nota 47.

41
Critérios m ais materiais
Esses critérios são múltiplos. Citaremos apenas alguns.

□ Com freqüência, o texto manipulador caricatura


ou até deturpa o pensamento do adversário.
Eis como Frossard apresenta o teólogo alemão Eugen Dre-
wermann:
“Um teólogo alemão imbuído de psicanálise e em diver­
gência doutrinal com seu bispo fez uma descoberta desconcer­
tante: a vocação sacerdotal teria a ver com as angústias da pri­
meira infância e com o papel maternal da Igreja. Recriminamo-
nos por não haver pensado nisso antes. É evidente que a pri­
meira idéia que surge a uma criancinha com medo do escuro é
tornar-se padre no mais curto prazo. É não menos evidente que
a Igreja deveria cessar de mostrar-se maternal, e tornar-se tão
antipática quanto possível, a fim de evitar que espíritos fracos
como São Bernardo ou São Vicente de Paula venham a lançar-se
em seus braços. Dizer que ainda há gente para imaginar que
exista, na vocação sacerdotal, algo de misterioso! Ora vamos!
Não há mistério para um teólogo digno desse nome.”25
A tese está na última frase (o que não é raro nesse tipo de
exercício de estilo: in cauda venenum!)·, a teologia perdeu o
sentido do mistério. O termo médio (veremos mais adiante o
que é) é a vocação sacerdotal.
Cabe notar que esse tipo de texto se dirige muito mais à
paixão que à inteligência. Um sinal disso é a utilização da ironia
e do eufemismo. Um segundo sinal é a redução caricatural que
a crítica faz da tese visada. Frossard não busca portanto demons­
trar, mas antes suscitar a cólera ou confortar um leitor já conven­
cido. O que não significa que não haja nenhum conteúdo inte­
lectual; mas este está a serviço da paixão a suscitar.
O teólogo alemão evidentemente não disse que todos os
padres eram angustiados; Frossard caricatura seu pensamento ao
transformar uma proposição matizada, particular: “Alguns futu­
ros padres”, em proposição universal: “Todos os futuros padres.”
Isso é eficaz do ponto de vista retórico; mas o procedimento
respeita o pensamento de outrem?

25. André FROSSARD, “Cavalier seu l”, Figaro, outubro de 1991.

42
U O texto manipulador utiliza o raciocínio por acidente
O autor justapõe idéias, esperando que a mera coincidên­
cia se torne relação de causa e efeito. Eis um exemplo típico. Es­
se exemplo é apaixonante, pois permite ver em funcionamento
uma técnica clássica de pseudo-informação, ou melhor, de pseu­
do-raciocínio que não conclui.

• Leitura do texto
O artigo fala do professor Jérôme Lejeune, “inventor” da
causa (genética) da síndrome de Down (ou trissomia do 21) e
fundador do movimento “Deixe viver”.
“Duas ou três coisas ainda para completar o retrato do per­
sonagem: ele é doutor bonoris causa da universidade de Pam-
plona, um dos feudos da Opus Dei, e sua filha, membro da
Obra, foi designada pelo Papa, juntamente com seu marido, Jean-
Marie Meyer, para representar em Roma, no seio de um Conse­
lho da família que reúne uns vinte outros casais de vinte países,
as famílias católicas da França.26‫״‬

• Análise do texto
Ora, esse artigo não conclui, pois contenta-se em justapor
para sugerir e persuadir. Mais precisamente ainda, afirmar que
“ele é doutor bonoris causa da universidade de Pamplona, um
dos feudos da Opus Dei" e dizer que “sua filha” é “membro da
Obra”, não permite sequer afirmar que o professor Lejeune faça
parte dela. Além disso, a afirmação é puramente sugestiva, pois
o jornalista não tira nenhuma conclusão explícita dessa suposta
associação (que pode ser apenas um vínculo acidental). De fato,
os vínculos estabelecidos são tão frouxos que ele é incapaz de
concluir alguma coisa. Mas o autor deseja simplesmente que o
termo Opus Dei desperte algum afeto negativo (direita, Espanha
franquista etc.) e que esse afeto se transfira ao professor Lejeu­
ne. A persuasão é portanto aqui uma cortina de fumaça e, no
caso, uma técnica de manipulação.
Observe bem os meios empregados. Eles costumam ser
dois:

26. “Le professeur Lejeune. La m éthode secou é”, Les dossiers du Canard:
Les cathocrates, setem bro de 1990, p. 44.
- primeiro, a alusão, o vínculo frouxo, e geralmente aci­
dental, estabelecido entre o tema, a pessoa de que fala o
artigo e um outro elemento qualquer (aqui, a Opus Det)■,
- a seguir, uma forte carga emotiva negativa associada ao
segundo elemento.

□ O texto manipulador pode utilizar a


“desinformação sistemática”
É o caso mais difícil de discernir. Não é raro que o discurso
manipulador minta descaradamente. Os boatos “mostram o
quanto o provérbio ‫־‬Onde há fumaça, há fogo’ é uma aberração.
Ele só tem sentido se chamarmos ‘fogo’ a paixão e a imaginação
às vezes estéreis das testemunhas, dos receptores de mensagens
e das pessoas que lançam voluntariamente boatos. Na realidade,
o apego popular a esse provérbio constitui o caminho aberto
para sua manipulação pelo boato. A lógica mental do público é
explícita: para ele, por trás de toda fumaça existe uma centelha
de fogo. Sabendo disso, os estrategistas tiraram uma regra de
ação muito conhecida: Calunie, calunie, que sempre sobrará al­
guma coisa”27.
Soljenitsin dá diferentes exemplos de calúnias organizadas,
na obra citada acima (cf. p. 49; pp. 52 ss.): “Há muito se sabe
que a calúnia é inesgotável, inventiva e que prolifera rapida­
mente. Mas, quando nos deparamos pessoalmente com a calú­
nia e, o que é pior, quando ela assume uma forma nova e ja­
mais vista, quando é lançada do alto das tribunas, o espanto é
grande. O círculo da mentira se alastrou sem encontrar obstácu­
lo, a ponto de se afirmar que fui prisioneiro de guerra e que co­
laborei com os alemães” (pp. 52-53).
A mentira se constata na vida diária. É assim que o cura de
Ars, que tinha horror à impureza, passava um dia em sua aldeia
quando uma mulher pôs-se a injuriá-lo, “culpando-o pela crian­
ça que ela trazia nos braços...”28.

27. Jean-Noèi KAPFERER, Rumeurs. Le plus vieux média du m onde, Paris,


Senil, 1987, p. 58.
28. Jean-Marie VIANNEY, Curé d'Ars, Pensées, apresentados pelo abade
Nodet, Paris, Xavier Mappus e DDB, sem data, p. 40.

44
Assinalar esse tipo de deslize sem cair na paranóia requer
verificar suas fontes de informação e um sólido bom senso.
Lembre-se também que o homem ferido pelo pecado original
prefere espontaneamente crer no mal a crer no bem que se diz
de seu vizinho.

45
Exercícios

Examine a que faculdade se dirigem preferencialmente os


textos seguintes. E, se o texto se dirige à sensibilidade ou à von­
tade, identifique: O texto visa a distrair? É ou nào humanizante?

Primeiro exercício

• Leitura do texto
“Uma alimentação cada vez mais precária, uma vida trepi­
dante e estressante, refeições feitas às pressas, só podem ter re­
percussões nocivas sobre nossa saúde.
As grandes epidemias e as fomes felizmente desapareceram
de nossas regiões.
Mas parece que a doença não regride.
O homem, devido à sua higiene de vida, está em estado
permanente de microcarências.
Seu estado oscila entre saúde e doença, com o aparecimen­
to de distúrbios variados cujas causas não são evidentes para o
corpo médico.
É então urgente reequilibrar.”
(Chantal e Lionel CLERGEAUD, Ualimentation saine. Guide
pratique en 13 leçons, Éd. Equilibres, Flers, 1989, p. 46.)•

• Análise do texto
Antes de mais nada, e como preâmbulo, o que diz o texto?
Sua tese é que uma alimentação equilibrada evita as doenças.
A qual nível se dirige o texto? Nosso propósito nào é fazer
um juízo de valor sobre o conteúdo do texto, mas apenas sobre
sua forma. Não estamos habituados a distinguir esses dois as­
pectos, e essa é a razão de numerosas polêmicas.

46
À primeira vista, achamos que essas poucas linhas falam à
inteligência. Com efeito, o texto é claro, sem paixão, parece
bem argumentado.
Mas examinemos mais cie perto essa argumentação.
- Em primeiro lugar, o raciocínio se fundamenta em dois lu­
gares-comuns: o homem atual vive estressado. A medicina
é impotente diante das doenças do homem moderno etc.
- Em segundo lugar, se tentamos formular o raciocínio, de­
paramo-nos com o que chamaremos mais adiante um en-
timema, que é uma argumentação muito fraca. O raciocí­
nio limita-se a dizer: o homem moderno é doente; ora, o
homem moderno não equilibra suas refeições. Logo...
- O raciocínio apresenta também um outro fundamento: as
doenças são de dois tipos: as grandes doenças (ligadas a
macrocarências, por exemplo de higiene, de vacinação
etc.), como as epidemias, e as pequenas doenças ligadas
a microcarências; ora, o homem atual continua sofrendo
doenças, embora não conheça mais as epidemias; logo...
E é fácil perceber que poderia haver outras explicações,
por exemplo, de ordem psicológica (as escolas psicanalí-
ticas explicariam os males do homem contemporâneo pe­
la ausência de referência paterna).

Em conseqüência, o que provoca a adesão à leitura do tex­


to não é primeiramente a força do raciocínio, mas a junção de
evidências sustentadas por todos; não a visão clara de uma cau­
sa que iluminaria a inteligência, mas uma inclinação interior, um
consenso afetivo.

Segundo exercício

• Leitura do texto
Neste texto, Santo Agostinho quer desencorajar os cristãos
de correrem para o espetáculo. Mais precisamente, deseja afastá-
los dos jogos do circo, pois se está às vésperas do dies natalis
da cidade (Cartago, talvez).
“Considerem um saltimbanco. Com grande dificuldade, es­
se homem adestrou-se a andar sobre uma corda; suspenso, ele

47
os mantém em suspenso. Mas pensem naquele que nos oferece
espetáculos ainda maiores. Esse (...) homem (o apóstolo Pedro)·
nào aprendeu a andar sobre as águas? Esquece, pois, teu teatro,
contempla nosso Pedro, nào funâmbulo, mas, se posso dizer,
mareâmbulo.”
E a continuação, assombrosa: “Anda portanto sobre as
águas, nào aquelas que o apóstolo pisou, imaginando entào ou­
tra coisa, mas sobre outras águas, pois este século é como o
mar. Está cheio de amargor, de um amargor nocivo (...). Anda,
pisa com os pés este século perverso! Querias um espetáculo,
oferece tu mesmo o espetáculo! (...) Anda sobre o mar, a fim de
nào seres engolido pelo mar!”
(Citação e comentário extraídos de Henri RONDET, “Le
symbolisme de la mer chez saint Augustin”, Augustinus Magister,
Atas do Colóquio de 1954, Paris, 1955, t. II, pp. 691701‫ ;־‬aqui,
pp. 696-7.)

·Análise do texto
A profusão das imagens que se chamam uma à outra, de ma­
neira cada vez mais ousada, implicando cada vez mais a coopera­
ção do ouvinte e seu engajamento íntimo, mostra o quanto o texto
se dirige à afetividade e, aqui, à afetividade voluntária, à vontade.
Por isso, comenta Rondei, o bispo de Hipona utiliza “todos
os recursos de seu gênio para interessar seus ouvintes”.

Terceiro exercício

Seria possível ler toda a fulminação de Maurice Clavel, em


“Dieu est Dieu, nom de Dieu" (Paris, Grasset, 1976). Selecione­
mos uma passagem entre outras:•

• Leitura do texto
“Vocês nào foram ao mundo, vocês se entregaram ao mun­
do! Toda a infelicidade da condição de vocês, meus caríssimos
Padres, e conseqüentemente a nossa, foi que nào puderam ficar
sozinhos a rezar entre as quatro paredes de uma igreja. Foi que
nào cumpriram seu ofício, só isso, e depois procuraram subli­
mes razões. (...) Vocês esquivaram-se do combate do espírito

48
em troca de uma paz precipitada com a Terra! Disseram amém a
lodos os ventos findos do século! Renunciaram à ardente paciên­
cia e aos influxos de um vigor novo!” (p. 28)

• Análise do texto
O estilo é afetivo, e observem o quanto ele influencia a ordem
da exposição, opõe-se a uma progressão linear e provoca saltos cuja
coerência só se manifesta à luz de uma lógica da persuasão.
Trata-se de uma cólera santa? O recuo dos anos, o julga­
mento da História que é a falência da ideologia marxista (há
mais de dez anos não aparece nenhuma grande obra original
marxista), o desabamento do império soviético e a democratiza­
ção dos países do Leste falam por si sós.

Quarto exercício

• Leitura do texto
Jean-Claude Didelot, editor e autor, defende um missal que
editou, Epbata, e nessa ocasião fala de um jovem vietnamita
“perdido” que ele um dia encontrou. Ele escreve, em particular
aos bispos:
“Contei-lhe a história do filho pródigo, adaptando os perso­
nagens para nossa época. Cheguei ao instante em que o filho re­
torna à sua casa:
Então, ele diz a seu pai: - Eu estava louco ao sair de casa.
Depois, foi a miséria. Mas acabei compreendendo. Gostaria de
voltar a viver aqui... - Sabe, Patrick, o que o pai dele fez?
O jovem não hesitou:
- Deu-lhe uma sova?
- Não, ele o abraçou...
Nesse instante, monsenhor, duas lágrimas correram dos
olhos de Patrick. E foi por causa dessas duas lágrimas, por todos
os Patricks e todas as Christines encontrados durante tantos anos
longe das sacristias, dos escritórios e dos locutórios encerados,
que decidi lançar o projeto Epbata e acreditar nele.”
(Jean-Claude DIDELOT, Clérocratie dam 1’Église de France,
Paris, Fayard, 1991, pp. 205-6.)

49
• Análise do texto
O texto dirige-se manifestamente à sensibilidade. Com efei­
to, o vínculo entre sua tese (a defesa do missal Epbata) e o caso
desse jovem “perdido” é mais do que frouxo. Ora, a descrição
do episódio com Patrick é muito carregada afetivamente. O pro­
cedimento lembra muito o do raciocínio por acidente.

50
Capítulo II

A PROBLEMÁTICA PROBLEMÁTICA

Você está diante de um texto: esse é o nosso ponto de par­


tida. Sua primeira questão foi saber o que ele suscitava em você:
a inteligência, o querer, a emoção? (capítulo I). Ora, mesmo se
um texto se dirige prioritariamente à sensibilidade, isso ocorre
porque ele diz alguma coisa. A nova questão que você deve se
colocar é portanto: “O que diz o texto?” É a segunda etapa do
procedimento.
Ora, a função (ou objetivo) da tese (ou problemática) é
responder a essa questão: é dizer se o que segue é fundamental.
A tese define-se, pois, como uma proposição (uma frase)
que formula precisamente o que diz o texto (e, de maneira mais
geral, o que diz a inteligência em face da realidade), tendo em
vista enunciar o verdadeiro ou o falso.
- Por um lado, a tese tem como função formular o que diz
o texto; mas seu objetivo último é dizer o verdadeiro ou
o falso. Veremos mais adiante a profunda verdade do
princípio versificado por Boileau:

O que se concebe bem enuncia-se claramente.


H as palavras para dizê-lo chegam facilmente.

- Por outro lado, a tese tem a estrutura de uma proposição,


isto é, ela irá compor-se de duas idéias, dois conceitos
que serão atribuídos um ao outro. Por exemplo: “A canto­
ra é careca” ou “as cenouras não estão cozidas” são teses
(uma idéia é atribuída a uma outra).
Esses dois pontos são absolutamente nevrálgicos. Examine­
mos melhor a razão disso, antes de estudar a estrutura da pro­
blemática e a maneira de descobri-la.

51
Por quê?

A tese apresenta várias funções ou finalidades fundamen­


tais (formular rigorosamente o que diz o texto; dizer o verdadei­
ro ou o falso) ou mais secundárias.

Primeira função da tese: formular o que diz o texto


Faça a seguinte experiência: você bem sabe que existe uma
diferença entre contrário e contraditório. Intuitivamente já perce­
be que emprega essas palavras em circunstâncias diversas; além
disso, você dirá: “o branco é o contrário do preto”, mas não: “o
branco é o contraditório do preto”; inversamente, você dirá: “é
contraditório (e não contrário) afirmar que os extraterrestres
existem e nào existem”. Ora, e é onde queremos chegar, procu­
re designar precisamente essa diferença; eu não digo descrever
ou dar exemplos, mas definir da maneira mais exata e mais
exaustiva possível essa distinção. Você sentirá, muito provavel­
mente, que tem uma grande dificuldade de fazer isso. Conse­
quentemente, uma coisa é ter uma vaga idéia do que diz o tex­
to, outra é formulá-lo distintamente. Ora, a inteligência só está
em repouso (em ato, como se diz em metafísica) e a compreen­
são só chega a seu termo através da formulação explícita; antes
disso, o espírito encontra-se ainda em busca do verdadeiro. E o
papel da tese será formular, dando a lógica as regras e os meios
(os instrumentos) dessa formulação.
A questão a colocar diante de um texto nào é: “O que me
diz o texto?”, e muito menos “O que é que digo do texto?”, mas
“O que é que diz o texto?”, o mais objetivamente possível.
É preciso portanto ultrapassar a preguiça do: “Vou dar mi­
nha opinião sobre...” A palavra “opinião” é eminentemente reve­
ladora: pois a opinião é muito subjetiva. Ela pode ser um sinal
de humildade, mas na maioria das vezes revela um grande em­
pobrecimento do pensamento. Assim, “dar minha opinião” reduz
o texto a uma série de impressões afetivas que fazem sentido
para mim e apenas para mim. Isso faz pensar naquelas reporta­
gens de televisão em que se interrogam pessoas sobre um acon­
tecimento: cada um diz o que pensa, e cabe ao espectador esco­
lher o que lhe convém ou convém ao jornalista. O “para mim”
do texto certamente tem importância, mas somente após uma

52
análise rigorosa do “em si” do texto (o que ele diz em si). “A in­
justiça mais corrente que se comete em relação ao pensamento
especulativo consiste em torná-lo unilateral, ou seja, em revelar
apenas uma das proposições de que ele se compõe.”'
Ora, reduzimos um texto ou o pensamento do outro ao que
dele compreendemos superficial mente sobretudo em dois casos
bem diferentes: quando o texto nos parece difícil de compreen­
der e quando não concordamos com ele; e os textos árduos tam­
bém são com freqüência textos que não correspondem à nossa
forma de pensamento. Assim, o problema aqui é tanto uma ques­
tão de inteligência quanto de acolhimento do outro.

Logros de verdade

O psicólogo Rosenthal, da universidade de Harvard, reali­


zou uma experiência com Ó50 alunos do primário da Oak
School. Ele induziu uma predição no espírito das professoras
(que ignoravam portanto o fato). Ele explica que vai "subme­
ter os alunos a um teste de inteligência, dizendo às professo­
ras que esse teste permitiria não apenas determinar os quo­
cientes de inteligência dos alunos, mas também identificar,
entre eles, os 20% que fariam progressos intelectuais rápidos
e acima da média ao longo do ano escolar". Ora, na ver­
dade, Rosenthal escolhe nomes ao acaso na lista dos alu­
nos. "Uma vez efetuado o teste, mas antes que as professo­
ras encontrem seus alunos pela primeira vez, são dados a
elas os nomes (...) daqueles dos quais se pode [supostamen­
te], com base no seu êxito no teste, esperar com certeza re­
sultados excepcionalmente bons. A diferença entre essas crian­
ças e as outras só existe portanto, em realidade, no espírito
das professoras. Submetem-se novamente todos os alunos ao
mesmo teste de inteligência no final do ano escolar, e consta-

1. HEGEL, Science cie la logique, trad. fr., 3 tomos, Paris, Aubier-Montaig-


ne, t. I, 1972, p. 83·

53
tam-se enföo progressos realmente excepcionais, com resulta­
dos que efetivamente ultrapassam a média."

Robert ROSENTHAL e Lenore JACOBSON, Pygmalion à /ecole, trad, fr., Paris, Caster-
man, 1 9 7 t, citado por Paul WATZLAWICK, "Les predictions qui se vérifient d'elles-me-
mes" [As predições que se verificam espontaneamente], in L'invention de la réalité.
Contributions au constructivisme, dirigido por Paul WATZLAWICK, Paris, Seuil, 1988,
pp. 115-6.

Esse resultado vale também para as experiências com ani­


mais. O mesmo Rosenthal publicou uma experiência que foi
posteriormente repetida e confirmada por numerosos pesquisa­
dores. “Doze participantes num estágio de laboratório especiali­
zado em psicologia experimental assistem a um curso sobre es­
tudos que pretendem provar que as performances realizadas por
ratos numa série de testes (por exemplo, experiências de apren­
dizagem, feitas em gaiolas-labirintos) podem tornar-se inatas se
forem aplicados métodos de criação seletiva: seis estudantes re­
cebem trinta ratos cuja constituição genética produz sujeitos de
laboratório, ao que tudo indica, particularmente eficazes, ao pas­
so que outros seis estudantes recebem trinta ratos dos quais se
afirma, ao contrário, que suas características genéticas fazem de­
les maus sujeitos de laboratório. Na realidade, os sessenta ratos
são todos da mesma espécie, isto é, aquela que se utiliza sem­
pre nesse contexto. Submetem-se a seguir os sessenta ratos à
mesma experiência de aprendizagem.”
Resultado: “Os ratos que os pesquisadores acreditam ser
particularmente inteligentes não apenas se comportam melhor
desde o início, como também alcançam desempenhos ampla­
mente superiores aos dos animais ‘não inteligentes’. Ao final dos
cinco dias que dura a experiência, pede-se aos pesquisadores
que façam um juízo subjetivo sobre seus animais, em comple­
mento aos resultados que registraram ao longo das experiências.
Os estudantes que ,sabem’ que trabalharam com ratos não inteli­
gentes dão um parecer negativo; ao contrário, os que fizeram
suas experiências com ratos supostamente mais eficientes os
qualificam de amistosos, inteligentes, engenhosos, e acrescentam

54
que freqüentemente tocaram e acariciaram os animais, e inclusi­
ve brincaram com eles” (Idem, pp. 116-7).
Cabe notar que essa tese pode se voltar contra o partidá­
rio da influência da predição... do perigo da suspeita. Em outras
palavras: a primeira função da tese é evitar ao máximo que o
intelecto caia nas armadilhas do afetivo; e isso não visa a um
contentamento orgulhoso do espírito, mas a seu humilde con­
sentimento no enunciado do verdadeiro. É o que devemos ver
agora.

Segunda função da tese: dizer o verdadeiro (ou o falso)


Essa função é capital: um texto só me interessa, em última
instância, porque ele tem em vista apontar a verdade. Contem­
ple-se o João Batista do retábulo de Isenheim realizado por Grü-
ncwald (no museu de Interlinden, em Colmar). O Precursor não
e mais que um sinal que aponta o Cristo, pois ele não via outro
sentido em sua vida (mas, para isso, é preciso uma vida) senão
“diminuir” para fazer “crescer” a Verdade (cf. João, 3, 30); ele é
somente a voz e não a Palavra.
Portanto, não se detenha apenas no que diz o texto, mas
aguce seu senso da verdade. Não permaneça indolentemente à
superfície, embalado pelo pensamento do autor, buscando ape­
nas compreendê-lo, mas confronte-o com o real: o que diz ele
de verdadeiro?
Mas, dirá você, o que se exige, sobretudo em filosofia, é
em primeiro lugar expor objetivamente o pensamento do autor.
Certo, e é também o que acabamos de recomendar. Mas o
próprio autor tem por objetivo buscar e exprimir o verdadeiro:
essa é a finalidade da inteligência. Uma vez assimilado o pensa­
mento daquele que lemos, resta confrontá-lo ao real e assim
"pesar” sua verdade. Isso ocorre com menos freqüência do que
se crê: mais de 80% das teses atuais de filosofia versam sobre a
história da filosofia e não sobre esta. Imagine se acontecesse o
mesmo em medicina! É mais difícil confrontar-se com a altura
do real que com um autor. Por outro lado, o amor-próprio pode
encontrar satisfação nisso: citar três pensadores é mais brilhante
do que emitir, com prudência e às vezes coragem, um pensa­
mento próprio e refletido sobre a realidade. Inversamente, não

55
dar senào sua opinião é muitas vezes sinal de negligência ou
desprezo à opinião de outrem.
Lembremos enfim que a razão existe para a inteligência, e
que esta é feita para dizer o verdadeiro. O longo caminho do
discurso está a serviço da verdade.
Isso vale também em ciência. Há um perigo próprio no uso
apenas operatório ou técnico da inteligência; e pensamos aqui,
em particular, em todos aqueles que fazem estudos de engenha­
ria (e praticam essa profissão). Com efeito, a maior parte da ati­
vidade intelectual deles consiste em conceber, construir projetos,
experimentar, de sorte que o real não é mais que o lugar de ve­
rificação de suas produções mentais (e também de resistência à
concretização de suas concepções!); não é mais esse cosmos
que não inventei nem construí, que se oferece a mim, que me
espanta e me entusiasma, cujo sentido me precede e do qual ja­
mais esgotarei a beleza e a infinita riqueza.
Um sinal disso é que, por preocupação com a eficácia, o
engenheiro reduz seu aparato conceituai, intelectual, às fórmulas
imediatamente úteis e à porção do produto que ele testa (deter­
minada parte da fuselagem, determinado equilíbrio dinâmico...).
Hssa restrição mental é portanto dupla: perda da referência aos
princípios e ao real que fundamenta as fórmulas (ausência de
recuo) e perda do sentido do todo (parcelamento e hiperespe-
cialização que são uma verdadeira “patologia do saber”, segun­
do a expressão de Edgar Morin). Em última instância, essa visão
econômica e militarista mata o sentido da contemplação; ora,
theoria quer dizer contemplação do verdadeiro.
Hubert Reeves escreve: “Conheço muitos astrofísicos que
são trabalhadores honestos... Mas vocês ficariam espantados
com o número de astrofísicos que são incapazes de reconhecer
uma constelação além da Ursa Maior... Certo dia, mostrei Órion
a um especialista de Órion que jamais a tinha visto. Mas ele he­
sitava em olhar. Tinha medo de se decepcionar !’”

Interesses mais secundários da tese


A. formulação da tese permite uma melhor avaliação crítica
do pensamento do autor (teremos numerosas ocasiões de verifi-2

2. Entrevista em Lite, ng 133, outubro de 1986, p. 28.

56
car isso). Ela permite especialmente assinalar as eventuais con­
tradições do autor; e elas existem mesmo nos autores que estão
acima de qualquer suspeita de manipulação.
É o caso nas passagens abaixo, que são do grande teólogo
protestante Karl Barth: “A confissão de fé apostólica não pre­
tende falar de uma sociedade invisível, mas de uma reunião es­
sencialmente visível"; e também: ‘1Credo Ecclesiam significa:
creio que a comunidade à qual pertenço é a Igreja una, santa,
universal”; ora, por outro lado, Barth afirma: “Testemunho na fé
que a comunidade concreta à qual pertenço (...) está destinada a
tornar visível, nesse caso sob a forma que lhe é própria, a Igreja
una, santa e universal.” Em outras palavras, Barth afirma dois
enunciados antinômicos: a Igreja é visível (“quando a Igreja não
tem essa visibilidade, ela não é a Igreja”); a Igreja não é visível3.
Enfim, a formulação permite, nos outros, assinalar as repeti­
ções fastidiosas e, em si mesmo, evitá-las tanto quanto possível.
Eis como o psicanalista Tony Anatrella expõe o que carac­
teriza o processo psíquico próprio do adolescente: “As tarefas
do adolescente vão sobretudo ser dominadas pelos remaneja-
mentos da identidade sexual, pelos das funções do ego e do de­
sejo. A renúncia às gratificações infantis destinadas a confortá-lo
deve ocorrer para transformá-las por ocasião da passagem a
uma sexualidade objetai. Esta última implica a integração do ou­
tro no campo da consciência do indivíduo e na economia da
pulsão. A pulsâo sexual torna-se altruísta e, ao mesmo tempo
que elabora os restos da sexualidade infantil, não é mais finali­
zada por si mesma. O prazer não é mais buscado em si mesmo,
mas será mediatizado. O objetivo e a finalidade da pulsão é o
outro com o qual o indivíduo estará em relação. A posição nar-
císica irá, no melhor dos casos, transformar-se em posição de al-
teridade. O adolescente entrará, não sem dificuldade às vezes,
na psicologia da diferença.”'
Eis algo bem expresso. Mas que a proliferação das palavras
não engane: trata-se de variações sobre um mesmo tema (con-*4

3■ Karl BARTH, Esquisse cl'une dogmatique, Genehra, D elad iau x et Nies-


tle, 1968, pp. 229-31.
4. Tony ANATRKLLA, Interminables adolescences. Les 12/30 ans, puberte,
adolescence, postadolescence, "line societe adolescentrique”, col. “Ethique et
societe”, Paris, Cerf-Cujas, 5a ed., 1991, p. 214.

57
ceitual) que a seguinte tese resume: A tarefa do adolescente é
abrir-se ao (buscar o) outro.

O QUE É A TESE?

Acertemos primeiro uma questão de vocabulário (que dife­


rença existe entre problemática, tese e conclusão?), antes de es­
tudar em detalhe o que é a problemática.

Problemática, tese e conclusão


A problemática, outro nome da tese, sublinha bem o esta­
tuto de partida desta, que é interrogativo. Com efeito, quando
digo: a vida existe em outros planetas, enuncio uma tese, mas
essa tese deve ser provada. Portanto, tenho de me haver com
uma questão, com um problema.
Inversamente, a conclusão designa também a tese, mas no
final, no ponto de chegada do raciocínio.
Utilizaremos estas três palavras, tese, problemática e con­
clusão, de maneira equivalente, embora designem uma mesma
realidade considerada sob diferentes aspectos.

Natureza da tese
A busca do verdadeiro rege a maneira pela qual o exprimi­
mos: no caso, atribuindo um conceito a outro. Eis o que é uma
tese: a atribuição de um conceito a outro tendo em vista dizer a
verdade.
Faça um teste: será que “fresco” é verdadeiro? será que
"peixe” é verdadeiro? Não, não há sentido nenhum em dizer is­
so. Ora, observe que nessas duas proposições existe apenas um
único conceito (essa palavra um pouco técnica é sinônimo de
idéia no vocabulário atual). Inversamente, tente responder sim
ou não a cada uma das seguintes questões: “O homem é mortal
e mau?”, “O homem, que em toda parte está escravizado, nasceu
livre?” Esses últimos exemplos, ao contrário dos primeiros, com­
portam mais de dois conceitos - “o homem”, “mortal”, “mau”,
“em toda parte está escravizado”, “nasceu livre”. Um referendo
que pedisse que se respondesse sim ou não a essa questão teria
manifestamente outra intenção que a de conhecer a opinião dos

58
eleitores sobre o assunto, pois justamente a resposta única seria
impossível.
E eis a contraprova. Você pode responder à questão: “O
peixe é fresco?”, “O homem nasce livre?”, “O homem está em to­
da parte escravizado?” (com a possibilidade de matizar sua res­
posta a seguir). Aqui, você está diante de apenas dois conceitos.

U Exemplo de problemática simples


“A impureza de uma coisa consiste em que essa coisa está
misturada com outras mais vis. Não se diz, com efeito, que a
prata é impura pela liga com o ouro, liga que não faz senão tor-
ná-la mais preciosa; mas ela o é pela liga com o chumbo ou
com o estanho. Ora, é evidente que a criatura racional tem mais
dignidade que todas as criaturas temporais e corporais. Por isso
ela se tornou impura pelo fato de, amando as coisas do tempo,
colocar-se abaixo delas. Dessa impureza ela seguramente é puri­
ficada pelo movimento contrário, isto é, quando tende ao que
está acima dela, isto é, a Deus. Nesse movimento, é certo que o
primeiro princípio é a fé: ‘Quando, de fato, nos aproximamos de
Deus, é preciso crer’ (He 11, 6). E eis como o princípio primeiro
da purificação do coração é a fé.”s
O que quer dizer o autor? Nesse texto límpido, Santo To­
más manifestamente não teve senão uma intenção: mostrar que
a purificação (e não a pureza) do coração é um efeito da fé. E
tal é sua tese.

□ Exemplo de problemática complexa


Eis uma questão com predicado complexo:
A grande imprensa muitas vezes apresentou um texto infe­
lizmente truncado da questão que Gorbachev colocou ao con­
junto da União Soviética em 17 de março de 1991.
“Vocês julgam necessário manter a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas enquanto federação renovada de repúblicas
soberanas e iguais em direitos, nas quais serão totalmente garan­
tidas as liberdades e os direitos do homem para todas as nacio­
nalidades?” Essa interrogação comporta no mínimo dois grandes
aspectos:5

5. Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 7, a. 2.

59
- a manutenção da “União”, isto é, de um centro dotado
de plenos poderes;
- a soberania das repúblicas, igualdade dos direitos nacionais
e, para os indivíduos, liberdades e direitos do homem.
Outro exemplo:
Também não se deveria imaginar que toda frase contenha
uma única problemática. Leia-se esta frase do teólogo suíço Bal-
thasar: “Nos lábios de Cristo e no contexto do Sermão da Monta­
nha, a ‘Regra de ouro’ (Mt 7, 12; Lc 6, 31) só pode ser considera­
da como o resumo da Lei e dos profetas porque ela fundamenta
no dom de Deus (que é o Cristo) aquilo que os membros do Cris­
to podem esperar uns dos outros e assegurar-se mutuamente.”6*
A frase é rica e complexa. Percebe-se de saída que ela não
pode se reduzir a uma tese única. Prova está que se ficaria bas­
tante embaraçado para responder com um simples “sim” ou um
simples “não” à pergunta: “Isso é verdadeiro ou falso?” Discerni­
mos aí inclusive uma série de subproblemáticas, sendo que as
principais seriam:
- o Cristo enuncia a Regra de ouro;
- ele o faz no contexto do Sermão da Montanha;
- essa Regra de ouro resume a Lei e os profetas;
- ela baseia-se no dom de Deus;
- o dom de Deus é o Cristo
- essa Regra diz o que os membros do Cristo podem espe­
rar uns dos outros e assegurar-se mutuamente.
Como orientar-se? É preciso atomizar essas frases-molécu­
las. De fato, essa frase articula diferentes proposições que cons­
tituem um raciocínio. A problemática é: “A Regra de ouro resu­
me a Lei e os profetas” (o que é o próprio conteúdo da palavra
das Escrituras). Sendo esse o núcleo da frase, Balthasar explicita
e mostra o sentido da proposição através cios vários outros
membros da frase:
Somente Cristo pode resumir a Lei e os profetas (isto é, to­
da a Escritura). Ora, a Regra de ouro se fundamenta no Cristo.
Mostremos essa última proposição, que não é evidente: primei-

6. Hans Urs von BALTHASAR, ‘La morale chretienne et ses normes”, in


Commission tbeologique Internationale, Textes et documents (1969-1985), Paris,
Cerf, 1988, pp. 85-135, aqui p. 93·

60
io, ela está nos lábios de Cristo, a seguir no contexto do Sermão
tia Montanha; enfim, ela diz respeito ao que os membros do
Cristo podem receber (“esperar uns dos outros”) e fazer (“asse-
gurar-se mutuamente”).

U Exemplo de ausência de problemática


No exemplo a seguir, ao contrário, não há senão conceitos
fragmentados. Eis o resumo feito por um pequeno grupo (de
língua espanhola) do encontro dos Karellis. Transcrevo o resu­
mo tal e qual:
“A pessoa (características concernentes a)
- lugar de transformação de toda pessoa
- pedagogia respeitosa da liberdade
- lugar formador da pessoa
- lugar de transformação
- lugar para aprender ‘quem sou eu’
- lugar de crescimento
- lugar de alegria e de simplicidade
- abertura ao novo
- abertura para ‘ler’ os sinais dos tempos”7
O que pensar disso? Em primeiro lugar, fica-se um pouco
desconcertado: o que isso quer dizer? O que pode significar
apenas “abertura para ‘ler’ os sinais dos tempos”, “lugar forma­
dor da pessoa”?
Depois, querendo compreender, dizemo-nos: “a pessoa é
um lugar de transformação, um lugar para aprender ‘quem sou
eu’, um lugar de crescimento” etc. O que fizemos? Para que a
luz apareça, pusemos em relação os conceitos díspares, enuncia­
mos juízos, construímos problemáticas. Mas logo se coloca um
problema. De fato, seria absurdo dizer, retomando a primeira
característica (e isso vale também para a segunda e a terceira):
“A pessoa, lugar de transformação de toda pessoa”. É aí que se
percebe a insuficiência do resumo e do método utilizado. Se
não quisermos permanecer na ignorância ou correr o risco do
contra-senso, há uma única solução: pôr os conceitos em corre­
lação, formar juízos.

7. “Ce que le peuple dit de lui-même”, in Fondations. Pour vivre et cons-


truire un monde nouveau, novembro de 1991, ne 17, p. 31.
Qual é a razão de fu n d o dessa unidade da problemática?
É a necessidade de unidade: o juízo, ou a problemática,
unifica o ato de inteligência. Em última instância, a metafísica
nos diz que a unidade e a verdade são tào universais quanto o
ser: toda verdade requer e contém sempre um mínimo de unida­
de para ser apreendida e existir. A pura multiplicidade ou plura­
lismo (que não se deve confundir com a pluralidade que respei­
ta a primazia da unidade), tomada em seu sentido etimológico,
não pode existir; aliás, assim que penso multiplicidade, é preci­
so que haja uma certa unidade que preceda essa multiplicidade
e me permita concebê-la. Nunca seria demais insistir nesse pon­
to. A verdade não nasce da unidade, da simplicidade, mas ela a
acompanha e a assinala. Dizer que ‘‫׳‬no começo está o múltiplo”
(é o caso, por exemplo, de Michel Serres em Genèse, mas tam­
bém de Gaston Bachelard, de Edgar Morin etc.) é uma contradi­
ção, pois é preciso de fato começar por uma palavra, um som
de voz, querer dizer uma coisa para ser compreendido, que uma
pessoa fale a uma outra etc.
Notemos que a formulação da problemática numa proposi­
ção que comporta um sujeito e um predicado é esclarecedora, e
que uma das funções da tese é produzir luz. Leia-se, por exem­
plo, a seguinte recomendação (um “artigo de higiene”) do filó­
sofo Paul Ricoeur: “A consciência não deve considerar como
uma boa exegese [em outras palavras, interpretação] de suas
próprias significações a explicação do desejo dos valores superio­
res pela necessidade sublimada de valores inferiores, todas as
vezes que essa explicação não tiver valor curativo.”8
A leitura não é muito fácil. Ora, isto se deve principalmente
à estrutura da frase e à sua formulação. Ponhamos agora essa
proposição em forma lógica rigorosa: a explicação dos valores
superiores pela necessidade sublimada de valores inferiores é in­
suficiente para a consciência que não busca a cura. Certamente
não é algo límpido para quem não leu o desenvolvimento de Ri­
coeur, mas já é mais claro!

8. Paul RICOEUR, Philosophie de la volonté. I. Le volontaire et Vinvoloniaire,


“Philosophie de 1'esprit”, Paris, Aubier, 1963, p. 382.

62
Confirmações
Todo texto bem estruturado (e isso vai do editorial de dez
linhas à tese de mil páginas) gira em torno de uma única proble­
mática. Talvez não valha a pena determinar uma para o cartão
de Ano Novo ou buscá-la num romance policial! Tomemos um
exemplo dos dois extremos:
- O Cavalier seul [Cavaleiro solitário] de André Frossard.
Esse editorial (como todos os editoriais) é um gênero lite­
rário difícil cujo impacto depende da unicidade da tese.
“As enfermeiras acampadas diante do Ministério da Saúde
acabarão pegando um forte resfriado, e o Ministro que recusa
recebê-las será obrigado a sair para cuidar delas.
E o caso de se perguntar, aliás, por que ele mantém tão
obstinadamente sua porta fechada. Ele parece um sitiado, situa­
ção penosa que termina geralmente por uma rendição. Detalhe
curioso, ele declarava, ontem na televisão, que não era uma ma­
nifestação de vinte enfermeiras que o faria mudar de idéia.
Não é extraordinário? Ele não as escuta, mas as ouve; não
lhes fala, mas sabe o que elas querem. Vê-se por aí todos os
dons necessários para ser ministro, e compreende-se melhor que
sejamos quase sempre obrigados a engolir os mesmos.”9
O começo pode enganar: o gancho do editorial não é um
sentimento de compaixão pelas enfermeiras; estas servem de
termo médio (veremos o sentido dessa palavra no capítulo III),
de mediação para a verdadeira problemática que é dirigida con­
tra o governo atual: “Os ministros devem mudar.” E a razão é
clara: eles não querem dialogar.

- O filósofo Paul Ricoeur redigiu três tomos, tão densos


quanto imponentes, intitulados Temps et récit iTempo e
narrativa]1‫״‬. Ora, eles procuram mostrar apenas uma coi­
sa, a tese que eles defendem é única: o tempo só pode
ser dito (ser compreendido) pela e na narrativa (“o apo-
rético do tempo revela-se na problemática da narrativida-
de”, traduzirá nosso autor, com simplicidade!).*10

9· Le Figam, terça-feira, 8 de outubro de 1991.


10. Paris, Seuil, 1983 a 1985.

63
- Enfim, uma ilustração a meu ver extraordinária é dada por
Santo Tomás de Aquino, especialmente em sua Suma teo­
lógica. Essa obra de maturidade alinha 2669 artigos que
se apresentam todos sob a mesma forma: “Será que A é
B?” (“O mundo começou a existir?”, “Cristo desceu aos in­
fernos?”, “Os santos do céu rezam por nós?”...), de sorte
que a resposta adquire sempre a forma de uma tese: Sim,
o mundo começou a existir. Sim, Cristo desceu aos infer­
nos etc. Esse método confere uma grande limpidez ao
propósito do doutor angélico que é a total transparência à
verdade. O que às vezes se criticou apressadamente como
secura é, na verdade, o sinal de um discurso que apenas
serve a verdade com rigor: a extrema simplicidade do vo­
cabulário e da forma (retirar uma frase torna muitas vezes
o texto incompreensível; acrescentar, sobrecarrega-o inu­
tilmente) é prova da extrema simplicidade de sua alma.

Objeção
O que acabamos de dizer é um ideal que vale para as dis­
ciplinas límpidas e rigorosas como a matemática ou as ciências
em geral. Na maioria das vezes, nossa inteligência deve discorrer
na penumbra. Se ela quiser permanecer fiel ao real de que se
ocupa, deverá portanto tomar-lhe emprestada a natureza: para
assunto obscuro, exposição obscura. É assim que alguém justifi­
cava Lacan, esse campeão em todas as categorias do absconso
(a última frase de sua única entrevista na televisão foi: “De ce
qui perdure de perte pure à ce qui pane de père en pire" [Do que
perdura de perda pura ao que aposta de pai em pior]): “Esse es­
tilo é provocado por aquilo mesmo de que ele trata. O inconscien­
te é, ao menos em parte, o contrário do mundo das idéias claras
e distintas. (...) O estilo de Lacan é então essa marcha para a es­
cuta do inconsciente e para sua expressão. (...) Por isso querer
explicar Lacan em linguagem dita clara é como querer traduzir
Rimbaud em prosa, ou recortar uma tela de Picasso para recolo­
car o nariz no meio da figura...”11
Mesmo São João da Cruz finge confundir a ordem real e a
ordem da razão no prólogo de A subida do monte Carmelo-. “Co-

11. Emile GRANGER, I.e croyant à lépreuve de la psychanalyse, “Dossiers


libres", Paris, Cerf, 1980, p. 20.

64
mo se trata aqui da noite escura, pela qual a alma deve ir a
Deus, que o leitor não se espante de encontrar alguma obscuri­
dade em nosso ensinamento.”12
Aliás, nossa tese monolítica, cristalizada, não é uma traição
ao real? Ela fixa o movimento, eterniza o fugaz, unifica artificial­
mente a proliferação do múltiplo, objetiva o subjetivo, intelectua­
liza o amor etc.

O que responder à objeção?


- Primeiro, poder-se-ia observar que há um esnobismo do
hermético e da “língua de madeira”**, que parece ter to­
mado por divisa: “Tudo o que é obscuro é profundo”!
Um bom número de pensadores dá o exemplo de que
mesmo a proposição inversa (tudo o que é profundo é
obscuro) não é obrigatoriamente verdadeira: é confundir
os abismos do pensamento e a fossa das Marianas!
Aliás, Emile Granger acaba por se trair, já que ele deve
confessar que seu trabalho é uma tradução clara de Lacan: “E,
no entanto, vamos tentar o sacrilégio!” De fato, todos os que,
mais cedo ou mais tarde, tentaram compreender Lacan, foram
obrigados a exprimi-lo numa linguagem ordenada que segue a
lógica própria ao consciente. E o mesmo acontece para a com­
preensão de todos os filósofos difíceis: o professor que os expõe
no curso, dá ilustrações, põe ordem nos textos etc.
Vamos dar algumas amostras disso, escolhidas apenas no
domínio filosófico; mas não há disciplina, filosófica, técnica ou
científica, que escape à síndrome da língua de madeira ou da
“língua de algodão”13. A “língua de madeira” era feita para épocas
duras e para assustar. Agora, na geração plastificada, cloroformi-
zada, sofl e amolecida que é a nossa, o algodão convém melhor:
“Ele é cálido, macio, flexível. É higiênico e termogênico. É uma
matéria útil e agradável com propriedades surpreendentes. Ele
preenche e absorve. É utilizado tanto para anestesiar como para
tapar as orelhas. É o acessório indispensável da maquiagem.”

12. La montée du Carmel, in Oeuvres spirituelles, trad, de Grégoire de


saint Joseph, Paris, Seuil, 1947, p. 24.
* Em francês, langue de bois, expressão que se refere à linguagem dura e
congelada. (N. T.)
13· Cf. François-Bernard HIJYGUE, La langue de colon, Paris, Robert Laf-
font, 1991.

65
Alguns exemplos de jargão

Rudolf Carnap, filósofo do círculo neopositivista de Viena, tor­


nou-se especialista em desmistificar (embora tenha ido um pou­
co longe demais), graças à análise lógica da linguagem, al­
guns filósofos que abusaram particularmente do jargão. Ele vi­
sou sobretudo Hegel e Heidegger. Acrescentamos dois outros
filósofos franceses (muito influenciados pela filosofia alemã).

G.W.-Friedrich HEGEL

"A Idéia que é para si, considerada em sua unidade consi­


go mesma, é intuição e, enquanto intuição, é natureza. Ora,
como intuição, a Idéia é colocada na determinação exclusi­
va da imediatidade ou da negação pela reflexão exterior. A
absoluta liberdade da Idéia, todavia, consiste não apenas
em passar para a vida, e em fazer esta aparecer nela mes­
ma como conhecimento finito, mas também em decidir, em
sua verdade absoluta, deixar sair de si o momento da parti­
cularidade ou de sua primeira determinação e alteridade, a
Idéia imediata enquanto sua reflexão, em suma, em exteriori­
zar-se livremente como natureza."

Précis de l'encyciopédie des Sciences philosophiques, § 244, Paris, Vrin, 1970, 3S


e d , p. 136.

Martin HEIDEGGER

- Ele fala da "apresentação iluminadora-acolhedora do múl­


tiplo avançar em presença no domínio aberto do espaço li­
vre do tempo."

Temps etêlre, Paris, Gallimard, 1987, p. 42.

- "Minha concepção recebida que vê na história a realização


temporal do supratemporal torna certamente mais difícil perce­
ber aquilo que, único em seu gênero, se retira e se obriga na
permanência enigmática que toda vez se rompe e se reúne na
instantaneidade abrupta do que é propriamente o destino."

Le príncipe de raison, Paris, Gallimard, 1962, p. 209.

- "O espaço que, por assim dizer, se abre no entrelaçamen­


to do ser, da não-latência e da aparência, é o que chamo a
errância."

IntroducHon à la mélaphysique, Paris, Gallimard, 1967, p. 117.

- "Enquanto ek‫־‬sistente, o homem assume o ser-o‫־‬aí*, quan­


do, pela 'preocupação', recebe o aí como a abertura do
Ser. Mas esse ser-o‫־‬aí manifesta ele próprio sua essência co­
mo o que é 'lançado'. Manifesta sua essência na projeção
do Ser, esse Ser cujo destino é destinar."

Queslions III, Paris, Gallimard, 1966, pp. 71-157.

Jean-Paul SARTRE

"...o Para-si e o Em-si são reunidos por uma ligação sintética


que não é senão o próprio Para-si. O Para-si, com efeito,
não é outra coisa senão a pura nadificação do Em-si, é co­
mo um buraco do ser no seio do Ser."

Letre el le néant. Essai d'ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, 1943, p. 711.

Michel FOUCAULT

"Nessa Dobra, a função transcendental vem recobrir com sua


rede imperiosa o espaço inerte e cinzento da empiricidade; in­
versamente, os conteúdos empíricos se animam, se erguem
pouco a pouco, põem-se de pé e são subsumidos em seguida
num discurso que carrega em si sua presunção transcendental."

Les mols el les choses. Une archéologie des Sciences humaines, Paris, Gallimard,
1966, p. 352.

* No francês, être-le-là. (N. T.)

67
- Aliás, um psicanalista observava, com razão, que essa
obscuridade é uma camuflagem e uma defesa do pensa­
mento que não ousa mostrar sua nudez esquelética aos
olhos de outrem. Para um Lacan, a fala é o homem. Ora
vamos, um pouco de pudor... Como assinala Montaigne,
certos filósofos “fazem questão de nem sempre apresentar
suas opiniões a rosto descoberto e visível” e, “para seu
próprio possuidor, o espírito é um gládio ultrajante, se ele
não sabe armar-se de maneira ordenada e discreta”".

- Enfim, e essa crítica vale para toda objeção, há sobretudo


confusão entre a ordem do pensamento e a ordem do real.
Com efeito, a inteligência não tem uma estrutura idêntica
à realidade. Essa é uma das questões da segunda lei
enunciada no capítulo I: o sol é uma realidade imediata­
mente conhecida pelos sentidos. Mas a inteligência preci­
sa de muito tempo para compreender sua natureza (sua
composição), suas propriedades (por exemplo, qual é
seu verdadeiro tamanho, como ele arde sem aparente­
mente se consumir?) etc. A história da humanidade, co­
mo a de cada homem, mostra isso. O ensino e a inteli­
gência do estudante terão de percorrer um longo cami­
nho (que afinal dura anos) antes de responder de manei­
ra satisfatória à questão que o futuro estudante, muito jo­
vem, já colocava com ávida impaciência: “Como é que o
sol aquece?” É interessante que São João da Cruz, logo
após a passagem acima citada sobre a obscuridade,
acrescente algo que matiza seu propósito: “Mas, em nos­
sa opinião, será assim apenas no início; pois, se continuar
sua leitura, ele chegará pouco a pouco a compreender
melhor o que leu no princípio; aliás, as diversas partes
deste escrito explicam-se mutuamente. E pensamos que,
se vier a relê-lo, irá achá-lo mais claro e seu ensinamen­
to, mais seguro.”
O real, portanto, não é imediatamente evidente, o que faz
que não se possa responder a tudo de imediato, e que se deva14

14. Essais, II, 12, Apologie de Raim ond Sebond, in Oeuvres completes, “Bi-
b lioth èq u e d e la P lêiade”, Paris, Gallimard, 1962, p. 628.

68
ivspeitar tanto a ordem e a natureza da inteligência quanto a do
real para ensinar. Esse é o sentido da questão clássica: “Para en­
sinar matemática a Cirilo, o que é preciso conhecer: Cirilo ou a
matemática?” Outrora, respondiam: “a matemática”; hoje, dizem
mais: “Cirilo.” Na verdade, ambos.
Apliquemos esta distinção capital. Por definição, a inteli­
gência só pode avançar com ordem e clareza. Que ela nos diga
que a realidade é múltipla, mas que nos diga claramente. E
quando ela nos fala do amor, que evidentemente é subjetivo,
que nos fale disso em sua língua própria, que é objetiva, univer­
sal etc.

Tese, sujeito e predicado


Todo juízo é composto de um sujeito e de um predicado. O
sujeito é aquilo de que se fala, e o predicado, aquilo que deter­
mina o sujeito, o que dele é dito. Por exemplo, se digo: “a tarta­
ruga apressa-se lentamente”, “a tartaruga” é o sujeito e “apressa-
se lentamente”, o predicado. Do ponto de vista gramatical por­
tanto (mas atenção, vimos que as correspondências são variáveis
e aproximativas), o sujeito lógico é também o que chamamos o
sujeito em gramática, mas o predicado abrange ao mesmo tempo
a cópula (ou o verbo) e o eventual complemento ou objeto.
O predicado é o conceito mais universal, e portanto o que
esclarece mais. É essencial dizer isso, sobretudo porque a aten­
ção é geralmente atraída pelo sujeito. Ademais, a experiência
mostra que é o caráter vago dos predicados que causa o vago
das discussões e de muitas querelas. Por exemplo, você ouve al­
guém falar de uma pessoa de quem gosta muito e inicia a con­
versação sem mesmo saber o que é dito dela. Fala-se do Papa,
de cinema, de rock, e eia! parte-se como um dom Quixote con­
tra os moinhos de vento. Mas o que é que se diz desses diferen­
tes sujeitos? Em outras palavras, qual é, do ponto de vista lógico,
o predicado?

Aprendemos a não confundir as palavras e os conceitos.


Do mesmo modo, também não confundamos as frases e as pro­
blemáticas. Não é raro que o autor junte na mesma frase sua te­
se e a razão de sua tese (o que chamaremos o termo médio, no
capítulo seguinte).

69
A primeira frase rica (demasiado rica) de uma das obras ca­
pitais de Marshall MacLuhan fornece ao mesmo tempo a tese
original da obra e seu termo médio, que ele irá ilustrar abundan­
temente a seguir: "... numa cultura como a nossa, habituada de
longa data a tudo fragmentar e a tudo dividir para dominar, é
por certo surpreendente fazer lembrar que, na realidade e na
prática, a verdadeira mensagem é o próprio meio, ou seja, muito
simplesmente, que os efeitos de um meio sobre o indivíduo ou
sobre a sociedade dependem da mudança de escala que cada
nova tecnologia, cada novo prolongamento de nós mesmos,
produz em nossa vida”15.
A tese é dada na metade da frase: “a mensagem é o meio”,
por oposição ao conteúdo. A formulação é voluntariamente pa­
radoxal e lapidar. O título do capítulo, aliás, é a problemática:
“O meio é a mensagem.”
Mas a frase enuncia também o termo médio: a tecnologia
do meio influi sobre a vida do indivíduo. Assim, para MacLuhan,
passamos de uma tecnologia mecânica a uma tecnologia da au­
tomação: “o princípio de fracionamento (...) é a própria essência
da tecnologia mecânica, que modelava as estruturas de trabalho
e de associação dos humanos. A essência da tecnologia da auto­
mação é inteiramente oposta. Ela é englobante e profundamente
descentralizadora” (p. 26).

As diferentes espécies de tese


A distinção parecerá um pouco teórica, mas adquirirá todo o
seu valor quando estudarmos os tipos de raciocínio (capítulo III).
Podem-se distinguir as teses de dois pontos de vista:

Um, mais quantitativo


lima tese pode ser ou universal, ou particular, conforme
sua extensão seja total ou apenas parcial. Por exemplo:
- “Todos os insetos têm seis patas” é uma proposição uni­
versal. Mas uma proposição universal não é necessaria­
mente precedida por “todos”. Assim, “a célula é dotada
de um núcleo e de um citoplasma” é uma verdade uni-

15. Pour comprendre les média. Les prolongem ents tech n ologiq u es de
rhom m e, “Points”, Paris, Seuil, 1968, p. 24.

70
versai, pois qualquer célula é composta de um núcleo e
de um citoplasma.
- “Alguns marinheiros têm enjôo” é uma problemática ma­
nifestamente particular.
Essa distinção não deixa de ser importante na vida corren­
te, na qual a tendência a generalizar não é tão rara. Conhece-se
a história do inglês que desembarca em Calais, vê passar uma
mulher ruiva, pega seu bloco de anotações e escreve: “Todas as
francesas são ruivas." Eis aí um plural bastante singular!
O homem adquiriu o mau hábito de passar muito rapida­
mente do particular ao universal, e apoiado num fundamento in­
suficiente. Um dos sinais da verdadeira humildade e do cuidado
extremo com o real é não dar à sua tese uma amplidão superior
à extensão permitida pelo raciocínio. Se as ciências humanas ti­
vessem a mesma prudência e o mesmo respeito por seu objeto
(o homem) que a atual indústria farmacêutica: não se pode
lançar uma idéia sobre o homem, assim como não se pode colo­
car sem risco um medicamento no mercado senão após tê-lo
testado em peixinhos vermelhos e rãs. Ora, nem sempre é isso o
que se lê.

Outro, m ais qualitativo


Uma tese pode ser afirmativa ou negativa. Por exemplo: “O
arco-íris contém sete cores” é uma proposição afirmativa, en­
quanto “o arco-íris não contém sete cores” é uma tese negativa.
Aqui, mais ainda, a distinção é importante. Conhece-se também
a história do homem que pergunta à sua mulher que está
voltando da missa: “De que falou o padre no sermão de hoje? —
Do pecado. - E o que foi que ele disse? - Que era contra.” Pelo
menos, do ponto do vista da problemática, é dizer o essencial. A
mulher passou do simples conceito (“o pecado”) à tese (“ele é
contra o pecado”), no caso negativa.

Como descobrir uma tese?

Que meios, que instrumentos empregar para descobrir uma


problemática? A tarefa nem sempre é fácil, mas é sempre impor­
tante: requer decerto um treinamento.

71
K fazendo muitos exercícios que a problemática não apre­
sentará mais mistério para você. Os quatro domínios distingui­
dos (p. 30) - o ler e o escrever, a escuta e a fala - serão os luga­
res de suas buscas, de seus combates e de suas vitórias.
Não perca a ocasião de descobrir as teses dos textos que
lemos. O treinamento, paciente, deve trabalhar com qualquer
material: do artigo de jornal à nota de serviço, passando pelas
obras informativas e os grandes tratados. Mas seja também flexí­
vel em suas aplicações: não transforme todos os seus jantares
em discussões, ou suas leituras de Simenon em debates dialéti­
cos. As teses existem sobretudo nos textos que visam a alimen­
tar a inteligência; quase não as encontramos naqueles que dis­
traem, buscam comover ou impelem a agir. Num texto sensível
ao coração, há mais uma intenção do que uma tese. Há portanto
uma proporção entre nível de leitura e problemática.

Além disso, a descoberta da problemática vale não apenas


para a leitura dos escritos, mas também para as conferências ou
os cursos e a conversação cotidiana: muitas discussões se atolam
por falta de problemática clara. Em geral se sabe do que se está
falando (e olhe lá!) - é o que o sujeito exprime; mas será que se
sabe o que dele se diz, o que exprime o predicado? Por exem­
plo, já faz meia hora que se está falando da guerra do Golfo;
mas o que se diz dela? Que ela é absurda? Que a intervenção
americana é justificada? Se os predicados são múltiplos, a con­
versação não tem razão nenhuma para terminar. Assim também,
quantos telefonemas se eternizam porque não pensamos antes
na maneira de apresentar nossa idéia (em outras palavras: temos
o sujeito, mas não o predicado). Pode ser bom refletir um minu­
to antes de fazer a ligação: “De que vou falar?” (em geral, o es­
pírito percebe isso claramente) e “o que quero dizer a respeito
disso?” (O que já não é tão claro!)

Do mesmo modo, as intervenções no interior de grupos


(conselhos de administração, reuniões diversas etc.) são fre­
qüentemente cansativas porque a pessoa descobre o que ela
(juer dizer falando. Os especialistas de comunicação são unâni­
mes: prepare a intervenção em poucas palavras precisas e tenha
apenas uma idéia. Traduzamos em nossa perspectiva e em nossa

72
linguagem: tenha uma problemática claramente formulada e a
enuncie de imediato, positivamente.
Enfim, a escrita não se subtrai à exigência da tese. Não é
raro que, ao redigir um manuscrito, você comece um parágrafo
sem ter uma idéia precisa da informação que quer comunicar e
dos caminhos a tomar para manifestá-la. Daí essa impressão de
vago à leitura e essa “inflação da linguagem” de que falam Jae­
ques Eltul ou Gilbert Hottois. O leitor é então convidado sem a
menor consideração a compartilhar das angústias de parto do
pensamento do autor, se tiver a felicidade de encontrar algum!
Ora, uma coisa é a preparação (“qual vai ser minha tese?”), outra
coisa é a redação definitiva: somente esta interessa ao leitor. A
leitura tão agradável de Madame Bovary ou de Salammbô se faz
na ignorância das correções tão laboriosas e das passagens dez
vezes repetidas que eram a especialidade de Flaubert.

Inventário dos critérios


Enumeraremos os critérios; eles poderão parecer abstratos;
mas vamos empregá-los a seguir concretamente a fim de mostrar
como funcionam.

Pesquisa do predicado

□ Critérios essenciais
Em geral, uma única palavra exprime a idéia. Procure a
idéia que:
- é a mais universal;
- é a mais unificadora dos diversos aspectos do texto;
- é teoricamente única, se o texto for bem construído;
- responde à questão: “O que se diz disso?” Com efeito,
veremos que o sujeito é aquilo de que trata o texto; ora,
o texto diz algo a respeito dele.

□ Critérios secundários
Há critérios mais acidentais, mas que também têm sua im­
portância:
- Assim, o conceito nem sempre é claramente enunciado
no texto, seja porque o autor não deseja expor demais
suas baterias e o dissimula, seja porque não explicitou
bem seu pensamento, o que não é tão raro como se pensa...

73
- Desconfie dos predicados complexos, isto é, dos predica­
dos que contêm vários conceitos. Quando da busca das
primeiras problemáticas, acontece freqüentemente que se
proponha um predicado demasiado rico, por receio de
deixar de lado idéias essenciais. Ora, as idéias injetadas
no predicado são na verdade demonstrações, ou conse-
qüências.
Pierre-Marie Beaude fala da interpretação bíblica de Paul
Beauchamp: “A leitura aqui se faz escrita, corpo textual, real
produção que de maneira nenhuma se apaga diante das Sagra­
das Escrituras das quais se alimenta, mas, ao contrário, forma
um conjunto com elas.”16
À primeira vista, o predicado parece rico. Na realidade, é
complexo; ele articula vários conceitos. Em primeiro lugar,
enuncia a tese: “A leitura [de Beauchamp] se faz escritura”, e dá
a razão disso, o termo médio: “real produção”; em outras
palavras, Beaude argumenta assim: fala-se de escrita em face de
um trabalho original que não é um simples reflexo, que não se
apaga diante do texto comentado; ao passo que a leitura é uma
retomada que não constitui um conjunto; ora, Beauchamp faz
obra original, realiza uma produção; logo...
- O predicado está às vezes presente no título (é o caso,
por exemplo, dos artigos da Suma teológica de Santo To­
más); mas isso raramente ocorre, na verdade. Na maioria
das vezes, ele aparece no subtítulo que, menos chamati-
vo, explicita mais o assunto do texto. Em todo caso, se o
predicado se verifica no título, você pode estar quase
certo de que o texto é honesto em suas intenções e não
procura camuflá-las.
- O predicado, de direito, a menos que seja evidente, de­
veria ser sempre o conceito mais analisado, aquele a que
cabe a parte do leão. Sendo o conceito mais universal, é
o mais esclarecedor. É bom assim dedicar o começo de
um trabalho a explicitá-lo.

16. L’accomplissement des Ecritures. Pour une histoire critique d es syste-


mes de representation du sen s chretien, “Cogitatio Fidei”, ns 104, Paris, Cerf,
1980, p. 325.

74
U Se você tiver alguma dificuldade em encontrá-lo,
eis aqui alguns “truques” mais concretos:
- Sublinhe as palavras mais universais, as mais unificado­
ras, e veja qual o termo mais universal.
- Mas sublinhar os termos mais empregados serve mais pa­
ra encontrar o sujeito do que o predicado; não é raro que
o predicado seja pouco citado.
- Tampouco é raro encontrá-lo citado no início ou no fim
do texto, quando a passagem apresenta uma inclusão, is­
to é, começa como termina. Pode-se também encontrá-lo
no meio do texto se este tiver, por exemplo, uma estrutu­
ra do tipo: A-B-A-C-A.
- Enfim, não permaneça jamais na imprecisão. Para predi­
cado vago, trabalho (ou leitura) frustrante! Com efeito, o
predicado rege a compreensão de todo pensamento, é o
princípio de ordem. Uma vez descoberto, ele permite
deslocar-se ao centro do pensamento do autor.

□ Limites dessa pesquisa


Não idealizemos. Não é raro que se consiga determinar o
predicado apenas aproximadamente. Leia-se o último parágrafo
do “Que sais-je?” consagrado ao humor. O autor tenta dar-lhe
uma definição universal, após ter descartado algumas tentativas
julgadas insuficientes.
O humor “é uma vontade e ao mesmo tempo um meio de
romper o círculo dos automatismos que, mortalmente maternais,
a vida em sociedade e a vida em sentido estrito cristalizam em
torno de nós como uma proteção e uma mortalha. O homem
sem humor vive a vida das larvas, em seu invólucro de seda,
certo de um futuro sem duração, semiconsciente, inalterável. O
humor faz romper o casulo em direção à vida, ao progresso, ao
risco de existir. Muitas vezes, disso resulta apenas uma traça de­
sinteressante e vulgar, mas às vezes irrompe a borboleta multi­
cor de um riso semelhante ao dos deuses, ou então adivinha-se
na sombra o palpitar misterioso das asas de alguma falena cor
da noite”17.

17. Robert ESCARPIT, L'humour, “Q u e sais-je?”, Paris. PUF, 5a ed., 1972,


p. 127.

75
Ora, se o sujeito é evidentemente o humor, o predicado é
hem mais delicado de delimitar. Com efeito, o que é dito do hu­
mor? Tentemos classificar: em negativo, ele rompe os automatis­
mos, as proteções, permite escapar à monotonia, à inconsciên­
cia; em positivo, ele proporciona a vida, o progresso, o risco de
existir, o riso etc. A quantidade de predicados torna vaga a idéia
principal; do mesmo modo, a multiplicação das metáforas serve
tanto quanto desserve à clareza do conceito. Na verdade, o pre­
dicado nào é dito explicitamente. É preciso “inventar", criar um
que resuma as diferentes características atribuídas ao humor. Pa­
rece ser: “maneira de existir" (e esse é exatamente o título da
conclusão: “uma arte de existir”). Mas, para compreendê-lo, é
preciso apelar ao que está apenas implícito na exposição, a sa­
ber, a concepção que Escarpit faz da vida. Para nosso autor, vi­
da (existência) é sinônimo de mudança, de progresso, de novi­
dade (é o que o autor não diz: aliás, trata-se aí de uma concep­
ção nietzscheana da vida); ora, o humor permite a irrupção da
mudança, da novidade (o que o autor diz).
Em suma, numa primeira leitura, o predicado não é explíci­
to; é preciso realizar uma leitura condicional, recorrendo a con­
ceitos que eventualmente os leitores não possuem.

Pesqu isa do su jeito


Os critérios são em parte simétricos dos que acabam de ser
determinados para o predicado. A pesquisa do sujeito é bem
mais fácil. Assim, oferecer meios mais materiais de pesquisa não
será útil.

□ Critérios essenciais
- O sujeito é, na maioria dos casos, o conceito menos uni­
versal. Mas pode ocorrer que seja tão universal quanto o
predicado.
- É o conceito ao qual se referem os predicados essenciais.
- O sujeito permite responder à questão: “De que se fala?”
(enquanto o predicado responde à questão: “O que se
diz disso?”).

□ Critérios mais acidentais


- O sujeito é, em geral, o conceito mais utilizado e a pala­
vra que o exprime é na maioria das vezes citada no texto.

76
- Hle está freqüentemente presente no título. É preciso por­
tanto que o título ou, no mais tardar, as primeiras linhas
o contenham se o autor não quiser desorientar totalmen­
te o leitor.
- O sujeito é muito raramente dissimulado, ou seja, na maio­
ria das vezes é evidente. Aliás, é em função dele que as
paixões despertam. O simples fato ele evocá-lo mobiliza
os hormônios! Por exemplo, observar o quanto as sim­
ples palavras (conceitos) a seguir, não importa o que se
diga a respeito, são suficientes para iniciar as discussões
mais inflamadas: aborto, ecologia, a direita e a esquerda
(política), o último filme da moda, a última partida de fu­
tebol ou de tênis...

Pesquisa cia problemática


O exercício, em si, não poderia ser mais simples, já que
consiste em unir o predicado e o sujeito. Conforme o que disse­
mos acima, você pode valer-se do título; a problemática deve co­
locar um verdadeiro problema se quiser chamar a atenção do lei­
tor e motivá-lo. Lembremos que a tese deve unificar todo o texto
sob um ponto de vista único; se ela é obrigada a deixar de lado
amplas porções do texto, das duas, uma: ou você se enganou, ou
o texto está mal integrado e comporta várias problemáticas.

Um curioso animal no bestiário


da arte de pensar: os predicáveis.

Uma problemática une um sujeito e um predicado. Ora, con­


forme a universalidade desse vinculo, podem-se distinguir
cinco tipos de relações diferentes que o lógico medieval Boé-
cio chamou de predicáveis (século VI depois de Cristo). Uma
origem precisa disso já é encontrada em Aristóteles e em
Platão. Apenas quatro predicáveis nos interessam:
- o gênero: é o que diz comumente uma coisa;
- a espécie: é o que diz distintamente uma coisa;

77
- a propriedade: é o que não diz a essência da coisa, mas
dela decorre;
- o acidente: é o que não diz a essência da coisa, nem de­
la decorre, mas no entanto lhe é atribuído.
Vejamos um exemplo. Digamos que o sujeito é o homem.
Segundo o ponto de vista do predicável, pode-se dizer dele
quatro espécies diferentes de atributo:
- a título de gênero: o homem é um animal;
- a título de espécie: o homem é um animal dotado de razão;
- a título de propriedade: o homem é capaz de rir;
- a título de acidente: o homem é loiro, está sentado etc.
Se o predicado for dito do sujeito como um gênero ou um
acidente, ele é mais universal; se for dito como uma espécie
ou uma propriedade, ele é igualmente universal (a proprie­
dade, com efeito, decorre da essência e não pode ter mais
extensão do que sua fonte). Daí que o sujeito, às vezes, seja
tão universal quanto o predicado: mas, de fato, isso aconte­
ce mais raramente.
Há casos indecidíveis (seja devido à falta de clareza do au­
tor, seja devido à dificuldade do sujeito). Leiamos, por exem­
plo, o início da obra do filósofo Alexis Philonenko sobre a
Europa, L'archipel de la conscience européenne [O arquipé­
lago da consciência européia]: "Convencido de que só o
aprofundamento, pelos europeus, da coesão espiritual que
os une fará da Europa algo mais do que uma comunidade
mais ou menos precária de interesses, pesquisei os elemen­
tos de um patrimônio comum." Ele passa então em revista di­
ferentes temas: o latim, a agricultura... E se detém no seguin­
te: "Assim fui obrigado a concluir: a Europa é, principalmen­
te, o continente da metafísica."

Alexis PHILONENKO, op. c it, col. "Le collège de philosophie", Paris, Grasset, 1990,

pp. 11-2.

A problemática, dada desde o início da obra, é muito clara:


a Europa se caracteriza pela metafísica. Mas é difícil decidir

78
se a metafísica diz a Europa como uma propriedade ou co­
mo sua essência.
Assinalemos, enfim, um outro interesse dessa distinção. N ão
é raro que se atribua a um sujeito, assim como à sua defini­
ção, o que não é senão uma propriedade ou mesmo um aci­
dente. Assim, quando Benjamin Franklin diz que o homem é
um animal toolmaker (fabricante de ferramentas), ele atribui-
lhe um acidente (comum com os animais); quando Marcei
Jousse define o homem como um animal imitador (cf. adiante
cap. VII, p. 262), ele indica apenas uma propriedade.

Finalmente, nem sempre se fie no título de um parágrafo que


apresenta a aparência de uma problemática. Mesmo em lógica to­
mam-se às vezes alhos por bugalhos. É o caso inclusive de obras
acima de qualquer suspeita, como a do papa João Paulo II18.

• Leitura do texto
O § tem por título: “A experiência da unidade da pessoa sus­
cita a necessidade de compreender a complexidade do homem.”
O § começa assim: “Dessa maneira, a experiência da unida­
de do homem como pessoa desperta simultaneamente a necessi­
dade de compreender sua complexidade enquanto ser. Tal com­
preensão é sinônimo de conhecimento ‘até o fim’, ou ainda, ‘até
o fundo’. Ela é própria à filosofia primeira, isto é, à metafísica,
que há muito já elaborou uma teoria do homem enquanto ser
composto de alma e de corpo, ou seja, de espírito e de matéria.”

• Análise do texto
Para compreender a articulação desse início de parágrafo,
basta colocar uma conjunção de coordenação no devido lugar
(teremos a ocasião de rever isso no próximo capítulo), no caso,
colocar “ora” entre a segunda e a terceira frase: “Ora, ela é pró­
pria...” Isso significa que o autor junta, une as duas premissas

18. Karol WOJTYLA, Personne et acte, Paris, Le Centurion, 1983, p. 210.

79
lendo em vista mostrar o que é sua tese: a experiência da unida­
de e da complexidade da pessoa suscita a necessidade de uma
metafísica do homem.
!,oi‫ ׳‬outro lado, você constata que a primeira frase é quase
idênli( a ao titulo I m consequência, o título não é senão a pri­
meira parte do raciocínio, o que chamaremos mais tarde de pre­
mi ·.·a maior do silogismo. Ele é portanto enganador e não trans-
mítc todo o conteúdo do parágrafo, o que é o papel da tese.
1’udcmos observar o mesmo processo na intitulação de nu-
nu ·m i m is ariigiis (:<mvém saber que esta nem sempre é da respon­
sabilidade di >s autores, sobretudo nos artigos para grande público.

/ vemp/os de aplicando (/esses critérios

/*est/nisa </<>preci/ca do

• I citura do texto
"< > !··.ludo da·, (ii.meas inlersexuadas desmente a idéia se-
i1- ‫ »«׳‬a qual o biológico fundamenta o psicológico. A gênese
111 1

da i·I* niid.idc hermafrodita deve-se às condições do meio am-


blt til· i cm p.iiticular, a incerteza dos pais acerca do sexo de
‫ ׳‬u i i l l u > n u ei uva retomada e englobada na organização do eu.
I !!i i oinpi·ns.ieao, se os pais adotarem uma atitude inversa, a
• ...... i conquistara um forte sentimento de identidade sexual
p n po‫ ׳‬amente indelével. As raízes da masculinidade ou da femi­
nilidade ‫־‬.ao portanto o resultado do comportamento dos pais e
na‫ ׳ ׳‬a expressão de sabe lá que instinto.”19

• Analise do texto
I >e que fala o texto? Da sexualidade.
() que diz o texto a respeito dela? A autora mostra a partir
dc exemplos que a origem da sexualidade não é biológica mas
psicológica.
A tese é portanto: a sexualidade é de origem psicológica (e
não biológica): em outras palavras, de origem cultural e não na­
tural.

19. Elisabeth BADINTER, L un est l ’a utre. D es relations entre hom ines et


Icmmes, “Livre de Poche”, n16410 '‫־‬, Paris, O dile Jacob, 1986, pp. 307-8.

HO
Pesquisa do sujeito
Releia o texto de Escarpit sobre o humor citado mais acima:
os critérios de descoberta do sujeito aplicam-se de maneira evi­
dente (conceito menos universal, ao qual são atribuídos todos os
predicados importantes que permitem responder à questão: "De
que se fala?” etc.)· Analisemos agora um exemplo menos fácil.

• Leitura do texto
Este texto é certamente um dos mais decisivos e mais re­
presentativos das intuições do biólogo Changeux:
“As operações sobre os objetos mentais, e sobretudo seus
resultados, serão ‘percebidos’ por um sistema de vigilância com­
posto de neurônios muito divergentes, como os do tronco cere­
bral, e de suas vias de acesso. Esses encadeamentos e encastra-
mentos, essas ‘teias de aranha’, esse sistema de regulações fun­
cionarão como um todo. Deve-se dizer que a consciência ‘emer­
ge’ de tudo isso? Sim, se tomarmos a palavra ‘emergir’ ao pé da
letra, como quando se diz que o iceberg emerge da água. Mas
basta-nos dizer que a consciência é esse sistema de regulações
em funcionamento. Com isso, o homem não tem mais o que fa­
zer com o ‘Espírito’, basta-lhe ser um Homem Neuronial.”2"

• Análise do texto
Contrariamente a muitos textos, aqui o predicado é claro,
sobretudo se tivermos em mente o título da obra. O autor quer
demonstrar que o homem é neuronial. Esse, de fato, é o concei­
to mais analisado, a palavra (e seus equivalentes) mais freqüen­
temente utilizada.
Mas qual é o sujeito preciso nesse texto? Será realmente o
homem? Isso não tem a ver com o núcleo do texto, que fala de
outra coisa. Ademais, há um conceito menos universal ao qual
os outros conceitos se referem. Procure-o.
Seria possível nos colocar a questão: será que se trata, por
exemplo, de “sistema de regulações”? Será esse o sujeito do pa­
rágrafo? Não, pois ele qualifica outra coisa: a consciência.
Descobrimos o sujeito: é a consciência (no sentido geral,
global, de psiquismo), isto é, a instância que opera sobre os ob-20

20. Jean-Pierre CHANGEAUX, L ’h omme neuronal, “Pluriel”, Paris, Fayard,


1983, p. 211.

81
jetos mentais. Sinal disso é que esse é o primeiro conceito do
texto, o sujeito da primeira frase. A tese é portanto: a consciên­
cia, o psiquismo do homem, é neuronial. Em outras palavras, a
consciência, as operações mentais, são identicamente o sistema
de neurônios em funcionamento.
Daí a conseqüência (que é materialista): nenhuma necessi­
dade de recorrer a um espírito ou a um psiquismo; mais exata­
mente, o psiquismo, a consciência, são os neurônios. Não existe
portanto espírito.
E você constata que essa não é a palavra mais freqüente­
mente citada no texto: portanto, esse não é um critério absoluto,
ao contrário dos critérios essenciais.

Pesquisa do sujeito e do predicado


• Leitura do texto
Título do parágrafo: “A leitura é um projeto.”
“Ler é também decidir buscar alguma coisa. Quando há lei­
tura, há uma falta a preencher, portanto apetite, desejo. Há von­
tade de se confrontar, portanto questionamento.
Ler é um sinal de vida, um chamado. Pode-se tentar siste­
matizar os projetos de ler. Essa sistematização não deve ser feita
a partir da natureza diferente dos suportes de leitura (jornal, ro­
mance, correspondência), mas a partir das intenções de leitura.
É a intenção que está na origem do projeto. Uma leitura é ativa
quando em sua prática ela permite satisfazer um projeto que
existe.”21

• Análise do texto
Vê-se que a problemática é identicamente o título geral do
parágrafo (que, por sua vez, após ter estabelecido que toda lei­
tura é guiada por um projeto, irá passar em revista os diferentes
- no caso, seis - projetos fundamentais possíveis do leitor).

21. Lionel BELLENGER, Les méthodes de lecture, “Que sais-je?” ns 1707, Pa­
ris, PUF, 1978, pp. 98-9.
E x e rc íc io s

O melhor treinamento consiste em fazer dois tipos de exer­


cícios: descobrir problemáticas em textos; inventar problemáticas
e construir um texto a partir daí.

Descubra as problemáticas dos seguintes textos

Exemplo I

• Leitura do texto
Trabalhe sobre este outro editorial de André Frossard, o do
Figaro de 26 de setembro de 1991:
“Na televisão, ao cabo de uma troca de argumentos obscu­
ros sobre um assunto que não o era menos, o sr. Bernard Tapie
dispara em diagonal contra seu principal contraditor: 'Vou lhe
dizer: você é um imbecil.’ Resposta imediata: ‘Você também.’
Nesse momento crítico, em geral aparece um homem de boa
vontade para tomar a palavra e vexar todo o mundo propondo
uma elevação do nível do debate. Nesta noite, ninguém. Na
França, é cada vez mais difícil elevar o nível dos debates. Deve-
se dizer que é um exercício perigoso. Já se viu mais de um
pobre político, tal como o filósofo amável citado por Aristóteles,
ser ‘esmagado pelo peso da questão que ele havia levantado’.”•

• Estudo do texto
A tese é dada tal e qual no texto: “Na França, é cada vez
mais difícil elevar o nível dos debates.”
O texto dirige-se manifestamente à sensibilidade.

83
Exemplo II

• Leitura do texto
Eric Tabarly fala da façanha de Gérard d’Aboville sob o tí­
tulo “Bons ventos ao sonho” (Figaro-Magazine, 30 de novembro
de 1991, p. 45): “Colocar a questão dessa utilidade é perguntar-
se para que servem o esporte ou o sonho. (...) Cada um, quer
escale montanhas com mãos nuas, quer vá ao pólo ou às estre­
las, tem suas motivações próprias e secretas que nos são desco­
nhecidas. Eles ganharam de si mesmos. Eles ganharam para nós:
essas conquistas individuais não são egoístas. Essas proezas tra­
zem proveito a todos, porque nos oferecem sonho. E o sonho, a
vontade de superar-se, é algo próprio do homem, não é?”

• Estudo do texto
A tese é que a façanha de d’Aboville, em particular, e as fa­
çanhas, em geral, trazem proveito a todos os homens.
O título nos oferece uma parte do que chamaremos no ca­
pítulo seguinte o “termo médio” do raciocínio. Com efeito, o ra­
ciocínio de Tabarly é o seguinte: a façanha esportiva permite ao
homem que a realiza superar-se, e àquele que o contempla, so­
nhar; ora, superar-se e sonhar (que a gente se supera) é a essên­
cia do homem.
O título indica portanto apenas uma parte do texto. Será
que o autor percebeu o ápice de seu texto, que é a definição do
homem pela superação Co que, diga-se de passagem, é uma de­
finição nietzscheana)?

Exemplo III

• Leitura do texto
“Alguma vez você se perguntou por que todas as grandes
metrópoles modernas, no século passado, se apressaram em
construir metrôs?
- Para resolver os problemas de tráfego. Não é isso?
- Quando não havia tráfego de automóveis e apenas os fia-
cres circulavam? De um homem com seu espírito, eu es­
perava uma explicação mais sutil!”
(Umberto ECO, Le pendule de Foucault, Paris, Grasset, 1990,
p. 315.)

84
A resposta proposta envolve o esoterismo: o metrô permite
a presença de uma rede secreta debaixo das grandes cidades.

• Estudo do texto
Cuidado, a tese não é a primeira frase do diálogo: “As
grandes metrópoles modernas se apressaram em construir me­
trôs.” Com efeito, o predicado seria mais universal que o sujeito.
Na verdade, pergunte-se de que quer falar a pessoa: ela quer ta­
lar das metrópoles ou dos metrôs? Dos últimos, obviamente. Es­
se é portanto o sujeito e, desse ponto de vista, o que há de me­
nos universal.
A tese portanto é: “Os metrôs foram construídos rapida­
mente nas grandes metrópoles modernas.”
Ela é colocada como um fato problemático: por que razão?
Porque o termo médio proposto não é o que nos parece eviden­
te. A questão torna problemático o que à primeira vista não o
era.

Problemáticas a construir

Escolha temas, sujeitos, que sejam importantes para você,


num domínio particular. A seguir, obrigue-se a encontrar um
predicado a fim de chegar a uma problemática. Um bom meio
pode ser pegar os temas de vestibular em filosofia e construir
uma tese a partir deles. Aliás, é muitas vezes por falta de proble­
mática que não se sabe desenvolver os temas de dissertação.
Com efeito, é a partir da tese que se descobre o plano, confor­
me veremos adiante (capítulo VIII).
11

■V
Capítulo III

O RACIOCÍNIO: JUNTAR FEIXES OU CATAR ESPIGAS?

Se eu lhe disser que morrerei um dia, isso é uma evidência


que nào requer que você me pergunte por quê. Mas se eu
acrescentar, como Woody Allen: “Preferiria nào estar presente
quando isso me acontecer”, minha frase não será mais tào evi­
dente e você poderá indagar a razào: dito espirituoso, temor?...
O Prêmio Nobel de Física de 1965, Richard Feynman, conta
que seu pai lhe teria dito um dia: “É porque o sol brilha que o
cachorro anda.” Posto em forma rigorosa, temos: “O sol faz os
cachorros andarem”, o que nada tem de evidente. O jovem Ri­
chard responde então: “Não, o sol nada tem a ver com isso! O
cachorro anda porque soltei a coleira.” “Sim, meu garoto, mas o
que é que lhe dá força para soltar a coleira?” “O que eu como.”
“E o que você come?” “Sei lá... espinafre.” “E o que faz crescer o
espinafre?” “O sol.1‫ ״‬Do interesse dos raciocínios...
Raramente se escrevem textos para apresentar evidências.
Eis por que, tendo buscado determinar o que diz o texto, preci­
samos agora conhecer a causa disso. Ora, assim como a proble­
mática responde à interrogação: O que diz o texto?, a função do
raciocínio será responder às questões: Por que razão ele o diz?
De que maneira o mostra? Pois nào basta afirmar as coisas, é
preciso também demonstrá-las.

O RACIOCÍNIO EM GERAL

Por quê? Para que serve?


O raciocínio fornece a causa
A inteligência não encontra repouso (e não dá repouso,
quando é o caso de uma criança do gênero Pequeno Príncipe!)

1. La Nature de la physique, “Sciences", Paris, Seuii, 1980, p. 223.

87
a não ser quando se estabelece a evidência, isto é, etimológica-
mente, quando ela vê por que se afirma a tese. Sejamos precisos:
a problemática une um predicado a um sujeito; ora, a inteligên-
cia interroga-se sobre a razão pela qual se atribui o predicado a
esse sujeito. E tal é a função do raciocínio: mostrar a causa da
união dos dois termos.
For exemplo, lê-se no Credo que a Igreja é santa. Muito le-
gitimamente, pode-se perguntar por quê: busca-se então a causa
que permite aproximar Igreja e santidade a ponto de atribuir
uma à outra. E, aliás, isso é tào pouco evidente que foram mui-
tos os que buscaram separar esses dois termos. O raciocínio,
portanto, tem primeiramente uma função esclarecedora, fecun-
dante. Assim também, você lê um título de artigo: “É preciso re-
formar a ortografia.” Trata-se de algo não tão evidente... já que
isso o incita a ler o artigo.

O raciocínio unifica
A primeira razão nos lembrava toda a importância do traba-
lho racional. O espírito do homem não se eleva à verdade às custas
de intuições beatificantes, assim como seu corpo não sobe
aproveitando-se preguiçosamente de ascensões: os pés da inteli-
gência chamam-se argumentos, e sua marcha, raciocínio. Mas, in-
versamente, também é letal para o espírito fazer-se um tetrapilo-
carpo (não procure no dicionário: tetrapilocarpo é um detalhista!).
O raciocínio servirá, portanto, para unificar um raciocínio
tào ameaçado cie perder-se em seus argumentos quanto Séraphin
Lampion* em seus contratos de seguro. É como aquele pesquisa-
dor que havia colocado uma questão muito complexa a seu com-
putador; após um tempo indefinido, chega a resposta, de um la-
conismo ideal: “Sim!” Mas o cientista esqueceu a questão: “Sim o
quê?”, pergunta ele. “Sim, senhor”, responde a máquina!
Aristóteles chamava ao raciocínio silogismo. Precisamente,
silogismo vem de um termo grego que significa “juntar os feixes
de feno”. A análise precedente deve ser retomada na unidade
para que haja ato de inteligência e adesão à verdade. Uma etapa
original, específica, é necessária para integrar a diversidade da
análise numa síntese.

* Personagem de uma história em quadrinhos francesa. (N. T.)

88
Por exemplo, você pode compreender que a água refresca,
saber que há um distúrbio da hemodinâmica nos jacarés. Mas é
preciso um procedimento particular para aproximar esses dois
juízos e concluir pelo porquê da vida fluvial dos jacarés. Com
efeito, estes apresentam uma incontinência das válvulas cardía­
cas que torna deficiente seu sistema de esfriamento, e assim eles
não se afastam das margens dos cursos d agua a fim de pode­
rem se refrescar mais facilmente. Tal será a função do silogismo:
sistematizar.

A confirmação é dada pelo mecanismo de muitas invenções:


a aproximação de duas fórmulas já conhecidas provoca um esta­
lo e gera uma conclusão às vezes genial. Esse é um dos princípios
do brain-storming: ele se baseia especialmente na prática da as­
sociação livre de idéias. Por exemplo, pensou-se num tipo práti­
co de janela aproximando a questão difícil da limpeza externa
dos arranha-céus e a função da pálpebra.

O raciocínio form aliza e evita os erros


Pode-se concluir alguma coisa destas duas proposições? O
cachorro tem quatro patas; ora, o gato tem quatro patas (já ouvi
pessoas dizerem que isso levava a concluir que o cachorro é um
gato!). Mais sutil: por que o silogismo seguinte é sofístico (isto é,
errado)? O cachorro é um animal; ora, animal é uma palavra de
seis letras; logo, cachorro é uma palavra de seis letras.
André Lalande observava na introdução de seu célebre
Vocabulário técnico e crítico da filosofia1: “... um dos pecados
usuais dos filósofos [mas pode-se estender a toda a humanidade]
é o pseudo-raciocínio cuja paródia podemos encontrar no sorite
[o sorite é um encadeamento de raciocínio] de Cyrano, claramente
cômico: ‘Paris é a mais bela cidade do mundo; a minha rua é a
mais bela rua de Paris; a minha casa é a mais bela da rua; o meu
quarto é o mais belo quarto da casa; eu sou o homem mais belo
do meu quarto: logo, sou o mais belo homem do mundo”‫׳‬.
Já assinalamos o benefício que a sistematização dos deba­
tes apresentaria e o esclarecimento da linguagem que ela deve­
ria implicar. Li na resenha de um livro feita por um jornal de

2. São Paulo, Martins Fontes, 1993, P· XVII.

89
grande tiragem: “a dimensão desejante dessa corporeidade fun­
damental”3. Será preciso escrever deste modo para fazer-se com­
preender? O filósofo de Hanover, Leibniz, dizia: “Afinno que a
invenção da forma do silogismo é uma das mais belas do espíri­
to humano e mesmo das mais consideráveis. Trata-se de uma es­
pécie de matemática universal cuja importância não é bastante
conhecida, e pode-se dizer que nela está contida uma arte da in­
falibilidade, contanto que se saiba e que se possa utilizá-la bem.
Eu mesmo constatei algumas vezes, inclusive debatendo
por escrito com pessoas de boa fé, que só foi possível entender-
se quando se argumentou formalmente para desemaranhar uma
meada de raciocínios.”4
Ora, essa formalização supõe o respeito de certas regras,
pouco numerosas, mas que é preciso aprender a conhecer e a
aplicar.

Qual é o domínio de exercício dos raciocínios?


A priori, todos os textos que pretendem mostrar alguma
coisa podem ser postos na forma cie raciocínios. E isso vale mes­
mo para os domínios que parecem mais afastados da demonstra­
ção, em particular o domínio espiritual: a fé não é contrária à ra­
cionalidade.
Vamos dar dois exemplos em incontestáveis autores espi­
rituais.

Inácio de Loyola

• Leitura do texto
“O homem foi criado para este fim: louvar o Senhor Deus,
respeitá-lo e, servindo-o, ser finalmente salvo. E todas as outras
coisas que há na terra foram criadas por causa do próprio ho­
mem, para ajudá-lo a buscar o fim cie sua criação. Segue-se por­
tanto que ele deve usá-las ou abster-se delas na medida em que
isso favoreça ou prejudique a busca de seu fim.”5

3. I m Croix, quinta-feira, 24 de agosto de 1989, p. 10.


4. LEIBNIZ, Nouveaux essais sur 1’e ntendement humain, IV, 17, 4.
5. Santo Inácio de LOYOLA, “Principe et fondem ent”, nQ 23, Exercices spi-
rituels (Texto definitivo, 1548). Traduzido e com entado por Jean-Claude Guy,
“Sagesses” na 29, Paris, Seuil, 1982, p. 60.

90
• Análise do texto
Os comentadores sempre assinalaram o aspecto extrema
mente rigoroso e até mesmo formal dessa solene introdução aos
Exercícios. Essas três primeiras frases são não apenas um silogis­
mo, mas também respeitam exatamente sua estrutura: a primeira
frase é a premissa maior, a segunda, a menor, e a terceira, a
conclusão6.

São João da C ruz

• Leitura do texto
“A fé é o meio próprio e proporcional à união da alma
com Deus. (...)
É preciso portanto saber, de acordo com uma regra da filo­
sofia, que todo meio deve ser proporcional a seu fim, isto é, de­
ve ter com ele a conveniência e as relações suficientes para al­
cançar o objetivo que se busca. Eis aqui um exemplo. Se alguém
quer ir à cidade, deve necessariamente passar pelo caminho que
conduz a ela, pois esse caminho é o meio que o põe em relação
com a cidade. Outro exemplo. Você quer acender o fogo; mas é
necessário que o calor, que é o meio, transforme progressiva­
mente a madeira para que ela se torne pouco a pouco seme­
lhante ao fogo. (...)
Ora, devemos notar que, entre todas as criaturas superiores
e inferiores, não há nenhuma que seja um meio próximo de união
a Deus ou que tenha semelhança com seu ser. Sem dúvida, co­
mo dizem os teólogos, todas as criaturas têm uma certa relação
com Deus e conservam mais ou menos alguns vestígios de seu
ser, conforme o grau de perfeição de sua natureza; mas entre
Deus e elas não há nenhuma relação, nenhuma semelhança es­
sencial. Ao contrário, a distância entre Deus e elas é infinita. Eis
por que o entendimento não pode unir-se perfeitamente a Deus
por meio das criaturas, tanto do céu quanto da terra, por não
haver uma semelhança suficiente. Davi, falando das criaturas ce­
lestes, disse: ‘Senhor, não há ninguém semelhante a vós entre os

6. Cf., por exem p lo, Gaston FRESSARD, La dialectique des exercices spiri-
tuels de saint Ignace de Loyola. II, Fondement. Pécbé. Orthodoxie, “Theologie"
66, Paris, Aubier, 1966, p. 14.

ól
deuses’ (SI 85, 8), entendendo por d e u s e s o s santos anjos e as
almas santas. Ele diz em outra parte: ‘0 D eu s, vosso caminho é
um caminho de santidade; o n d e h á u m D eus como o nosso
Deus?’ (SI 76, 14). É como se ele d is s e s s e : o caminho para che­
gar a vós, ó Deus, é um cam inho s a n to , isto é, um caminho de
pura fé. (...)
Em suma, nem todas as c ria tu ra s p o d e m servir de meio
adequado para que o entendim ento s e aproxim e perfeitamente
de Deus.”78
Logo, a fé “é o único m eio p r ó x im o e adequado para a
união da alma com Deus, pois a s e m e lh a n ç a que existe entre ela
e Deus é tão grande que não há o u t r a diferença, exceto entre
ver Deus e crer em Deus. Deus é in fin ito , e la no-lo propõe infi­
nito; Deus é Trindade em pessoas e U n id a d e em natureza, e é
assim que a fé no-lo propõe. Deus é tr e v a s para nosso entendi­
mento, a fé também é trevas e o b s c u r id a d e para nosso enten­
dimento. (...) Assim, quanto mais um a a lm a tem fé, mais ela está
unida a Deus:'*

• Análise do texto
Aqui também, a estrutura do t e x t o é a de um silogismo
(cuja estrutura irá em breve ser e s tu d a d a ). A tese é dada na pri­
meira frase (§ 1): “A fé é o meio p r ó p rio e adequado à união da
alma com Deus.” Em sua tese de d o u to r a d o em teologia, A fé se­
gundo São João da Cruz, o próprio J o ã o P a u lo II diz que procu­
rou analisar e evidenciar “a afirmação c e n tr a l do doutor místico:
a fé é o meio único, imediato e p r o p o rc io n a l da comunhão com
Deus”9.
São João da Cruz dem onstra essa t e s e incansavelmente e o
faz da maneira mais rigorosa p o ssív el e m sua grande obra, A
subida do monte Carmelo. Ac!ui, ele f a z isso através de um silo­
gismo perfeitamente claro: o 2Q p a r á g r a f o é a premissa maior

7. La montée du Carmel, Uv. II, cap . VII, i n O eu v re s spirituelles. Trad. fr.


de Grégoire de Saint Joseph, Paris, Seu il, 1947, p p . 1 2 6 - 8 .
8. Ibid. (cap. VII, p. 132). S u b lin h ad o p o r n ó s .
9. Carta apostólica para o IV c e n te n á r io c ia m o r t e de São João da Cruz,
in Documentation Catbolique, 3 d e fevereiro d e 1 9 9 1 , n - 2021, pp. 106-12, aqui
p. 106.

92
(ela mesma estabelecida por um silogismo tomado da filosofia);
o 3‫ ־‬parágrafo é a premissa menor; e os dois últimos são a con­
clusão (o 4S parágrafo a fornece em forma negativa e o 5g em
forma positiva).
Veremos outros exemplos nos exercícios de final de capítulo.

O que é o raciocínio? Qual a sua estrutura?


Vamos dar algumas indicações gerais válidas para todo racio­
cínio, e sobretudo para o mais perfeito deles, que é o silogismo.

Um raciocínio é feito de diferentes proposições


O objetivo do raciocínio é dar a razão que leva a atribuir tal
coisa a tal coisa. Por isso será preciso que essa razão esteja unida
tanto ao sujeito quanto ao predicado da problemática: o puxador
põe em marcha o motor de popa porque um fio liga de um lado
ao puxador e de outro ao motor. Em conseqüência, duas proposi­
ções diferentes manifestam essa união. Vamos dar duas ilustrações
disso:
- Seja a tese: o rosto ou a fisionomia (sujeito) exprime o
caráter (predicado).
Para manifestá-lo, a morfopsicologia (disciplina que estuda
essa questão) se fundamenta na fisiologia (eis aí a razão). Ela
deverá mostrar duas coisas: de um lado, a ligação entre o rosto
e a fisiologia (o funcionamento dos órgãos modela o rosto); de
outro, a relação entre o caráter e a fisiologia.
- Seja a tese: o êxito de uma empresa (sujeito) depende
de seus comerciais (predicado).
Se lhe perguntassem “por quê?” numa conversa, você res­
ponderia: “Porque o objetivo de uma empresa é vender bem.” E
essa proposição ligou o predicado à razão. Mas não nos ilu­
damos: subentendemos uma segunda proposição, a que vai ligar
a razão ao predicado, a saber: que “a função do comercial é
vender”. E, se isso não é explicitado, é porque parece evidente.
Em compensação, se alguém ignora o que é um comercial, ele
pedirá mais explicação e perguntará de novo: “Por quê?” Você
explicita então a segunda proposição ao definir o comercial.

Chamam-se premissas as proposições que servem para


aproximar os termos da problemática. O raciocínio é portanto

93
constituído (quando ele é explicitado) por pelo menos três pro­
posições (é o mínimo): duas premissas e uma conclusão.

□ Observações
Nunca seria demais insistir na importância dessas premissas
e de sua explicitação: são como os degraus de uma escada. Faça
como as criancinhas que, se não querem tropeçar, devem pri­
meiro aprender a subir os degraus um a um. É só bem mais tar­
de (e mesmo assim demasiado cedo!) que elas descobrirão as
alegrias perigosas de saltar os degraus.
De fato, a grande tentação intelectual é a precipitação: che­
gar de imediato à conclusão e não polir suas premissas, ou me­
lhor, polir uma só; ora, é perigoso não certificar-se da solidez de
todos os degraus. Por exemplo, você deseja mostrar que a Fran­
ça é um país ingovernável; e desenvolve sua premissa menor: os
franceses são individualistas. Não esqueça a outra premissa: o
individualismo torna um país difícil ou impossível de governar,
pois seu interlocutor terá a ocasião de lhe contrapor o exemplo
de um outro país individualista governado corretamente.
Ademais, a estrutura ideal de um raciocínio comporta três
proposições: duas premissas e uma conclusão. Mas não é raro
que, ao contrário, se comece por anunciar o que se vai dizer (e
então se fala de problemática). É o caso do silogismo hindu1‫״‬.

Um raciocínio é composto de diferentes termos


Os termos do raciocínio são as idéias ou conceitos que o
compõem.
Esses termos são designados por diversos nomes, mas pou­
co importa o detalhe. Retenha apenas que o termo que une o
predicado e o sujeito da tese, por causa de sua função unifica­
dora, intermediária, se chama termo médio (doravante abreviado
como TM). Ele é como o elo que permite unir os dois extremos
de uma corrente. As premissas são portanto proposições que
contêm o TM, ao passo que este, tornado inútil, desaparece na
conclusão.
Por outro lado, a força de uma corrente depende da força
dos elos intermediários. Por exemplo, é mais forte dizer que o10

10. Cf. François CHF.NIQUE, Traité de logique classique, Paris, Dunod,


1975, 2 tomos.

94
homem não pode controlar todas as suas angústias porque ele
não comanda a excreção de seus hormônios de estresse do que
citar o exemplo de uma pessoa dominada por sua ansiedade.

Mx diferentes espécies de raciocínio


Existem quatro tipos de TM, isto é, de ligação entre os ter­
mos da problemática: a causa, os exemplos ou casos singulares,
a similitude, o sinal. Há portanto quatro tipos de raciocínio cujos
nomes técnicos são devidos a Aristóteles:
- o silogismo, que se baseia na causa;
- a indução, que se baseia num conjunto de casos singulares;
- a analogia, que se baseia na similitude;
- o entimema, que se baseia no sinal.
Deixamos de lado um quinto argumento freqüentemente
empregado, o argumento de autoridade: “Fulano disse.” Ele mal
merece ser chamado de argumento: não fornece nenhuma luz,
nenhuma razão capaz de semear a verdade nos espíritos. É por­
tanto um argumento muito deficiente e de último recurso. Cum­
pre acrescentar um último tipo de argumentos: os pseudo-racio­
cínios. Trata-se de raciocínios que não demonstram.
Partiremos de dois exemplos e da diferença que existe en­
tre demonstrar e persuadir, antes de expor mais rigorosamente a
distinção dos quatro tipos de raciocínio.

Primeiro exemplo
Quer-se demonstrar que o aborto é um mal. Para isso, po­
de-se recorrer aos diferentes argumentos a seguir, dos quais da­
mos primeiramente a formulação que é a da conversa de todos
os dias, antes de explicitá-la de maneira mais lógica.
- “Matar um pequeno ser humano não é um crime peque­
no.” Tradução rigorosa: todo homicídio é um mal; ora, o
aborto é um homicídio de inocente; logo, o aborto é um
mal.
- “Todas as mulheres que conheci e que praticaram aborto
ficaram profundamente traumatizadas.” Tradução rigoro­
sa: é óbvio que não conheço todas as mulheres que pra­
ticaram aborto. Meu raciocínio é portanto o seguinte: co­
nheço as senhoras X, Y, Z que praticaram o aborto; ora,
X, Y, Z ficaram traumatizadas, com sentimentos de culpa;
logo, o aborto é um mal.

95
- “O aborto reedita os horrores do Holocausto.” Tradução
rigorosa: os campos de extermínio de Auschwitz e Da-
chau são um mal profundo; ora, eles são holocaustos de
inocentes; logo, todo holocausto de inocentes é um mal
profundo; ora, o aborto é um holocausto de inocentes;
logo, o aborto é um mal.
- “Ao abortar, você mata um homem. Prova disso é que ele
se move. Não se trata de uma excrescência de seu cor­
po.” Tradução rigorosa: o ser vivo se move; ora, os fetos
se movem; mas matar um ser vivo humano é um homicí­
dio; logo, o aborto é um mal.
O primeiro raciocínio é um silogismo, o segundo uma in­
dução, o terceiro uma analogia, o último um entimema.

Esses raciocínios têm força diferente, o primeiro sendo de


longe o mais decisivo.
O impacto do argumento também não é o mesmo: alguém
sensível ao Holocausto ficará mais impressionado ou chocado
com o terceiro argumento.
Sobretudo, a estrutura das provas difere completamente.
Algumas partem de exemplos singulares, outras de proposições
universais; algumas se compõem de três proposições, outras de
mais etc.

Segundo exemplo
Eis o que afirma o futurólogo Alvin Toffler ao final de sua
última obra que trata dos novos poderes: “O novo elemento re­
volucionário - mudança criada pelo novo sistema de criação da
riqueza - é uma transformação do nível da ordem social neces­
sária. De fato, quanto mais avançam as nações no caminho da
economia super-simbólica, mais elas têm necessidade de auto-
regulações horizontais, e menos se apoiam num controle hierár­
quico de cima para baixo. Para simplificar, o totalitarismo entra­
va o desenvolvimento econômico.
Os alunos pilotos geralmente se agarram aos comandos de
seu aparelho, e seus instrutores aconselham que relaxem um
pouco. Um supercontrole é tão perigoso quanto a falta de con­
trole. Hoje, como prova a crise que atravessam a União Soviética
e outros países, o Estado que tenta impor um supercontrole a

96
seu povo e à sua economia sabota na verdade a ordem que ele
busca. O Estado menos coercitivo pode, ao contrário, obter isso
melhor, e deste modo reforçar seu próprio poder.”"
A tese defendida é dada ao final do primeiro parágrafo: “O
totalitarismo entrava o desenvolvimento econômico."
Para demonstrá-la, Toffler utiliza quatro tipos de argumen­
tos ou de razões que recobrem exatamente as quatro espécies
enunciadas acima. Ei-los na ordem de aparecimento e não de
convicção:
- o silogismo: o crescimento da economia mostra que ela
necessita “auto-regulações horizontais”; ora, estas se opõem
ao “controle hierárquico de cima para baixo”, isto é, ver­
tical;
- o raciocínio pelo exemplo: ele se baseia na analogia en­
tre o controle de um avião e o do poder, no caso, econô­
mico;
- a indução: a União Soviética e outros países estão em crise;
ora, esses diferentes países supercontrolam a economia;
- o entimema: os Estados não coercitivos têm mais poder;
ora, por definição, eles controlam menos.

Que diferença existe entre convencer (persuadir)


e demonstrar?
A persuasão e a demonstração são raciocínios (em sentido
amplo) que levam a inteligência a aderir a uma verdade (mais
ou menos certa). Seu objetivo é portanto idêntico; a diferença
reside no caminho tomado.
A demonstração dirige-se apenas à razão: é unicamente a
força do verdadeiro que a leva a concluir. Quanto à persuasão,
ela propõe uma verdade à inteligência, porém apresenta-a não
como verdadeira (apenas) mas como boa, isto é, atraente para a
afetividade ou a vontade. E isso é muito diferente.
Por exemplo, pode-se mostrar que Deus existe, seja de­
monstrando que uma causa primeira da harmonia do universo é
necessária (e nos dirigimos apenas à inteligência), seja persua-1

11. Les nouveaux pouvoirs. Savoir, richesse et violence à la veille du XXIC


'
siècle, Paris, Fayard, 1991, pp. 540-1.

97
dindo que Deus recompensa as boas ações secretas e pune os
injustos (dirigimo-nos então à vontade ou ao sentimento).

Denis Sonnet quer mostrar que um simples gesto pode mo­


dificar profundamente o relacionamento com uma pessoa do
outro sexo12. “Nunca será demais insistir na importância capital
que os gestos, todos os gestos, adquirem no amor.” Ora, ele ma­
nifesta essa tese de duas maneiras diferentes:
“Há uma diferença singular entre desejar e fazer: por exem­
plo, não é a mesma coisa desejar a morte de uma pessoa e ma­
tá-la! Realizar um desejo, ou seja, passar ao ato, fazer um gesto
amoroso, é inegavelmente mudar alguma coisa no desenrolar do
relacionamento. Passar dos olhares às carícias anódinas, dessas
carícias ao beijo, do beijo ao ato sexual, é sempre ultrapassar
patamares que implicam, na maioria das vezes, a impossibilida­
de prática de voltar aos patamares precedentes, sempre um con­
vite imperativo para o patamar seguinte.”
Essa primeira prova visa a demonstrar: ela parte da estrutu­
ra do ato humano e distingue cuidadosamente suas duas “di­
mensões”, o ato interior ou intenção (“desejar”) e o ato exterior
ou execução (“fazer”).
E Denis Sonnet prossegue: “Observe um jogador de xa­
drez. Com que prudência ele move um peão! Ele sabe conter
seu gesto, suspender por um tempo sua decisão para avaliar
bem as repercussões de sua escolha no desenvolvimento da par­
tida. Ele aprendeu a acalmar sua impaciência. A experiência
mostrou-lhe que perde aquele que se deixa arrastar por sua pri­
meira inspiração. Sobretudo ele sabe que, uma vez feito seu ges­
to, a partida não será mais como antes, que ela está comprome­
tida numa certa direção sem possibilidade de retorno.
O mesmo acontece com os gestos do amor: convém fazê-
los com uma extrema prudência, pois será criada então uma si­
tuação nova, quase irreversível.”
A tese (lembrada ao final) é sempre a mesma: o gesto de
amor compromete. Mas a prova dada é muito diferente. Ela utili­
za o que chamaremos mais adiante um raciocínio pelo exemplo.
Percebe-se sem dificuldade que a força argumentativa é bem

12. Découvrons 1’a mour, Paris, Droguet et Ardant, 1990, p. 109.

98
mais fraca. No entanto, a demonstração é muito eloqüente e in­
clusive convencerá quem conhece e pratica o xadrez. Em com­
pensação, se o leitor não for um aficcionado do jogo, a prova se
arrisca a cair no vazio.
No primeiro caso, Denis Sonnet procurou demonstrar, no
segundo visava a convencer. Prova disso é que o público é mui­
to específico: ele deve apreciar o jogo de xadrez.

□ Observações e conseqüências
A persuasão pode ser boa ou perversa conforme o objetivo
visado: a tentação de Eva comentada por Bossuet é um modelo
de persuasão imoral. Veremos que a persuasão é às vezes ne­
cessária e complementa a demonstração. Na verdade, a utiliza­
ção humanizante da persuasão é engendrar a benevolência e as­
sim dispor a afetividade à acolhida da verdade e da demonstra­
ção. Começa-se geralmente um artigo ou um capítulo por algu­
mas generalidades ou banalidades aceitas por todos: “Há 2000
anos...“ Por isso um texto que procede apenas por persuasão,
quando se anuncia rigoroso e científico, deve despertar a sus­
peita.
Além disso, o silogismo e a indução têm primeiramente por
objetivo demonstrar, enquanto o entimema e a analogia são fei­
tos mais para convencer.
Enfim, o estudo da arte de persuadir pertence também à
lógica: é o objeto da assim chamada retórica (cujo modelo conti­
nua a ser ainda hoje os três livros da Retórica de Aristóteles). Ela
exige uma longa experiência e é polida sobretudo pelo exercí­
cio do debate. Aqui, consideramos apenas suas armas, seus ins­
trumentos lógicos. A lógica comporta portanto duas partes: uma
é a arte de demonstrar, a outra, a arte de persuadir. A primeira
dirige-se unicamente à inteligência, a segunda dirige-se à inteli­
gência por meio da afetividade e da vontade.

Por que quatro tipos de raciocínio?


Há várias ligações possíveis entre dois termos: a causa, os
exemplos (casos singulares), a similitude, o sinal. Para justificar
a existência dessas quatro espécies de raciocínio, nossa exposi­
ção será um pouco mais difícil. Ela não é indispensável à com­
preensão da seqüência nem à prática.

99
□ Há dois grandes raciocínios de base: o silogismo e a indução
Aristóteles já afirmava: “Toda convicção se adquire pelo si­
logismo ou provém da indução.”13 Analise como procede um
professor ou como você mesmo procede: para mostrar que a so­
ma dos ângulos do triângulo é sempre igual a 180°, ou ele fará
você medir os ângulos de todas as configurações triangulares
possíveis, e isso é uma indução, ou fará a demonstração a partir
de leis geométricas (como a igualdade dos ângulos alternos-in­
ternos), e isso é um silogismo.
Na verdade, prefere-se hoje chamar o silogismo de dedução
(é o que faz, por exemplo, Roger Vemeaux)14. O termo dedução
tem a vantagem da simetria, mas não manifesta mais seu caráter
unificador como o permite o prefixo “sil” de silogismo (do grego
“syn”, com, que se verifica, por exemplo, em “simpatia”).

□ Dois outros tipos de raciocínio próximos do silogismo


e da indução: o entimema e a analogia
Pssa aproximação, igualmente, foi operada por Aristóteles.
O que não nos deve surpreender; o homem não raciocina dife­
rentemente segundo as épocas; é o material sobre o qual ele ra­
ciocina que se modifica e se alarga consideravelmente. Aristóte­
les distingue primeiramente o silogismo e a indução; depois, fa­
lando dos “argumentos retóricos” que “produzem a persuasão”,
observa que “eles ou utilizam exemplos, o que é uma indução,
ou entimemas, o que não é outra coisa senão um silogismo.”15
- O entimema é uma forma atenuada de silogismo. En-
quanto este último fornece a causa, o entimema dá ape­
nas um sinal. Pode-se mostrar que o fumo é nocivo seja
afirmando que ele é cancerígeno (a causa), seja mostran­
do que ele faz tossir (sinal). A palavra entimema deve-se
ao fato de esse raciocínio em geral ser dado de forma

13· Organon. III. PremiersAnalytiqu.es, Liv. II, cap. XXIII, 68 b 14, trad. fr.
Tricot, “Bibliothèque des textes philosophiques", Paris, Vrin, nova ed., 1971,
p. 312; cf. também Éthique à Nicomaque, Liv. VI, cap. Ill, 1139 b 25-31.
14. Introduction et logique, “Cours de philosophic”, Beauchesnes, nova
ed., 1964, p. 92.
15. ARISTÓTELES, Organon. IV. Les Derniers Analytiques, Liv. I, cap. II, 71
a 5-10. Trad. fr. Tricot, “Bibliothèque des textes philosophiques”, Paris, Vrin, no­
va ed., 1970, p. 2.

100
resumida, para torná-lo menos pesado: conserva-se por­
tanto uma das premissas para si, no peito (o que se diz
em grego: em tbumos). Por exemplo, em vez de dizer:
“Todo céu limpo é sinal de vento; ora, o céu está sem nu­
vens; logo, haverá vento”, o que tornaria um pouco pesa­
das as conversações correntes, contentamo-nos em obser­
var: “Amanhã será um dia de vento: não há nuvens.”
É por ocasião do estudo do entimema que falaremos da teo­
ria. Trata-se de uma forma de raciocínio capital, já que a teoria é
um dos fundamentos da ciência.
- O raciocínio pelo exemplo ou por analogia aproxima-se
da indução. !Mas ele se baseia apenas num caso singular,
enquanto a indução parte sempre de uma coleção de vá­
rios casos; seu impacto é portanto atenuado. Você pode
desaconselhar a seu sobrinho ou a seu filho pôr o dedo
na tomada, seja mostrando-lhe que seu irmàozinho levou
um choque ao brincar de eletricista (é um raciocínio por
similitude), seja mostrando-lhe que você jamais viu al­
guém fazer isso (e é uma indução).

□ Confirmação: distinção pelo objetivo visado


Até agora, vimos as diferenças de estrutura e de TM; mas
há também uma diferença no uso. Somente o silogismo fornece
a certeza e a razão da certeza; a indução pode produzir a certe­
za sob certas condições; o entimema oferece uma segurança ra­
zoável; a analogia, enfim, fornece pelo menos uma presunção
em favor da verdade. De fato, como dizíamos acima, indução e
silogismo servem para demonstrar; entimema e analogia servem
mais para persuadir.

Como reconhecer as diferentes espécies de raciocínio?


Meios concretos de discernimento serão dados por ocasião
do estudo de cada uma das espécies de raciocínio. Mas os crité­
rios a seguir valem para todas as demonstrações e são extrema-
mente importantes de determinar. Bles são de duas ordens.

Critérios lógicos
Em geral supõem que já se tenha apontado a problemática.
Cumpre então determinar as diferentes razões propostas pelo
autor.

101
Coloque-se com freqüência a questão: “Por que o autor
afirma isso (no caso, sua problemática)?”
Determine bem o que é do domínio do singular (o exem­
plo, a indução) e do universal (o silogismo, o entimema): esse é
o critério mais importante. Num texto, há poucos argumentos
universais: dois ou no máximo três. Além disso, o estilo jornalís­
tico apresenta um tropismo especial para o caso particular: um
artigo começa geralmente por uma ilustração de impacto. Mas
não st‫ ־‬deixe obnubilar pelos exemplos: seria trocar o sol e quei­
mar as asas contra um lâmpada de néon! Vá ao cerne, isto é, ao
argumento principal, ao silogismo. Em suma, veja se o texto es­
clarece realmente: ele oferece um verdadeiro TM universal e
causal ou contenta-se em alinhar com habilidade alguns exem­
plos bem apresentados?

índices textuais
KleS têm a vantagem de poder ser usados muito cedo, já
numa primeira leitura, mesmo se a problemática permanece ain­
da vaga: eles permitem aliás abordá-la de maneira progressiva e
ajudam a determiná-la.

□ A mudança de parágrafo
Indica com freqüência uma mudança de argumento (mas
às vezes também de problemática).

□ Localize as palavras de articulação, em particular


as conjunções de coordenação
Essas conjunções têm funções diferentes com relação à
problemática e ao raciocínio:
- ao introduzirem um raciocínio: “com efeito”, “pois” etc.;
- ao exprimirem a articulação de uma premissa (por exemplo,
entre duas premissas): “ora”, “e”, “mas”, “além disso”...;
- ao concluírem um raciocínio que fornece a tese: “logo”,
“em conseqüência”, “por isso”...;
- ao introduzirem um outro argumento ou uma outra proble­
mática: “por outro lado”, “a seguir”, “em segundo lugar”...
Essas conjunções têm um papel extremamente decisivo;
mas convém saber que elas nem sempre são empregadas com
conhecimento de causa nem de maneira correta: são amigos a
freqüentar, mas com discernimento.

102
Inversamente, a ausência cias conjunções de coordenação
torna o discurso obscuro. Leia o texto a seguir e observe como
deve ser lido com atenção (ou até várias vezes) para se compreen­
der o sentido e sobretudo a coordenação das três proposições.
“O fundamento do amor sexual é o absoluto de cada pes­
soa humana: sua unicidade. Esse valor único se fundamenta na
unicidade de Deus. Se não houver Absoluto a adorar, não há
absoluto a reconhecer na pessoa amada.”1‫’׳‬
Agora, acrescentemos apenas as duas conjunções “ora” e
“logo”: é como passar da noite para o dia! “O fundamento do
amor sexual é o absoluto de cada pessoa humana: sua unicida­
de.” Ora, “esse valor único se fundamenta na unicidade de
Deus”. Logo, “se não houver Absoluto a adorar, não há absoluto
a reconhecer na pessoa amada”.
Outro exemplo dessa mania atual de esquecer as conjunções
de coordenação. Elas são acrescentadas entre colchetes. Aqui
também, faça uma primeira leitura omitindo-as, uma segunda in-
tegrando-as e sinta a diferença:
“O ‘símbolo’ funciona, a partir de então, segundo o sentido
etimológico dessa palavra: a metade de um signo vem ajustar-se
à outra metade, de modo que haja encontro no reconhecimento
mútuo dos dois portadores. [Ora] a Torá e o evangelho atraem-
se a fim de produzir a plena luz. [Logo] o ‘símbolo’ é esse en­
contro.”1617
Aristóteles já observava que essas conjunções eram como
as cavilhas que seguram as diferentes peças de um barco.

□ Outro meio
Também não é raro que o autor reúna tese e argumento(s)
ao final de um parágrafo, do artigo, no começo de um novo ca­
pítulo ou num sumário.
Tal é o caso de João Paulo II em suas catequeses de quar­
ta-feira: o início resume sempre as catequeses anteriores.

16. Albert CHAPELLE, Sexualite el saintete, Bmxelas, Editions de l’Tnstitut


d’Etudes Theologiques, 1977, p. 169.
17. Paul BEAUCHAMP, L’un el I’a utre Testament, t. II. Accomplir les Ecri-
tures, col. “Parole de Dieu", Paris, Seuil, 1990, p. 197.

103
□ Observação
Atenção, o texto nem sempre propõe as proposições que
constituem o raciocínio em sua ordem lógica: premissas, isto é,
maior e menor, depois conclusão.
“Na ausência de gravitação, as moléculas não podem ser
voláteis, de modo que apenas um pequeno numero delas pene­
tra suficientemente fundo no nariz para poderem ser registradas
como odores. O que coloca um problema aos dietéticos encarre­
gados da alimentação espacial. O gosto do alimento depende
muito de seu odor.”1* Qual é a estrutura desse raciocínio (note,
de passagem, que a ausência de conjunções de coordenação
torna-o ainda mais dificilmente perceptível)?
A tese é a segunda proposição: a alimentação espacial é
problemática. Prova: com efeito, no espaço, sentir os odores é
problemático (primeira proposição); ora, o gosto, que é um dos
fundamentos da alimentação, depende do odor (terceira propo­
sição). O texto ordenou portanto o raciocínio da seguinte ma­
neira: maior, conclusão, menor.

Critérios mais psicológicos


Já que o entimema e a analogia visam mais ao coração do
que à cabeça, é bom lembrar o que dissemos anteriormente. Um
texto que se dirige mais ao sentimento ou à vontade raramente
utilizará o silogismo e com maior freqüência a analogia ou o en­
timema. A indução situa-se entre os dois gêneros literários.

Observação m a is geral de m étodo


Um artigo ou um capítulo de livro em geral comportam
uma e apenas uma problemática, ou seja, apenas uma idéia. A
experiência mostra que essa regra engana pouco, salvo indica­
ção expressa no meio do artigo ou do capítulo: “Passemos a um
outro ponto”... “Abordemos a questão de...” Em conseqüência,
mudar de parágrafo não é mudar de tese, mas desenvolvê-la,
manifestá-la por um outro argumento, tirar corolários etc. Por­
tanto, é a priori desejável unificar o pensamento do autor e fazê-
lo muitas vezes mais do que ele próprio o faz.18

18. Diane ACKERMANN, Le livre des sens, Paris, Grasset, 1991, p. 27.

104
Resta que há autores difíceis: não se pode perceber de saí­
da a tese de fundo que unifica seu pensamento e sua obra. O
melhor então é proceder ao contrário do que acabamos de dizer:
considerar cada parágrafo como uma unidade inteligível, deter­
minar sua problemática e raciocínio; assim, gradativamente, po­
de-se descobrir a tese de conjunto, como o paleontologista que,
através de um estudo cuidadoso de cada osso, reconstitui um es­
queleto, enquanto a lógica da anatomia quer que se procure de­
terminar o lugar e a função de cada osso a partir da totalidade.

O SILOGISMO

Começamos pelo raciocínio mais perfeito, aquele que Aris­


tóteles chamou silogismo. Se o silogismo é malvisto, é porque
foi caricaturado e mal compreendido.

O silogism o m al-am ado


A primeira razão dessa falta de afeto é que se dá, em todos
os manuais, o seguinte exemplo como tipo mesmo de silogismo:
Todo homem é mortal; ora, Sócrates é um homem; logo, Sócrates
é mortal.
Ora, trata-se de uma injustiça histórica: Aristóteles jamais
deu esse exemplo. Além disso, é um erro lógico. Com efeito, o
silogismo se pratica antes de tudo sobre matéria universal, não
sobre singulares que são contingentes. O silogismo permite o
discurso científico. Ora, não há ciência do singular: não existe
socratologia, por exemplo, isto é, ciência daquilo que é Sócrates
em sua singularidade. Esta, aliás, de modo nenhum se identifica
com as idéias que ele emitiu, que são universais e que podem,
no limite, ser compreendidas sem que se conheça a vida e a
personalidade de Sócrates.
Uma outra razão, muito próxima da precedente, é a crítica
feita pelo empirismo, em particular por Stuart Mill. Em resumo,
ele acha que o silogismo é estéril e não faz progredir a ciência:
tudo já está presente nas premissas. E é o caso de retomar o
exemplo acima: se sabemos que todos os homens são mortais,
sabemos, pelo menos implicitamente, que determinado homem,
por exemplo Sócrates (o duque de Wellington, para Stuart Mill),

105
é mortal. De fato, dizer que “todos os homens são mortais” sig­
nifica que “todos os homens que conheci direta ou indiretamen­
te são mortais”, e só isso19. A ciência não progride com base no
silogismo, mas confrontando-se com a experiência, portanto
com o real.
A resposta é dupla. É perfeitamente verdadeiro que a ciên­
cia não se constitui apenas com silogismos, mas repousa também
e primeiramente sobre induções: veremos isso em detalhe mais
adiante. Em segundo lugar, confunde-se silogismo e dedução: o
exemplo dos manuais (“Todos os homens são mortais etc.”) é es­
téril por ser simplesmente a aplicação de um universal a um caso
particular, o que se chama uma dedução20 . Ora, o silogismo rela­
ciona duas premissas universais que jamais se havia pensado em
aproximar até então; e essa aproximação é que é fonte de nova
compreensão. Assim realizam-se certas invenções. Tal foi o caso
de Louis de Broglie quando inventou a mecânica ondulatória,
aproximando onda e corpúsculo, atribuindo uma onda a todo
corpúsculo21. Assim procedemos nós quando descobrimos algo
de novo: “É mesmo, jamais havia notado isso; no entanto, eu sa­
bia.” “É mesmo! Jamais havia feito a aproximação!”
Um caso célebre é o da prova dita ontológica da existência
de Deus. Ela foi formulada pela primeira vez por Santo Anselmo
de Canterbury em seu Proslogion (cap. II). Apresentemo-la na
forma de questões. Sem segunda intenção aparente, pergunte a
alguém: “Você pode conceber um ser tal que não exista outro

19. Cf. John Stuart MILL, Système de logique inductive et déductive, trad.
fr.. Paris, Félix Alcan, 1875, vol. I, p. 208.
20. E, m esm o nesse caso, a aproximação do princípio universal e do caso
singular pode reservar surpresas bizarras. Você sabe, por exem plo, por que cer­
tos quadros do Renascimento não utilizavam apenas a folha de vinha com o tapa-
sexo, mas também seu caule que se elevava mais para cima? Para ocultar o
eventual um bigo.de Adão. Por que isso? Não que houvesse qualquer impudor
em mostrá-lo, mas porque implicava um problema. Com efeito, o umbigo resulta
de o homem ter tido um cordão umbilical e, portanto, de ter nascido de uma
mulher (eis o princípio universal). Ora, o que acontece com Adão (eis o caso
particular)? Para colocar a questão, era preciso juntar essas duas premissas; ora,
você conhece as duas. O que mostra que certas deduções podem trazer um co­
nhecimento novo, m esm o que sua fecundidade seja limitada...
21. Louis de BROGLIE, Matière et lumière, “Sciences aujourd’hui”, Paris,
Albin Michel, 1937, pp. 249 ss.

106
maior?” “Certamente”, ihe será respondido. Algum tempo depois,
coloque a questão: “Será maior existir ou não existir?” A resposta
também será clara: “É maior existir.” A resposta a essas duas
questões feitas separadamente é em geral imediata e conforme
ao que acabamos de dizer. Ora, a conjunção delas obriga, se­
gundo os defensores do argumento ontológico, a concluir pela
existência do Ser perfeito, do Absoluto, daquele que é tal que
não existe outro maior, em suma, de Deus. Inesperado, não é
mesmo? O efeito de surpresa é tal que a maior parte das pessoas
a quem isso é revelado querem reconsiderar sua adesão às duas
premissas. Ora, uma vez aceitas, a conclusão segue-se necessaria­
mente22.
De qualquer modo, Aristóteles afirmava categoricamente
essa novidade quando dava sua definição célebre do silogismo:
“O silogismo é um discurso no qual, sendo colocadas certas coi­
sas, alguma outra coisa que não esses dados resulta necessaria­
mente deles em razão apenas desses dados.”23

A terceira razão é que a escolástica pôs o silogismo em tu­


do e o utilizou para demonstrar as pseudoverdades mais extra­
vagantes, encobrindo a vacuidade sofisticada do conteúdo com
o aparente rigor formal. Ora, o fato de um pianista tocar mal
não é motivo para transformar seu Steinway em lenha de
fogueira! Utilizemos o silogismo com discernimento.

Enfim, a palavra silogismo soa às vezes bárbara ou fora de


moda. A dificuldade é fácil de contornar: substitua “silogismo”
por um termo aproximado: “dedução”. Mas vimos que este com­
portava uma ambigüidade. Basta estar consciente disso.

Exemplos de silogismo
-Jean-Louis Bruguès, especialista em moral, observa: “Des­
de o século passado (...) forjou-se um silogismo que per-

22. Cf., por exem plo, L'oeuvre de saint Anselme de Cantorbery, 1. Monolo­
gion, Proslogion, Paris, Cerf, 1986, pp. 245-7. Na verdade, o raciocínio de Santo
Anselmo é contestado por toda uma corrente filosófica e teológica, a começar
por Santo Tomás de AQUINO (cf. Suma teológica, I, q. 2, a. 1, ad lum).
23. Premiers analytiques, I, 1, 24 b 18-19. Trad. fr. Tricot, “Bibliothèque
des textes philosophiques”, Paris, Vrin, nova ed., 1971, pp. 4-5.

107
manece, ainda hoje, o postulado, a armação essencial, o
fundamento primeiro da mentalidade [dos técnicos].” Essa
é a tese. Ele a estabelece mediante um silogismo que é
caracterizado como “silogismo do técnico”:
“Premissa maior: apesar de alguns inconvenientes, reais,
como certas perturbações produzidas nos comportamentos e nas
mentalidades, a evolução social dos tempos modernos deve ser
apreciada como algo que representa um progresso global para o
homem. Premissa menor: a técnica foi o motor dessa evolução
das sociedades ocidentais, a ponto de poder-se qualificar estas
últimas de eminentemente técnicas. Logo: todo progresso técni­
co induz, mais ou menos diretamente, um progresso humano.”21

- Eis aqui um encadeamento de silogismos que leva a uma


conclusão das mais divertidas:
“Somente o zangão visita o trevo vermelho ( Trifolium pia-
tensé), já que as outras abelhas não podem alcançar seu néctar.
Sendo assim, não há dúvida nenhuma de que, se o gênero zan­
gão viesse a desaparecer, o amor-perfeito ou o trevo vermelho
se tornariam muito raros ou desapareceriam completamente. O
número de zangàos num distrito qualquer depende em ampla
medida do número de ratos campestres que destroem seus favos
de mel e seus ninhos. (...) Ora, como todos sabem, o número de
ratos campestres depende grandemente do dos gatos. (...) As­
sim, é inteiramente possível que a presença de um felino em
grande quantidade numa localidade determine ali a abundância
de certas flores, em razão da ação dos ratos e das abelhas”, nos
diz Darwin na Origem das espécies. E alguns irão estender o ra­
ciocínio desta maneira: “As solteironas inglesas criam gatos para
compensar sua solidão, já que muitos homens servem na mari­
nha de Sua Majestade em vez de desposá-las. A quantidade de
trevo vermelho na Inglaterra depende da manutenção do impé­
rio britânico.”2425

24. Jean-Louis BRUGUÈS, La fécondation artificielle au crihle de l éthique


chrétienne, Paris, Communio-Fayard, 1989, p. 58.
25. La Recherche, na 215, novembro de 1989, p. 1351, comentário da fo­
tografia.
O queé?
Os manuais clássicos estão repletos de noções que são
úteis apenas aos lógicos de ofício. Vamos nos limitar a algumas
observações e conselhos acrescidos de exemplos.

Definição do silogismo
Doravante, sabemos, o silogismo é um raciocínio que per­
mite estabelecer uma problemática dando-lhe a causa, isto é,
unindo seu predicado e seu sujeito. É a forma de argumentação
mais rigorosa, embora nem sempre seja praticável. Estudemos
sua estrutura geral e depois sua estrutura particular (as três figu­
ras do silogismo), antes de examinar seu interesse.

A estrutura geral do silogismo


□ Exposição da estrutura
A forma geral do silogismo associa três proposições, duas
premissas e uma conclusão: as duas premissas contêm o TM.
Além disso, o silogismo contém três termos (que indicamos
por uma letra para colocar nossos silogismos em esquema): o su­
jeito (A) e o predicado (B) da problemática, assim como o TM (C).
Portanto, a estrutura do silogismo será a seguinte: A-C, C-B,
A-B. Se colocarmos as conjunções de coordenação cujo papel
de ponto de referência já vimos, teremos: A-B (é a tese); com
efeito, A-C; ora, C-B; logo, A-B (que agora se chama conclusão).
Por exemplo, você quer demonstrar que as plantas não são
dotadas de sentimentos (alegria, dor etc.). “Plantas” é portanto o
sujeito da problemática (A) e “não dotadas de sentimentos”, o
predicado (B). Para isso, você pode utilizar o termo médio se­
guinte: “ser dotado de sensação”. Você argumentará então as­
sim:
- a sensação é necessária ao sentimento (por exemplo, pa­
ra que uma picada me provoque dor, é preciso primeiro
que eu a sinta);
- ora, as plantas não são dotadas de sensação (não há, por
exemplo, receptor de tato entre as plantas, e o quimiotro-
pismo vegetal não é uma sensação);
- logo, as plantas não são dotadas de sentimentos.

109
□ Algumas regras fundamentais
Um silogismo só pode concluir se o TM estiver presente
em cada uma das duas premissas; assim também, uma corrente
só se sustenta se o elo tem um lugar intermediário.
Essa posição não é um artifício gramatical: ela decorre da
universalidade do TM que é intermediário em universalidade en­
tre o sujeito e o predicado da problemática. Por exemplo, “ave”
é intermediário em universalidade entre “falcão” e “animal”; as­
sim você pode fazer o seguinte raciocínio: o falcão é uma ave;
ora, a ave é um animal; logo, o falcão é um animal.
Em contrapartida, o raciocínio seguinte é falso (mesmo que
a conclusão possa ser correta: trata-se aí de uma coincidência),
porque o TM é mais universal que os dois outros termos: o colo­
nialismo é condenável; ora, a exploração do homem é condená­
vel; logo, o colonialismo é exploração.
Na verdade, o TM ocupa posições particulares segundo seu
grau de universalidade. E é isso que engendra as três espécies
de figura de silogismo que devemos agora examinar. Isso pode­
rá parecer à primeira vista enfadonho, mas a experiência logo
lhe mostrará o interesse dessa distinção.

□ O silogismo de primeira figura


- O que é?
O silogismo de primeira figura é um silogismo em que o
termo médio é intermediário em universalidade; dito de outro
modo, ele é menos universal que o predicado da problemática,
e mais universal que o sujeito da mesma problemática. Se cha­
marmos A o sujeito da problemática, B o predicado, e C o termo
médio6‫־‬, a figura (ou estrutura) desse silogismo será a seguinte:
C é B, A é C, logo A é B.

- Algumas regras
Você pode concluir todos os tipos de proposição possível:
tanto particular quanto universal, tanto afirmativa quanto negati-26

26. Sabemos que Aristóteles utiliza esses símbolos para significar os termos
ou conceitos, mas também para designar a universalidade dos termos: para ele, a
ordem alfabética das letras é signo da universalidade decrescente dos termos. As­
sim, A é o termo mais universal, depois vem B, e finalmente C, que é o m enos
universal. Mas, por preocupação de simplicidade, designaremos sempre A com o
o sujeito da problemática, B com o o predicado e C com o o termo médio.

110
va. A importância dessa regra aparecerá ao estudarmos as outras
figuras de silogismo. Assim, o silogismo de primeira figura é o
único que permite concluir em universal afirmativo: portanto é
extremamente precioso. É o mais poderoso e o mais esclarece­
dor. Mas não escondamos que é também o mais frágil, o mais
fácil de atacar. Com efeito, um único caso em sentido contrário
basta para destruir a pretensa universalidade da conclusão. Se
você afirmar, por exemplo, que os animais são desprovidos de
inteligência, basta um exemplo contrário para aniquilar esse ra­
ciocínio.
Esse raciocínio apresenta duas condições: a premissa maior
deve ser sempre universal e a menor, afirmativa. Caso contrário,
você não podería concluir.

- Primeiro exemplo

• Leitura do texto
Contrariamente aos animais, que agem por instinto, o “ho­
mem age com base num juízo, e esse juízo se faz por aproxima­
ções de dados operadas pela razão. Por isso o homem age se­
gundo um juízo livre, pois tem a faculdade de se dirigir a diver­
sos objetos. Com efeito, no domínio do contingente, a razão po­
de seguir direções opostas, como se vê nos argumentos prová­
veis. Ora, as ações particulares são contingentes; assim, o juízo
racional feito sobre elas pode ir num sentido ou noutro, e não é
determinado a uma só coisa. Conseqüentemente, é necessário
que o homem tenha o livre-arbítrio, pelo próprio fato de ser do­
tado de razão”27.

• Análise do texto
A tese é que o homem é dotado de livre-arbítrio. A prova
apóia-se num silogismo de primeira figura: o homem é dotado
de razão. Ora, a razão que se ocupa das realidades contingentes
não é determinada (já que somente o necessário determina). Ora,
o livre-arbítrio é uma capacidade de ação que não é determinada
por seu objeto. Logo, o homem é dotado de livre-arbítrio.

27. Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, I, q. 83, a. 1.

111
- Segundo exemplo

• Leitura do texto
Faça o mesmo exercício com o texto seguinte. Encontramos
silogismos em todo bom romance policial, em particular em Aga-
tha Christie. Leia este final de novela tentando identificar e anali­
sar a estrutura do raciocínio (e primeiramente a problemática).
“Você me declarou saber que eu não era Lady Esther. Por
quê?
“(...) Lord e Lady Micheldever tinham, ambos, os olhos azuis.
Quando o cônsul me falou dos olhos negros flamejantes da filha de­
les, compreendi que havia um erro. Esposos com olhos escuros po­
dem ter um filho com olhos azuis, mas o contrário é impossível.”28

• Análise do texto
Basta colocar entre colchetes as articulações lógicas.
“Você me declarou saber que eu não era Lady Esther. Por
quê? [bela formulação de um problema ou de uma problemática].
“(...) Lord e Lady Micheldever tinham, ambos, os olhos azuis.
Quando o cônsul falou-me dos olhos negros flamejantes da filha
deles, compreendi que havia um erro |é a premissa menor]. Es­
posos com olhos escuros podem ter um filho com olhos azuis,
mas o contrário é impossível” [é a premissa maior],

□ O silogismo de segunda figura

- O que é?
Nesse tipo de silogismo, o TM (C) é mais universal que o
predicado (B) e que o sujeito (A) da problemática. Em conse­
quência, visto que o predicado não pode ser menos universal
que o sujeito, o termo médio será duas vezes predicado nas duas
premissas. Mas esse raciocínio só pode concluir se uma das pre­
missas for negativa. Demonstrá-lo seria demasiado longo e com­
pete aos manuais de lógica. Mas a representação com os conjun­
tos mostra isso bem. Do mesmo modo, invente exemplos para
convencer-se disso: nenhum deles concluirá em afirmativo. Por
exemplo: “O leão é um ser vivo; o gerânio é um ser vivo; lo-

28. Agatha CHRISTIE, “La maison de Chiraz”, in Mister Parker Pyne, pro-
fesseur de bonhenr. Trad. fr., Paris, Librairie des Champs-Elysees, 1970, p. 253·

112
go...” E desconfie dos falsos exemplos: “Os homens são seres vi­
vos; os gregos são homens; logo, os gregos sào seres vivos.”
Com efeito, é apenas por acaso que grego está também contido
sob o gênero “homem” (o sujeito da maior). Isso não é mais ver­
dadeiro se você afirmar que “os pepinos sào seres vivos”; ora,
os pepinos, mesmo mascarados, não são homens...
Em todo caso, pelo fato de uma das premissas ser negativa,
a conclusão o será também.
A estrutura do raciocínio é a seguinte: B é C; ora, A não é C;
logo, A não é B. Ou então: B não é C; ora, A é C; logo, A não é B.

- Algumas regras
Uma das premissas deve sempre ser negativa. Acabamos
de mostrar que, se as duas forem afirmativas, é impossível con­
cluir. Assim, Guy Sorman faz um paralogismo quando escreve
(com um sorriso nos lábios) do filósofo e historiador das idéias
políticas Isaiah Berlin: “Os ingleses sào pragmáticos. Isaiah Ber-
lin é contra o espírito de sistema. Logo, sir Isaiah é inglês.”29
Do mesmo modo, se as duas premissas concluem negativa-
mente, nada se pode concluir.
Enfim, esse raciocínio pode concluir tanto em universal
quanto em particular (negativo, é claro).

- Exemplos
“A dificuldade é esta: o amor e a inclinação amorosa são
inteiramente espontâneos, o casamento é uma decisão.”30
A conclusão está portanto subentendida: o amor nada tem
a ver com o casamento.

“Nosso panda poderá sobreviver na floresta de Palombie?


Lamentavelmente, todo zoólogo sério lhe dirá:
- O urso panda só se alimenta de bambu fresco seco.
- Infelizmente o bambu não cresce na floresta de Palombie
em estado nativo.”31

29· Les vrais penseurs de notre temps, “Livre de Poche”, nö 6962, Paris,
Fayard, 1989, p. 369.
30. Sören KIERKEGAARD, Propos sur le manage, citado por Ignace LEPP,
Psychanalysé de I amour, Paris, Grasset, 1959, p. 173.
31. FRANQUIN, BATEM e GREG, Le bébé du bout du monde, na série
"Marsupilami”, 2, Marsu Productions, Dargaud diffusions, 1988, p. 18.

113
Aqui também a conclusão é implícita: o panda não pode
sobreviver na floresta de Palombie.

Escutemos a objeção que Freud ouviu em 1886 quando


voltou (a Viena) de sua estada em Paris e expôs o que havia vis­
to e aprendido com Charcot:
“Hysteron (sid) designa contudo o útero. Assim, como po­
de um homem ser histérico?”52
Nesse último exemplo, é uma das premissas (a menor) que
não aparece: o homem não tem útero. A conclusão é proposta
em forma interrogativa. Na forma indicativa, ficaria assim: o ho­
mem não pode ser histérico.

□ O silogismo de terceira figura

- O que é?
Aqui o termo médio (C) é menos universal que o predica­
do (B) e que o sujeito (A) da problemática. Em conseqüência,
visto que o predicado não pode ser menos universal que o su­
jeito, o termo médio será sujeito das duas premissas. Trata-se
portanto exatamente do oposto do silogismo de segunda figura,
em que o TM era o termo mais universal e devia figurar como
predicado nas duas premissas.
Enquanto o silogismo de primeira figura pode demonstrar
qualquer tipo de proposição, o silogismo de segunda figura só
demonstra proposições negativas e o de terceira figura só pode
concluir em particular. Indica-se o caráter particular da premissa
acrescentando “alguns”.
A estrutura é a seguinte: C é B; ora, C é A; logo, alguns A
são B.
Os camelos bebem água; ora, os camelos são mamíferos;
logo, alguns mamíferos bebem água.

- Algumas regras
Uma das premissas é sempre particular. A outra, em com­
pensação, deve sempre ser universal.2*3

32. Sigmund FREUD, Sigmund Freudprésenté p a r lui-même (1923), Paris,


Gallimard, 1984, p. 27.

114
Por outro lado, as premissas podem ser afirmativas ou ne­
gativas.

• Exemplos
Na verdade, esse tipo de silogismo é empregado muito ra­
ramente. Em todo caso, tal é minha experiência. Certamente
prefere-se utilizar o silogismo de primeira figura quando se quer
concluir em particular. Além disso, as exposições buscam mais o
universal que o particular. E as conclusões particulares sâo em
geral o resultado de indução parcial, incompleta.
Por isso não encontramos exemplo de silogismo de terceira
figura em outra parte a não ser nos livros escolares. Mas as ilus­
trações sâo demasiado artificiais para terem alguma utilidade pa­
ra nós. Nossa intenção é prática, não teórica. A rigor, elas po­
dem servir de teste para quantificar o Quociente Intelectual33.

Por que distinguir esses diferentes tipos de silogismo?

□ Interesse do silogismo de primeira figura


Esse raciocínio é de uma extrema flexibilidade, pois é
capaz de demonstrar qualquer tipo de proposição.
Não se espante, pois, de encontrá-lo tão assiduamente ao
longo de suas leituras: ele é mais frequente que os outros dois.

□ Interesse do silogismo de segunda figura


Ele é particularmente poderoso para mostrar uma proposi­
ção negativa, pois o TM, sendo mais universal, separa bem o su­
jeito e o predicado da problemática (ele recusa que se atribua
um ao outro). Esse raciocínio é o que demonstra as proposições
negativas com mais força. Em outras palavras, se você quiser es­
tabelecer uma problemática negativa, a escolha de um silogismo
de segunda figura tornará sua demonstração mais convincente.
Com efeito, o termo médio é então mais universal, de certo mo­
do ele engloba os dois termos de sua problemática (sujeito e
predicado). Negar um dos dois e afirmar o outro é portanto as­
segurar uma conclusão negativa. É assim, aliás, que procedemos
espontaneamente. Se, por exemplo, nos perguntamos: as plan-

33· Cf. Pierre BERLOQUIN, Testez votre intelligence, Livre de Poche, Paris.

115
tas têm sentimentos?, podemos responder negativamente fazen­
do o seguinte raciocínio: os sentimentos requerem a mediação de
hormônios e de um sistema nervoso; ora, as plantas são desprovi­
das deles. O TM, “requerer a mediação de hormônios e de um
sistema nervoso”, é mais universal que os dois termos da proble­
mática.
Do mesmo modo, o argumento de Saint-Exupéry acerta no
alvo: “Os homens (...) compram coisas prontas nos comerciantes
(premissa maior). Mas, como nào existem comerciantes de ami­
gos (menor), os homens nào têm mais amigos (conclusão).”34
“O que há de interessante nos contos que as crianças en­
contram nos livros é que eles funcionam com base em referências:
o herói deve se ‘virar’ para recuperar seu equilíbrio, um apazi­
guamento. Nos desenhos animados japoneses, ao contrário, nào
há pistas para uma saída, tudo está banhado em violência e se
detém nisso.”35*Aqui, o TM tem uma universalidade máxima: a
presença de pistas (ponto de referência de ordem moral). Ele é
negado com relação ao desenho animado e afirmado com
relação aos contos tradicionais.

□ Interesse do silogismo de terceira figura


Vamos repetir: muitos silogismos de terceira figura são na
verdade induções mascaradas.
Eles são mais raros; e, na realidade, geralmente são utiliza­
dos de forma sofisticada, errônea. É o raciocínio mais cômodp,
mais fácil, mas esquecem que ele só conclui em particular, nào
em universal. Por exemplo, “o patrão explora seus operários;
ora, o patrão é um burguês; logo, o burguês é um explorador”
(sic). Ora, a única conclusão legítima é: “Alguns burgueses (e
não todos) são exploradores.”

Como?
Para estabelecer um silogismo, proceda em dois tempos.
Pergunte-se: por que utilizar um silogismo em vez de um outro
tipo de raciocínio? A seguir, que tipo de silogismo?

34. Antoine de SAINT-EXUPÉRY, O pequeno príncipe, múltiplas edições,


cap. XXI.
35. Declaração do psiquiatra infantil Pierre LAFORGUE, recolhidas em Té-
lérama n- 2183, 13 d« novembro de 1991, p. 18.
Em fa vo r da utilização de um silogismo como raciocínio
- O texto é universal; ele não se contenta apenas com
exemplos.
- O texto analisa, busca o sentido das palavras, define.
Com efeito, a definição é um TM extremamente forte. For
exemplo, “o vândalo é um bárbaro”: de fato, bárbaro é aquele
que destrói o que não compreende; ora, esse é o caso tio vân­
dalo; logo... Eis de que maneira a formulação é importante para
saber se o silogismo conclui.
- Além dos dois critérios lógicos acima, não esqueça os cri­
térios literários: são aqueles que vimos.

Em fa v o r deste ou daquele tipo de silogismo


□ Primeiro critério
- Em particular, se a conclusão for negativa, você na maioria
das vezes terá diante de si um silogismo de segunda figura.
- Se a conclusão for modestamente particular (o que é ra­
ro), o silogismo de terceira figura é mais freqüente.
- Em caso de universalidade afirmativa, o silogismo só po­
de ser de primeira figura.

□ Segundo critério
Baseia-se na universalidade do TM comparada à do sujeito
e do predicado da problemática:
-Universalidade intermediária: Ia figura.
- Mais universal que os dois: 23 figura.
-Menos universal que os dois: 3â figura.
Convém precisar que, a exemplo da pesquisa da problemá­
tica, isso sempre requer muito treinamento: mas logo se torna
uma alegria. É preciso então lembrar que o objetivo não é esta­
belecer estruturas lógicas harmoniosas, mas buscar o verdadeiro:
a razão está para a inteligência assim como o trabalho para o re­
pouso feliz e a árvore para o fruto.

□ Critérios literários
Dissemos acima que os autores nem sempre manifestam
seus raciocínios pelas conjunções de coordenação, e até mesmo
as utilizam sem conhecimento de causa. De vez em quando se
tem a felicidade de topar com um autor que compreendeu a uti-

117
litlade delas e que não regateia o rigor silogístico. O livro de
Henri Hude, Prolegômenos (excelente não apenas pelo rigor de
sua exposição, mas também pela densa originalidade de seu
conteúdo), oferece numerosos exemplos de silogismos (disjunti­
vos) cuidadosamente balizados. Eis aqui um, bastante divertido:
“O que é um ateu, por exemplo? Nenhum cético é ateu. Já
que ele diz nada saber de Deus, ele não sabe se há um Absoluto,
nem se não há. Logo, nenhum ateu é cético. Ora, tudo o que não
é cético é metafísico. Logo, um ateu só pode ser um metafísico.”36*

A INDUÇÃO

A indução, vale recordar, é um raciocínio que parte de ca­


sos singulares, individuais, e eleva-se a partir daí ao universal.

Por quê?
Trata-se de um raciocínio mais freqüente do que se imagi­
na e absolutamente indispensável.
Em primeiro lugar, encontramo-lo constantemente em ciên­
cia experimental. A indução tem no entanto um lugar diferente
nas ciências da estrutura e da matéria (nas quais “o lápis e o pa­
pel”, as construções teóricas muitas vezes engenhosas têm tanta
importância quanto a observação e a experimentação assíduas)
e nas ciências da natureza e da vida (nas quais a parcela de ob­
servação prevalece em muito sobre a da conjetura). Mas a indu­
ção tem também uma utilidade cotidiana e alimenta muitas de
nossas demonstrações: "As mulheres”, observa uma mulher,
“querem ao mesmo tempo surpreender-se, rir, admirar, ser lou­
camente apaixonadas e ser tranqüilas, sentir-se protegidas e
compreendidas, acariciadas e respeitadas, cortejadas e ‘reconhe­
cidas integralmente’. Elas querem tudo, isto é, todos os homens
num só. Elas ainda sonham com o príncipe encantado (...), mas
têm necessidade de um homem mais maduro e tranqüilizador;
desejam um homem sensível, romântico, terno, mas nas dificul­
dades cotidianas percebem que um Tarzã seria melhor; (...) que-

36. Prolêgomènes, col. “Bibliothèque europ éen n e”, Paris, Éditions Univer-
sitaires, 1991, p. 31.
rem fazer um filho sozinhas, e espantam-se de que os homens
fujam delas.”37 A tese está em itálico no artigo e constitui o título
(o artigo não dissimula, portanto, sua intenção); e a demonstra­
ção se faz passando em revista os diferentes desejos da mulher,
portanto, a partir de diferentes casos singulares, por indução.
Em segundo lugar, não se pode fundamentar um pensa­
mento apenas na dedução. Chega um momento em que é preci­
so parar. Não se pode demonstrar tudo por silogismo. Senão, a
serpente corre o risco de morder a cauda. Por exemplo, você
mostra que o homem é livre por ser dotado de inteligência e
que a inteligência fundamenta o exercício da liberdade. Mas co­
mo provar que o homem é dotado de inteligência? Por um outro
silogismo? Parece difícil. Será então um postulado? Se se entende
por isso uma proposição arbitrária, a resposta é não, trata-se de
uma verdade. Será então uma evidência (e portanto o que cha­
maremos um axioma)? Num certo sentido, sim. De fato, sabe-se
que o homem é dotado de inteligência ou de razão porque isso
foi observado, constatado em múltiplos casos singulares; ora, eis
aí justamente a indução. Portanto, em última instância, o silogis­
mo se baseia em induções. Conseqüentemente, nosso conheci­
mento repousa sobre induções ligadas a nossas múltiplas expe­
riências, procedendo a partir daí a deduções ou silogismos.
Reencontramos nesse ponto o que dissemos sobre a humil­
de origem sensível de todo saber humano. Muitos filósofos ten­
taram, em vão, desprezá-la ou libertar-se dela.

O q u e é a in d u çã o ?

N atureza
Vimos que o silogismo (ou dedução) é um movimento da
razão que vai do universal ao universal; simetricamente, a indu­
ção permite à inteligência elevar-se dos fatos singulares ao uni­
versal.
É o que a etimologia quer dizer: silogismo vem de um ter­
mo grego que significa “juntar os feixes de feno”; enquanto in­
dução significa, sempre em grego, “reconduzir para, fazer a ron-

37. Jacqueline KELEN, “Ce que fem m e veut: tons les hom m es en un seul”,
in Figaro Magazine de 28 de setem bro de 1991, p. 130.

119
da, a colheita”; ora, colhem-se realidades singulares. Silogismo e
indução têm movimentos complementares, mais do que contrá­
rios. Para explicar o movimento intelectual da indução, Aristóte­
les utilizou uma imagem que ficou célebre. Deixemos Tomás de
Aquino explicá-la: Aristóteles “exemplifica com os combates sus­
citados pela retirada de um exército vencido, com efeito, se um
dos combatentes em fuga resolve se deter, isto é, permanecer
no lugar em vez de fugir, eis que um outro, detendo-se, se junta
a ele, e logo um terceiro, até que um número suficiente deles te­
nha se reunido para reencetar o combate. Assim, a partir da per­
cepção sensível e da lembrança que se tem de um caso particu­
lar, e depois de um outro, acaba-se por atingir (...) o que é prin­
cípio de arte e de ciência”, isto é, o universal38.
Qual é a estrutura do raciocínio indutivo? A indução toma
emprestada sua figura do silogismo de terceira figura, o que na­
da tem de espantoso, já que o TM é aqui uma enumeração de
singulares; ora, a conclusão é universal; como o sujeito não po­
de ser mais universal que o predicado, o termo médio será sujei­
to duas vezes nas premissas.
() raciocínio será portanto o seguinte: C (que é a enumera­
ção de singulares) é A; ora, C é B; logo, B é A.
Vejamos isso a partir de uma ilustração. Trata-se de de­
monstrar que os cachorros (B) são animais fiéis (A); para isso,
todo o mundo procederá da mesma maneira: “Veja, considere
Médor, Azor e Milou (C): eles são realmente fiéis (A); ora, eles
são cachorros; logo, os cachorros (B) são fiéis (A).”
Vê-se portanto que a força da indução repousa sobre a
enumeração de singulares. Mas, para retomar o exemplo acima,
haverá sempre alguém para lhe dizer que o cachorro do seu vi­
zinho partiu há um mês e não voltou. Voltaremos a isso mais
adiante.

Exemplo
Ele será tomado do antropólogo francês estruturalista Lévi-
Strauss. ü texto que vamos ler está na conclusão do último dos*1

38. Comentário sobre os Segundos Analíticos, Liv. II, cap. XIX, 100 a 11-13;
1. 20, n. 11, traduzido para o francês por H. D. GARD1-IL. Initiation à la pbiloso-
phiedeS t. Tbomas dAquin, t. I, Introduction. Logique, Paris, Cerf, 1952, p. 230.

120
quatro tomos de sua volumosa obra dedicada aos mitos (ele es­
tuda mais de 800). Ora, essas passagens resumem as conclusões
mais gerais sobre a natureza do conhecimento humano que ele
tira de todas as suas pacientes análises sobre os mitos no pensa­
mento selvagem39.

• Leitura do texto
“A ambição estruturalista de lançar pontes entre o sensível
e o inteligível, sua repugnância por toda explicação que sacrifi­
que um aspecto em benefício de outro aspecto, encontram”
confirmação “nos que souberam estabelecer uma correspondên­
cia termo a termo entre relações inteligíveis e abstratas, de um
lado, e formas vivas, de outro (...), sendo que a primeira delas é
o rosto humano, no qual as pessoas se comprazem em ver uma
expressão visível da personalidade e de suas características sen­
timentais e morais. E que habitante da floresta poderia dizer co­
mo faz exatamente para identificar de longe uma árvore? No en­
tanto, basta um programa com cerca de mil instruções para que
um computador desenhe árvores nas quais, fazendo variar os
parâmetros, um botânico reconhece sem dificuldade o abeto, o
salgueiro ou o carvalho... Diferenças que se poderiam acreditar
de ordem puramente qualitativa reduzem-se, portanto, ao jogo
de algumas propriedades matemáticas simples.
A teoria estereoquímica reduz a gama - que se poderia
acreditar inesgotável e indescritível - dos odores a sete valores
fundamentais (éter, cânfora, almíscar, flor, menta, acre, pútrido)
que, diversamente combinados como as unidades constitutivas
dos fonemas, engendrariam essas sensações tão inefáveis quanto
imediatamente reconhecíveis que são para nós o odor da rosa,
do cravo, do alho-porro ou do peixe. A mesma teoria reduz es­
ses valores sensíveis a outras tantas formas geométricas simples
ou complexas que caracterizariam as moléculas odoríferas, cada
uma das quais viria ou não inserir-se em um receptor sensorial
com a forma apropriada à sua, e que portanto o especializaria
para reagir exclusivamente a este ou àquele tipo de molécula.”"1*40

39■ Conforme o título de um outro livro: La pensée sauvage , Paris, Plon,


1962.
40. Claude LÉVI-STRAUSS, Uhomme nu, “M ythologiques” IV, Paris, Plon,
1971, pp. 618-9.

121
• Análise do texto
A tese é a seguinte: o estruturalismo apaga a distinção que
existe entre o sensível e o inteligível. E o autor irá demonstrá-lo
Cem particular) por uma indução a partir de três fatos concretos:
O reconhecimento de um rosto humano, de uma árvore,
de um odor se faz por análise estrutural (reduzindo a diversida­
de qualitativa a uma combinação quantitativa complexa de no­
ções elementares).
Ora, o reconhecimento de um rosto humano, de uma árvo­
re, de um odor estabelece uma correspondência termo a termo
entre o sensível concreto (as formas vivas) e o inteligível abstrato.
- Logo...

A indução coloca um a questão m uito grave:


a de seu fu n d a m e n to "
O corolário imediato é o próprio grau de certeza da indu­
ção. O problema é vasto e um pouco marginal para nós, mas
vale a pena falar um pouco a esse respeito.

□ A opinião mais freqüentemente encontrada é a seguinte:


É a dos filósofos chamados empiristas. A indução, dizem
eles, é um raciocínio que só conclui de maneira conjetural, pro­
vável. Com efeito, seu fundamento são casos singulares que ela
observa: a experimentação tem por objeto fenômenos individuais,
concretos; ora, os indivíduos de uma espécie são, potencialmen­
te pelo menos, infinitos. Por exemplo, diz o especialista em filo­
sofia das ciências, Popper, observamos que este e aquele cisne
são brancos, mas nada nos garante que todos os cisnes sejam
brancos; mesmo que o conhecimento experimental abrangesse
todos os cisnes atualmente existentes, não poderia, sem presun­
ção, pretender englobar todos os cisnes passados e futuros de
todos os lugares do mundo. Carnap, um dos filósofos do Círculo
de Viena, observava: “Mesmo as leis mais bem fundamentadas41

41. Sobre essa difícil questão, a bibliografia é imensa, com o se presume.


Para uma exposição detalhada de acordo com a posição que vamos defender,
remetemos a Émile SIMARD, La nature d la portée de la méthode scientifique.
Exposé et textes choisis de philosophie des Sciences, Québec, Les presses de
l’université Lavai, 1958, cap. XI, pp. 2 6 1 8 8 ‫־‬.

122
da física repousam necessariamente apenas sobre um número li­
mitado de observações. Quem sabe se não se produzirá, ama­
nhã, um fenômeno que venha contradizer sua hipótese? Jamais é
possível chegar à verificação completa de uma lei.”' Popper é
ainda mais restritivo; ele se opõe inclusive a Carnap1'.
Portanto, parece que só nos elevamos ao universal com
certo temor e tremor, e sem garantia de certeza absoluta, já que
esta é inacessível. E essa probabilidade, em compensação, afeta­
rá todos os silogismos, uma vez que suas conclusões não po­
dem pretender ter mais certeza do que suas premissas: a foz não
se situa em local mais elevado que a nascente.

□ Crítica dessa opinião


Essa opinião nos coloca diante de uma dificuldade conside­
rável que atravessa, de certa maneira, toda a história da filosofia.
Temos a consciência confusa de que existem verdades uni­
versais, intangíveis, quando tocamos o domínio dos valores hu­
manos. Que estuprar uma pessoa seja um mal abominável não é
apenas provável; é certo. E não temos necessidade de conhecer
todos os casos de estupro para termos certeza disso. Ora, essa
verdade ética baseia-se numa noção antropológica universal: a
eminente dignidade da pessoa, que é sua liberdade.

□ Solução da dificuldade
É preciso, de fato, distinguir dois casos, dois fundamentos,
o primeiro sendo de longe o mais freqüente.
- O primeiro fundamento da indução é a enumeração dos
singulares.
Nesse caso, quanto mais completa for a enumeração dos
singulares, tanto mais certa será a indução. Ela pode chegar á
certeza? Não. Para retomar o exemplo de Popper, quando en­
contrei mil cisnes brancos, nada me garante que o milésimo pri-42

42. Rudolf CARNAP, Les fondementsphilosophiques de la physique , col. U,


Paris, Armand Colin, 1973, pp. 28-9·
43· Cf., por exem plo, Karl POPPER, “La demarcation entre la science et la
m étaphysique”, in obra coletiva dirigida por Pierre Jacob, De Vienne ä Cambrid­
ge. L’heritage du positivisme de 1950 à nos jours, “Bibliothèque des sciences hu-
maines”, Paris, Gallimard, 1980, pp. 121-76.

123


meiro nào será negro. Minha indução, conclui ele, jamais será
certa. É verdade, mas mesmo assim isso não implica uma cons­
tatação negativa generalizada. Há, com efeito, casos limitados
em que se pode chegar à certeza: quando a enumeração é com­
pleta. Por exemplo, posso dizer que os sentidos sempre têm ne­
cessidade de um órgão corporal; para mostrá-lo, basta realizar a
enumeração completa dos cinco sentidos, passá-los em revista e
constatar que cada um deles utiliza um órgão físico.
Eis aqui o que observa Edward Harrison, professor de físi­
ca e de astronomia, sobre a causa da escuridão cio céu: “A ma­
neira como interpretamos, segundo a fórmula de Thomas Dick,
‘a obscuridade que se acha por trás das estrelas’ depende da na­
tureza do Universo no qual acreditamos viver. No sistema aristo-
télico, os espaços escuros revelavam a fronteira exterior das es­
feras celestes; no sistema estóico, revelavam o infinito do vazio
extracósmico; no sistema estrelado e estático de Newton, revela­
vam o nada que preexiste ao nascimento das estrelas.”1'
A tese de Harrison é que a interpretação dada da escuridão
do céu exprime nossa cosmologia, nossa visão do universo. A
conclusão é certa. Por quê? Oferece ele a razão, digamos, filosó­
fica disso? De modo nenhum. O autor contenta-se em mostrar
sua tese indutivamente a partir dos modelos cosmológicos que
foram propostos; ora, ele estuda todos os modelos de explica­
ção do negro da noite que foram propostos (são em número de
16: resumidos num quadro à p. 236 de seu livro. É portanto a
indução completa que engendra a certeza, não a causa.
Inversamente, no exemplo seguinte, a conclusão ultrapassa
claramente as premissas, a indução portanto só conclui de ma­
neira provável: “Contrariamente a uma opinião comum, o saber
não progride fundamentalmente no interior de uma disciplina.
As grandes idéias nascem fora ou nas fronteiras da disciplina.
Assim, Darwin era um amador esclarecido que não havia feito
estudos universitários e cujas viagens estiveram na origem de
sua teoria da evolução. Wegener, que de maneira nenhuma era
um geólogo, examinava o que há de mais global - o mapa do
mundo - e chegou assim á teoria da deriva dos co n tin en tes.A 45

44. Le n o ird e la nuit. Une énigm e du cosmos, Paris, Seuil, 1990, p. 235.
45. Edgar MOR1N, entrevista em Le Monde, 26 de novembro de 1991, p. 2.

124
tese defendida pelo sociólogo é que “as grandes idéias nascem
fora ou nas fronteiras da disciplina”. E a indução baseia-se em
dois pesquisadores famosos, um em biologia e outro em geolo­
gia; mas a popularidade deles não deveria fazer esquecer o ca­
ráter extremamente reduzido do fundamento: não apenas exis­
tem muitos outros grandes biólogos e geólogos, como também
muitas outras ciências não estão representadas. Sem dúvida, a
vasta cultura de Morin poderia desfiar uma ladainha de exem­
plos que uma simples entrevista não pode dar. Em todo caso,
percebe-se o quanto a ausência de uma compreensão da causa
deixa a inteligência insatisfeita: “por quê?”, ela tem vontade de
perguntar.
Avancemos. Contavam-me o caso de uma criança que vê
chegar uma travessa à mesa; a travessa se quebra; a criança fica
confusa e pergunta bruscamente à sua mãe: “E se tudo se que­
brasse?” Será que se trata de uma indução sobre um fundamento
muito restrito, pois se limita a um único caso singular? Essa ex­
plicação parece um pouco curta, tanto mais que a conclusão é
muito certa: tudo pode quebrar-se, neste mundo. Portanto, é
preciso recorrer a um outro fundamento que explique que se
pode passar do singular ao universal sem perder a certeza.
- O segundo fundamento da indução é a percepção de um
vínculo essencial.
No caso dos cisnes, a indução tem por objeto uma matéria
que é contingente e da qual é muito difícil extrair algum vínculo
inteligível. No exemplo da criança, a inteligência parte também
de dados sensíveis para elevar-se ao universal, mas para ler aí,
como que intuitivamente, a essência inscrita no núcleo do real
percebido pelos sentidos. A razão disso é que o objeto conside­
rado apresenta alguma necessidade, e portanto alguma inteligi­
bilidade. Por exemplo, se digo que o próprio da liberdade é es­
colher, parto de alguns exemplos de atos livres, mas faço bem
mais do que generalizar a todos os casos possíveis: descubro de
imediato o que é a liberdade como capacidade de autodetermi­
nação. No primeiro caso, a conclusão seria somente provável;
aqui, ela é certa, pois está fundada numa intuição da própria es­
sência da liberdade e da escolha. O mesmo ocorre se digo que a
parte é menor que o todo. E posso atribuir o sujeito “parte” ou
“liberdade” ao predicado “é menor que o todo” ou “é capacida-

125
de de escolha”, porque essas noções apresentam alguma neces­
sidade. Como explica Simard, “o espírito, percebendo que se
trata de um predicado essencial, vê ao mesmo tempo que ele
convém a todos os singulares, quer estes sejam ou não enume­
rados. De fato, a percepção de um vínculo essencial entre o pre­
dicado e o sujeito equivale à enumeração total dos singulares e,
em conseqüência, dispensa prosseguir toda a enumeração sub-
seqüente”. (Op. cit., p. 113)
Inversamente, observo que o calor dilata uma barra de fer­
ro; faço a mesma experiência com uma barra de cobre, depois
de chumbo, e concluo que o calor dilata os metais. Esse raciocí­
nio é uma verdadeira indução, pois não tenho nenhuma intui­
ção da razão pela qual o metal é dilatado pelo calor; aliás, mi­
nha conclusão é apenas provável. Nada me diz que não se des­
cobrirá um metal que o calor fará contrair. Se eu descobrisse o
mecanismo particular da dilatação, seria completamente diferen­
te, pois estaria de posse de uma causa, e haveria silogismo.
Toda a dificuldade é saber quando estamos às voltas com o
primeiro ou com o segundo tipo de fundamento. Aristóteles já
dizia: ‘,Quando temos necessidade de tomar o universal, servi-
mo-nos da expressão e em todos os casos dessa espécie. Mas o
difícil é determinar quais são, entre as coisas propostas, as que
são dessa espécie e as que não o sào.’M(’

Conseqüência: valor da indução


A indução que se baseia apenas na enumeração dos singu­
lares é eloqiiente, porque cita exemplos concretos. Por isso
aprecia-se sua utilização. Ela permite também sensibilizar para
uma relação; mais do que isso, ela a torna provável.
Mas ela não fornece a causa dessa relação: ela manifesta a
tese, mas não estanca a sede de luz que habita a inteligência.
Assim, uma enquete americana (enquete aliás realizada sobre os
quadros da Virgem com a criança), mostrou que uma grande
maioria (80%) de mulheres (inclusive as canhotas) carregam seu
bebê do lado esquerdo. Mas o espírito só se satisfaz quando lhe
mostram que esse hábito materno deve-se muito provavelmente46*

46. Organon. V. Topiques, Liv. VIII, cap. II, 157 a 23-26, trad. Ir. Tricot,
“Bibliotheque des textes philosophiques", Paris, Vrin, nova ed.. 1974, p. 323.

126
ao fato de que a criança fica mais tranqüila quando ouve a bati­
da do coração de sua mãe que já ritmava sua vida intra-uterina'7.
Concluamos com Émile Simard ( idem, p. 282): “A diferença
entre a indução certa e a indução dialética [isto é, provável] de­
ve ser mantida cuidadosamente. Ela fundamenta a distinção en­
tre a parte certa e a parte apenas dialética do conhecimento da
natureza. Com efeito, a primeira extrai seus princípios da expe­
riência comum por uma indução certa. Tais proposições não de­
pendem da enumeração como tal e não exigem um recurso
constante à confirmação experimental. Em contrapartida, as leis
e os princípios da física são garantidos unicamente pela enume­
ração dos singulares; eles deverão modificar-se e precisar-se
constantemente para permanecer conformes aos fatos.” Donde
esta conseqüência que converge para o que dizíamos sobre os
perigos do monismo metodológico: “É preciso cuidar para não
cair numa concepção totalitária do saber: ou pretender que a in­
dução dialética representa a única fonte de conhecimento; ou só
dar atenção à indução certa cujas conclusões, embora definiti­
vas, permanecem num certo sentido imperfeitas, porque demasia­
do gerais e demasiado comuns.” No primeiro caso, seria cair no
cientificismo (redução do saber às ciências), no segundo, no “fi-
losofismo” (redução do saber à filosofia). O saber humano é in­
tegral, é articulação judiciosa das ciências e da filosofia.

Como?
Os critérios são sobretudo lógicos e deduzem-se do que
acabamos de dizer. A presença de uma indução se reconhece
por diferentes sinais evidentes:
- O texto se move no singular e pouco no universal.
- O texto multiplica os casos, os exemplos concretos (em
oposição ao raciocínio por similitude que iremos ver den­
tro de um instante).
-A conclusão (portanto a tese) tem uma universalidade,
uma extensão que não ultrapassa em muito o campo
abrangido pela amostragem proposta. Se for o caso, o au­
tor, em geral, assinala esse fato; se não for o caso, você
deverá ficar alerta. Por exemplo, Freud concluiu pela47

47. Cf. Desm ond MORRIS, Le singe nu, Paris, Grasset, 1976, pp. 1 3 0 3 ‫·־‬

127
universalidade dos estágios pré-genitais (oral, anal) a partir
de uma base extremamente restrita e, além do mais, pato­
logicamente marcada. É bem o contrário do que se observa
ao ler a conclusão desse grande observador da natureza
que foi Jean-Henry Fabre, ao final de um estudo sobre a ta­
rântula de ventre negro: “Assim a mordida da tarântula de
ventre negro é temível para outros animais que não os in­
setos; ela é mortal para o pardal, mortal para a toupeira.
Até que ponto se deve generalizar? Ignoro-o, minhas pes­
quisas não tendo se estendido mais além. Parece-me, toda­
via, com base no pouco que vi, que a mordida desse arac­
nídeo não seria, no homem, um acidente negligenciável. É
tudo o que tenho a dizer à medicina.’M8

O RACIOCÍNIO POR SIMILITUDE

Por quê?
Esse raciocínio é muito fraco, como veremos. No entanto,
sempre teve grande popularidade e permanece indispensável,
tanto na vida diária quanto em diferentes disciplinas.

Na vida concreta
O homem não é uma inteligência pura, desencarnada; sua
imaginação precisa ser alimentada. Com mais razão ainda a crian­
ça. Eis por que silogismos e induções não bastam. A similitude
vem então em auxílio do espírito e o dispõe a acolher verdades
mais abstratas. Perguntam a Roland Moreno, inventor multimilio­
nário do cartão magnético, se ele é Deus. Ele responde por uma
analogia humorística muito eloqüente: “Serei prudente. Digamos
que Deus criou o recheio e eu inventei a torta!”'9*
É por isso que Cristo falava por parábolas. É impressionan­
te, aliás, como Cristo busca e se esforça por encontrar similitu­
des: “A que irei comparar o Reino dos Céus?” Se tivéssemos essa
48. Souvenirs eritomologiques. Études sur 1'instinct el les moeurs des insec­
tes, “Bouquins”, Paris, Robert LafFont, 1989, p. 430.
49. Figaro Magazine de 28 de setembro de 1991, p. 146.
* Cartão magnético = carte à puce (puce é “pulga” e também “plaqueta de
silício”. A última frase seria, literalmente, “Deus criou a pulga [ou o silíciol e eu
inventei a torta.” (N. T.)

128
mesma preocupação, para com nossos interlocutores, cie encon­
trar exemplos, meios pedagógicos adaptados!
Certos povos ditos primitivos falam espontaneamente por
similitudes, por analogias, e só se explicam quando lhes colo­
cam uma questão. Convém não esconder que isso apresenta a
fraqueza inerente ao gênero, a saber, a incapacidade de fornecer
a causa; mas tem o mérito da poesia e de nos falar às vezes
mais intimamente do que um longo discurso.

Em ética
Santo Tomás já observava que em matéria de moral é bom
proceder por meio de exemplos e de similitudes. Assim Paulo VI
dizia que escutamos mais naturalmente um profeta que é tam­
bém uma testemunha5051. Um exemplo (mas um verdadeiro exem­
plo, isto é, um com o qual possamos nos identificar) permite
com freqüência economizar longos discursos.
Tal é também a função dos contos de fada na criança. Bru­
no Bettelheim, em Psicanálise dos contos de fada-', mostrou que
eles permitem uma identificação e com isso uma eliminação de
tensões e conflitos psicológicos sem desordem moral, por exem­
plo, ao desrecalcar uma agressividade contra os pais.
A ética tem uma extrema necessidade desse tipo de raciocí­
nio, se não quiser permanecer no nível dos princípios univer­
sais. Com efeito, o discurso ético deve juntar-se à nossa ação
que é singular, contingente, e o mero raciocínio geral pode ser
perverso se for aplicado sem nuances às realidades concretas.
Vamos dar dois exemplos disso:
-Primeiro exemplo: o homem e a mulher são feitos para
se casar; ora, sou um homem (sou uma mulher); logo,
devo me casar.
-Segundo exemplo (em política): a pena de morte é um
direito natural que é da competência do Estado; ora, a
França é um Estado; logo, a legislação francesa deve au­
torizar a pena de morte.

50. “O hom em contemporâneo prefere escutar mais as testemunhas do


que os mestres, ou, se escuta os mestres, é porque são testem unhas.” ( “Allocu-
tion aux m embres du Conseil des Lates”, 2 de outubro de 1974, AAS 66/1974,
p. 568, citado na Encíclica Evangelii Nuntiandi, 8 de dezembro de 1975, n- 41.)
51. Psychanalyse des contes de fée, Col. “Pluriel”, Paris, Robert Laffont,
1979.

129
Em ciência
O raciocínio por analogia é freqüentemente utilizado pelos
pesquisadores, por ser fecundo. Aristóteles já usava o método
analógico: “Muitas características comuns são apresentadas por
um grande número de animais, ora absolutamente como os pés,
as asas, as escamas e outras características desse tipo, ora segun­
do a analogia. Entendo por analogia o fato de alguns possuírem
um pulmão, outros não, mas estes, no lugar do pulmão que os
primeiros possuem, apresentarem um outro órgão; uns têm o
sangue, outros algo de análogo, isto é, que desempenha o papel
desempenhado pelo sangue nos animais sangüíneos.”52 Vamos
dar dois exemplos mais atuais.
Como foi descoberta a aspirina, que continua sendo o me­
dicamento mais vendido no mundo? O pastor Edmund Stone,
do condado de Oxford, há mais de 200 anos, experimentou da
casca de salgueiro (Salix alba) e “ficou surpreso com seu ex­
traordinário amargor. A semelhança com o gosto da casca de
uma árvore peruana, a quinquina, que era então um remédio
raro e caro contra a febre, levou-o a estudar durante seis anos
os efeitos clínicos dos extratos de casca de salgueiro. Quando
escreveu enfim sua célebre carta [à Royal Society, em 25 de
abril de 1763], revelou que a casca de salgueiro era eficaz con­
tra as doenças febris”53.
A noção de onda luminosa surgiu da comparação entre as
propriedades da luz e do som, em particular através das franjas
de interferência. E Huygens soube “aproveitar isso maravilhosa­
mente; mais tarde, a mesma analogia levou Malebranche, e em
seguida Young, a representar uma luz monocromática por uma
fórmula semelhante à que representa um som simples”54.
Em suma, como observava Einstein: “Muitas vezes se efe­
tuou, em física, um progresso essencial graças á analogia rigoro­
sa estabelecida entre fenômenos que, aparentemente, não têm
nenhuma relação entre si.”55

52. ARISTÓTELES, Lesparlies cies animawc, I, cap. V, 645 b 4-10.


53. Gérard WEISSMANN, “L’aspirine”, Pour la science, na 161, março de
1991, pp. 34-41, aqui p. 34.
54. Piene DUHEM, La tbéoriephysique, Paris, Rivière, 1914, pp. 140-5.
55■ Albert EINSTEIN e Leopold INFELD, Lévolution des idées eri physique,
trad, fr., Paris, Flammarion, 1948, pp. 264-5.

130
Em filosofia
É particularmente o caso de Platão: que se pense na famo­
síssima alegoria da Caverna (A República, livro VII). Paul Ricoeur
reatou hoje com essa tradição quando, ao interrogar-se sobre a
existência do mal e sua origem, considera que a abordagem
mais legítima dessa questão é a via simbólica, a análise dos mi­
tos de origem’6.
A tese do autor é que o homem não pode passar sem o
pensamento mítico. Em outras palavras, a filosofia, a metafísica,
tem necessidade de mitos. A razão última parece ligada ao
próprio ser do homem que não é puro espírito, mas ser concre­
to, carne e espírito, e sobretudo encarnado no tempo e na histó­
ria. Ora, o mito “nos remete à imaginação, às paixões, à afetivi­
dade, enquanto o intelecto não poderia admitir nenhuma influên­
cia dessa ordem”’7, (p. 354) Mas a filosofia é pura obra do inte­
lecto. O mito tem também uma relação privilegiada com o tem­
po. Segundo a bela expressão de Kierkegaarcl que Gusdorf cita
in fin e : “A mitologia consiste em manter a idéia de eternidade
na categoria do tempo e do espaço.”’‫“ ״‬A consciência mítica” é
“expressão do homem integral, ela legitima, ao sublimá-las, to­
das as aspirações humanas...”565789
E, de fato, a similitude, o símbolo, ganha em riqueza evo-
cadora aquilo que perde em rigor e precisão. Mas não queremos
abordar aqui em detalhe essa delicada questão das relações en­
tre vida imaginária, vida simbólica e vida intelectual.
Esse tipo de raciocínio é muito utilizado nas filosofias ou
nas religiões orientais.
O pequeno Svetazetu quer ter o conhecimento. Ele pede-o
a seu pai, o qual lhe responde por parábolas:
Põe este sal na água e vem me ver amanhã de manhã.
O filho fez o que lhe fora dito. Na manhã seguinte, o pai
disse:
- Traz-me o sal que puseste na água.

56. La symboliqUe du trial, Paris, Aubier Montaigne, I960.


57. George GUSDORl·', Mytbe cl metaphysique. Introduction a la philoso­
phic, “Champs”, Paris, Flammarion, 1984.
58. Citado por Jean WAHL, Eludes kierkegaardiennes, Paris, Aubier, 1938,
p. 444.
59. GUSDORF, op. cit., p. 358.

131
O filho procurou-o mas nào conseguiu encontrá-lo; pois o
sal, evidentemente, havia se dissolvido. O pai disse:
-Experimenta a água da superfície do recipiente. Como é?
-Salgada. [Ele faz a mesma coisa em relação à água do
meio e do fundo.]
O pai disse:
-Joga fora a água, e volta então para junto de mim.
O filho fez isso; mas o sal não se perdeu, pois o sal existe
para sempre. Então o pai disse:
- Assim também, aqui, nesse corpo que é teu, meu filho, não
percebes o Verdadeiro; mas em realidade ele está aí. Na­
quilo que é a essência sutil, tudo o que existe tem seu si
mesmo. Eis aí o Verdadeiro, eis aí o Si mesmo, e tu, Sveta-
zetu, tu és Isso.”60*

O que é?

Exposição
Esse raciocínio não é uma ilustração ou um exemplo; por
isso ele seria melhor chamado raciocínio por analogia do que
raciocínio pelo exemplo. Ele se baseia na similitude de duas rea­
lidades ou de dois conceitos para concluir.
Sua formulação sistemática é mais complexa do que as fi­
guras que já vimos, já que o raciocínio pelo exemplo compõe-se
de dois raciocínios: um prossilogismo e um silogismo.
Prossilogismo (é na verdade uma indução enfraquecida,
nào um silogismo de terceira figura): D é A; ora, D é B; logo, to­
do B é A.
Silogismo (que se faz em primeira figura): todo B é A; ora,
C é B; logo, C é A.
A similitude se estabelece entre C e D. Percebe-se também
que a conclusão é na maioria das vezes singular e não universal.
Se você diz a uma criança: “Coma espinafre, ficará forte co­
mo Popeye”, seu raciocínio é implicitamente o seguinte: Popeye
(D) come espinafre (A); ora, Popeye (D) é forte (B); logo, todos
os que querem ser fortes (B) comem espinafre (A). Ora, você

60. Chanclogya Upanishacl, citado por Aldous HUXLEY, La philosopbie


étemelle. Philosophia perennis, “Sagesses” 11, Paris, Seuil, 1977, p. 16.

132
(C) quer ser forte (B); logo, (C) coma espinafre (A). Você perce­
be que a força (e a fraqueza) da argumentação vem sobretudo
da identificação que seu filho (C) realiza com Popeye (1))...
O raciocínio aparente é às vezes ainda mais curto e deixa à
pessoa a tarefa de buscar a similitude: “Olivier levanta-se às sete
da manhã”, diz uma mãe a seu filho, “ele só dorme até mais tar­
de nas férias.” Esse argumento supõe que a criança operará es­
pontaneamente a similitude entre ela e Olivier, já que ela vê
neste um ídolo.

Fundam ento do raciocínio


Vê-se que tudo repousa sobre a similitude. É o que torna
limitado esse raciocínio, pois comparação não é razão: bastará
mostrar a diferença em vez da semelhança para enfraquecer ou
refutar o raciocínio.
Todo o trabalho do orador é escolher o singular (D) que apre­
sentara mais semelhança com o sujeito de sua problemática (C).

Comparemos esse raciocínio com a indução


Existem quatro diferenças entre o raciocínio por analogia e
a indução:
- o fundamento do raciocínio por analogia é um único sin­
gular, mas muito bem escolhido, ao passo que a indução
parte de uma série de singulares;
- a conclusão do raciocínio por analogia é na maioria das
vezes singular, e não universal como na indução;
- o termo singular reaparece na conclusão, enquanto os
termos singulares servem de TM na indução.

Valor desse raciocínio


Vê-se portanto o quanto tal argumento dirige-se mais à
imaginação e à afetividade do que à razão: da mesma forma que
o entimema, que iremos estudar, ele mais convence do que pro­
va. Na verdade, sua função ideal é preparar uma verdadeira ar­
gumentação demonstrativa, ou ilustrá-la e confirmá-la.
Esse raciocínio também favorece todos os sofismas. Al­
guém me dizia recentemente que sua filha, que há muito não se
confessava, foi à missa. A mãe fez-lhe essa observação. Resposta
da filha: “Não concebo ser convidada a um banquete, a uma fes-

133
ta, e não comer lá.” E a mãe se extasiou com a sabedoria de sua
filha. De fato, a similitude é bem concebida, mas a aplicação é
enganosa. A mãe poderia replicar: “Sim, mas quando você vai a
uma recepção, antes se prepara, e não come sem lavar as
mãos!” Não nos deixemos enganar pelas lantejoulas e os guizos
da analogia. Nem tudo o que brilha é ouro.
O esoterismo, em particular, adora esse resumo e tende ex­
cessivamente a reduzir o gênero demonstrativo à mera analogia.
O pensamento analógico, e intuitivo de maneira geral, é muito
superior ao árduo e paciente pensamento discursivo, a super-
consciência de que fala a sofrologia, muito mais desejável que
a consciência simplesmente humana.

• Leitura do texto
Eis aqui um exemplo tirado de um texto escrito pelo fun­
dador de uma das seitas mais temíveis atualmente, a FBU (Fra­
ternidade Branca Universal).
Tudo o que o homem faz, diz ele, é programado, registra­
do, fotografado. Mas onde? Resposta: “Trata-se de uma bobina
minúscula, um átomo. Vocês dirão que é impossível que tudo se
registre num átomo. Não é. Por quê? Vejam, no início, quando
fabricavam válvulas de rádio, elas eram enormes; mas agora, ca­
da vez mais, descobre-se o meio de reduzir e de fazer circuitos
cada vez menores com uma pintura metálica, e a corrente circu­
la exatamente conforme as linhas que foram traçadas. Consegue-
se reduzir, diminuir tanto o peso dos aparelhos, que um dia cer­
tamente teremos televisões de bolso. Pois bem, a natureza ultra­
passou os humanos: ela diminuiu a tal ponto o tamanho de suas
bobinas que as reduziu a um átomo. Quando o homem morre,
ele apresenta esse átomo perante seus juízes e todo o filme de
sua existência começa a desenrolar-se.”61*

• Análise do texto
Estamos diante de um exemplo típico de demonstração por
analogia, extremamente frágil, baseando-se no fato de que a
conclusão é admitida (por causa da carga passional que ela im­
plica), mas requer uma aparência de justificação.

6 l. Omraam Mikhaêl AIVANHOV, 1'année nuuvelle, Fréjus, Prosveta,


1987, pp. 3 3 4 ‫־‬.

134
Como?
- Em primeiro lugar, a tese refere-se em geral a um sujeito
singular, e não a uma idéia universal, já que o ponto de
impacto do raciocínio é a similitude entre dois singulares.
- Encontram-se às vezes observações explícitas tais como
“Façamos uma comparação...”, ou mais alusivas: “assim
como...”
- O texto dedicará muito tempo a detalhar um exemplo ou
um caso que não é imediatamente aquele ao qual se re­
fere a problemática.
- Em conseqüência, todo o esforço crítico consiste em sa­
ber se o artigo se pretende científico, rigoroso: em geral,
ele não consegue ser; e, se o for, convém ter cautela, não
se deixar iludir: a multiplicação das analogias, tão comum
nas revistas de parapsicologia ou de esoterismo, não en­
gendra grande certeza: a imaginação é seduzida, mas a
inteligência anestesiada não é mais esclarecida. Assim
também, a multiplicação de soldagens incertas não torna
o avião mais apto a voar. Convém acrescentar a esses cri­
térios lógicos critérios de ordem mais psicológica. Disto
se falará mais adiante a respeito do entimema: com efei­
to, raciocínio por analogia e entimema são geralmente
utilizados no mesmo contexto, que é mais persuasivo
que demonstrativo.
Eis aqui, por exemplo, o que Rosser Reeves, antigo presi­
dente da agência Ted Bates, nos Estados Unidos, escreveu em
favor da universidade de Tel Aviv, seus 11 mil estudantes e 2.000
professores: “Se Albert Einstein vivesse hoje, para que escola en­
viaria seus filhos? Acreditamos que os enviaria à universidade de
Tel Aviv e há 2.000 razões para isso. (...) Quais são as ‘2.000 ra­
zões’? As ‘2.000 razões’ são os 2.000 professores da universidade,
exatamente um professor para oito estudantes.”6‫־‬
Ora, é evidente que esse texto não tem, a princípio, uma
finalidade informativa...62

62. Dominique XARDEL, Le marketing direct, “Que sais-je?” 2063, Paris,


PUF, 3a ecl., 1989, p. 36.

135
O ENTIMEMA

Tendo exposto o entimema segundo o plano clássico, ire­


mos aproximá-lo de uma forma de raciocínio com estrutura mui­
to parecida, a teoria, mas cuja importância atual justifica que seja
estudada à parte.

O que é?
A palavra assusta, mas abrange uma realidade muito sim­
ples de perceber.

Definição
O entimema apresenta duas características, sendo que ape­
nas a primeira é essencial. Enquanto o silogismo é um raciocínio
que procede de premissas certas e nos fornece a causa, o enti­
mema nos dá apenas um sinal ou se baseia em premissas veros­
símeis. O entimema é portanto um silogismo provável.

Essa definição fo rn ece dois fu n d a m en to s

□ O primeiro é o sinal
Aristóteles dizia que “o entimema é um silogismo que parte
de premissas verossímeis ou de sinais”63.
Por exemplo, o sinal de que o computador não é inteligen­
te é que ele é incapaz de mentir. O humorista inglês Chesterton
já havia pressentido isso bem antes da era dos computadores.
“Em minha opinião, essa máquina não consegue mentir.” “Ne­
nhuma máquina consegue mentir”, diz o padre Brown, “aliás,
nem dizer a verdade... Mas a outra máquina (o homem), a que a
fazia funcionar, cometeu um erro.”*64*
Às vezes, um sinal é insuficiente para promover a adesão
da inteligência. Recorre-se então a um conjunto de sinais que
convergem para a conclusão. É assim que raciocina Djinn, o jo-

63· Organon III. Premiers Ana lytiques, Liv. II, cap. XXVII, 70 a 10. Trad. fr.
Tricot, “Bibliothèque des textes philosopliiques”, Paris, Vrin, nova ed., 1971, p.
323; todo o capítulo trata do entimema.
64. George-K eith CHESTERTON, Father Brown, Paris, NRF Gallimard,
1954, pp. 72 e 74.

136
vem e inseparável amigo de Bernard Prince (herói da revista em
quadrinhos do mesmo nome) e de Barney: “Atraíram-nos para
cá de propósito. Impedem-nos de sair. Pagam-nos. Logo, têm
necessidade de nós. C orreto?Percebe-se que ê a soma desses
indícios convergentes que permite concluir, pois um só constitui­
ria um sinal insuficiente.

□ O segundo é a verossimilhança ou,


mais exatamente, o lugar-comum.
O lugar-comum, como as palavras o indicam, é uma opinião
aceita pela maioria das pessoas (donde o epíteto “comum”); ele
não tem necessidade de ser demonstrado e não pode, aliás, ser
facilmente questionado.
Por exemplo, “ele é avarento por ser escocês; ele está doen­
te, já que tem febre; um padre deveria ter relações sexuais, caso
contrário será recalcado”. Vemos portanto que as conclusões des­
ses raciocínios apóiam-se na verossimilhança e às vezes no erro
das premissas.

Conseqüência
Não é por acaso que apresentamos o entimema sob uma
forma aparentemente não rigorosa ou não totalmente explicita­
da. Com efeito, você pôde constatar que deveríamos ter acres­
centado uma premissa: “Mentir é sinal de inteligência. Ora, a
máquina é incapaz de mentir. Logo...”
De fato, se o entimema fornece apenas um indício ou um
sinal, é porque ele não busca primeiramente demonstrar mas
convencer. Como o raciocínio pelo exemplo, ele é do domínio
do persuasivo e não da lógica rigorosa. Eis por que o entimema
tira sua força de seu caráter alusivo, apresentando-se, na maioria
das vezes, como um “silogismo truncado”, como um raciocínio
ao qual falta uma premissa. E, já que o entimema tece todas as
nossas conversas correntes, vê-se o quanto seria ridículo falar
explicitando totalmente os silogismos.65

65. HERiMANN e GREG, Bernard Prince, 11. Im forteresse des brumes, Bru­
xelas, Éd. du Lombard, 1977, p. 6.
1

Por quê?
O entimema é muito útil por diferentes razões. Em primei­
ro lugar, ele se baseia em premissas muito manifestas, muito co­
nhecidas. É o caso do lugar-comum, mas também cios sinais. O
sinal tem a propriedade de ser mais evidente que a causa. A me­
dicina não cessa de constatá-lo: uma coisa é saber que você está
doente porque emagreceu 10 quilos em um mês sem regime,
outra é conhecer a razão disso.
Em segundo lugar, as premissas do entimema podem ser
facilmente concedidas. Elas evitam o longo desvio do silogismo.
Por isso os políticos adoram o entimema, pois sabem que a ca­
pacidade de atenção do público é muito limitada. Aqui, trata-se
de persuadir, não de convencer. Por exemplo, há duas maneiras
de criticar uma política econômica governamental: ou analisá-la
de maneira minuciosa e rigorosa (silogismo), ou, mais grosseira­
mente, mas também eficazmente, assinalar que a inflação ou o
desemprego aumentaram desde que o governo foi eleito (enti­
mema); ora, estes últimos são apenas sinais, não efeitos necessá­
rios: pode haver outras causas que não a incompetência do go­
verno.
Enfim, o entimema é às vezes necessário quando as causas
faltam: por exemplo, para explicar a atitude de uma criança fu-
jona, e agir em conformidade com isso; para convencer um in­
terlocutor inacessível ao raciocínio. Assim, a única explicação
eficaz que convenceu um chefe de aldeia fatalista, para persua­
di-lo a mandar vacinar os bebês, foi o seguinte entimema: “Veja,
os bebês vacinados da aldeia vizinha não morreram este ano e
eles puderam fazer uma colheita melhor.”

Como?

Critérios lógicos

□ Quais são esses critérios?


Convém interrogar-se atentamente sobre o “porquê” da te­
se: trata-se de um sinal ou de uma causa? O que caracteriza o si­
nal é sua superficialidade sedutora: ele atrai mas não dá a razão.
Sua inteligência continua perguntando: “Por quê?” Ela não en­
xerga a razão.

138
Além disso, com um pouco de experiência, rapidamente se
reconhece o artigo oco que se baseia apenas em lugares-comuns,
em idéias prontas: é o caso típico dos jornais de partido, dos dis­
cursos de propaganda. Poder-se-ia diagnosticar um pertencer po­
lítico pela freqüência de “trabalhadores”, “combate por mais justi­
ça”, “liberdade” etc. Mas o entimema não é apenas um raciocínio
desvalorizado; às vezes é a única possibilidade de argumentar
quando estamos reduzidos a conjeturas, o que é freqüentemente
o caso em matéria judiciária, em ciências, na vida corrente...
Como o entimema conclui mais em função de seu conteú­
do que de sua forma, nào é raro que esta não respeite as regras
do silogismo estabelecidas antes. Não me refiro ao impasse so­
bre uma das premissas, o que é acessório. Mas, por exemplo, é
freqüente que o entimema se apresente com a forma de um silo­
gismo de terceira figura66. O TM, no caso o sinal, é duas vezes
predicado nas premissas com duas premissas afirmativas. Ele po­
de concluir, embora de maneira não necessária, pois sua força
provém do princípio de manifestação que é o sinal, o qual une
os termos da problemática.
Por exemplo: os patrões exploram; ora, os patrões são ri­
cos; logo, os ricos exploram.

• Leitura do texto
Leia as seguintes passagens de um texto do doutor Toma-
tis; elas resumem uma de suas teses principais67.
“Com exceção das vísceras, o homem, como a grande maio­
ria dos seres vivos, é simétrico. Por que diabos decidimos um
dia atribuir a um de nossos lacios uma vantagem funcional? O
que há de mais notável é que essa especialização parece ser
própria ao homem. Os animais não têm, propriamente falando,
lateralizaçào. (...) O homem, desde os tempos mais remotos, pa­
rece ter sido lateralizado e, mais do que isso, em todos os pon­
tos do mundo onde o homem surgiu, sua lateralidade foi em re­
gra dominante à direita.”

66. Não queremos entrar no detalhe da técnica, mas o entimema pode


adotar as três figuras do silogismo (contrariamente à indução e à analogia).
67. Alfred TOMATIS, Uoreille et le langage, “Sciences", Paris, Seuil, 1978,
trechos das pp. 14951‫ ־‬e 163-4.

139
Ora, “parece que a lateralidade e a linguagem caminha jun­
tas”. Com efeito, o que se observa? Um fato entre muitos: “O
não-aparecimento da lateralidade é constante na não-aquisição
da linguagem. Alvez Garcia, em seu livro sobre os Distúrbios da
linguagem, (...) propõe a cifra estatística, espantosa à primeira
vista, de 100% de ambidestria da escrita entre os surdos-mudos.”
Tornatis tenta mais adiante explicar o porquê dessa consta­
tação indutiva: “A linguagem humana, em seu modo articulatório,
exige, como vimos, um controle cibernético particularmente ela­
borado. Ela implica a presença de um captor. Este ultimo pode
não ser único, mas deve ser unilateral. Sem essa condição pri­
mordial, as liberdades internas, que todo sistema não conforme a
essa exigência autorizaria, deixariam introduzir-se múltiplos er­
ros, impedindo o fluxo normal para o ritmo humanamente adota­
do. Foi da linguagem e para controlar essa linguagem que surgiu
a necessidade de estruturar uma lateralização. Essa lateralizaçâo
tem primeiramente por objeto o controle sensorial de nossa auto-
escuta; ela nos torna conscientes de nossa linguagem, rompe
com os automatismos que só podem levar a uma linguagem pu­
ramente expressiva. (...) Todo o nosso ser é portanto controlado
por um único lado, e devemos isso à linguagem.”

• Análise do texto
A lese é que a lateralizaçâo tem a linguagem por causa (cf.
a última frase que é conclusiva).
Ora, Tornatis a estabelece primeiramente pela experiência
de Garcia, a qual é um entimema: ela fornece apenas um sinal
(primeiro critério); o autor está reduzido a isso, como acontece
freqüentemente em ciência (segundo critério); enfim, ela é colo­
cada sob a forma de silogismo de terceira figura com duas pre­
missas universais (último critério): os surdos-mudos têm distúrbios
de linguagem (por definição); ora, todos os surdos-mudos têm
distúrbios de lateralização.
No último parágrafo, em compensação, Tornatis tenta ela­
borar um raciocínio causal (que se baseia aqui na causa final). O
TM é então a noção de controle: a segurança do controle supõe
a unilateralidade ou a lateralização; ora, a linguagem supõe ou
exige um controle preciso. A comparação com o entimema per­
mite mostrar claramente a diferença entre sinal e causa: aqui, a

140
luz é bem mais profunda, ela busca penetrar a razão de ser da
lateralização, enquanto o sinal mostrava sua existência mas não
seu fundamento.

Critérios psicológicos
A importância de saber a que faculdade se dirige o texto é
imensa, já que o entimema tem primeiramente por função per-
suadir. Pergunte-se, após a leitura, se você está mais inflamado
ou mais esclarecido. Para tanto, tente reformular o artigo, sua te-
se e seus argumentos: isso permite avaliar bem o seu impacto,
intelectual ou afetivo. Você pode demonstrar a tese permane-
cendo frio e neutro (o que não quer dizer rebarbativo)?
Mas, já que a convicção conduz tanto ao inferno quanto ao
paraíso, convém em seguida avaliar o caráter formador ou alie-
nante do texto.

Uma form a particular de entimema: a teoria

Por que falar da teoria?


Esta é de extrema importância tanto na vida cotidiana
quanto em ciência ou no domínio da ficção.

Na vida corrente, passamos nosso tempo a elaborar hipóte-


ses. Por exemplo, uma pessoa está atrasada para um encontro e
imaginamos já as diferentes causas possíveis do atraso (diversa-
mente coloridas conforme a tendência otimista ou não do tem-
peramento).
De maneira mais geral, fazemos suposições e construímos
teorias quando duas condições são preenchidas: de um lado, um
fato incongruente ocorre (o equivalente da problemática na or-
dem dos acontecimentos); de outro, a causa não é aparente (ou
imediatamente acessível). O espírito irá conjeturar então a causa
a partir de indícios ou de sinais (donde a aproximação com o
entimema). Por exemplo: “Não consegui minha habilitação para
dirigir; o examinador certamente estava de mau humor!”
Sabe-se também o papel desempenhado pela teoria cientí-
fica, a ponto de muitos epistemólogos (filósofos das ciências) re-
duzirem erroneamente o procedimento científico à teoria (pois o
pesquisador também descobre leis). Einstein, notável pedagogo

141
nas horas vagas, dá uma explicação figurada disso (cf. o quadro
na página seguinte).
Por exemplo, a lei da queda dos corpos permanecerá sem­
pre verdadeira: esse é um fato, ou melhor, um dado universal (a
saber, que um corpo cai segundo uma velocidade uniformemen­
te acelerada, o que é uma aplicação da lei da atração universal
descoberta por Newton), estabelecido por indução a partir de
um grande número de casos singulares. Ela foi incluída como
uma conseqüência no grande edifício da teoria mecânica de
Newton, mas a mecânica relativista elaborada por Einstein, mais
precisa, a substituiu: uma teoria expulsa a outra, dando uma
imagem cada vez mais aproximada, cada vez mais provável do
real. Do mesmo modo, os indícios podem convergir para a cau­
sa, ou a análise cada vez mais minuciosa de uma fisionomia, de
uma escrita, revela um caráter.
Enfim, não esqueçamos o domínio da ficção. Sherlock Hol-
mes não levou a dedução até a ciência, como afirma Sir Arthur
Conan Doyle (em O signo dos quatro), mas sim a teoria. Os Du-
pin (Edgar Poe) e as Miss Marple (Agatha Christie) são antes de
tudo especialistas da conjetura testada pelos fatos. Isso não é
surpreendente, uma vez que, no domínio criminal, o equivalente
da causa é a confissão ou o flagrante delito; ora, sabe-se a rari­
dade disso (era a obsessão de Max-Michel Piccoli no filme de
Claude Sautet: Max et les ferrailleurs)·, donde a necessidade de
restringir-se aos indícios.

O que é um a teoria?
Em primeiro lugar, a teoria é uma hipótese. Essa hipótese é
feita para explicar, isto é, dar a razão ou a causa de uma tese
(de uma lei científica, por exemplo). Portanto ela poderá ser
enunciada na forma de um silogismo. Seja por exemplo a tese:
Paulo está atrasado. A teoria ou a hipótese é: Paulo ficou preso
num engarrafamento; ora, quem está num engarrafamento se
atrasa; logo...
Mas, em segundo lugar, só há teoria válida se a hipótese
pode ser verificada. A teoria é uma hipótese que foi ou que po­
de ser verificada. E isto é feito de duas maneiras: ou por ela
mesma, mas trata-se então de uma verdadeira causa, conhecida,
e não há mais hipótese (recaímos no caso clássico do silogis-

142
mo); ou por conseqüências que dela podem ser tiradas: verificá­
veis, elas tornam a hipótese provável.
No contexto de nosso exemplo: quem fica preso num en­
garrafamento nào pode telefonar para avisar; ora, Paulo não te­
lefona... Ou então: o engarrafamento é frequente na época da
volta das férias. Ora, Paulo estava retornando de férias.
Mas essas conseqüências tiradas são apenas sinais, indícios.
Aliás, os raciocínios que as sistematizam estão em terceira figura
e não podem formalmente concluir: são entimemas. A hipótese
portanto não é certa. Se, em compensação, se tirasse uma con-
seqüência necessária que pudesse ser verificada, a hipótese ad­
quiriria foros de causa. Por exemplo, “o rádio acaba de anunciar
um engarrafamento monstro no túnel de Fourvière; ora, Paulo ti­
nha necessariamente que passar por ele”.

O que mostra o relógio?

"Os conceitos físicos sâo criações livres do espírito humano


e não são, como se poderia acreditar, unicamente determi­
nados pelo mundo exterior. N o esforço que fazemos para
compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco ao ho­
mem que tenta compreender o mecanismo de um relógio fe­
chado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ou­
ve o tique-taque, mas não tem meio algum de abrir o reló­
gio. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do
mecanismo, que ele tornará responsável por tudo o que ob­
serva, mas jamais estará seguro de que sua imagem seja a
única capaz de explicar suas observações. Jamais terá con­
dições de comparar sua imagem com o mecanismo real, e
não pode imaginar a possibilidade ou a significação de tal
comparação.
Mas (e essa ressalva é importante) o pesquisador acredita
certamenfe que, à medida que seus conhecimentos aumen­
tarem, sua imagem da realidade se tornará cada vez mais

143
simples e explicará domínios cada vez mais extensos de suas
impressões sensíveis. Ele poderá assim crer na existência de
um limite ideal do conhecimento que o espírito humano po­
de alcançar. Poderá chamar esse limite ideal a verdade ob­
jetiva."

Alberi EINSTEIN e Léopold INFEID, Levolution des idées en physique, Paris, Flammarion,
1948, pp. 3 5 6 ‫־‬.

Em conseqüência, por mais próxima da experimentação,


por mais sedutora que seja a teoria, ela tem o mesmo grau de
probabilidade que o entimema, ela não é certa. O cientista, na
maioria das vezes, tem apenas esses dois tipos de raciocínio à
sua disposição. Leia este exemplo de Gould sobre a evolução
dos rostos do Mickey; por ser divertido, nem por isso é menos
instrutivo6‫״‬. Indicaremos o plano conforme a progressão da lei­
tura.

• Leitura do texto
- Constatam-se dois fatos:
Por um lado, do ponto de vista psicológico, a evolução do
Mickey mostra que ele se humaniza. No início, ele é inclusive li­
geiramente sádico. Em sua primeira aparição na tela, Steamboat
Willie (1928), “Mickey e Minnie espancam e maltratam os ani­
mais que se acham a bordo do barco a vapor (...). Fazem um
pato guinchar num abraço apertado, giram o rabo de uma cabra
como uma manivela, torcem as tetas de uma porca, utilizam os
dentes de uma vaca como um xilofone e brincam de gaita de fo­
les com suas mamas”.
Por outro lado, do ponto de vista orgânico, fisiológico,
Mickey rejuvenesce. “As crianças, quando comparadas aos adul­
tos, têm cabeça e olhos maiores, queixo menor, um crânio mais68

68. Stephen Jay GOULD, “Un hommage biologique a Mickey", in Le ponce


tin panda. Les grandes enigm es de revolution. Trad, fr., Paris, Grasset, 1982, pp.
109-22.

144
proeminente e arqueado, e pés e pernas menores e mais gros­
sos.” Ora, Mickey percorreu o caminho orgânico inverso: “Para
dar-lhe as pernas mais curtas e grossas de uma criança, diminuí­
ram-lhe o tamanho e cobriram-lhe as pernas esguias com urna
espécie de calça ondulante. (...) Sua cabeça tornou-se relativa­
mente maior e seus traços mais juvenis. O tamanho do focinho
do Mickey não variou, porém, mais sutilmente, é um espessa-
mento mais pronunciado que o faz parecer menos saliente. O
olho do Mickey aumentou” (p. 114) e o crânio também.
Em suma, a silhueta do Mickey rejuvenesceu, ao mesmo
tempo em que seu psiquismo e sua moralidade melhoraram. Es­
sa tese é estabelecida indutivamente.

- É interessante interrogar-se sobre o porquê.


“Por que Disney quis modificar seu personagem mais céle­
bre de maneira tão progressiva e sempre na mesma direção?”
“Num de seus artigos mais célebres, Konrad Lorenz afirma
que os humanos utilizam diferenças características de forma en­
tre os bebês e os adultos como indicações importantes de com­
portamento.”
A aplicação é imediata. Assim, “ele pensa que traços juve­
nis favorecem nos adultos humanos ‘mecanismos de disparo ina­
tos’ para a afeição e o cuidado dos pequenos. Quando vemos
um ser vivo que possui traços de bebê, sentimos irnediatamente
um impulso automático de ternura que desarma”. Lorenz especi­
fica: “Uma cabeça relativamente grande, um crânio desproporcio­
nado, olhos grandes situados mais abaixo, bochechas fortemente
arredondadas, extremidades curtas e espessas, uma consistência
firme e elástica, gestos desajeitados.” Em conseqüência, “Disney
agiu de maneira sucessiva com base nos principais disparadores
fundamentais de Lorenz” (pp. 115-6).
Donde a conclusão: “As características abstratas da infância
humana provocam em nós fortes reações emocionais, mesmo
quando aparecem em outros animais. Sou de opinià» que a evo­
lução regressiva do Mickey ao longo de seu crescimento reflete
a descoberta inconsciente desse princípio biológico por Disney
e seus artistas.” (p. 119)
Confirmações: “Também Donald rejuvenesceu com o tem­
po. Seu bico diminuiu e seus olhos aumentaram (...). Mas Do­
nald, tendo herdado a má conduta que era originalmente a do

145
Mickey, permanece mais adulto em suas formas, com um bico
para a frente e uma testa mais inclinada.
Os ratos maus, adversários do Mickey, apresentam, ao con­
trário, sempre uma silhueta mais adulta, embora tenham geral­
mente a mesma idade cronológica que ele.” (pp. 119-20).

• Análise do texto
A tese é clara: Mickey rejuvenesce ao mesmo tempo que
seu caráter melhora.
A primeira parte do texto mostra isso indutivamente a par­
tir de diferentes parâmetros: o tamanho do crânio, dos olhos etc.
Mas a inteligência permanece insatisfeita e pede uma cau­
sa. Baseando-se nos trabalhos de Lorenz, Gould propõe na ver­
dade uma hipótese (o que chamamos uma teoria) na segunda
parte de seu texto: os desenhistas querem que seu herói seja
acolhido; ora, um herói com traços infantis é sempre acolhido;
logo... Você percebe que esse raciocínio não pode concluir
quanto à disposição de seus termos: com efeito, o TM é duas
vezes predicado; ora, ele deveria ser uma vez sujeito e uma vez
predicado quando as premissas são afirmativas e universais. Tra­
ta-se apenas de um entimema: não lidamos realmente com uma
causa certa, mas somente com uma causa provável.
Assim, o biólogo Gould teve de contentar-se em mostrar
sua tese por um duplo raciocínio que não engendra a certeza: a
indução e o entimema.

O perigo áe supervalorizar a teoria


Não é raro que nos deixemos enganar e atribuamos à teo­
ria uma certeza que ela não pode pretender. Por duas razões: do
lado do receptor, aspiramos à verdade e rapidamente resolve­
mos passar do verossímil ao verdadeiro; e sobretudo, do lado
do emissor, a convicção interior faz parte das motivações que le­
vam a enunciar uma conjetura e a verificá-la. Isso vale especial­
mente para o pesquisador que irá dedicar uma vida a sustentar
uma hipótese e a tentar “mostrá-la”: não se pode pedir-lhe que
Seja cético. Mas o problema é que a passagem à escrita não filtra
suficientemente o caráter apenas psicológico da convicção e sua
necessidade puramente motivadora; ora, o leitor geralmente não
tem a formação desejada para saber que, por exemplo, muitas
das noções freudianas (sua concepção do inconsciente, da sexua-

146
lidade infantil, o superego...) eram apenas hipóteses para seu
autor; aliás, as escolas, em geral, endurecem o pensamento de
seu mentor, tornando certo o que era somente provável ou con­
jetural (hipótese fecunda). Todo pesquisador e todo homem de
boa vontade deveria ler esta bela carta escrita a Charles Darwin
por sua esposa e as breves palavras acrescentadas abaixo pelo
grande observador da natureza.

Darwin e as aflições do grande descobridor

"O estado de espírito que eu gostaria de preservar em relação


a ti é que, uma vez que ages de maneira consciente e sincera
para descobrir a verdade, não podes estar errado, mas algu­
mas razões insinuam-se em mim e me impedem de poder con-
ceder-me sempre esse conforto. Certamente já pensaste muitas
vezes nisso antes, mas porei por escrito tudo o que me preocu­
pa, certa de que meu amado saberá ser indulgente. (...)
Parece-me também que a direção que tomaste em tuas pes­
quisas te levou a considerar principalmente as dificuldades li­
gadas a um único aspecto, e que não tiveste tempo de con­
siderar e estudar o encadeamento das dificuldades ligadas
ao outro aspecto; mas creio que não consideras tua opinião
como definitiva.
N ão achas que o hábito próprio à investigação científica de
em nada crer antes de possuir provas exerce demasiada in­
fluência sobre tua atitude em relação a outras coisas que
não podem ser provadas do mesmo modo e que, se forem
verdadeiras, ultrapassam provavelmente nossa compreen­
são? (...) Tudo o que te concerne, concerne a mim também,
e eu ficaria muito infeliz se pensasse que não pertencemos
para sempre um ao outro."
Charles Darwin acrescentou uma frase no final da carta:
"Quando eu estiver morto, saiba que muitas vezes beijei esta
carta e chorei. C .D ."
in N . BARIOW, Autobiography o f Charles Darwin, Londres, Collins, 1958, pp. 2 3 5 7 ‫;־‬
citado por AAichel DENTON, 1'évolulion: une théorie en crise, Paris, Londreys, 1988,
pp. 56-7.

147
Como?
Perceber uma teoria é delicado e requer, não treino, mas
atenção, sobretudo se experiências ou fatos sustentam a hipótese.
- O melhor meio é perguntar-se diante da explicação pro­
posta: sobre o que ela se fundamenta? Apenas sobre in­
dícios ou sobre provas necessárias? O que supõe um
exame minucioso e objetivo do pensamento, quando
nossa atitude habitual é recusar a hipótese porque não
estamos de acordo com a tese.
- Pergunte-se também: uma outra causa seria capaz de ex­
plicar a mesma tese?

O S P S E U D O -R A C IO C ÍN IO S

Existem diferentes tipos. Eles poderiam ser dispostos numa


categoria clássica: os raciocínios sofísticos. Aristóteles dedica-
lhes um tratado inteiro (intitulado As refutações sofísticas, que é
na verdade o livro 9 de sua grande obra, Os tópicos). O detalhe
seria cansativo, mas é bom saber reconhecer alguns desses fal­
sos raciocínios.

O raciocínio por acidente


Esse raciocínio contenta-se em justapor enunciados que tra­
tam do mesmo tema; a conexão deles não leva a nenhuma con­
clusão; o que portanto induz a concluir é, de um lado, a aproxi­
mação dos conceitos, de outro, o que é muito freqüente, a carga
emocional embutida nesta ou naquela idéia.
Exemplo já ouvido: “Você gosta de cachorros; Hitler gosta­
va de cachorros. Como isso é estranho!” Certos jornais são apai­
xonados por esse gênero de pseudo-raciocínios que induzem a
suspeita mais do que demonstram. Mas todo o impacto está jus­
tamente na sugestão. Se você responde qualquer coisa ao pro­
motor desse tipo de demonstração, ele evitará cuidadosamente
transformá-lo em silogismo científico: “Estou constatando, ape­
nas isso. Não me faça dizer o que eu não disse.” O inconvenien­
te é que o impacto no espírito de outrem é geralmente bem
mais profundo que o que se explicita por essa declaração de in­
tenção cheia de aparente equilíbrio...

148
O raciocínio dialético
É o raciocínio amaldiçoado pelos professores de francês ou
de filosofia - e com razão. Esse tipo de demonstração justapõe
uma proposição e seu contrário (tese e antítese); além disso,
com freqüência, ela opina, tergiversa, passa de uma à outra sem
concluir e deixa o leitor na incerteza entre as duas.
Leia o seguinte trecho'‫״‬: ‘“Você é mau’, Isso não se faz’,
(...). Eis aí cantilenas que há séculos as crianças ouvem ao longo
dos dias [tese]. É verdade que esses anjinhos têm necessidade de
barreiras, de limites, no interior dos quais possam dar vazão às
suas idéias devastadoras [antítese], Mas atenção! Essas fórmulas
anódinas às vezes provocam danos. É que as crianças são candi­
datos privilegiados à culpa-veneno, aquela que gruda no cora­
ção e na mente por toda a vida [tese]. (...) Não pense porém que
é preciso abster-se de dizer não a seus filhos, por temor de feri-
los profundamente para o resto da vida [antítese]” etc.
A tese é a seguinte: a culpabilidade é um erro pedagógico; a
antítese é portanto: a culpabilidade é necessária na educação. Vo­
cê percebe assim que é constantemente remetido da tese à antíte­
se. A conclusão, aliás, é reveladora: “O jogo da culpa entre pais e
filhos se parece, em última análise, a uma armadilha infernal.
Quanto mais os pais forem o joguete de sua própria culpa, mais se
arriscam a repercutir os efeitos dela sobre sua progenitura.” Acaba­
mos por nos perguntar se a culpa dos pais é que é essa “armadilha
infernal” ou se essa não é antes o vaivém indeciso da dialética!

C o nclusão

O autor, o leitor, todo homem portanto, tem à sua disposi­


ção uma grande variedade de meios para manifestar seu propó­
sito. O que tem várias conseqüências:
- fique alerta a essa riqueza quando ler um texto; não se
polarize na pesquisa do TM do silogismo (se houver al­
gum, aliás!). Uma é a problemática (no caso ideal), mas
muitos os caminhos que conduzem a ela;69

69. Laure d’ANGLADE, “En finir avec la culpabilité”, in Psycbologies, n2 91,


outubro de 1991, pp. 26-9.

149
- fique atento à certeza dos argumentos, sobretudo se eles
não se dirigem só à inteligência e buscam mais persuadir
que demonstrar. Cuidado com o brilho atraente de uma
analogia bem escolhida; ela não vale o rigor, às vezes
um pouco árido, de uma exposição silogística.
- Cada tipo de raciocínio tem seu mérito próprio e convém
saber variar os gêneros literários. Cansamo-nos de ler
tanto Santo Tomás como Santo Agostinho, tanto Descar­
tes como Pascal; o que não impede as afinidades eleti­
vas. O silogismo instrui, mas acaba por aborrecer; a ana­
logia seduz, mas acaba por não mais instruir.
- Enfim, tocamos aqui um dos limites da formalização do
pensamento. Certamente, e nós própios o fizemos, é
possível colocar um entimema ou uma analogia em es­
trutura. Mas, em primeiro lugar, esse esforço de esclareci­
mento necessário à inteligência lhe retira todo impacto e
todo valor literário. É o que toma tão indigesta a ética
geométrica de Espinosa: como vimos, a ética, mesmo se
deve alimentar-se de princípios universais, é por excelên­
cia o domínio do concreto, portanto do provável e do
exemplo. Além disso, e sobretudo, a máquina se detém
na forma: o conteúdo, seu grau de certeza, a distinção
causa-sinal, supõem que a inteligência volte a se relacio­
nar com o real; isto a máquina sempre será incapaz de
fazer, pois seu funcionamento é apenas circular, fechado
em si mesmo, sem aquele referente exterior que é o úni­
co a dar sentido7".70

70. Enfim, ainda que esse esclarecimento formal englobasse a significação,


os teoremas de limitação, dos quais o mais célebre é o de Gòdel, nos ensinaram
que jamais se pode demonstrar tudo num sistema de pensam ento bem formali­
zado, de qualquer extensão (ou potência).

150
E x e r c íc io s

Formalize os seguintes raciocínios


Leia atentamente os textos abaixo. A seguir determine a
problemática (servindo-se do que foi dito no capítulo anterior):
esse primeiro momento é sempre obrigatório. Por fim descubra
o raciocínio utilizado para estabelecer essa tese: formalize-o; de
que natureza ele é? indução, analogia, entimema, silogismo e,
nesse último caso, de que espécie?

Exemplo I

• Leitura do texto
“Se o homem é o caminho fundamental e o caminho da
Igreja, compreende-se bem por que a Igreja atribui uma impor­
tância particular ao período da juventude: ele é o período chave
na vida de todo homem." (João Paulo II, Carta apostólica a to­
dos os jovens do mundo por ocasião do Ano internacional da
juventude, 31 de março de 1985, Vaticano, Ed. tipográfica Vati­
cano, n. 1. Sublinhado no texto.)

• Análise do texto
A problemática é tanto mais clara quanto está em itálico no
texto: a Igreja atribui uma importância particular à juventude.
A demonstração apóia-se num silogismo de primeira figura
cujas premissas estão distribuídas de um lado e de outro da pro­
blemática, no caso: antes (para a maior) e depois (para a menor).
- O homem é o caminho fundamental da Igreja.
- Ora, a juventude é um período chave na vida de todo
homem.

151
Exemplo II

• Leitura do texto
Este fragmento foi extraído de uma revista sobre televisão e
trata da série de filmes De volta para o futuro, por ocasião do
lançamento do terceiro (e último) da série.
“O primeiro episódio da trilogia ‘Marty MacFly’ havia entu­
siasmado os espectadores, ao passo que a continuação decep­
cionou. Para Steven Spielberg, a explicação é evidente: ‘O pri­
meiro episódio era linear. Contava uma história fantástica, mas
em suma muito simples. Para o segundo episódio, utilizamos a
técnica dos videogames, em que o jogador-espectador é trans­
portado a toda velocidade de uma situação a outra sem ter tem­
po de respirar. Isso podia agradar as crianças, mas desorientava
os pais. Retornamos a um modo de narração mais tradicional no
terceiro episódio.’”
(‘“ Retour vers le futur IIP, ce que vous verrez”, in revista
Télémoustique, de 15 de março de 1990, p. 39.)

• Análise do texto
A tese é: o segundo episódio da trilogia “Marty MacFly”
(De volta para o futuro II) decepcionou. Essa é a constatação, o
juízo. Por quê?
É preciso estabelecer a causa, e portanto raciocinar. O au­
tor cita Spielberg, que faz - certamente sem o saber! - um duplo
raciocínio: um raciocínio pelo exemplo e um silogismo de se­
gunda figura (pois, de fato, a conclusão é negativa: o segundo
episódio não agradou).
Spielberg faz um raciocínio pelo exemplo partindo do pri­
meiro episódio, que é o análogo mais próximo do segundo epi­
sódio.
Prossilogismo: o primeiro episódio agradou.
Ora, o primeiro episódio era de estilo linear.
Logo, o estilo linear agrada.
Silogismo: ora, De volta para o futuro II não era linear: ado­
tou o estilo narrativo videogame (que procede por flashbacks
constantes: “o jogador-espectador é transportado a toda veloci­
dade de uma situação a outra”).
Logo...

152
O silogismo de segunda figura: as crianças, mas não a ge­
ração precedente, os pais, estão habituadas a uma situação nar­
rativa não linear (de fato, estão acostumadas com videogames;
ora, os videogames utilizam uma técnica narrativa não linear).
Ora, De volta para o futuro II não era linear.
Logo, De volta para o futuro II estava destinado a decepcio­
nar uma parte do público.

Exemplo III

• Leitura do texto
“Um embrião humano é um ser vivo humano e não um ser
vivo de uma espécie qualquer. Que coerência há em vituperar o
racismo e o apartheid em nome da comunidade genética da es­
pécie, e em fazer ao mesmo tempo do direito de nascer um caso
de apreciação pessoal?"
(M. NODE-LANGLOIS, “Individualité et personalité: 1’embryon
humain, une personne”, in Communio XIV-6, nov.-dez. 1989,
pp. 89-99, aqui p. 96.)

• Análise do texto
A tese é: o direito de nascimento não é uma questão de
apreciação pessoal. Em outras palavras: ninguém tem o direito
de decidir a seu favor sobre a vida de uma criança por nascer
(subentendido: o que o aborto faz).
A demonstração é um raciocínio por analogia, pelo exem­
plo. Ele se baseia na analogia profunda existente entre o racis­
mo e o aborto.
Prossilogismo: o racismo e o apartheid não são uma ques­
tão de apreciação pessoal. Ora, o racismo e o apbarteid são
condenados em nome da comunidade genética da espécie. Lo­
go, o que se fundamenta na comunidade genética da espécie
não é uma questão de apreciação pessoal.
Silogismo principal (cuja premissa maior é a conclusão do
prossilogismo): ora, o embrião é um ser vivo pertencente à co­
munidade genética da espécie humana. Logo, o direito de nasci­
mento do embrião não é uma questão de apreciação pessoal.

153
Exemplo IV

• Leitura do texto
“Se o poder político tem por função primeira dar sua força
ao direito das liberdades a despeito dos poderes, ele deve per­
manecer independente destes. Ele deve, exatamente, ter poder
sobre os poderes, sobre toda força que tenda a se exercer contra
a liberdade dos fracos. Disso resulta que ele não pode ser ne­
nhum dos poderes. Nem o poder econômico, nem o poder ideo­
lógico, nem o poder religioso. Tampouco pode identificar-se
com o poder mais prestigioso e eficaz, o da ciência e das técni­
cas que ele engendra. Em particular e forçosamente, pois seu
poder afeta diretamente o espírito, a ciência médica. Por isso a
medicina não deve tornar-se competência do Estado.”
(Claude BRUAIRE, Une éthique pour la médecine, Paris,
Fayarct, 1978, p. 132.)

• Análise do texto
A tese é clara. É enunciada pela última frase: a medicina
não é uma competência do Estado.
De que maneira o filósofo Bruaire demonstra isso? Por um
silogismo de segunda figura.
O poder político não pode ser nenhum dos poderes.
Ora, a ciência médica é um poder.
Logo, a medicina não pode ser uma instância de poder po­
lítico (em outras palavras: uma competência do Estado).
Bruaire estabelece também as duas premissas de seu racio­
cínio.
Em relação à maior, ele a demonstra por um novo silogis­
mo de segunda figura cujo termo médio é muito justo: o poder
político tem por função principal a liberdade dos mais fracos;
ora, os poderes, sejam quais forem, tendem a esmagar os mais
fracos (justamente por serem fortes e não fracos).
Em relação à menor, Bruaire não faz demonstração, mas
divide o sujeito “poderes” em suas diferentes espécies: econômi­
ca, ideológica, religiosa, tecnocientífica. Ora, a medicina é uma
das espécies do prestigioso poder tecnocientífico.

154
Exemplo V

• Leitura da seguinte passagem de Claude Lévi-Strauss:


Eis o que ele diz numa entrevista concedida ao jornal Le
Monde após o lançamento de seu último livro: Histoire de lynx
[História de lince] (Paris, Plon, 1991).
“As ‘ciências humanas‫ ׳‬são ciências apenas por uma lison­
jeira impostura. Elas se deparam com um limite intransponível,
pois as realidades que elas aspiram a conhecer são da mesma
ordem de complexidade que os meios intelectuais que elas utili­
zam. Por esse motivo elas são e serão sempre incapazes de con­
trolar seu objeto.”
{Le Monde, terça-feira, 8 de outubro de 1991, p. 2.)

• Análise do texto
A tese do antropólogo francês é que as ciências humanas
não merecem ser classificadas no gênero das ciências.
Para demonstrá-lo, ele procede na verdade por entimema,
o que é muito freqüente nos diálogos, mas pode mascarar para­
logismos, como acontece aqui.
Ele parte (premissa maior implícita) da identidade entre or­
dem real e ordem da razão; ora, o menos não pode compreen­
der o mais, nem o igual o igual (é preciso até certo ponto domi­
nar seu objeto para compreendê-lo), e o próprio de uma ciência
é “controlar” seu objeto; mas a ordem real, o objeto estudado
pelas ciências humanas, é o homem, e o sujeito que conhece
(“os meios intelectuais”) é também o homem; logo, as ciências
humanas não podem compreender seu objeto; por isso as ciên­
cias humanas não são verdadeiras ciências.
A premissa maior que identifica as duas ordens (real e racio­
nal) fundamenta-se, na verdade, no estruturalismo: a única dife­
rença entre os seres é a diferença de estrutura e portanto de
complexidade; ora, real e racional, mais ou menos complexos,
são ambos estruturados.

Exemplo VI

• Leitura do texto
As histórias em quadrinhos podem nos reservar surpresas
lógicas. Asterix e Obelix acabam de desembarcar no que será

155
mais tarde o continente americano. Eles descobrem vestígios de
índios. Mas Obelix está convencido de que se trata de romanos.
Vejam como ele raciocina:
Talvez não sejam romanos - diz Asterix, prudente.
- São sim! - assevera Obelix, categórico. - É coisa dos
romanos isso de nos espreitar na floresta e ter medo de nos en­
frentar.”
(UDERZO e GOSCINNY, La grande traversée, Dargaud éditeur,
1987, p. 20.)

• Análise do texto
O raciocínio é na verdade um entimema. Você pode adivi­
nhá-lo antes mesmo de formalizá-lo: Obelix baseia-se em dois
indícios ou sinais.
Os romanos espreitam na floresta e têm medo de nos en­
frentar.
Ora, os sinais são de pessoas que espreitam na floresta e
têm medo de nos enfrentar.
Logo, são romanos.

Exemplo VII

• Leitura do texto
Blond nos fala dos cachalotes: “A idade sempre traz algu­
ma pequena desgraça. (...) Navegar nos mares quentes ou tem­
perados é muito agradável. Mas todos sabem que os piolhos
também preferem o calor.”
(Georges BLOND, La grande aventure des baleines, “Le livre de
poche”, 545-546, Paris, Le Livre contemporain, 1953, p. 71.)

• Análise do texto
A tese do autor é que os cachalotes mais velhos conhecem
desgraças, a dos piolhos.
Por quê? Blond faz o seguinte raciocínio: os cachalotes
mais velhos navegam nos mares quentes. Ora, os piolhos tam­
bém proliferam apenas no calor.
Aqui também lidamos com um entimema. De fato, o calor
é apenas um sinal, não é a causa. Ainda é necessário que pio-

156
lhos haja... Aliás, o raciocínio tem a forma cie um silogismo de
segunda figura, embora nenhuma das premissas seja negativa.

Exemplo VIII

• Leitura do texto
“A distinção entre consoantes e vogais, que se baseia em
critérios vocais, será puramente convencional? Um recente estu­
do italiano de dois casos clínicos indica que vogais e consoantes
escritas constituem duas entidades tratadas diferentemente pelo
cérebro. Os pacientes estudados, vítimas de lesão cerebral após
um enfarto, apresentam ambos uma deficiência seletiva na escri­
ta das vogais. O primeiro paciente escreve as palavras omitindo
sistematicamente as vogais, e deixando um espaço em branco
no lugar delas. Assim, o sobrenome do paciente, FONDACARO,
torna-se F ND C R . O segundo paciente, por sua vez, comete
numerosos erros na escrita das vogais, o mais freqüente sendo a
substituição, numa palavra, de uma vogal por outra. É a primeira
vez que deficiências específicas na escrita de uma das duas clas­
ses de letras são assim evidenciadas. Esses dois casos são fasci­
nantes, pois mostram a que grau de detalhe pode chegar a re­
presentação da linguagem no cérebro.”
(Resenha do artigo de R. CUBELLI, Nature, 353, 258, 1991, em
La Recberche, nQ237, novembro de 1991, vol. 22, p. 1270.)

• Análise do texto
A tese é que o reconhecimento das vogais é uma função
especializada do cérebro.
A prova é a seguinte:
- alguns pacientes (no caso, dois) têm uma lesão cerebral
(decorrente de um enfarto);
- ora, alguns pacientes apresentam distúrbios seletivos de
reconhecimento, da escrita das vogais.
Trata-se, evidentemente, de uma indução. Mas a indução é,
na verdade, quase uma intuição, quando se tem em si o esque­
ma da teoria das localizações cerebrais.
Cumpre notar que essa pequena resenha descobre um
meio de tirar duas conseqüências.

157
Ora, o cérebro é um dado de natureza, não convencional;
logo, a distinção vogal-consoante é natural (e não apenas con­
vencional).
Ora, o reconhecimento das vogais é especializado; logo, o
cérebro tem um conhecimento especializado da linguagem.

Exemplo IX

• Leitura do texto
Eis aqui uma frase bem típica de Balthasar: “Se, por esse
caminho, a religião israelita da promessa - apesar de seu caráter
de unicidade cada vez mais marcado à medida que Israel com­
preende melhor que sua missão não tem equivalente - leva ao
Cristo o fundo religioso geral da humanidade, o Cristo, cumprin­
do nele a mensagem de promessa de Israel, é posto em contato
por esse mesmo Israel com as formas religiosas da humanidade,
e responde assim não apenas à expectativa de Israel, mas às as­
pirações de todos os povos.”
(Hans Urs von BALTHASAR, La gloire et la croix. Les as-
pects esthétiques de la Révélation. I. Apparition, “Théologie”,
nQ6l, Paris, Aubier, 1965, p. 421.)

• Análise do texto
A tese é que o Cristo responde às aspirações religiosas da
humanidade.
O raciocínio é dado também na mesma frase. Trata-se de
um silogismo de primeira figura, do qual Israel é o TM - Israel
contém o fundo religioso da humanidade; ora, o Cristo cumpre
as promessas de Israel; logo...
Pode-se portanto reler a frase conceitualmente muito car­
regada, manifestando sua articulação e seu grande rigor lógico:
“Se, por esse caminho, a religião israelita da promessa leva ao
Cristo o fundo religioso geral da humanidade [premissa maior],
o Cristo, cumprindo nele a mensagem de promessa de Israel
[menor], é posto em contato por esse mesmo Israel com as for­
mas religiosas da humanidade, e responde assim não apenas à
expectativa de Israel, mas às aspirações de todos os povos [con­
clusão].”

158
Exemplo X

• Leitura do texto
As descobertas da técnica “tiveram por conseqüência divi­
dir domínios até aqui confundidos: sexualidade, procriação, ma­
ternidade, educação. Ora, quando se dividem domínios nos
quais se pode agir seletivamente, as escolhas possíveis são intro­
duzidas e multiplicadas: cria-se uma liberdade”. A mulher é as­
sim “cada vez mais desalienada em relação à natureza graças às
ciências da natureza”.
(Evelyne SULLEROT, “Le fait féminin”, in Le fa it féminin.
Qu’est‫־‬ce qu’une femme?, Centre Royaumont pour une Science
de 1’homme, Paris, Fayard, 1978, p. 18.)

• Análise do texto
A tese é a seguinte: a técnica permite o advento da liberda­
de da mulher. Em outras palavras, ela desaliena a mulher.
O raciocínio será: as novas técnicas dividiram, separaram, se­
xualidade, procriação, maternidade, educação; ora, esses diferentes
componentes constituíam a natureza feminina; ora, dividir é multi­
plicar a escolha; ora, a liberdade é capacidade de escolha; logo, a
técnica é fonte de liberdade e desaliena a mulher de sua natureza.
Trata-se portanto de um polissilogismo cujo termo médio é
a natureza e, mais precisamente ainda, a alienação da natureza.

Exemplo XI

• Leitura do texto
A atriz Fanny Ardant participou em 1991 de um filme inti­
tulado Rien que des mensonges [Nada a não ser mentiras] em
que ela encarna uma bela mentirosa consumida por suas infide­
lidades secretas. Entrevistada, ela faz uma apologia da mentira:
“Normalizar me aborrece, banalizar me apavora. A gente só tem
uma vida, é preciso saboreá-la ao máximo. A verdade não é se­
não a sombra da mentira. Manejada por um sádico, ela pode
causar um mal terrível. Em compensação, a mentira alivia. Aliás,
a famosa proibição ‫־‬não mentirás‫ ׳‬não se encontra nas Tábuas
da Lei. Verifiquei. Isso me tranqüilizou.”
(Declarações recolhidas por Marine VIGEL, Figaro-Magazine, 7
de dezembro de 1991, p. 144.)

159
• Análise do texto
A tese é que a mentira é um bem.
Em poucas linhas, a atriz condensa diferentes argumentos.
Esboçados, misturados, temos, sucessivamente:
- um silogismo: dizer a verdade é a norma (o regular, o
banal); ora, o bem é a vida, a mudança; logo, a mentira é
um bem;
- resposta a uma dificuldade por uma distinção: a verdade
enquanto tal e a verdade do sádico;
- um entimema: é bom o que alivia. Ora, a mentira alivia;
- um outro silogismo: o que o Decálogo não proíbe é um
bem; ora, o Decálogo não proíbe a mentira etc.
Cumpre notar que não exploramos todo o texto. O sentido
da frase “Manejada por um sádico, ela pode causar um mal terrí­
vel” não é esgotado pela distinção (a dupla espécie de verdade)
indicada acima.

Exemplo XII

• Leitura do texto
“Mas não, quisemos tudo, desejamos tudo, tomamos tudo,
obtivemos tudo. Devoramos tudo como as vítimas de bulimia
em que nos transformamos. E, assim que tivemos tudo, precisa­
mos nos voltar para outra coisa. A satisfação não é do nosso
mundo. Um grande amor? Precisamos de um filho. Um filho?
Precisamos de dois, depois de três ou de quatro. Um marido?
Precisamos de um amante. Um emprego? Precisamos chegar ao
topo. As alturas? Precisamos também do dinheiro. O êxito com­
pleto? Precisamos da felicidade. Tudo ao mesmo tempo? Con­
tinua não sendo bom, enche ser superwoman...”
(Michèle FITOUSSI, Le ras-le-bol cies Superwomen, Paris, Cal-
mann-Lévy, 1987, p. 195.)

• Análise do texto
A tese é que o homem (aqui a mulher) tem um desejo infi­
nito (donde a conseqüência que é o próprio título do livro: as
mulheres estão cheias de brincar de Superwoman).
A prova é indutiva. Ela percorre alguns domínios de ativi­
dade da mulher atual e mostra de que maneira o desejo de infi-

160
nito frustrado, a insatisfação, os atravessa: a mulher atual deseja
o amor, os filhos, o marido, o trabalho, as alturas, o êxito; ora,
em cada domínio, é o “sempre mais” que é buscado; logo...

Silogismos na bíblia

Pode parecer chocante afirmar que existam silogismos na


Sagrada Escritura. No entanto, Deus é o autor da inteligência;
ora, a inteligência rigorosa procede por silogismo. Honorius
d’Autun dizia: “Os silogismos escondem-se na Sagrada Escritura
como peixes em água profunda; e, como é o trabalho do ho­
mem que retira o peixe da água, assim também ele o retira da
Escritura tendo em vista a utilidade.”
(Honorius d’AUTUN, Exposé sur quelquespsaumes, Éditions Mig-
ne, P.L. 172, c. 279.)
Só que o raciocínio jamais esgota a inteligibilidade contida
na Sagrada Escritura; além disso, ele pode trair a forma de pen­
samento semítica; enfim, convém nào ignorar que seu poder de
compreensão constitui uma sedução não negligenciável, uma
tentação de idolatria (da razão) ou de vontade de poder.
O material é diferente, mas o método de trabalho desses
textos é idêntico ao que foi indicado acima.

Exemplo I
“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue perma­
nece em mim e eu nele. Assim como vive o Pai que me enviou
e eu vivo pelo Pai, assim também o que me comer viverá por
mim. (...) Quem comer desse pão viverá para sempre.” (Jó 6, v.
56 a 58)
Eis como Santo Tomás comenta esse trecho (cap. VI, liv. VII):
Tese: “Aqui, o Senhor mostra que o alimento espiritual dá a
vida eterna.
E, para isso, ele emprega o seguinte argumento: Quem co­
me minha carne e bebe o meu sangue se une a mim; ora, quem
se une a mim, tem a vida eterna. Logo, quem come minha carne
e bebe meu sangue tem a vida eterna.
Por isso o evangelista procede assim: em primeiro lugar,
estabelece a premissa maior: ‘Quem come minha carne e bebe

161
meu sangue permanece em mim e eu nele.’ Depois, estabelece a
menor: ‘Assim como vive o Pai que me envia, eu vivo pelo Pai.’
De fato, ele mostra que quem se une ao Filho tem a vida por
uma similitude: o Filho recebe a vida do Pai pela unidade que
mantém com o Pai; assim como quem está unido ao Cristo rece­
be dele sua vida. Enfim, ele estabelece a conclusão: Quem co­
me esse pão tem a vida eterna.’ ”

Exemplo II
“Ninguém as tirará (as ovelhas) de minha mão. Meu Pai,
que mas deu, é maior do que todos. Nada pode ser tirado da
mão do Pai. Eu e o Pai somos um.” (Jó 10, v. 28 a 30)
Resumamos o comentário de Santo Tomás (cap. X, liv. V).
Tese: ninguém tomará o que está na mão do Cristo.
Argumento: “Ninguém pode tomar o que está na mão de
meu Pai. Ora, a mão do Pai e a minha são a mesma, o que se
deduz de que ‘Meu Pai e eu somos um’. Logo, ninguém também
poderá tomar o que está em minha mão.”

O Q U E V O C Ê PEN SA D O S SEGU INTES RA C IO C ÍN IO S?

Leia os raciocínios a seguir; formalize-os, perguntando-se


de que tipo eles são e, finalmente, se concluem.

Exemplo I

• Leitura do texto
“Todos os atenienses são mortais, todos os habitantes do
Pireu são mortais, portanto todos os habitantes do Pireu são ate­
nienses.”
(Umberto ECO, Le pendule de Foucault, Paris, Grasset, 1990,
cap. X, p. 73.)

• Resposta
Leiamos a continuação do diálogo: O que é verdade.
- Sim, mas por acaso.”
Esse raciocínio não pode concluir. Com efeito, trata-se de
um silogismo de segunda figura em que nenhuma das premissas

162
é negativa. Ora, em segunda figura, o silogismo só pode concluir
se uma das premissas for negativa, a menos que uma delas seja
conversível (isto é, que o sujeito tenha a mesma universalidade
que o predicado), o que não é o caso aqui (“mortal‫ ״‬é mais uni­
versal que ateniense e que habitante do Pireu).

Exemplo II

• Leitura do texto
“Essas aves de rapina são más; aquele que fosse uma ave
de rapina o mínimo possível - e inclusive o contrário, um cor­
deiro - não será bom?”
(Friedrich NIETZSCHE, Généalogie de la morale, I, 13, trad. fr.,
Paris, Union Générale d’éditions, 1974, p. 150.)
É o que Deleuze chama o “silogismo do cordeiro” e forma­
liza da seguinte maneira: “Suponhamos um cordeiro lógico: as
aves de rapina são más (isto é, as aves de rapina são todas más,
os maus são aves de rapina); ora, eu sou o contrário de uma ave
de rapina; logo, sou bom.”
(Gilles DELEUZE, Nietzsche et la pbilosophie, “Bibliothèque de
philosophie contemporaine”, Paris, PUF, 5a ed., 1977, p. 140.)

• Resposta
Trata-se de um silogismo de segunda figura e ele é sofísti­
co por duas razões.
Por um lado, a premissa maior é universal? Por outro, o
que vale a oposição de contrariedade aqui utilizada? “... o paralo­
gismo do ressentimento repousa sobre a ficção de uma força se­
parada do que ela pode” (p. 140). Ora, segundo Nietzsche-De-
leuze, o cordeiro só é bom porque nada pode, porque é fraco.

Construa você mesmo raciocínios

Até agora, os exercícios consistiam em descobrir ou em jul­


gar raciocínios já feitos. Ora, para treinar, nada melhor do que
construir raciocínios de todo tipo e, no caso de silogismos, de
diferentes figuras.
Entretanto, jamais sacrifique ao rigor ou mesmo à beleza
formal de uma demonstração sua verdade e seu conteúdo: a ló-

163
gica é uma arte a serviço do verdadeiro, e nào uma ginástica de
esteta ou um esporte cerebral. Para isso há jornais...
Eis aqui alguns exemplos de problemática. Mas você pode
descobrir outros. Um único conselho: varie as características de
suas teses, isto é, empregue problemáticas ora universais, ora
particulares, ora afirmativas, ora negativas.
- O escravagismo é desumanizante.
- Certas empresas nacionalizadas não são rentáveis.
- Os mamíferos que dormem menos são mais vulneráveis.
- Algumas cóleras justificam-se.

Enfim, em função do tipo de tese escolhido, adote este ou


aquele tipo de raciocínio, e se possível vários. Ponha-os primei­
ro em forma rigorosa e a seguir redija-os de maneira mais literá­
ria ou segundo um estilo coloquial.

164
C a p ít u l o IV

DIVIDA PARA REINAR

Um quarto instrumento é necessário para aprender a pen­


sar: a divisão. Quantas vezes esta simples palavra, “Distinga­
mos”, dissipou as trevas e apaziguou os espíritos inflamados por
polêmicas estéreis.

Por q u e dividir?

Da maneira como estabelecemos nossas primeiras divisões


depende nossa maneira de apreender o universo. “Pequeno erro
nos começos, grande erro nas conclusões”, dizia Aristóteles no
tratado Do Céu e do Mundo'. O mesmo filósofo observava no
início de sua Metafísica12que o próprio do sábio é pôr ordem; e
pôr ordem é distinguir as coisas e as idéias.
A divisão tem três grandes aplicações no funcionamento do
pensar: a definição, o raciocínio, a ordenação dos textos.

A divisão serve primeiramente à definição


Vimos e voltaremos a ver num instante. Para definir é pre­
ciso dividir, distinguir. Com efeito, a definição é um conheci­
mento distinto do ser de uma coisa; ora, vimos que, no ponto
de partida, nosso conhecimento é confuso, e não distinto. Como
passar do confuso ao distinto a não ser distinguindo, ordenando
esse confuso? Foi assim que Deus procedeu diante do caos pri­
mitivo (Gn 1, v. 2). Ele separa, distingue: a luz das trevas, a terra
do céu etc. A divisão é portanto um instrumento muito precioso
de definição, um de seus caminhos privilegiados.

1. Liv. I, cap. V, 271 I8-13 (‫ ;־‬cf. Tomás de AQUINO, De ente et essentia,


Proemium, n. 1, Turim, Marietti, 1954.
2. Liv. I, cap. II, 982 a 17-18.

165
Releiamos a tese, o núcleo do romance filosófico de Ver-
cors, Les animaux dénaturés [Os animais desnaturados]: “Con­
fundido com a natureza, o animal não pode interrogá-la. Eis aí,
parece-me, o ponto que buscamos. O animal forma um com a
natureza. O homem forma dois. Para passar da inconsciência
passiva à consciência interrogativa, foi preciso essa cisão, esse
divórcio, foi preciso essa separação. Não está aí, justamente, a
fronteira? Animal antes da separação, homem depois dela? Ani­
mais desnaturados, eis o que somos.”3 A definição do homem à
qual se chega é portanto: animal desnaturado. Veremos mais
abaixo que “animal” é o gênero e que “desnaturado” é a dife­
rença específica. Ora, o autor chegou a isso apenas distinguindo
o gênero animal (no sentido amplo que engloba o homem): de
um lado, o animal (no sentido restrito que exclui o homem), do­
tado de natureza, de outro, o homem (desprovido de natureza).
Aliás, todo esse livro centrado na definição do homem
(sem jamais deixar de ser um bom romance, o que não é fácil)
oferece uma série de ilustrações da necessidade da divisão preli­
minar à definição.

A divisão também serve à argumentação, ao raciocínio


É por isso que falamos dela aqui. Com efeito, uma vez co­
locada a problemática, e quando esta não é demonstrada, ela
tem a forma de uma questão. Como proceder para responder? O
único método rigoroso é analisar os dois termos da problemáti­
ca, o sujeito e o predicado. Ora, essa análise freqüentemente
consistirá seja em divisões, seja em definições, seja em descrições
(o que é uma forma atenuada de definição).
Leia, por exemplo, este boxe tirado da revista Science et vie
e intitulado “O pão não engorda”: “Ao contrário de uma idéia
ainda muito difundida, o pão não é um fator de obesidade; os
médicos livraram-no totalmente dessa injusta acusação nos Coló­
quios de Bichat, de setembro de 1990. O pão é certamente um
alimento calórico, mas, em relação aos açúcares simples (sacaro­
se), o amido que ele contém (cerca de 50% de seu peso) meta-
boliza-se lentamente e com isso permite responder de maneira
duradoura e regular às necessidades do organismo.

3· Les anim aux dénaturés, “Livre de p och e” nQ 210, Paris, Albin Michel,
1952, p. 322. Sublinhado no texto.

166
Na verdade, a maior parte dos nutricionistas constata de
forma unânime que a diminuição do consumo de pão (este foi
dividido por cinco em um século) foi acompanhada de um au­
mento, nas rações, da parcela dos açúcares e gorduras animais
nitidamente mais geradores de obesidade.”'
A tese é transparente: está contida ao mesmo tempo no tí­
tulo e na primeira frase do boxe: “O pão não é fator de obesida­
de”. Ora, o raciocínio que a estabelece baseia-se inteiramente
numa distinção: a dos açúcares simples e dos açúcares comple­
xos (o amido); ora, o amido não faz engordar, enquanto os açú­
cares simples (os dos doces e guloseimas) fazem engordar; mas
o pão é composto de açúcares complexos. Logo... Não é raro,
porém, comer-se pão com geléia, mel etc. Ora, estes são açúca­
res simples. Assim a distinção permite explicar uma causa verda­
deira da obesidade e a razão do injusto ataque dirigido contra o
pão. Esse ataque deve-se ao acidente, no sentido que demos a
essa expressão ao falarmos do raciocínio por acidente! (cf. Capí­
tulo III, Os pseudo-raciocínios).

A divisão serve para planejar os textos


O planejamento ou ordenação de um texto utiliza abun­
dantemente a divisão. Veremos isso em detalhe neste capítulo.

O QUE É A DIVISÃO?

Definamos o que é a divisão e depois distingamos suas


diferentes espécies. Finalmente, indicaremos seus limites.

Definição da divisão
A divisão enquadra-se particularmente na segunda lei da
inteligência definida na introdução. Como procede o espírito pa­
ra ir do comum ao distinto?
Voltaremos a falar nisso ao tratarmos da definição. A inteli­
gência só pode compreender o que é geral distinguindo, sepa-4

4. Marc MENESSIER, “Notre Pere qui etes aux d eu x, debarrassez-nous de


notre pain quotidien”, Science el vie, n- 891, dezembro de 1991, pp. 74-86, aqui
p. 76.

167
rando porções na massa para torná-la mais assimilável. A crian­
ça, no ponto de partida, não sabe distinguir os sons: passa do
caos dos ruídos à melodia e à harmonia, especial mente por in­
termédio da voz materna, como mostra bem Marie-France Casta-
rède5. Ela lança a hipótese engenhosa e promissora de que a
música e a voz da mãe permitem à criança aprender a aceitar a
distância do tempo, a enfrentar a separação.
Winnicot já havia observado: “Partindo dessa definição, o
balbucio do recém-nascido, a maneira como a criança maior re­
toma, antes de dormir, seu repertório de canções e melodias, to­
dos esses comportamentos intervêm na área intermediária en­
quanto fenômenos transicionais.”6 Tal é a função do estribilho:
“Uma criança no escuro, amedrontada, tranqüiliza-se cantarolan­
do. Ela anda e pára ao sabor de sua canção. Perdida, protege-se
como pode ou orienta-se bem ou mal com sua pequena canção.
Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabiliza­
dor e calmante, no meio do caos. Pode ocorrer que a criança
salte ao mesmo tempo que canta, acelere ou diminua sua mar­
cha; mas é a canção, ela própria, que já é um salto: ela salta do
caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslo­
car-se a cada instante.”7
A divisão é esse estribilho que põe ordem na confusão
(que não é caos) e na generalidade das idéias e das coisas. De
maneira mais rigorosa, a divisão é o instrumento de que se serve
a inteligência para passar do confuso ao distinto.

As' diferentes espécies de divisão


A própria divisão se divide! Há muitos tipos diferentes de
distinção. Assinalemos os principais. Eles são, por exemplo, uti­
lizados em ética8.
É preciso partir da noção de todo, já que só se pode distin­
guir um todo em suas partes. Ora, há diferentes tipos de todo:

5. La voix el ses sortileges, “Confluents psychanalytiques”, Paris, Les Belles


Lettres, 1987, pp. 252 ss.
6. David WINNICOT, Jeu et realite, Paris, Gallimard, 1975, p. 9■
7. Gilles DELEUZE, “De la ritournelle", Mille plateaux, Paris, Minuit, 1980,
p. 382.
8. Cf. Pascal IDE, Construire sa personnalite, Paris, Le Sarment-Fayard,
1991, p. 126.

168
A distinção do todo integral em suas partes integrais
Esse é o sentido mais espontâneo de todo e de partes, pois
é a significação mais material. Essa distinção é a que se aplica na
divisão do bolo ou na, geralmente menos prazerosa, da herança.
Aqui, o todo não se encontra na totalidade de sua essência
em cada uma de suas partes, mas ele é tal que as partes são ne­
cessárias à integridade (ou integralidade) da coisa. A totalidade
do bolo não se encontra em nenhuma de suas partes, todas as
crianças da terra sabem disso.

A distinção do gênero em suas espécies


Dito de outro modo, a divisão do todo específico em suas
partes específicas (ou subjetivas).
Essa divisão é tal que o todo se encontra em cada uma de
suas partes pela totalidade de sua essência e de suas funções. É
portanto o oposto do que ocorre na divisão do todo em suas
partes integrais.
Tomemos o exemplo clássico por excelência. O gênero
animal divide-se em duas espécies: homem e bicho (não dotado
de razão; um programa de Frédéric Rossif, nos últimos anos, ti­
nha por título: “Esses animais que chamamos bichos”). Bicho e
homem são ambos integralmente animais, em seu ser e em suas
funções. Poder-se-ia dizer o mesmo do ser vivo que se divide
em animal e vegetal: animais e vegetais são ambos seres vivos.

A distinção do todo em suas paties virtuais


Essa divisão é tal que o todo se encontra em cada uma de
suas partes segundo a totalidade de sua essência, mas não se­
gundo a totalidade de suas funções, de seus dinamismos. E o
caso da alma, do psiquismo ao se repartirem em suas diferentes
faculdades. É também o caso da música numa orquestra: a me­
lodia está presente nos diferentes instrumentos, mas não em to­
da a sua extensão.

Recapitulando
Quando divido meu dinheiro, cada um recebe apenas uma
parte dele: essa é a distinção do todo integral em suas partes in­
tegrais.

169
Quando partilho meu conhecimento, quando partilho a fa­
la, cada um recebe a totalidade de minha fala, de meu saber: é a
distinção do gênero em suas espécies.
Quando partilho meu tempo, quando me dedico a meu tra­
balho, a meus filhos, a minha esposa, trata-se da distinção do to­
do em suas partes virtuais.
A anatomia divide o homem segundo suas partes integrais:
cabeça, tronco, membros. A etnologia divide o homem segundo
suas partes específicas: esta etnia, aquela etnia etc. A psicologia
divide o homem segundo suas partes virtuais: inteligência, von­
tade, sensibilidade etc.

Os limites da divisão
Não se torne, porém, rei do microescalpelo lógico. Esse foi
um dos males da escolástica decadente. Não tente passar, por di­
visão, da categoria última substância ao gênero dos sifonápteros,
família dos pulicídeos, espécie pulex{a pulga, se preferir!).
Duas razões limitam o exercício da divisão.
- A primeira tem a ver com nossa inteligência. Temos uma
dificuldade tremenda em apreender as realidades materiais,
pois a inteligência humana deve passar muito tempo a
abstrair. Esse é todo o paciente trabalho dos pesquisado­
res, dos taxonomistas em geologia (em petrologia), em
botânica, em zoologia; e suas classificações são perpetua­
mente recolocadas em questão.
São conhecidas cerca de 900.000 espécies de insetos (e o
número pode ser duas a cinco vezes maior, segundo os especia­
listas). Conhecemos apenas 200 partículas elementares subatômi­
cas; por que a lista estaria encerrada?
- A segunda razão deve-se às coisas. Tendo chegado à es­
pécie última, não se pode mais dividir, não é possível se­
não confrontar indivíduos. É o caso da espécie homem. A
espécie homem não se divide em homem e mulher, e
com menos razão ainda em raças. Um sinal disso é que,
entre duas espécies, uma é sempre mais perfeita que a
outra: estabelecer uma divisão da espécie homem é impli­
citamente pregar o machismo ou o racismo’.9

9. Cf. Albert JACQUARD, Eloge de la différence. La génétique et les hom-


mes, Paris, Seuil, 1978, especialm ente cap. IV, pp. 8 1 1 0 8 ‫ ־‬.

170
Desse ponto de vista, em vez de falar de gênero masculino
e feminino (não seria nem mesmo exato dizer “espécie”, pois a
distinção sexuada é infraespecífica), seria preferível falar de
“subespécie masculina-feminina”!

Como dividir?

Estudemos os critérios de uma divisão correta antes de


aplicá-los à descoberta e à avaliação da divisão no interior de
um texto.

Os quatro critérios
Toda divisão rigorosa obedece a quatro critérios. De um
ponto de vista mais metodológico, falaríamos de regras.

A diferença deve ser intrínseca


Em outras palavras, a distinção deve ser feita no interior e
não no exterior do gênero, isto é, da noção mais universal a par­
tir da qual se divide. Distinguir animal em dotado de penas e
desprovido de penas é algo extrínseco, porque ter penas não é
essencial ao fato de ser animal! Em compensação, dividir a quan­
tidade em contínuo e em descontínuo diz respeito à própria es­
sência do gênero quantidade.
Às vezes, nosso conhecimento das coisas é por demais
aproximativo para poder apelar a uma diferença realmente cons­
titutiva: é, por exemplo, o caso da distinção geológica das ro­
chas em sedimentares, vulcânicas e metamórficas.
Uma doença atual é falar de divisão em termos de “dois ní­
veis, três perspectivas, quatro dimensões” etc. Essas metáforas
(na maioria das vezes tomadas do domínio espacial) são mas-
caramentos intelectuais, inconsistências mentais. Elas trocam a
precisão de um conceito pela indigência de uma imagem cuja
generalidade é sinônimo de vago.

A diferença deve ser exclusiva


Expliquemo-nos: os dois membros da divisão devem se ex­
cluir; para dizer de outro modo, não deve haver sobreposição
de telhas. A disjunção é uma condição de rigor intelectual.

171
Assim, falar de uma divisão tripartite dos pecados em ve­
nial, grave e mortal é, em última instância, inadmissível, em ter­
mos de clareza teológica. Com efeito, a distinção venial-mortal
exclui qualquer terceiro termo:
- ou o pecado desvia o homem do fim último e tira a vida
da graça: a falta é portanto mortal;
- ou o pecado concerne apenas ao caminho para esse fim,
sem pôr em questão a ordenação em direção a ele; o peca­
do não impede a vida da graça: a falta é apenas venial1‫״‬.
Donde o esclarecimento do papa João Paulo II: “Durante a
assembléia sinodal, alguns padres propuseram uma distinção tri­
partite dos pecados: conviria classificá-los em pecados veniais,
graves e mortais. Essa distinção tripartite poderia evidenciar o fa­
to de que entre os pecados graves existe uma gradação. Mas
continua sendo verdade que a distinção essencial e decisiva é
aquela entre o pecado que destrói a caridade e o pecado que
não mata a vida sobrenatural: entre a vida e a morte, não há lu­
gar para um meio-termo.”"
Desconfiemos de uma passagem demasiado impaciente do
comum ao muito distinto.

A diferença deve ser exaustiva


Ao se excluírem, os membros em presença devem esgotar
a divisão e portanto fornecer uma distinção exaustiva. Com efei­
to, se não for esse o caso, jamais estaremos seguros de que a di­
visão é exaustiva.
Reencontramos Obelix em flagrante delito de intenso exer­
cício lógico, em La grande traversée1 012. Obelix se acha perplexo
diante do capacete de Asterix (que acaba de ser atacado e feito
prisioneiro pelos índios): “Vejamos... Asterix só tira seu capacete
para comer e dormir... Ele não estava comendo, já que esperava
meus gluglus [perus], e, se estivesse dormindo, estaria aqui... Lo­
go, aconteceu-lhe alguma coisa!”
Na verdade, nosso caro Obelix faz um silogismo de primei­
ra figura, cuja premissa maior procede por divisões rigorosas
que ele explicita em parte:

10. Cf. Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, I-II, q. 88, a. Is.
11. João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Reconciliação e peni­
tência, 2 de dezem bro de 1984, n‘-’ 17. Paris, Téqui, 1984, p. 64.
12. UDERZO e GOSCINNY, Dargaud Éditeur, 1987, p. 23·

172
- O capacete de Asterix foi tirado:
ou por ele mesmo, portanto de maneira intencional. É
preciso dividir esse primeiro caso: “Asterix só tira seu ca­
pacete para comer e dormir.”
ou por uma causa não intencional, por uma outra causa
que sobreveio, ou seja, por um acontecimento inesperado.
- Ora, Asterix não estava comendo nem dormindo.
- Em conseqüência, resta a última hipótese: “Logo, aconte­
ceu-lhe alguma coisa!”

Consequências do segundo e do terceiro critério


Em primeiro lugar, a melhor divisão é em geral a divisão
em dois, também chamada divisão dicotômica (do grego: “divi­
são em dois”). Com efeito, esse é o meio mais seguro de respei­
tar as regras de exclusividade e de exaustividade.
Em seguida, e trata-se aqui também de um ideal, a divisão
ótima opera-se segundo a contrariedade. Os dois membros são
opostos como dois contrários.
O que caracteriza os contrários é pertencerem ao mesmo
gênero e serem seus extremos.
Talvez você conheça a história seguinte mas ignore que
sua moral seja lógica! Um açougueiro põe um cartaz diante de
seu estabelecimento: "O maior açougue da França.” Chega um
outro na mesma rua e escreve: “O maior açougue da Europa.”
Um terceiro instala-se na mesma rua e escreve simplesmente: “O
maior açougue da rua.” Isso basta. Para bem definir, como para
bem dividir, é preciso visar o gênero adequado em universalida­
de. Aqui, era suficiente dizer: “da rua”.

A diferença deve ser estabelecida


segundo o mesmo ponto de vista
Ela deve conservar a mesma perspectiva.
Assim, distinguir os animais em protozoários (isto é, unice­
lulares) e metazoários (pluricelulares) respeita a perspectiva de
partida, pois a célula é a peça elementar constitutiva do indiví­
duo vivo.
Em compensação, dividir as ciências em C.E.M (ciências da
estrutura e da matéria) e C.N.V (ciências da natureza e da vida)
é um erro lógico, pois é misturar os pontos de vista (a noção de

173
estrutura é uma noção mais formal, enquanto a matéria refere-se
à observação mais imediata; aliás, a matéria tem uma estrutura,
caso contrário seria inobservável); além disso, é operar uma so­
breposição parcial dos termos (uma vez que, por exemplo, a vi­
da pertence à natureza).
Tente resolver o enigma seguinte. Para ajudá-lo, saiba que
ele repousa sobre uma divisão incorreta. Três homens vão a um
café e fazem seus pedidos a 10 francos para cada um. Quando
vem a conta, cada um põe seus 10 francos, o que dá um total de
30 francos. Ora, no momento de receber, o caixa observa que
na verdade os clientes consumiram ao todo apenas 25 francos,
restando cinco francos de troco. Os clientes decidem deixar 2
francos de gorjeta para o garçom. Portanto, eles pagaram 10
francos menos 1, ou seja, 9 francos; ora, 3 x 9 francos = 27 fran­
cos + 2 francos de gorjeta = 29 francos. O que foi feito do franco
restante? O contador irá arrancar-se os cabelos...
A resposta geralmente dada é que ele está no bolso do gar­
çom. O que nos parece um pouco apressado. É muito raro que
se remonte até a solução profunda, até o vício exato de raciocí­
nio. Quanto mais simples a charada, tanto mais o pensamento
se embaraça, tanto mais o princípio no qual se baseia o parado­
xo deve ser decisivo. Com efeito, a solução depende do princí­
pio de lógica que ordena que uma divisão seja feita de maneira
homogênea. Não se pode dividir o gênero legume em azul e
não-azul ou em metálico e não-metálico. Também aqui, contra
toda a aparência, os 30 francos não são divididos de maneira
homogênea quando se adicionam os 3 x 9 francos + 2 francos
de gorjeta.

Síntese do que não se deve fazer!


Michel Foucault dá um espantoso contra-exemplo no início
de uma de suas obras fundamentais, As palavras e as coisas. Aliás,
é o ponto de partida dela. “Este livro teve sua origem num texto
de Borges.” Ele desencadeou a hilaridade de Foucault e faz va­
cilar, segundo ele, toda a nossa prática milenar de pensar. “Esse
texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde se escreve que
4os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b)
embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulo­
sos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação,

174
i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados
com um pincel muito fino de pêlo de camelo, 1) etcétera, m)
que acabam de quebrar a moringa, n) que de longe se asseme­
lham a moscas’. No maravilhoso dessa taxonomia, aquilo que se
alcança num salto, aquilo que, por meio do apólogo, nos é indi­
cado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o li­
mite do nosso: a impossibilidade nua de pensar isso.”13
Ora, por que não se pode “pensar isso”? Porque isso vai
contra todas as leis mais elementares da divisão e, na verdade,
da estruturação do mundo e de nosso universo mental. Essa di­
visão não é intrínseca, nem exclusiva, nem exaustiva, nem dico­
tômica, nem de mesma perspectiva. Ora, o riso tem sobretudo
por função exorcizar o invivível e o desumanizante (na ordem
não apenas ética, mas intelectual)...

Como reconhecê-los num texto?

Critérios lógicos
Na verdade, não existem realmente critérios lógicos que
permitam descobrir as divisões presentes num texto. Isso requer
certa prática.
Veremos adiante os critérios metalingüísticos mais univer­
sais a utilizar: eles valem para todos os textos, e é preciso sem­
pre buscá-los.

Critérios literários
As divisões são em geral claramente indicadas e fáceis de
reconhecer: “em primeiro lugar..., a seguir..., enfim...” São os
“por um lado... por outro...” etc.
Não é raro também que encontremos um “depois” ou um
“além disso” isolado. É o sinal de que o autor passa a uma outra
idéia e é portanto um convite a remontar acima no texto para
reencontrar a ou as primeiras idéias.
Também é freqüente que o autor não dê seu plano no
ponto de partida, mas o introduza aos poucos, resumindo seu
parágrafo anterior: isso pode explicar-se seja por razões a príori

13. Les rnots et les cboses. Une archéologie des Sciences humaines, “Biblio-
thèque des Sciences humaines”, Paris, Gallimard, 1966, p. 7.

175
(por exemplo, de ordem literária: proceder assim torna o estilo
mais leve), seja por razões a posteriori (por exemplo, de ordem
metodológica: o autor descobre, ao terminar seu parágrafo, que
tem uma nova coisa a dizer diferente do que acaba de ser dito).
Eis aqui, por exemplo, o que escreve o bom pedagogo Jean-
Baptiste Fages: “A designação do inconsciente inaugura a época
da psicanálise. O psiquismo apresenta-se então como um mun­
do em três graus: o consciente, o pré-consciente e o inconscien­
te.” Segue-se uma apresentação desses três graus e inicialmente
do primeiro. Um parágrafo começa a tratar do inconsciente. Eis
como começa o parágrafo seguinte: “O primeiro traço do in­
consciente - numa abordagem original que o designa como tal -
é portanto sua profundeza dificilmente sondável. A esse traço
junta-se um segundo: o dinamismo, o aspecto energético ou
‘pulsional’.”‫״‬
As palavras “primeiro traço do inconsciente...” convidam
deste modo a voltar acima para redescobrir o plano (o que não
exige aqui nenhum esforço: trata-se do parágrafo precedente
que corresponde ao primeiro ponto).
Você logo descobrirá que existem dois, ou melhor, três ti­
pos de autores:
- Os que têm um plano, e o anunciam: é a minoria (muito
apreciada). E acabamos de ver que é preciso distinguir
ainda: os que o anunciam de imediato, desde o ponto de
partida (é o ideal do ponto de vista do rigor e da econo­
mia de tempo, mas é perder em prazer estilístico o que
se ganha em eficácia: o útil contra o belo) e os que o
anunciam aos poucos ou posteriormente (o que faz per­
der mais tempo).
- Os que têm um plano mas que não o anunciam. Cabe a
nós descobri-lo se quisermos compreender bem o pensa­
mento do autor e não ficar nas impressões. Você encon­
trará no capítulo VII um bom número de exercícios desti­
nados a familiarizá-lo com esse gênero de prospecçào.
- Os que não têm plano e que não têm sequer a insolência
de anunciá-lo, e às vezes nem a consciência para se da­
rem conta disso...

14. J e a n -B a p tiste FAGES, Histoire de la psychanalyse après Freud, col.


“P sy c h ia trie /P sy c h a n a ly se ” , T o u lo u s e , Privat, 1991, p. 26.

176
Exercícios

P r im e ir o t i p o d e e x e r c í c io s : d e t e r m in a r a s d iv is õ e s

EMPREGADAS NOS TEXTOS SEGUINTES

Proceda sempre da mesma maneira: determine o ponto de


vista comum a partir do qual o autor distingue; dê as divisões de
maneira rigorosa, dicotômica; enfim, refaça seu trabalho e deter­
mine a natureza da divisão (gênero-espécies, todo-partes inte­
grantes...).
Tomaremos alguns exemplos dos textos teológicos e filosó­
ficos de Santo Tomás, porque constituem uma reserva ideal e
inesgotável. Nada melhor para se formar.

Exemplo /

• Leitura do texto
“As crianças de creche têm duas personalidades: a persona­
lidade de objeto de sociedade, e a personalidade de um sujeito
que fica em pane quando os pais resolvem colocá-las na creche
sem tê-las prevenido, sem dizer-lhes o quanto vão ficar tristes
por colocá-las na creche, mas que isso é necessário. E, sobretu­
do, quando as mães não abraçam seu filho ao chegarem à cre­
che para buscá-lo.”
(Françoise DOLTO, Toiit est langage, “Livre de poche” ns 6613,
Paris, Vertiges du Nord/Carrère, 1987, pp. 97-8.)

• Análise do texto
- A divisão distingue as partes no interior de um todo. Que
todo é esse? Trata-se da personalidade da criança que é
colocada na creche.
- A divisão é clara: personalidade de objeto de sociedade,
e personalidade de sujeito (de indivíduo, independente-

177
mente do pertencer social). E essa divisão permite à psi­
canálise explicar as dificuldades (por exemplo, as insô­
nias) das crianças postas na creche.
- Natureza da divisão:
Não se trata da divisão de um gênero em suas espécies
(pois é a mesma criança que apresenta essas duas personalida­
des), nem de um todo em suas partes (pois a criança inteira está
presente nesses dois tipos de personalidade); trata-se da divisão
de um todo em suas partes virtuais (a criança está mais ou me­
nos presente, dinâmica, nessas duas personalidades).

Exemplo II

• Leitura do texto
“A justiça particular ordena-se a uma pessoa privada, que
mantém com a sociedade uma relação comparável à da parte com
o todo. Ora, uma paite comporta uma dupla relação: primeiro a de
parte a parte, à qual corresponde na sociedade a relação de indiví­
duo a indivíduo. É essa ordem de relação que a justiça comutativa
dirige, ela que tem por objeto as trocas mútuas entre duas pessoas.
Entre o todo e as partes considera-se uma outra ordem, à
qual se assemelha a ordem do que é comum aos indivíduos. Essa
ordem é a que dirige a justiça distributiva, chamada a distribuir
proporcionalmente o bem comum da sociedade. Há portanto duas
espécies de justiça, uma distributiva, outra comutativa.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 6l, a. 1.)

• Análise do texto
- O todo que é dividido: é evidentemente a justiça.
- Divisão: a justiça se divide em justiça distributiva e comu­
tativa.
- Natureza da divisão: é a distinção de um gênero em suas
espécies.

Exemplo III

• Leitura do texto
Este texto divertido é tirado do romance do lingüista Um-
berto Eco. Não podemos citá-lo por inteiro em virtude de sua

178
extensão. Remetemos à sua leitura para os detalhes, sobretudo
por conter uma série de ocasiões para nos exercitarmos na práti­
ca do raciocínio (errôneo).
Um dos heróis, Belbo Casaubon, declara: “No mundo há os
cretinos, os imbecis, os estúpidos e os loucos.” Ele precisa: “Ca­
da um de nós, de vez em quando, é cretino, imbecil, estúpido
ou louco.”
“Espero que você não tenha levado a sério a teoria. Não
estou pensando em colocar o universo em ordem. Estou falando
do que é um louco para uma editora.”
Depois ele tenta justificar sua divisão, mas de maneira não
dicotômica. Esta será sua tarefa.
“O cretino nem sequer fala, ele baba, é espástico. Crava
seu sorvete na testa, por falta de coordenação. (...) Ele não nos
interessa, você o reconhece de imediato, e ele não freqüenta
editoras. (...)
Ser imbecil é mais complexo. É um comportamento social.
Imbecil é aquele que fala sempre fora de hora. (...) em termos
comuns, é aquele que comete gafes, que pede notícias de sua
encantadora esposa ao sujeito que acaba de ser abandonado pela
mulher. (...)
O estúpido não se engana em seu comportamento. Enga­
na-se em seu raciocínio. É aquele que diz que (...) todos os
grandes símios antropomorfos descendem de formas de vida in­
feriores, os homens descendem de formas de vida inferiores, lo­
go todos os homens são grandes símios antropomorfos. (...) O
estúpido é mais insidioso. O imbecil, a gente reconhece de
imediato (sem falar do cretino), ao passo que o estúpido racioci­
na quase como você e eu, salvo uma diferença infinitesimal. Ele
é um mestre dos paralogismos.” Segue-se toda uma série de
exemplos divertidos.
“O louco, a gente reconhece de imediato. É um estúpido
que não conhece os truques. O estúpido procura demonstrar
sua tese, sua lógica é extravagante, mas ele tem uma. O louco,
ao contrário, não se preocupa em ter uma lógica, ele procede
por curtos-circuitos. (...) O louco tem uma idéia fixa, e tudo o
que descobre lhe serve para confirmá-la.” E ele dará o exemplo
do esoterismo, do interesse pelos Templários.
(Umberto ECO, trechos de Le pendule de Foucault, Paris,
Grasset, 1990, cap. X, pp. 70-6.)

179
• Conselhos de trabalho
O texto é um pouco longo e difícil. Para isso, pode ser útil
proceder em duas etapas:
- Primeiro, assinale os índices de divisão. Descubra as divi­
sões dicotômicas. Siga o texto e busque uma divisão que
vale para o membro anterior e para todos os membros
posteriores. Por exemplo, no início do texto, procure um
critério de divisão que vale para o cretino, de um lado, e
para o imbecil, o estúpido e o louco, de outro. Se isso
lhe parecer difícil, pode ser mais astucioso começar pelo
fim. Recapitule e veja se suas divisões são coerentes.
- Então você poderá justificar sua divisão e aplicar-lhe os
critérios mencionados. E poderá também perguntar-se de
que tipo de divisão se trata.

• Análise do texto
- Em primeiro lugar, qual é o gênero? Não é a humanidade
pura e simplesmente. Em todo caso, é a humanidade con­
siderada de um certo ângulo.
Casaubon fala “do que é um louco para uma editora”; ele
não distingue os diferentes tipos de homem que existem no uni­
verso.
- As divisões:
Os critérios de divisão dicotômica utilizados são os seguin­
tes: sociável ou não, loquaz ou não, inconveniente ou não, que
o editor reconhece de imediato ou não, que comete paralogis­
mos ou não, que é lógico ou não.
Donde a árvore seguinte que segue a ordem do texto:
- O que nem sequer fala e é (portanto) insociável: o cretino.
- O que fala e é (portanto) sociável:
o inconveniente (que se reconhece de imediato): o imbecil,
o não-inconveniente (que não se reconhece de imediato):
- Que raciocina e comete erros involuntários (paralogis­
mos): o estúpido,
- Que não raciocina, não tem lógica (pois procede por cur­
tos-circuitos, guiado por uma idéia fixa): o louco.
Assim, ao cabo de suas divisões, Casaubon chega à defini­
ção do que é um louco.
- Natureza da divisão:

180
Ela é análoga à de um gênero em suas espécies, embora a
humanidade não seja propriamente um gênero.

Exemplo IV

• Leitura do texto
Santo Tomás vai tentar explicar a distinção das três virtudes
teologais - fé, esperança e caridade -, distinção que é um dado
das Escrituras muito certo. Por que três e não duas ou quatro?
“As virtudes teologais ordenam o homem à beatitude so­
brenatural (...). Ora, isso é feito de duas maneiras: por meio da
inteligência (...) e pela retidão da vontade.” Mas “foi preciso
que a esses dois pontos algo fosse sobrenaturalmente acres­
centado ao homem para ordená-lo a seu fim sobrenatural. Em
primeiro lugar, no que se refere à inteligência, certos princípios
sobrenaturais são acrescentados ao homem, princípios esses
captados numa luz divina, e é a questão do crer, sobre a qual
incide a fé. A seguir, a vontade é ordenada para o fim sobrena­
tural, e quanto ao movimento de intenção que tende para esse
fim como para uma coisa possível de obter - e é a questão da
esperança e quanto a uma certa união espiritual pela qual a
vontade é de certo modo transformada nesse fim, o que se faz
pela caridade.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 62, a. 3.)

• Análise do texto
- O gênero, o ponto de partida, é a virtude teologal, isto é,
a virtude que tem Deus por termo (e por causa).
- Divisão: seu princípio se baseia nas diferentes faculdades
e operações do homem. Ora, há três atos do espírito do
homem (conhecer, esperar e amar) e esses três atos po­
dem ser unidos a Deus.
- Natureza da distinção: é a divisão do gênero em suas es­
pécies. Pois cada uma das virtudes comprova claramente
a definição da virtude teologal.

181
Seg u n d o t ip o d e e x e r c íc io s

Tente você mesmo determinar distinções, estabelecer divi­


sões. Você pode escolher um gênero que já sabe ser distinto ou
um todo cujos princípios de distinção você mesmo descobrirá.
Aplique os critérios acima (em particular a dicotomia). Não
ocultemos que o rigor nesse domínio supõe paciência e um lon­
go treinamento. Mas ele compensa, pela estruturação do pensa­
mento que engendra.

Em filosofia
- As dez categorias de Aristóteles: substância, quantidade,
qualidade, relação, ação, paixão, tempo, lugar, situação,
posse (cf., por exemplo, Santo Tomás de AQUINO, Co­
mentário da Física, Liv. 3, 1. 5, nQ322, Turim, Ed. Mari-
tetti, 1965, pp. 158-9; e Comentário da Metafísica, Liv. 5,
1. 9, n2 891892‫־‬, mesmo editor, 1964, pp. 2389‫ ;־‬a dis­
tribuição é aqui ligeiramente diferente).
- As quatro causas: material, formal, eficiente, final (sobre
a qual falaremos um pouco no próximo capítulo).

Em teologia
Colocaremos entre parênteses os lugares onde Santo To­
más, grande especialista da divisão, dá uma justificação da re­
partição dicotômica que ele tenta da enumeração (outras podem
ser encontradas). Eis aqui alguns ricos exemplos entre muitos:
- Os sete dons do espírito Santo: sabedoria, inteligência,
ciência, conselho, piedade, força, temor (cf. Is 11, 2-3;
Suma teológica, I-II, q. 68, a 4);
- As sete beatitudes (cf. Mt 5, 312‫ ;־‬Suma teológica, I-II, q.
69, a. 3);
- Os sete pedidos do Pai Nosso (cf. Mt 6, 913‫ ;־‬Suma teo­
lógica, II-II, q. 83, a. 9);
- Os sete pecados capitais: a glória vã (o orgulho), o ciú­
me, a cólera, a acídia (ou a tristeza espiritual), a avareza,
a gula e a luxúria (cf. Suma teológica, I-II, q. 84, a. 4).

182
C a p ít u l o V

A FINIÇÃO DA DEFINIÇÃO

Não basta enunciar uma tese nem mesmo argumentar, é


preciso também saber o que os termos significam. E o papel cia
definição é nos dizer isso. O estudo da definição nos permitirá
fechar o estudo das três operações que distinguimos na introdu­
ção: a segunda operação ou juízo que se enuncia numa tese (cf.
capítulo II); a terceira operação do espírito ou raciocínio (cf. ca­
pítulo III); e, enfim, a primeira operação do espírito ou definição
(este capítulo).
E, se adotamos essa ordem paradoxal que não é a dos ma­
nuais, recordemos, é porque ela corresponde mais ao uso práti­
co e cotidiano que se faz da lógica. Nosso enfoque não é o da
erudição, mas o da utilização.

Por que definir?

Definir é uma necessidade da inteligência e a condição de


uma atividade saudável e clara. “A verdade libera” (Jó 8, 32). Sa­
ber definir não é um gadget intelectual; é indispensável para po­
der emitir qualquer pensamento sensato. Muitos discursos repou­
sam sobre a inconsistência de palavras utilizadas por outros. Não
poder definir os termos que se utilizam é falar e não dizer nada.
“A laicidade é um princípio democrático.” Eis palavras ouvidas
com freqüência, mas o que significam? Como você as definiria?
Além disso, a definição é o melhor fundamento de uma
boa demonstração: o “quê?” fecunda o “por quê?”. Por exemplo,
se você perguntar por que a prostituição é alienante ou perver­
sa, defina o sujeito e sobretudo o predicado.
Vivemos numa época em que essa capacidade de poder
definir um certo número de noções é questionada. Claro que se

183
concede à ciência a capacidade de poder circunscrever com ri­
gor o real (por exemplo, a biologia tentará nos dizer o que é
uma bactéria, e um astrônomo, o que é uma estrela dupla). Mas
será negado à filosofia o poder de definir os conceitos que lhe
são próprios, para fazer deles matéria de opinião pessoal. É as­
sim que se dirá que não existe definição do amor, da vida, do
homem, do tempo etc., mas que cada um tem a sua.
Essa prevenção com respeito à definição deve-se primei­
ramente ao fato de que as realidades que a filosofia busca defi­
nir são acessíveis a todos e que cada um pode, certamente
com maior ou menor dificuldade e inabilidade, dizer a nature­
za dessa realidade, enquanto o real apreendido pela ciência
não é fácil de reconhecer. Por exemplo, cada um tem sua idéia
sobre a liberdade e percebe ao menos confusamente que ela
faz parte da dignidade do homem e comporta uma certa au­
sência de coerção.
A seguir, aquilo de que a filosofia trata tem uma grande in­
cidência na vida cotidiana, inclusive bem mais do que a ciência,
contrariamente a uma opinião que prevalece. Ora, quanto mais
uma questão nos for próxima e vital, no sentido próprio do ter­
mo, tanto mais a inteligência concentrará seus esforços nela,
mesmo sem dar-se conta disso. Por exemplo, enquanto a desco­
berta da existência de novas espécies de escaravelhos quase não
tem influência sobre nossa vida cotidiana e portanto não engen­
dra muitas opiniões e reflexões no grande público, toda pessoa
tem sua opinião sobre a felicidade ou sobre a família.
Enfim, essa tese baseia-se com freqüência em postulados fi­
losóficos, também eles mais ou menos conscientizados. Por
exemplo, quem diz que "definir o movimento é congelá-lo ou é
tentar mostrar o dinâmico pelo estático de uma fotografia”, ba-
seia-se numa filosofia de clima bergsoniano que teria tudo a ga­
nhar se fossem analisadas as críticas pertinentes que foram feitas
ao grande filósofo francês. Do mesmo modo, quem disser que o
homem é de uma riqueza quase infinita, que nenhum conceito
em sua finitude congênita é capaz de encerrá-lo, é tributário de
uma visão empirista da realidade.

184
Ciências para todos ou filosofia para todos?

O sociólogo e professor Edgar Morin, autor de um vasto tra­


tado sobre O método (o 4 2 tomo, que não é o último, foi pu­
blicado no final de 1991), observa que "... ninguém pode
se abster de idéias gerais - sobre o homem, as mulheres, o
amor, a vida, a sociedade, o mundo - , inclusive o especia­
lista, o qual está condenado às idéias gerais mais vazias e
menos controladas".
Ele tira disso esta conseqüência: "Os grandes problemas colo­
cados pelas ciências não podem ser a propriedade de pes­
quisadores de laboratório. O homem honesto é capaz de inte­
grar e de discutir as idéias fundamentais que emergem de
uma ciência. Quando Jacques Monod escreve O acaso e a
necessidade, ele não faz vulgarização, não dilui seu saber,
ele expõe para si mesmo e para o leitor suas idéias fundamen­
tais. Sem entrar na manipulação das moléculas e dos genes,
podemos discutir hoje temas fundamentais da biologia molecu­
lar. Com Prigogine, podemos discutir acerca da entropia sem
sermos capazes de fazer o menor cálculo de laboratório.
Com Reeves, podemos nos interrogar sobre nosso cosmos."

Edgar MORIN, entrevista no te Monde, 2 6 de novembro de 1991, p. 2.

Em suma, de maneira geral, os que não foram sensibiliza­


dos pela filosofia são vítimas, a exemplo de Euclides (e de seu
famoso postulado), de preconceitos, na maioria das vezes herda­
dos de seu tempo, geralmente de inspiração positivista e cientifi-
cista, no caso do nosso. É portanto a uma constatação de mo­
déstia que somos levados: a sobredeterminação sobre a qual
Freud tanto insistiu mina tanto nossos pensamentos mais filosó­
ficos quanto nossas ações mais cotidianas. E muitas opiniões
que emitimos já foram formuladas, e o foram melhor do que por
nós, e mais: foram criticadas com acuidade e pertinência. Isso
não nos deve incitar ao desencorajamento ou ao derrotismo,
mas a um reconhecimento sério e consciente de nossos limites.

185
O QUE É A DEFINIÇÃO?

A primeira questão que a inteligência se coloca é: “O que


é?‫״‬. Ela procura responder exprimindo o que é a realidade, di-
zendo-a. Ora, esse é o ofício da definição: exprimir com preci­
são o que é uma coisa, sua natureza ou sua essência, como se
diz em filosofia. É por isso que se fala da essência de uma flor.
A definição é portanto um discurso, isto é, um conjunto de
palavras, que diz o mais perfeita e distintamente possível o que
é a coisa.

As palavras com vários sentidos


Para definir é preciso utilizar palavras; ora, as palavras ge­
ralmente têm vários sentidos. Esse, aliás, é um dos problemas
que a tradução coloca aos especialistas em inteligência artificial.
Essa polissemia (ou seja, essa pluralidade de significações) não
irá tornar a definição imprecisa?
Essa dificuldade obriga a um importante esclarecimento.

Em primeiro lugar, o conceito é intermediário


entre a palavra e a realidade
Aristóteles dizia: “Os sons emitidos pela voz são os símbo­
los dos estados da alma, e as palavras escritas, os símbolos das
palavras emitidas pela voz.”1 Por exemplo, quando digo “árvo­
re”, essa palavra ou som de voz é signo não imediatamente da
realidade da árvore que me é exterior, mas do conceito de árvo­
re que está em mim.
Por quê?2 Resumidamente, digamos que a realidade desperta
em nós o que se chama um conceito ou idéia. Mas nossa natureza
humana mista, composta de corpo e alma, obriga a exprimir esse
conceito puramente inteligível em um som de voz sensível e per­
ceptível. Ora, o inteligível não pode se reduzir ao sensível. Em
compensação, nada impede que este seja signo daquele (mas isso
só poderá acontecer em virtude de uma relação convencional).

1. ARISTÓTELES, De 1’interprétation, cap. I, 16 a 3 5 ‫־‬, trad. fr. Tricot, Paris,


Vrin, 1969, pp. 77-8.
2. Cf. um texto célebre de Santo Tomás: De Ver., 4, 1 (cf. também Suma
teológica, I, q. 34, a. 1).

186
A seguir, a palavra se relaciona à idéia
de três maneiras diferentes
“Um termo é unívoco quando pode ser atribuído a diversos
sujeitos segundo uma ‘razão’ idêntica, como diz Santo Tomás,
ou seja, no mesmo sentido, se for uma palavra, ou com uma
compreensão idêntica, se for um conceito. Por exemplo, o nome
de animal atribuído ao boi e ao cavalo.
Um termo é equívoco quando pode ser atribuído a diversos
sujeitos em sentidos inteiramente diferentes; por exemplo, o no­
me de cão atribuído ao animal e à constelação. Tal termo só po­
de ser um termo oral, uma dessas palavras que chamamos homô­
nimas em gramática, e que têm vários sentidos; pois um conceito
não pode apresentar à inteligência essências diferentes.” Outros
exemplos de termos equívocos: render, coral, importar.
“Um termo é análogo quando se aplica a diversos sujeitos
num sentido que não é nem absolutamente idêntico, nem abso­
lutamente diferente. O termo análogo é portanto intermediário
entre o unívoco e o equívoco. E como isso é possível? Quando
coisas essencialmente diferentes têm entre si uma certa relação."0

Em conseqüência, hasta simplesmente entendermo-nos


sobre o sentido das palavras
Muitas querelas não passam de desentendimentos de voca­
bulário. E jamais perdemos tempo em determinar claramente o
sentido das palavras que utilizamos.
E interessante saber reconhecer os termos equívocos num
raciocínio. Este, por exemplo: “Todo delfim tem nadadeiras; ora,
o príncipe Charles é delfim; logo, Lady Di terá surpresas!”

As definições falsas ou ruins


A definição jamais é a enumeração dos singulares, contraria­
mente ao que muitos imaginam e ao que faz, particularmente, a
criança. Se você pede a esta para definir uma planta, na maioria
das vezes ela lhe mostrará diferentes espécies de flores. Leia no
quadro a lição de lógica humorística dada por Sócrates ao nobre
general Menon.3

3. Roger VERNEAUX, Introduction générale et logique, “Cours de philoso-


phie”, Paris, Beauchesnes, nova edição, 1964, p. 70; sublinhado no texto.

187
Uma colheita inesperada

Sócrates pede a Menon para definir a virtude. Eis como ele


responde: "Em primeiro lugar, se é a virtude do homem que
desejas, é fácil dizer o que constitui a virtude de um homem:
ser o que é preciso ser para gerir os negócios do Estado, e,
nessa gestão, fazer o bem a seus amigos e o mal a seus ini­
migos, protegendo a si mesmo de jamais ter de sofrer seme­
lhante mal. Desejas agora a virtude de uma mulher? N ão é
difícil explicar que esta última tem o dever de administrar
bem a casa, zelando pela manutenção daquilo que a casa
encerra, sendo dócil às instruções do marido. Além disso,
outra será a virtude da criança, conforme for menina ou me­
nino, outra a do homem mais velho (...)." "Ah! Menon, que
extraordinária boa sorte a minha, pois, estando em busca
de uma única virtude, encontro, disposto em tuas mãos, um
feixe de virtudes!"

Menon, 7 ) e a 72a, in PLATÃO, Oeuvres, "Bibliothèque de la Plêiade", Paris, Galli-


mard, 1950, p. 5 15 .

Um outro tipo de definição errada é a definição etimológi­


ca. Voltaremos a falar disso adiante. Restringir-se à origem da
palavra resulta às vezes em más surpresas, ainda mais que não é
raro que a etimologia seja incerta.

Os diferentes tipos de definição


Veremos os dois mais importantes e acrescentaremos um
terceiro que em nada é inferior a eles por sua freqüência.

A definição por gênero e diferença


Ela é clássica. Todos os botânicos e zoólogos a utilizam sis­
tematicamente desde Lineu, dando dois nomes para designar
plantas ou animais: o primeiro corresponde ao gênero e o se­
gundo à diferença. Assim, o mosquito é um culex (é o gênero;

188
culex quer dizer: mosquito, em latim) pipiem (é a diferença: pi­
pieris quer dizer: que pica, em latim).
O filósofo grego Temisto diz que o trabalho do espírito
que leva a uma definição é comparável ao de um escultor. Este
desbasta pouco a pouco seu mármore e dele faz “sair”, por as­
sim dizer, sua escultura, cada vez mais precisamente. Assim tam­
bém, a inteligência vai retirando aos poucos do mais universal,
que é o gênero, aquilo que será a essência que designa a dife­
rença.
A etimologia de definição sugere uma outra analogia, a do
agrimensor-geômetra. O termo latino definire significa, com efei­
to, delimitar (subentendido um campo). Ora, para delimitar um
terreno, é preciso primeiro indicar em que zona ele se encontra,
depois diferenciá-lo dos terrenos vizinhos. Assim também, para
definir um conceito, deve-se primeiro dar o gênero e a seguir
estabelecer sua diferença.

Vimos na introdução que a inteligência humana procedia


naturalmente do geral ao particular, não insistiremos nisso. E es­
sa dinâmica vale para toda a vida da razão, portanto para as três
operações que distinguimos, a começar pela primeira que res­
ponde à questão: “O que é?” Ora, o gênero é o que diz comu-
mente ou de maneira geral o que é uma coisa, enquanto a espé­
cie diz precisamente, distintamente o que ela é. É assim que os
definia o filósofo neoplatônico Porfírio (em sua Isagogé).
Portanto, a inteligência vai do gênero à espécie, isto é, do
mais universal ao mais particular. E a definição mais natural, ou
seja, a mais fundada no modo de que se serve a inteligência pa­
ra apreender as realidades, será a que vai do gênero à espécie
ou, mais exatamente, que associa o gênero e o que constitui a
espécie, a chamada diferença específica; e, para ser absoluta­
mente rigoroso, a espécie define-se pelo gênero ao qual se junta
a diferença específica. Assim, o satélite define-se como um cor­
po (gênero) que gravita ao redor de um planeta (diferença).

Retomemos o exemplo arquiclássico, mas inesgotável, do


homem. É a espécie que se quer definir: o homem define-se co­
mo um animal racional, animal sendo o gênero e racional, a
diferença específica. Agora compreendemos a inteligibilidade

189
profunda dessa definição: com efeito, a inteligência consegue
apreender essa essência (ou espécie) particular que é a essência
humana a partir do que é mais universal. Ora, o que é mais uni­
versal, o que significa homem de maneira comum? É o animal.
Assim a espécie humana classifica-se no gênero animal. Por ou­
tro lado, o gênero animal pode ser distinguido, o que permitirá
chegar a um conhecimento mais distinto, e a diferença que pos­
sibilita dividir o gênero animal mais profundamente é a capaci­
dade de raciocinar. Eis por que o homem define-se como animal
dotado de razão. A definição por gênero e espécie reproduz em
seu arcabouço lógico a dinâmica da inteligência em busca de
conhecimento distinto.
Aliás, é assim que procedemos espontaneamente quando
tentamos nos dizer ou dizer a alguém o que é uma coisa. Por
exemplo, quero definir o que é uma habanera. Direi primeiro
que é uma dança (coloco-a numa categoria mais universal, isto é,
num gênero), depois que é espanhola, que provém de Havana,
qual o seu ritmo etc., características que permitem chegar à dife­
rença e designar o que é absolutamente próprio a essa dança.
Enfim, distinguem-se gênero próximo e gênero distante. O
gênero próximo é imediatamente mais universal que a diferença
e que o termo definido, o gênero distante é mais universal em
um grau. Por exemplo, ser vivo é o gênero distante de homem,
enquanto animal é o gênero próximo. O dicionário Petit Robert
define “halle” como um vasto local fgênero distante] coberto !gê­
nero próximo] onde funciona um mercado [diferença].”

A def inição pelas quatro causas


É a mais fácil de utilizar, ainda que esteja menos de acordo
com o processo natural da inteligência: as quatro causas situam-
se no mesmo grau de universalidade, enquanto a inteligência vai
do mais universal ao mais distinto.
A distinção das quatro causas é estudada e estabelecida em
filosofia da natureza (ver, por exemplo, em Aristóteles, Física,
liv. II, cap. IV ss.). Um exemplo permitirá uma primeira compreen­
são disso. Quais são as quatro causas de um veículo? A causa
material: o metal, o plástico, o vidro etc., que serviram para sua
fabricação. A causa formal: sua forma e, mais profundamente,

190
aquilo que chamamos hoje seu “conceito”. A causa eficiente: o
construtor. A causa final: o uso rodoviário.
A causa, com efeito, deve ser entendida num sentido bem
mais amplo que o que lhe damos habitualmente, a saber, o de
causa motora, eficiente. Na verdade, é causa aquilo de que uma
coisa depende tanto em seu ser quanto em seu devir: por exem­
plo, nosso corpo (que é causa material) é efetivamente causa do
que somos. Essas quatro causas, agrupando tudo aquilo de que
uma coisa depende, são capazes de dizer o que é essa coisa e,
portanto, de defini-la. Além disso, essa definição será muito
completa, já que a perspectiva das quatro causas é totalizante e
exaustiva.
O etólogo Tinbergen dá a seguinte definição do instinto:
“O instinto é um mecanismo nervoso organizado hierarquica­
mente, sensível a certos influxos iniciadores, disparadores ou
condutores de origem tanto interna quanto externa, e que res­
pondem a esses influxos por movimentos coordenados que con­
tribuem para a conservação do indivíduo e da espécie.”‫'־‬
Ora, examinando de perto, você encontra aí as quatro cau­
sas: material (“mecanismos nervosos”), formal (“organizado hie­
rarquicamente...”), eficiente (“influxos de origem tanto interna
quanto externa...”) e final (“que contribuem para a conservação
do indivíduo e da espécie”).
Enfim, não é raro que se defina a partir de uma só das cau­
sas. Por exemplo, segundo a causa única:
- material: “O que é isso, perguntam, mostrando uma pe­
dra? - É bauxita.”
- formal: “O que é isso, perguntam, mostrando uma figura
matemática? - É um pentágono regular.”
- eficiente: “O que é isso, perguntam, mostrando um qua­
dro? - É um Rembrandt.”
- final: “O que é isso, pergunta uma criança, mostrando
um compasso? - Isso serve para traçar círculos.”

Observação: comparação dos dois modos de definir


O primeiro modo de definir é mais pedagógico; ele é indis­
pensável a uma primeira abordagem. Mas o segundo, se não4

4. G. RICHARD, “Instinct”, in Encyclopaedia Universalis, Paris, 1980, Cor­


pus, vol. 8 , pp. 1060-2; aqui p. 1060.

191
parte de um mais universal (os elementos da definição situam-se
na maioria das vezes no mesmo nível de universalidade que o
definido, constatação a ser corrigida pelo que vai ser dito em se­
guida), tem a vantagem de ser mais completo e de dar uma no­
ção mais exaustiva do ser a conhecer. Como vemos, esses dois
modos se completam mais do que se opõem.
Mas essa diversidade não exclui uma sobreposição parcial.
Sem querer entrar demasiado no detalhe, notemos que, muitas
vezes, a causa material comporta-se como um gênero (isto é, co­
mo um mais universal) e a causa formal como uma diferença
(como uma noção mais particular, mais determinada). O caldei­
rão, diz o Larousse, é um “grande recipente metálico no qual se
aquece, cozinha etc.” Recipiente é mais a forma e a diferença,
enquanto metálico é a matéria e o gênero. Mas isso não é obri­
gatório. O lingüista Claude Hagège define a escrita do seguinte
modo: “técnica de re-presentaçâo da palavra por um traço dei­
xado num suporte conservável”5. Essa definição mistura os dois
tipos de definição que acabamos de distinguir. Com efeito, “téc­
nica” é o gênero distante e “re-presentaçâo da palavra” o gênero
próximo, mas também a causa final; “traço” é ao mesmo tempo
a diferença específica e a causa eficiente; “suporte conservável”
é a causa material.
Do mesmo modo, se defino um pedal como “um órgão de
transmissão acionado pelo pé” (definição do Larousse), a dife­
rença (“acionado pelo pé”) é também causa eficiente.

A definição descritiva ou a definição por urna característica


Os dois tipos de definições precedentes dizem o que é a
essência da coisa. Aqui, contentamo-nos em descrevê-la. A defi­
nição descritiva circunscreve a realidade e permanece em sua
superfície, as definições por gêneros e espécies e pelas quatro
causas exploram sua terceira dimensão.
Com freqüência é preciso contentar-se com isso. O dicioná­
rio está repleto de exemplos. É o que faz o Larousse quando de­
fine o zangão como uma “grande vespa cuja picada é muito do­
lorosa”. A virologia (ou ciência dos vírus) define, ou melhor,

5. L’hotnme de paroles. Contribution linguistique aux sciences humaines,


“Le temps ties sciences”, Paris, Fayarcl, 1985, pp. 7 2 3 ‫■־‬

192
descreve seu objeto como tendo três características: tamanho
muito pequeno (inferior ao décimo de mícron), presença de um
único tipo de ácido nucléico (DNA ou RNA) e parasita obrigató­
rio. Ela não ousa sequer classificá-lo num gênero vivo ou inerte
(já que é parasita obrigatório, enquanto o ser vivo é tido como
autônomo).

Os limites da definição
Nem tudo é definível. A definição experimenta seus limites
nas duas extremidades da escala da universalidade.

Do lado do mais universal


Quando estou dando um curso de Introdução à filosofia,
um estudante pergunta mais cedo ou mais tarde: “O que é o
ser?” Ora, o ser é indefinível, não por ser uma noção ininteligí­
vel, mas por ser uma noção primeira além da qual não se pode
remontar. Como veremos mais adiante, a definição deve partir
de noções mais universais; seria absurdo definir o cão a partir
do que é um doberman ou um cocker.
Será possível dar uma lista das noções indefiníveis por ex­
cesso de universalidade, isto é, conceitos primeiros a partir dos
quais outros são definidos mas que são, eles próprios, rebeldes
a qualquer definição? Aristóteles tentou, e chamou essas noções
ou gêneros últimos de categorias. Segundo ele, elas são em nú­
mero de dez; para Kant, há doze. A lista do velho filósofo grego
nos parece atravessar os séculos sem uma ruga. Não nos compe­
te defendê-las no quadro de um manual introdutório à arte de
pensar; os livros de lógica ou de metafísica se encarregam disso.

E do lado do mais individual, do mais singular


Pode-se definir o que é o basalto ou o que é um homem;
mas é impossível definir esse pedaço de basalto que está sobre mi­
nha mesa; tampouco é possível dizer quem são Inês ou Olivério.
A essas noções inefáveis, devem ser acrescentados os da­
dos imediatos da experiência, tanto as sensações quanto os
sentimentos. Não se pode definir o que é o vermelho ou o
amargo. Dizer que o vermelho é um comprimento de onda de
cerca de 0,8 mícron fornece apenas um aspecto, no caso quan­
titativo, do vermelho, não dá sua essência, sua natureza. Como

193
Um outro monstro do bestiário da arte de pensar:
os predicamentos.

Após os predicáveis de Porfírio, os predicamentos de Aristóteles.


Eis aqui a lista das dez categorias: substância, quantidade,
qualidade, relação, ação, paixão, tempo, lugar, situação,
posse. Ela foi estabelecida indutivamente, experimentalmen­
te. Santo Tomás tentou dar-lhe uma justificação sistemática
(cujas referências são precisadas nos exercícios do capítulo
precedente). Ela parece exaustiva. Um acróstico pode servir
para a memorização: "Será Que Queres Repetir Toda a Li­
ção, PASPalho?" (Considerar a primeira letra de cada pala­
vra e as quatro primeiras da última!)
Vamos dar um exemplo. O que se pode afirmar de uma pes­
soa? Escolhamos ao acaso: Arsène Lupin.
- substância: homem.
- quantidade: atarracado.
- qualidade: gentleman gozador.
- relação: muita, tanto com a corja quanto com o comissá­
rio Ganimard ou Herlock Sholmes.
- tempo: início do século, contando às vezes as oito batidas
do relógio.
- lugar: um fraco pela Normandia.
- paixão: muita, como a senhorita de olhos verdes, a con­
dessa de Cagliostro...
- ação: roubos e proezas heróicas.
- situação (ou posição): freqüentemente de pé (ao refletir
sobre a solução de um enigma).
- posse: teve em mãos, por um momento, o tesouro dos reis
da França.
Nossa ilustração assemelha-se a um retrato, mas Aristóteles
faz disso uma utilização mais séria.
Em todo caso, as categorias são indefiníveis: a qualidade
ou o lugar são noções últimas; por outro lado, tudo o que
existe (de real e pertencente ao mundo sensível) enquadra-se
numa dessas categorias, que são portanto o ponto de parti­
da último de toda definição. Tente.

194
observa J. W. Dunne, por mais que um cego de nascença se
aprofunde no conhecimento da física eletromagnética (particu­
larmente das ondas visíveis), ele jamais saberá o que é a “ver­
melhidão do vermelho”: “A vermelhidão pode muito bem não
ser uma coisa, mas não deixa de ser um fato. Olhe a seu re­
dor...” Ora, “a linguagem da física, em razão de uma falta fun­
damental de adaptação, é incapaz de fornecer uma definição
disso”ft.
Essa é toda a verdade da objeção ouvida classicamente:
“Como dizer o que é o amor? É algo próprio a cada um, algo ine­
fável. Ninguém pode sentir o que sinto.” De fato. E não se trata
justamente de dizer o que é o amor de Virgínia por Paulo, mas
de dizer o que é o amor em geral, pois, se não houvesse uma
certa natureza comum do amor, não se poderia sequer nomeá-la.
Contudo, para exprimir o amor que alguém sente por al­
guém, a arte e a literatura vêm em socorro da filosofia e das
ciências.
Além disso, não é raro que seja preciso enumerar, o que
mal chega a ser uma definição: “Um antepassado é teu pai, tua
mãe, ou o pai de teu pai, o pai de tua mãe etc.”
O “caso” de Deus deve ser colocado à parte. Deus não é
apenas indefinível por ser indivíduo, porém, mais profundamen­
te, por ser de essência infinita; ora, todo conceito, toda repre­
sentação é finita, já que o espírito que concebe é limitado; para
um cristão, apenas o Verbo de Deus é capaz de dizer Deus ade­
quadamente, e portanto revelá-lo, porque ele é o próprio Deus
e infinito (sobre esse ponto difícil, ver Santo Tomás de Aquino,
Suma teológica, I, q. 12, especialmente a. 1 a 7).

Como d e f in ir ?

Uma definição responde a critérios precisos. Eles servem


tanto para descobrir e avaliar as definições contidas nos textos
quanto para elaborar outras.6

6 . Le temps et le rêve, trad, fr.. Paris, Senil, 1948, pp. 14-8.

195
Os critérios da definição correta: como definir bem
A exemplo da divisão, uma definição correta requer critérios
rigorosos. A definição deve ser mais clara que o que é definido,
ser positiva e breve. Vejamos essas diferentes características que
são ao mesmo tempo negativas e positivas:

Critérios positivos

□ A definição deve ser mais ciara que o termo definido


Isso poderia parecer simples conveniência pedagógica. Mas
é algo essencial: a definição faz sair da obscuridade, retira da
canga do confuso o conceito que até então estava ali contido.
Assim, dizer que a alegria é o sentimento (gênero) que
nasce da presença do bem presente é esclarecedor. Mais esclare­
cedor ainda é colocar essa definição em simetria com a de al­
guns outros sentimentos (ou paixões) - tanto a divisão é instru­
mento da definição: a tristeza é o sentimento que nasce de um
mal presente, a esperança, de um bem por vir7.
Inversamente, definir a matéria como “princípio ontológico
de não-inteligibilidade relativa”8 talvez não seja luminoso.

□ Outro critério capital: a definição deve visar o essencial


É preciso que a definição se refira, se possível, à essência e
não a propriedades ou características mais superficiais. “O ho­
mem é um macaco nu”: essa definição de Desmond Morris é
claramente acidental. Sua ilusão (que é frequente) provém de
que o caráter de nudez é próprio ao homem. Isso permite então
identificar infalivelmente o homem, visto ser ele o único macaco
nu. Mas a função de uma definição não é designar a existência,
mas dizer a essência. Ela responde à questão: “O que é?” Uma
criança que vê um cachorro e pergunta o que é não ficará muito
satisfeita se você lhe disser apenas: “O cachorro é um animal
que late ou que mexe o rabo quando o acariciamos.”
O ideal é que a definição proceda por gênero e diferença
específica. Assim, o Larousse define a lixiviação como “a elimi-

7. Cf. Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, I-II, q. 23, a. 2 a 4.


8 . Jácques MARITAIN, Distinguerpour unir ou Les degrés du savoir ; Paris,
DDB, 1963, p. 20.

196
nação (gênero distante) de um corpo solúvel (gênero próximo)
por meio de um tratamento pela água (diferença e causa eficien­
te)”. Mas isso é um caso raro, quando não a exceção. Com fre­
qüência temos de nos contentar com definições descritivas.

□ Critério mais acidental


Uma definição utilizável deve ser relativamente curta. Algu­
mas palavras no máximo. O que é a pedologia? É a ciência dos
solos.
Contra-exemplo. Eis como o Vocabulário de psicanálise de
Laplanche e Pontalis, por sinal notável, define a noção freudiana
de “construção”: “Termo proposto por Freud para designar uma
elaboração do analista mais extensiva e mais distante do material
que a interpretação, e essencialmente destinada a reconstituir
em seus aspectos simultaneamente reais e fantasísticos uma par­
te da história infantil do sujeito.”9 Certamente haveria um meio
de dizer as coisas mais simplesmente.

Critérios negativos
Há dois principais:
- A definição não deve retomar o termo a definir.
Eis um contra-exemplo de definição. Ela contém, com efei­
to, o definido: “Lembremos o que os físicos chamam um sistema
linear: é um sistema cujas equações de evolução são lineares em
relação a todas as variáveis, os efeitos sendo então proporcio­
nais às causas.”10
- A definição não deve ser negativa.
Dito de outro modo, a definição deve, tanto quanto possí­
vel, delimitar afirmativamente a realidade a definir.
Um contra-exemplo é dado pelo Larousse, que define o ve­
getarianismo da seguinte maneira: “É um sistema de alimentação
que suprime as carnes e mesmo todos os produtos de origem
animal (vegetalismo).” Dora Vallier começa seu livro sobre a arte
abstrata da seguinte maneira: “A arte abstrata nasce quase com o
século. Primeiro na pintura, depois na escultura, aparecem for-

9. Vocabulaire de psychanalyse, sob a direção de Daniel Lagache, Paris,


PUF, 4a ed., 1973, p. 99. [São Paulo, Martins Fontes, 2- ed., 1991, p. 97.1
10. Hermann HAKEN e Arne WUNDERLIN, "Le chãos déterministe”, in La
Recherche, n- 222 , outubro de 1990, vol. 21, pp. 1248-55; p. 1254.

197
mas que não contêm a imagem do m undo exterior.’’" Ela não
propõe uma definição formal; esta é dada por acréscimo negati­
vo. Mas trata-se apenas de uma primeira abordagem que procu­
ra delimitar o terreno.
Uma objeção, com o devido respeito! Se a realidade desig­
nada pelo term o for ela própria de essência negativa (p o r
exemplo, a sombra, que é ausência de luz, a cegueira, que é
privação da vista, etc.), será que não convém defini-la negativa­
mente? Já deparam os com essa dificuldade. Ela é freqüente; as­
sim vale a pena insistir nela. A objeção confunde, na verdade, a
ordem da razão e a ordem da realidade: uma coisa são os re­
quisitos da inteligência, outra a ordem do real. Isso não quer di­
zer que nosso discurso não alcance sistematicamente esta (seria
cair no idealismo), mas apenas que a inteligência não tem aces­
so imediato ao núcleo do real, devendo aceitar sua encarnação
e a longa peregrinação da razão em busca do sentido. A liber­
dade, a inteligência são, em si, noções simples, mas como é di­
fícil defini-las! Lembre-se da célebre frase de Santo Agostinho
ao dissertar sobre o tempo: “O que é, pois, o tempo? Se nin­
guém me perguntar, eu sei; mas, se me perguntarem e eu qui­
ser explicar, não sei mais.”112*
Apliquemos o que acabamos de dizer ao caso da definição
dos termos de essência privativa ou negativa. E perfeitamente
certo que a sombra não tem realidade positiva, como tam pouco
o nada. Não obstante, a definição exprimirá isso positivamente:
a surdez é a ausência de audição, de capacidade de ouvir; o di­
cionário não dirá: a surdez não é... E o fará em razão das exi­
gências de nossa inteligência: com efeito, se eu definisse em ter­
mos negativos, não saberia afinal o que é a coisa, permaneceria
na dúvida. Imaginemos que eu diga: “Ser cego é não ver.” Isso
parece correto, mas é uma ilusão, pois, ignorando o sentido da
palavra, posso ainda perguntar-me: “Será então a qualidade da­
quele que ouve bem?” Dizer o que não é tal coisa é apenas afas­
tar um sentido, não é precisar o que ela é.

11. Dora VALLIER, L'arl a bst m it < col. “Pluriel”, Paris, Librairie G en erale
F1an 9ai.se, 1980, p. 5.
12. Les confessions, Liv. XI, cap . XV, Paris, G arnier-F lam m arion, 1964,
p. 264.

198
Austin define assim a filosofia: “Creio que a única forma de
definir o objeto da filosofia é dizer que ela se ocupa de todos os
resíduos, de todos os problemas que permanecem ainda insolú­
veis, depois de experimentados todos os métodos praticados em
outra parte.”13 Se o conteúdo é negativo (a filosofia é um não-...),
o enunciado é positivo e portanto correto do ponto de vista da
forma, o que deixa intacta a questão do fundo...

O que pensar das definições simplesmente etimológicas?


O filósofo Martin Heidegger é apaixonado por elas: isso
deve-se a seu pensam ento voltado para a origem e que conside­
ra o movimento histórico como uma entropia. A etimologia é
sempre interessante. O deslocamento semântico, com efeito, é
freqüentemente um resumo de história do pensamento. “Entusias­
mo” significa etimologicamente “transporte divino”, e tal era o
sentido na Antiguidade (delírio sagrado que se apodera do intér­
prete da divindade); hoje, em nossa época secularizada, o termo
perdeu sua referência a Deus e significa sim plesm ente uma
“emoção que impele a admirar” (Dicionário Petit Robert).
A etimologia também mostra que com freqüência a origem
das palavras é material e muito concreta. Assim, o termo grego
bulé, que hoje quer dizer matéria, significava primordialmente
madeira. “E sabido que todas as nossas abstrações têm por ori­
gem semelhantes experiências pessoais e singulares; todas as pa­
lavras do pensam ento mais abstrato são palavras tiradas do uso
mais simples, mais vulgar, que pervertemos para filosofar com
elas. Acaso você sabe que a palavra latina da qual tiramos a pala­
vra m undo significa simplesmente ornamento? Mas certamente
você sabe que as palavras hipótese, ou substância, alma, espírito
ou idéia, assim como pensar ou compreender, são nomes de atos
elementares como colocar, pôr, pegar, soprar ou ver..."" O espíri­
to tem todo o interesse em conservar a origem concreta das pala­
vras quando vai abordar temas muito abstratos. Assim ele evita
cair no verbalismo e no formalismo, preservando ao mesmo tem-*14

13· John Langshaw AUSTIN, in La Philosophie analylique, Cahiers d e Royau-


m ont, n- IV, Paris, Minuit, 1962, p. 292.
14. Paul VALERY, Variete, in Oeuvres, "Bibliotheque d e la P le ia d e”, Pari
Gallimard, t. I. 1957, pp. 1093-4.

199
po a flexibilidade de pensamento. Por essas duas razões, em par­
ticular, o emprego da etimologia é dos mais preciosos.
Mas a utilização da etimologia está sujeita a uma dupla con­
dição. Por um lado, é preciso certificar-se de sua verdade. Sabe-
se o quanto Paul Claudel gostava de ver na palavra francesa con-
naitre (conhecer) um co-naitre (um nascer com, junto), mas, in­
felizmente, trata-se de uma pseudo-etimologia. Do mesmo modo,
sexo não vem do sugestivo verbo latino secare, cortar. Ora, mui­
tas origens semânticas mergulham na noite dos tempos, e mesmo
o recurso ao sânscrito nem sempre é esclarecedor.

A inteligência pega na mão

"Eu chegaria a dizer que uma relação recíproca das mais


importantes deve existir entre nosso pensamento e essa mara­
vilhosa associação de propriedades sempre presentes que
nossa mão nos anexa. O escravo enriquece seu senhor, e
não se limita a obedecer-lhe."

Paul VALERY, "Discours aux chirurgiens", Variélé, in Oeuvres, "Bibliolhèque de la Plêia­


de", Paris, Gallimard, l. 1, 1957, p. 9 19 .

Precisemos. A mão não apenas serve a inteligência prática


(isso é claro no artesão), mas também enriquece a inteligên­
cia especulativa com conhecimentos muito preciosos. A mão
está no princípio de certos conhecimentos (na ordem sensí­
vel, é claro), como mostra Valéry: "Para demonstrar essa re­
ciprocidade de serviços basta considerar que nosso vocabu­
lário mais abstrato está povoado de termos que são indis­
pensáveis à inteligência, mas que só lhe puderam ser forne­
cidos pelos atos ou funções mais simples da mão. Pôr, to­
mar, pegar, colocar, sustentar, assentar, e eis o que temos:
síntese, tese, hipótese, suposição, compreensão... Adição
relaciona-se a dar, assim como multiplicação e complexida­
de a dobrar." (Idem, p. 919.)

200
For outro lado, o sentido atual não é obrigatoriamente o
sentido primitivo. As palavras têm uma vida, portanto uma evolu­
ção: a dos homens e dos pensamentos. Os escolásticos já distin­
guiam o “id a quo imponitur nomen” (a etimologia, a origem da
palavra) e o “id ad quod imponitur nomen” (o sentido atual). Por
exemplo, “formidable” significava outrora “temível”, o que en­
gendra o temor; agora, quer dizer “cujo tamanho, cuja força é
muito grande” (definição do Petit Robert). Do mesmo modo,
“genre‫[ ״‬gênero] vem de engendrar (encontramo-lo na palavra
muito próxima “gendre” [genro], o que conserva apenas uma re­
lação distante com o sentido atual tornado muito abstrato.
Deplorar que as palavras mudem de sentido é coisa ou de
um tradicionalismo muito fixista, ou de um controle indevido da
ciência sobre todo o domínio do conhecimento. Com efeito, a
sistematização, a axiomatizaçâo, o caráter muito aguçado (no
sentido de não universal) do discurso científico explicam que os
termos unívocos (de um único sentido) nele prevaleçam; como
as palavras são em geral de origem erudita, a leitura de sua eti­
mologia torna sua significação transparente. Mas as ciências não
são a totalidade do saber. A maior parte dos termos do vocabu­
lário corrente são análogos (com vários sentidos apresentando
uma sobreposição parcial), pois seu uso é freqüente e o sentido
das palavras varia com o uso que delas se faz, em função do
contexto cultural que é o nosso. Enfim, a inteligência tem como
que uma tendência natural para a univocidade, o que é uma fa­
cilidade prejudicial à nossa clara leitura do real. Escutemos esta
observação apaixonante desse grande especialista dos costumes
intelectuais que era Maurice Dionne: a razão “está inclinada para
a univocidade, porque é muito mais fácil confundir do que dis­
cernir. (...) quem tem a inteligência fraca é levado à confusão,
porque ele é incapaz de discernir suficientemente. E, se é leva­
do à confusão, será inclinado para a univocidade”15.

Localização da definição que está no texto


Suponhamos que o autor diga explicitamente que está
definindo. Ele anuncia às vezes, como Stendhal em seu tratado
15. Maurice DIONNE, Le problème de lanatogie, Notas de curso tomadas
por Louis Bainet em 1977, Quebec, Société d’Etudes Aristotéliciennes, 1984, pp.
34 e 35.1 - Paris, Fayard, 1976, p. 86 .

201
Sobre o amor·. “O que chamo cristalização é a operação do espí­
rito que tira de tudo o que se apresenta a descoberta de que o
objeto amado possui novas perfeições.”16 Mas o autor pode tam­
bém não avisar. É o caso de Valéry Giscard d’Estaing em Démo-
cratie française. “Alguns julgaram encontrar uma resposta na
idéia de autogestão: ‘o coletivo dos trabalhadores’ elege e con­
trola os dirigentes da empresa, ela mesma previamente naciona­
lizada.”17 A definição explícita, embora não anunciada, é portan­
to que a autogestão é a eleição e o controle da empresa (nacio­
nalizada) pelos trabalhadores.
Suponhamos que o autor não diga explicitamente que defi­
ne o conceito, mas o texto procura circunscrever seu sentido. É
preciso então iniciar a pesca, buscando sob que conceitos mais
universais ele situa seus termos. Mas isso só vale a pena se as
palavras utilizadas forem difíceis ou ambíguas.

Avaliação dessas definições


Essa avaliação vai se fazer, evidentemente, a partir dos cri­
térios de definição ciados antes. Do mesmo modo, assinale os
deslocamentos de sentido no uso de uma palavra. Não é raro
que um mesmo texto utilize uma mesma palavra em vários sen­
tidos diferentes, às vezes sem se dar conta disso.
Enfim, um número grande demais de imprecisões ou de er­
ros convida a nos colocarmos a questão não apenas do rigor do
texto, mas de sua honestidade.

16. De 1’a mour, Genebra, Éd. de Crémille, 1973, p. 10.


17. Démocratiefrançaise, Paris, Fayard, 1976, p. 86.

202
E x e r c íc io s

Como no capítulo precedente, os exercícios serão de dois


tipos. Convém já ir treinando para reconhecer e formalizar as de­
finições contidas nos textos, seja quando eles se contentam em
dar explicitamente uma definição, e é o caso mais simples (1);
seja quando a procuram e, para isso, dividem e analisam (2). En­
fim, é útil, porém mais difícil, forjar você mesmo definições (3)·

Analise as seguintes definições

Basta ler a definição, depois estudá-la: qual é sua natureza?

Exemplo I

• Leitura da definição (a palavra rumor)


“Chamaremos portanto rumor a emergência e a circulação
no corpo social de informações ou ainda não confirmadas publi­
camente pelas fontes oficiais, ou desmentidas por estas.”
Noél KAPFERER, “La rumeur”, La Recherche, abril de 1987, p. 475.

• Análise da definição
Trata-se claramente de uma definição pelas quatro causas:
-causa material: informação (ou sua emergência e circula­
ção);
-causa formal: “ou ainda não confirmadas, ou...”;
- causa eficiente: o corpo social enquanto distinto das fon­
tes oficiais;
-causa final: ela não é indicada na definição, pois parece
não existir (o rumor, com efeito, surge espontaneamente,
sem razão).

203
Exemplo II

• Leitura da definição (a palavra glória)


“Grande renome difundido num público muito vasto, e que
se deve a méritos, ações ou obras julgadas notáveis.” (Definição
do Petit Robert, 1983.)

• Análise da definição
Trata-se de urna definição por gênero e diferença:
- gênero distante: “grande renome”;
- gênero próximo: “difundido num público muito vasto”;
- diferença (que a causa eficiente dá aqui): “e que se deve
a méritos, ações ou obras julgadas notáveis”.

Exemplo III

• Leitura da definição (a palavra comportamento)


“É uma conduta característica da espécie considerada, ligada
à sua constituição anatomofisiológica, às suas grandes funções, ao
modo de sua organização, de seu exercício, a seu hábitat, aos estí­
mulos exteriores que diversificam as condições ordinárias de sua
vida; é também o tipo de resposta que os animais dessa espécie
podem fornecer a estímulos naturais, tais como os oferece a expe­
riência do zoólogo ou do psicólogo, com a margem de aprendiza­
gem de inovação possível que essas respostas implicam.”
(1. MEYERSON, art. “Comportement”, Encyclopaedia Universalis,
Paris, 1980, vol. 4, p. 785.)

• Análise da definição
Eis aqui uma definição que procede sobretudo por gênero
e diferença:
- o gênero: “conduta”,
- a diferença específica: “característica da espécie conside­
rada”. E o autor desenvolve a diferença detalhando abun­
dantemente a causa eficiente (mas sem dizer nada da
causa final do comportamento): “ligada à sua constituição
anatomofisiológica, às suas grandes funções...”

204
Exemplo IV

• Leitura da definição (a palavra tecido)


“Chama-se tecido um conjunto de estruturas celulares e ex-
tracelulares especializadas em vista de uma mesma função.”
(B. DROZ, art. “Histophysiologie”, Encyclopaedia Universalis,
Paris, 1980, vol. 8, p. 443.)

• Análise da definição
Trata-se de uma definição por gênero (“conjunto de estru­
turas celulares e extracelulares”) e diferença (“especializadas em
vista de uma mesma função”), a diferença dando também a fina­
lidade.

Identifique definições

Ponha em forma lógica os seguintes artigos desse pedago­


go fora de série, para o lógico, que é Santo Tomás. Do mesmo
modo que para os raciocínios e as divisões, sua obra apresenta
sempre um sótão repleto de tesouros insuspeitos.
Mais precisamente, pergunte-se:
- que conceito ele define?
- de que gênero parte?
- que distinções estabelece? Que diferença?
- em suma, que tipo de definição ele utiliza?

Exemplo 1

• Leitura do texto
“A tristeza tem por objeto um mal pessoal. Ora, acontece
que o bem de outrem seja considerado como um mal pessoal.
Sob esse aspecto, o bem de outrem pode ser objeto de tristeza.
E isso de duas maneiras: ou nos entristece o bem de outrem
porque nos ameaça com algum dano; é o caso do homem que
se entristece com a elevação de seu inimigo, pois teme vir a so­
frer com isso. Tal tristeza não é inveja: ela é antes um efeito do
temor, segundo Aristóteles. Ou então o bem de outrem é consi­
derado como um mal pessoal porque tem como resultado dimi-

205
nuir nossa glória e nosso êxito próprios. É assim que a inveja se
entristece com o bem de outrem.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 36, a. 1.)

• Análise do texto
- o termo a definir: a inveja;
- o gênero: tristeza ligada ao bem de outrem;
- divisão do gênero: ou o bem de outrem atinge o bem
próprio; ou ele não o afeta, mas simplesmente diminui
nossa glória própria;
- donde, enfim, a definição da inveja: tristeza ligada ao
bem de outrem que diminui nossa glória própria.

Exemplo II

• Leitura do texto
“A arte do traçado é simplesmente a arte de desenhar tudo
o que o operário tem necessidade de ver representado grafica­
mente para levar a cabo seu trabalho. O que ele tem necessida­
de de ver representado: e não o desenho ideal que teria em si
valor próprio e já seria, por si mesmo, um êxito. Não é preciso
necessariamente ser bom desenhista para ser bom operário. Al­
guns operários podem executar com perfeição uma obra, mes­
mo difícil, sem o menor esquema. Entretanto, desde os tempos
mais remotos, a arte do traçado fez a superioridade dos Compa­
nheiros. E, para poder dispensá-lo, é preciso, como se diz, ‘ter o
compasso no olho’.”
(Bernard de CASTERA, Le compagnonnage, Culture ouvrière,
“Que sais-je?” nQ1203, Paris, PUF, 1988, p. 75.)

• Análise do texto
Evidentemente, a definição é dada pela primeira frase. Mas
o interessante é a maneira como o autor procede para definir:
- ele parte do gênero desenho (ou arte de desenhar);
- subdivide-o em duas espécies: o desenho ideal que é um
fim em si mesmo; e o desenho útil, com a finalidade de
ver representada a obra a executar;
- donde a definição por gênero e diferença: “A arte do tra­
çado é simplesmente a arte de desenhar [gênero] tudo o

206
que o operário tem necessidade de representar grafica­
mente para levar a cabo seu trabalho [diferença].” A dife­
rença inclui também a causa eficiente (o operário) e a
causa final.

• Estrutura do texto
- enunciado da definição (primeira frase);
- exposição da definição (segunda frase);
- conseqüência (terceira frase);
- dificuldade oposta à definição (quarta frase) e resposta
(quinta e sexta frases).

Exemplo III

• Leitura do texto
O Ensaio sobre a dádiva é provavelmente o artigo mais ori­
ginal e mais fundamental do etnólogo Marcei Mauss (ele teve
uma profunda repercussão intelectual). Sua idéia fundamental é
que a troca reúne todos os aspectos da vida coletiva e que não
tem por objeto apenas bens e produtos.
“Nas economias e nos direitos que precederam os nossos,
jamais se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de
riquezas e de produtos nas transações feitas entre os indivíduos.
Primeiro, não são indivíduos, são coletividades que se compro­
metem mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao
contrato são pessoas morais (...). Além do mais, o que eles tro­
cam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis,
coisas úteis economicamente. São antes de tudo cortesias, festins,
ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras,
das quais o mercado não é senão um dos momentos, e nas quais
a circulação das riquezas é apenas um dos termos de um contra­
to bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas presta­
ções e essas contraprestações realizam-se de uma forma antes
voluntária, através de presentes, brindes, embora no fundo sejam
rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou públi­
ca. Propusemos que isso fosse chamado o sistema das prestações
totais. O tipo mais puro dessas instituições nos parece ser repre­
sentado pela aliança de duas fratrias [numa sociedade arcaica, é a
reunião de vários clãs] nas tribos australianas ou norte-america-

207
nas em geral, onde os ritos, os casamentos, a sucessão de bens,
os vínculos de direito e de interesse, quadros militares e sacerdo­
tais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas meta­
des da tribo. Por exemplo, os jogos são muito particularmente re­
gidos por elas. Os Tlingit e os Haida, duas tribos do noroeste
americano, exprimem fortemente a natureza dessas práticas ao
dizerem que ‘as duas fratrias se mostram respeito’.”
“Mas nessas duas últimas tribos do noroeste americano e
em toda essa região, aparece uma forma típica, certamente, mas
evoluída e relativamente rara, dessas prestações totais. Propuse­
mos chamá-la potlatcb, como fazem aliás os autores americanos
ao se servirem do nome cbinook que se tornou parte da lingua­
gem corrente dos brancos e dos índios de Vancouver ao Alaska.
Potlatcb quer dizer essencialmente ‘alimentar’, ‘consumir’. Essas
tribos, muito ricas, que vivem nas ilhas ou na costa ou entre as
Rochosas e a costa, passam seu inverno numa perpétua festa:
banquetes, feiras e mercados, que são ao mesmo tempo a assem­
bléia solene da tribo. Esta dispõe-se aí segundo suas confrarias
hierárquicas, suas sociedades secretas, freqüentemente confundi­
das com as primeiras e com os clãs; e tudo, clãs, casamentos, ini­
ciações, sessões de xamanismo e de culto dos grandes deuses,
dos totens ou dos antepassados coletivos ou individuais do clã,
tudo se mistura numa trama inextricável de ritos, de prestações
jurídicas e econômicas, de fixações de posições políticas na socie­
dade dos homens, na tribo e nas confederações de tribos, e mes­
mo internacionalmente. Mas o que é notável nessas tribos é o
princípio da rivalidade e do antagonismo que domina todas essas
práticas. Chega a haver batalhas, morte dos chefes e nobres que
se enfrentam nesses combates. Por outro lado, chega-se até à
destruição puramente suntuária das riquezas acumuladas a fim
de eclipsar o chefe rival e ao mesmo tempo sócio (...).
Propomos que seja reservado o nome potlatcb a esse tipo
de instituição que se poderia chamar, com menos perigo e mais
precisão, mas também de forma mais extensa: prestações totais
de tipo agonístico [agonístico significa em forma de combate].”
(Marcei MAUSS, “Essai sur le don. Forme et raison de 1’échange
dans les sociétés archaiques”, in L année sociologique, nova sé­
rie, I, 1923-1924, retomado em Sociologie et antbropologie, Paris,
PUF, 3â ed., 1966, aqui pp. 1503‫ ·־‬Sublinhado no texto.)

208
• Análise do texto
Esse texto define o que é o potlatch. Para tanto, com um
grande rigor, Mauss fará distinções, indo do mais comum ao
mais específico.
- A primeira parte (cap. I) precisa o que é o sistema eco­
nômico nas sociedades anteriores às nossas: é um siste­
ma de prestação total. O gênero é portanto prestação e a
diferença é total.
Como Mauss estabelece a diferença? Ele considera a troca:
aquele que troca, aquilo que é trocado, e a modalidade da troca.
Ora, aquele que troca é ou um indivíduo, ou um grupo (o que é
mais total que o indivíduo); o que é trocado é ou somente bens,
ou também atos e pessoas (o que é mais total que os simples
bens materiais). Desses dois pontos de vista, a troca arcaica é
portanto total. Quanto à modalidade, a troca é obrigatória e não
livre e voluntária.
- A segunda parte (cap. 11) define a espécie particular de
prestação que é o potlatch. Para isso, Mauss divide o gê­
nero das prestações totais próprias às sociedades arcaicas
em função da seguinte diferença: o caráter agonístico,
combativo ou não das trocas.
- Ele chega assim à definição última do potlatch·, prestações
[ou troca: é o gênero distante] totais [gênero próximo] de
tipo agonístico [diferença].

Exemplo IV

• Leitura do texto
“Não é um amor qualquer que domina a amizade, mas so­
mente o amor acompanhado de benevolência, aquele que impli­
ca que queremos o bem a quem amamos. Se, em vez de querer­
mos o bem das realidades amadas, buscarmos para nós o que
elas têm de bom, (...) não será mais um amor de amizade, mas
um amor de cobiça (...).
Entretanto, a benevolência não é suficiente para constituir
a amizade; é preciso que também haja reciprocidade de amor,
pois um amigo é o amigo daquele que é por sua vez seu ami­
go. Ora, tal benevolência mútua está fundada numa certa co­
municação.

209
Portanto, já que há uma certa comunicação do homem
com Deus pelo fato de este nos tornar participantes de sua bea-
titude, é preciso que uma certa amizade se fundamente nessa
comunicação. É a respeito desta que São Paulo diz: ‘Ele é fiel, o
Deus por quem vós fostes chamados à comunhão de seu Fi­
lho...’ (I Co 1, 9). É portanto evidente que a caridade é uma ami­
zade do homem para com Deus.”
(Santo Tomás de AQUINO, Suma teológica, II-II, q. 23, a. 1.)

• Análise do texto
- o termo a definir: a caridade; e, para defini-la, Santo To­
más utilizará três diferentes divisões;
- o gênero: o amor;
- divisão do gênero: o amor divide-se em amor do outro
pelo outro e amor de cobiça; o amor do outro pelo outro
subdivide-se por sua vez em amor unilateral e amor recí­
proco; este último divide-se enfim em amor entre um ho­
mem e outro homem e amor entre homem e Deus;
- donde finalmente a definição da caridade: é uma amiza­
de do homem para com Deus.

Exemplo V
Assim como a Sagrada Escritura oculta silogismos, ela tam­
bém pode conter definições. Vamos dar um exemplo. Remete­
mos ao texto de Hebreus 11, 1 (tradução da Vulgata), no qual,
juntamente com outros doutores da Igreja, Santo Tomás vê uma
definição não formalizada, mas precisa, da virtude teologal da fé
(cf., por exemplo, Suma teológica, II-II, q. 4, a. 1.). Leia esse ar­
tigo que é um primor de rigor e clareza. Vamos dar um outro
exemplo.

• Leitura do texto
Leia atentamente o início da primeira epístola de São João:
“Nós vos anunciamos a vida eterna que estava junto ao Pai e
que se manifestou a nós: o que vimos e ouvimos, nós vos anun­
ciamos, a fim de que também comungueis conosco; quanto à
nossa comunhão, ela é com nosso Pai e com seu Filho Jesus
Cristo.” (I João 1, 2 3 ‫־‬.)
É evidente que esse texto não tem o estilo sistemático de
um dicionário nem de um artigo de Santo Tomás. Além disso,

210
discernir nele uma definição não é esgotar todo o seu conteúdo.
Enfim, não nos permitiríamos julgar que essa passagem das Es­
crituras contém uma definição se isso não nos tivesse sido inspi­
rado pelo próprio Concílio Vaticano II.
Pergunte-se primeiro qual termo é definido, antes de for­
malizar essa definição. De que tipo de definição se trata? Será
uma definição por gênero e diferença? A formulação sugere uma
outra pista.

• Resposta
Cf. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática sobre a Re­
velação divina, Dei Verbum, 1965, ns 1. E a passagem de I Jó 1,
2-3 está no centro desse número introdutório. Cf. também o co­
mentário sistemático que Henri de Lubac faz da citação da pas­
sagem da primeira epístola de João em La Révélation divine,
“Traditions chrétiennes”, Paris, Cerf, 3a ed., 1983, pp. 2531‫־‬.
O texto da epístola de João dá os quatro elementos consti­
tutivos da definição da Revelação divina:
- O objeto da Revelação: é a Vida eterna (que estava junto
ao Pai). Ora, para São João, a Vida é o mais radical dos
atributos de Deus. (Louis BOUYER, Le quatrième Evangi-
le, Paris-Tournai, Casterman, 1955, p. 48). Por isso, con­
clui de Lubac, “o objeto da revelação divina, quer o cha­
memos Dei Verbum ou Vita Aeterna, é portanto o pró­
prio Deus” Cp. 25).
- O modo dessa Revelação: é a manifestação: e que se ma-
nijestou a nós. Mais precisamente, de que maneira? o que
vimos e ouvimos. Assim, explicita de Lubac, “o modo sob
o qual Deus se revela é portanto a manifestação dele
mesmo em Jesus Cristo” (p. 25).
- A transmissão da Revelação: nós vos anunciamos. E, para
João, o anúncio é um testemunho, aquele dos apóstolos
até as extremidades da terra e até o fim do mundo.
- Enfim, a finalidade da Revelação: essa finalidade é dupla:
próxima e distante. Próxima, é a comunhão estabelecida
entre os discípulos de Cristo; a conseqüência dessa trans­
missão é uma primeira comunhão: a fim de que também
comungueis conosco. Mas essa comunhão, comenta de
Lubac, “essa primeira reunião da Igreja (...) aí ainda não

211
é senão o sinal de uma ‘comunhão’ melhor, que lhe dá
todo o seu sentido” (p. 29): quanto à nossa comunhão,
ela é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.
Essa definição se aproxima muito mais de uma definição
pelas quatro causas que de uma definição por gênero e diferen­
ça específica. Com efeito, o objeto apresenta as causas formal e
material; o modo e a transmissão, a causa eficiente; e a finalida­
de, a causa final.

Forje você mesmo definições

Pegue um certo número de palavras e procure dar-lhes a


definição mais precisa possível. Pegue um artigo de jornal, por
exemplo, e selecione algumas palavras (tanto concretas quanto
abstratas).
Compare a seguir suas definições com o que diz o dicioná­
rio (que, aliás, nem sempre é um modelo de rigor, como já pu­
demos observar).

212
C a p ít u l o V I

O PLENO DO PLANO

Chegamos ao último momento da análise sistemática de


um texto. Infelizmente, certos estudos literários reduzem com
muita freqüência a análise a este último ponto apenas: encontrar
o plano. Fazer um plano, pôr ordem, é manifestar (mas não criar)
o sentido do diverso, é nocautear o caos e ter acesso à plena in­
teligência das coisas.

Por que pôr ordem num texto?

Pôr ordem no texto é necessário. Assim como é preciso ar­


rumar regularmente a mesa de trabalho se quisermos encontrar
nossos papéis, também é preciso pôr ordem num texto se qui­
sermos encontrar nele as idéias do autor. Faça essa experiência
após ter lido um artigo que o interessou ou após ter escutado o
noticiário. Num primeiro caso, apenas leia (escute) atentamente
e tente rememorar o que foi dito ou lido. Depois, leia (escute)
estruturando, ordenando, e até mesmo enumerando as idéias (o
autor, o jornalista diz: “isto, depois aquilo; ele tira disso as con­
sequências; esse noticiário abordou três pontos importantes de
política internacional”). Agora compare as duas maneiras de re­
gistrar a informação: qual a mais proveitosa? E você perceberá
também que a segunda implica mais esforço; requer que sua in­
teligência fique vigilante e ativa. Certamente isso é cansativo ao
final da jornada. Mas, em primeiro lugar, trata-se de uma ques­
tão de hábito; e, em segundo, é a melhor maneira de escutar
com proveito; pois, de que serve assistir durante meia hora a um
jornal de TV, ler artigos durante uma hora, se você não retiver
quase nada? Se estiver realmente cansado, é preferível ler, escu­
tar ou olhar alguma coisa que distraia.

213
Tal afirmação depara com várias dificuldades. O que pro­
ponho não será desumano? Eu disse apenas: cabe a nós saber o
que queremos, distrair-nos ou informar-nos.
Com muita freqüência, também, somos tentados a perma­
necer nas idéias vagas e confusas. Na verdade, há uma tentação
de angelismo em querer dispensar do paciente trabalho de pla­
nificação: seria bem mais simples se pudéssemos abarcar de saí­
da e num relance o tema completo! Mas essa simplicidade está
no término do trabalho, não no ponto de partida, assim como a
simplicidade do gesto do dançarino é o fruto finalmente visível
de todo um invisível e encarniçado trabalho que desbasta,
abranda e domina, em suma, ordena o corpo e o gesto para co­
locá-los a serviço do belo.
Mas tudo o que já estudamos, a descoberta da problemáti­
ca e do ou dos raciocínios que a estabelecem, não é então sufi­
ciente? Já não é uma ordenação?
É raro, porém, que os textos se apresentem sob essa forma
simples. Além disso, um texto, e com mais razão ainda um livro,
desenvolve, às vezes e mesmo com freqüência, várias teses (vá­
rias idéias, como se costuma dizer).
Há uma razão principal, que nos é dada pela segunda lei
que mencionamos (cf. cap. I). Ela afirma que a inteligência pro­
cede do mais universal ao menos universal, é o que se chama a
ordem de determinação. Por exemplo, numa exposição, começa­
remos por tratar do que é comum antes de falar do que é pró­
prio etc. Ora, a ordem de demonstração não procede da mesma
maneira, pois se situa num mesmo plano de clareza, de determi­
nação: ela é homogênea. Mas a descoberta da tese e dos raciocí­
nios que a estabelecem depende da ordem da demonstração. E
assim a ordem de demonstração (a determinação da tese e de suas
provas) situa-se no interior da ordem de determinação, o que sig­
nifica concretamente que é preciso começar por estabelecer a
primeira quando lemos um texto. Os exemplos e conselhos con­
cretos dados a seguir esclarecerão nosso propósito.

O QUE É A ORDENAÇÃO?

Para simplificar, dois casos podem ocorrer. Acabaremos


mostrando que, a exemplo de todos os instrumentos lógicos, o

214
plano tem limites que é preciso conhecer, sob pena cie nos tor­
narmos um bomo informaticus que gira sobre si mesmo e de
matarmos o bomo rationalis que se volta para a realidade.

O texto que gira em torno de um a única problemática


A ordem de determinação (o que chamamos simplesmente
o plano) estará centrada na ordem de demonstração que deta­
lhamos anteriormente. Essa ordem é a seguinte:
- a tese. As vezes é necessário acrescentar-lhe uma nota
explicativa, como uma precisão de vocabulário, uma res­
trição de sentido, uma extensão etc.;
- no ponto de partida: a ou as provas que estabelecem a
tese;
- no ponto de chegada: a ou as consequências tiradas da tese;
- ao que é preciso acrescentar, lateralmente, as objeções
feitas à tese.
Claro que nem todos esses pontos se verificam sistematica­
mente.
Uma observação não entra propriamente num plano. Com
efeito, ela é ou uma conseqüência, ou uma precisão relativa ao
sentido da tese (de uma prova ou de uma conseqüência); se ela
não for nada disso, foi acrescida ao texto por acidente e corre o
sério risco de ser improcedente.
O trabalho de planificação consiste, pois, em descobrir es­
se plano muito geral num texto, seja ele qual for. Tal trabalho
pocleria parecer bastante árido, mas vimos que ele está a serviço
do sentido do texto: seu objetivo não se encontra em si mesmo.
Lembremos, e isso é importante pedagogicamente, que a
ordem que você descobrir no texto está nele, mas nem sempre
tão rigorosamente. Mais: é possível que você seja levado a preci­
sar termos médios e inclusive a explicitar o predicado da proble­
mática que o autor não destacou suficientemente (por falta de ri­
gor, mas também por gênero literário). Faça isso com prudência
e modéstia, eventualmente valendo-se de comentários ou de
textos paralelos. Não hesite porém em fazê-lo. Sócrates já proce­
dia assim diante de um interlocutor que lhe propunha uma idéia
(por exemplo, uma definição); e o maior rigor de Sócrates leva-
va-o com freqüência a tirar dos comentários de seu interlocutor
conseqüências que ele não suspeitava, mas também a mostrar
contradições que esse interlocutor não havia percebido.

215
Exemplo
Juntamos à leitura do texto, entre colchetes, sua ordem de
determinação (que é portanto apenas um aspecto de seu arca­
bouço lógico). O célebre pedagogo La Garanderie expõe uma
de suas descobertas mais fundamentais e mais originais: o gesto
mental constitutivo, segundo ele, da memorização. Todo o capí­
tulo orbita em torno da tese; extraímos suas passagens principais
para mostrar de que maneira seu estatuto lógico inclui-se numa
das categorias que acabam de ser distinguidas.

[- Tese:]
“Por mais paradoxal que possa parecer, o gesto mental pelo
qual se deve memorizar consiste num projeto de manter ã dis­
posição do seu futuro aquilo que se está querendo obter. Disso
resulta que o lugar de conservação das lembranças não está
nem no cérebro propriamente dito, nem no que chamaríamos
psicologicamente a memória, mas no imaginário do futuro. (...)”

[- Conseqüência da tese:]
(Memória e imaginação não são duas funções da vida psí­
quica que se excluem como o passado e o futuro. A partir do
momento em que nos preocupamos em observar o segredo do
gesto mental adaptado a seu fim, isto é, a partir do momento em
que, em vez de permanecermos psicólogos, nos queremos pe­
dagogos, percebemos o apelo mútuo que as funções psíquicas
se dirigem, o apoio que elas devem fornecer uma à outra

[- Prova (no caso, indutiva: aqui, a partir de dois casos singulares):]


“Todos conhecemos pessoas que gostam de contar o que
chamamos ‘boas histórias’ e que demonstram nesse domínio
uma cultura espantosa. O que se passa na cabeça delas quando
lhes contam uma inédita ou quando descobrem uma nova num
livro? Elas já estão em situação de projeto de contá-la a outros.
O prazer que sentem ao escutarem ou ao lerem alimenta-se do
que elas sentirão ao contá-la. Às vezes já se alegram em imagi­
nar as pessoas a quem irão transmiti-la. Acaso não chegarão a
provocar encontros a fim de satisfazer plenamente esse prazer
vivido por antecipação? A imaginação do futuro é que é o lugar
de conservação das lembranças. Em apoio a essa lei, um exem-

216
pio pessoal: um arquiteto me fizera visitar a igreja Saint-Louis cie
Brest, que acabava cie ser reconstruída segundo seus planos. Ele
me dera detalhes sobre as relações entre o material utilizado (o
granito amarelo) e os efeitos luminosos etc. Ao escutá-lo, eu ha­
via pensado num arqueólogo que dava esta definição: ‘Um mo­
numento é belo pelas ruínas que promete.’ Propus-me falar-lhe
desse encontro e comunicar-lhe as explicações do arquiteto. Uns
meses mais tarde, durante um jantar, falava-se de arquitetura e
tive vontade de mencionar essa visita à igreja de Brest. Mas me
foi impossível lembrá-la. Eu tinha claramente a lembrança de
uma certa visita a... Mas nada além disso. Então tive a idéia de
mergulhar num passado que estava como que perdido, dirigi
meu espírito à pessoa para a qual gostaria de ter falado dessa vi­
sita... Prontamente a imagem de meu arqueólogo foi evocada e
com ela a igreja de Saint-Louis de Brest... Donde esta lei psico-
pedagógica, que diz respeito à economia mental: a caixa-forte
do futuro é o melhor lugar para conservar lembranças que se
quer recuperar.”

f- Confirmação da tese (em forma de teoria, portanto de enti-


mema):]
“A amnésia anterograda é comum por ser uma doença da
memória que acomete certas pessoas idosas. Ela se caracteriza
pela ausência de registro do presente próximo: aqueles ou aque­
las que sofrem clesse mal contam dez vezes seguidas a mesma
coisa (...). Isso é explicado pelo envelhecimento do cérebro. Ti­
vemos a ocasião de constatar que essa carência de memória se
manifestava certamente em pessoas idosas, mas de uma velhice
muito relativa, e que, praticamente sempre, acabavam de sofrer
um choque moral: perda de um parente próximo, interrupção
brutal de uma atividade, privação de um convívio familiar. Tudo
leva a crer que a causa dessa doença poderia perfeitamente ser
o aniquilamento de um projeto de viver, de um lugar de futuro
para o atual vivido. Não mais se realizando o gesto mental de
um lançamento ao futuro daquilo que se vive atualmente, o pre­
sente próximo não é e não pode mais ser registrado no futuro
próximo. Daí a repetição das questões ou das histórias. Se essa
interpretação for verdadeira, ela mostrará a ligação intrínseca
que há entre o lançamento do presente em seu futuro e a memo­
rização."

217
[- Objeção:]
“Uma objeção, que o bom senso parece inspirar, não deixa
de vir se opor a essa teoria: é justamente o fato de que faço o
projeto cie reter que esqueço, e é o que me prometo esquecer
que me volta incessantemente à memória.
Essa objeção reforça nosso ponto de vista.
Com efeito, se eu tiver apenas o projeto de reter; sem ins­
crever em meu futuro o conteúdo e a forma desse ‘a reter’, é
perfeitamente normal que não me lembre dele. O projeto de re­
ter é, em suma, um gesto mental contraditório: está voltado, en­
quanto projeto, para o futuro, e, enquanto exigência de reter,
para o passado. Sendo assim, compreende-se que, por não ter
inscrito o ‘a reter’ no próprio futuro, ele não faça parte desse fu­
turo. Está ligado a ele apenas indiretamente. No limite, vamos
nos lembrar de alguma coisa que conviria lembrar sem que pos­
samos dizer o quê. Inversamente, o que me prometo esquecer
está como que inscrito em meu futuro. (...)”

f- Conseqüência (prática):]
“Pensamos que a análise que estamos fazendo esclarece
um conselho pedagógico: diz-se em geral que é bom estudar ou
ler sua lição na véspera e revê-la de manhã. Precisemos que a
causa fundamental da eficácia desse procedimento permaneceu
na sombra. De fato, explicavam-no por um trabalho do incons­
ciente que, durante a noite, teria continuado o consciente da
véspera. Pensamos que é o projeto de retomar a lição no dia se­
guinte que já situava seu conteúdo no futuro e, por esse motivo,
assegurava sua conservação.”1

O texto que possui várias problemáticas


É quando a ordem de determinação intervém em primeiro
lugar e planifica as diferentes teses; tendo chegado ao nível das
teses, a inteligência aplica então a ordem exposta no primeiro
caso de figura.*3

1. Antoine de LA GARANDERIE, Pédagogie des moyens d ’apprendre. Les


enseignants face aux profils pédagogiques, “Paidoguides”, Paris, Le Centurion,
3 a ed., 1982, trechos das pp. 79-90. Passagens sublinhadas pelo autor.

218
O texto apresenta-se como uma árvore cujos ramos são as
ramificações do plano e os frutos ou as folhas são as demons­
trações.
Obviamente, como tornaremos a ver daqui a pouco, sendo
o plano uma divisão do texto, e portanto uma distribuição efe­
tuada de maneira lógica, um bom plano respeitará as regras de
divisão de que falamos acima.

• Leitura do texto
Este texto foi escrito por um dos especialistas internacionais
em cancerologia: “Os riscos do charuto e do cachimbo, embora
consideráveis, são nitidamente menores que os do cigarro: inala-
se muito menos a fumaça do cachimbo, que é muito acre, que a
do cigarro. Entretanto, entre os grandes fumantes de cigarro que,
preocupados com a saúde, mudam para o charuto, a necessidade
de nicotina faz com que esses grandes intoxicados venham a ina­
lar a fumaça do charuto, sem mesmo se darem conta disso. Nesse
caso, o charuto pode ser tão tóxico, ou até mais, que o cigarro.
O modo de fumar é muito importante. O risco é maior se a
fumaça for inalada, se a ponta do cigarro for conservada na bo­
ca entre duas tragadas e se o cigarro for fumado até o fim, pois
as últimas tragadas são as mais tóxicas.
O uso de um filtro reduz o risco, o que explica que 70%
dos cigarros vendidos atualmente na França o possuam, contra
92% nos Estados Unidos.”2

• Análise do texto
Esse texto não tem uma única problemática, o que não sig­
nifica que seja uma pura rapsódia, uma justaposição em mosaico
de pensamentos díspares. Pelo contrário, pode-se determinar o
tema de que o texto fala: muito precisamente, ele fala do risco
cancerígeno do hábito de fumar; mas ele não procura demons­
trar a existência desse risco. Na verdade, o tema comporta-se co­
mo um todo que o autor (implicitamente) irá dividir segundo
uma ordem de determinação:
- risco ligado ao que se fuma (§ 1);

2. Maurice TUBIANA, La lumière d a m Vombre. Le cancer hier et demain,


Paris, Odile Jacob, 1991, p. 187.

219
- risco ligado à maneira como se fuma: inalação da fumaça
(§ 2), presença de um filtro (§ 3)·
Além disso, cada um desses parágrafos comporta também
uma ordem: o § 2 divide-se também segundo uma ordem que é
de determinação (o professor Tubiana distingue no interior do
gênero “inalação da fumaça”); em contrapartida, o § 1 segue
mais uma ordem de demonstração. Assim, por que o cachimbo
apresenta menos riscos? O autor responde por um entimema:
não se inala uma fumaça acre; ora, a fumaça do cachimbo é
acre. Ele buscou portanto demonstrar.

Limites da ordenação do plano

Em primeiro lugar, um texto é em geral mais rico


que aquilo que o plano pode manifestar dele
Mesmo assim este sempre vale a pena, pois permite revelar
o essencial, apesar da margem de “não-planificável” (que rara­
mente excede a 10% do texto). Aliás, esta decorre da falta de ri­
gor do autor da passagem estudada.

Sobretudo, há gêneros literários que se prestam


m al à planificação
Convém estar atento a isso. Para alguns, é evidente; para
outros, talvez seja bom lembrar.

□ A literatura de distração
Leiamos o começo de Silmarillion de J. R. R. Tolkien (que,
em particular, embasa toda a mitologia - mais henoteísta que
monoteísta - do Senhor dos Anéis)■. “Houve Eru, o Primeiro, que
em Arda chama-se Iluvatar; ele criou primeiro os Ainur, os aben­
çoados, que ele engendrou com seu pensamento, e estes existi­
ram junto com ele antes que alguma outra coisa fosse criada. E
ele lhes falou, lhes propôs temas musicais; eles cantaram para
ele, e ele ficou feliz.”3
Qualquer planificação faria a poesia do texto escapar ou o
reduziria à sua mera inteligibilidade conceituai. Nem falemos de
uma poesia...

3· Paris, Christian Bourgois-Presses Pocket, 1978, p. 13·

220
□ A história
- O plano, a ordenação, jamais é inútil. E isto mesmo em
relação a um puro relato de acontecimentos; pois, embo­
ra correlacionados, os fatos podem mesmo assim indivi­
dualizar-se e portanto colocar-se em ordem, isto é, ser
identificados e separados (por questão de clareza: a or­
dem do espírito não é a ordem fatual). Ademais, isso fa­
vorece a memorização e também a compreensão das re­
lações causais (um relato contínuo pode fazer pensar
num determinismo fatalista).
A fortiori, os estudos mais globais dos fatores em jogo ou
das conseqüências têm todo o interesse em ser sistematizados
para o esclarecimento da inteligência do acontecimento.
- Acontece que, especialmente num relato, o plano não
pode ser dicotômico: freqüentemente deve contentar-se
em alinhar os fatos segundo a ordem de sucessão tem­
poral.
Mas a história requer, sobretudo, um pensamento sintético
e sistêmico (pluridisciplinar): os fenômenos apresentam interco-
nexões muito complexas, tanto do ponto de vista das causas co­
mo dos efeitos (estes e aquelas jamais são únicos). É onde o uso
de quadros com entradas múltiplas é não somente útil mas in­
dispensável.
Mais do que isso, a complexidade dos fenômenos do acon­
tecimento concreto convida ao emprego de novos instrumentos
pedagógicos, como o que chamamos hoje “multimídia” e que a
informática possibilita. A técnica multimídia é uma revolução da
pedagogia (não do pensamento): ela deveria estender-se a ou­
tros setores do saber, pois a inteligência gosta de funcionar mu­
dando de nível e variando os instrumentos (auditivos, visuais,
textuais). Mas ela deve disciplinar-se: o pensamento saltatório,
de elementos soltos ou analógico, não avança de maneira rigo­
rosa e acaba por nada demonstrar. Será vantajoso acompanhá-la
de uma arte de pensamento provida de lógica mais clássica: a
realidade é complexa em organização; mas lembre-se uma vez
mais que as exigências do racional não são as do real.
Enfim, tenha cuidado para que uma sistematização demasia­
do grande não o conduza a visões da história simplificadas e re­
dutoras.

221
□ O relato descritivo
Entende-se por relato descritivo tanto a descrição de uma
experiência científica quanto a de uma caminhada.
As observações são idênticas às dirigidas à história. Não es­
queça aqui a grande articulação fim-meio. Além do mais, e essa
observação vale para a literatura, a leitura pede para ser “plural”,
pois em geral os interesses do texto são múltiplos. Um relato de
exploração me diz várias coisas: fala-me tanto das técnicas utili­
zadas quanto das relações interpessoais no grupo, dos costumes
dos países atravessados etc. Há portanto aqui uma pluralidade
de teses.
Do mesmo modo, a Eneida de Virgílio apresenta múltiplos
centros de interesse (uma lenda movimentada, um estudo psico­
lógico aprofundado, uma apresentação da mitologia greco-roma-
na, da vida da época, uma releitura de Homero etc.). O sinal de
que a tese não é única é que se pode ler várias vezes a Eneida e
descobrir sempre coisas novas, ainda que a conheçamos de cor:
basta mudar o enfoque. Já um artigo científico lido atentamente
(eventualmente resumido) fornece seus segredos desde a pri­
meira leitura!

Como pôr em ordem, descobrir um plano?

Como de hábito, utilizaremos dois tipos de critérios: lógi­


cos e literários. Os primeiros dizem respeito ao conceito e os se­
gundos à palavra, ou, para empregar o vocabulário da linguísti­
ca estrutural de Ferdinand de Saussure, “os primeiros ao signifi­
cado e os segundos ao significante”.

Critérios lógicos
Antes de mais nada, leia o texto atentamente. Depois colo­
que-se esta primeiríssima questão: o texto comporta uma única
problemática? Se for o caso, basta redescobrir nele a ordem esta­
belecida mais acima (tese, prova, conseqüência etc.). Mas nem
sempre todas as “casas” ou divisões estão presentes; e também
não espere sempre do autor um rigor extremo: pode ser que ele
resolva intercalar uma conseqüência ao longo de uma demons­
tração, ou lançar uma objeção e resolvê-la antes de demonstrar
a tese etc.

222
O único problema verdadeiro é o colocado pelo segundo
caso de íigura. Hm relação ao primeiro, com efeito, remetemos a
tudo o que foi dito antes sobre os critérios de identificação da
tese, dos diferentes tipos de argumentos etc. A questão, portan­
to, é descobrir a ordem de determinação (em outras palavras, fa­
zer um plano) e não a ordem de demonstração.

Observações gerais
Primeiro é preciso aplicar os critérios de divisão e respeitar
a ordem de universalidade. É bom ler manuais ao invés de ex­
posições compactas e indigestas. Assinale as obras bem organi­
zadas. Mas não nos enganemos: aprender a fazer planos requer
uma longa experiência e sobretudo o convívio com autores rigo­
rosos; impregnamo-nos de seus habitus por imitação (que não é
mimetismo) e por simbiose.
Treine bastante, inclusive com jornais ou revistas, sobretu­
do porque virou hábito, há muitos anos, mesmo para as revistas
científicas, nào explicitar o plano dos artigos: sua presença, po­
rém, permitiria ganhar um tempo precioso na leitura.
Obrigue-se a numerar. Se um parágrafo apresenta as dis­
tinções existentes entre axônio e dendrito, entre golfinho e mar-
suíno, anote-as separando-as: seu pensamento ganha em preci­
são. Pergunte-se ao final do capítulo ou do texto: quantas são as
causas que o autor apresenta do conflito Irâ-Iraque? Não é preci­
so dizer que esse trabalho prévio é um alívio considerável para
a memória: a confusão é rainha da amnésia, a razão estrutura a
lembrança e facilita a retenção.
Certos romances bem construídos podem até ser oportu­
nidades de trabalho agradáveis: um Agatha Christie ou um Sher-
lock Holmes, por exemplo.

Critérios particulares
Há certos planos típicos que encontramos com freqüência.
Vamos dar alguns casos, ilustrando-os. A fim de evitar repetições,
indicaremos o plano, no interior do texto citado, entre colchetes.

□ A análise de fatos
Ela segue com freqüência o plano prático: fato-causa. Hélè-
ne Carrère cfEncausse interroga-se sobre o misterioso destino
atual da União Soviética:

223
[O fato problemático: I “A situação presente da URSS é es­
pantosa. Em termos de potência militar, o Estado soviético con­
serva capacidades de ação quase ilimitadas. A despeito de acor­
dos de desarmamento que subscreveu, sua potência está ainda
praticamente intacta. Exército muito numeroso, soberbamente
equipado, poder estratégico considerável, tudo isso não pode
ajudar a deter o desmembramento do país? Pois o fim do Impé­
rio significa, a curto prazo, uma derrocada do poderio estratégi­
co. [Questão sobre a causa:] Como imaginar que os que encar­
nam o poder - Estado, exército, KGB - assistem passivamente à
sua destruição, quando dispõem ainda de meios para reagir?
[Resposta: a causa, ou melhor, as duas hipóteses de causa:]
Entretanto, cumpre constatar que, descontados alguns sobressal­
tos - em Tbilissi ou no Azerbaijão -, o poderio soviético e os
que o detêm parecem aceitar sua própria liquidação. Voluntaria­
mente, ou porque esse próprio poderio já se encontra gangrena­
do como o Império?”4*

□ O estudo prático
Todo procedimento prático visa um objetivo. Portanto ele
comporta, no mínimo, dois tempos: o fim visado e o caminho,
isto é, os meios para chegar ao fim. Às vezes juntam-se a isso os
atores, os instrumentos etc.
O ponto essencial a registrar é a especificidade, a originali­
dade desse procedimento comparado a um especulativo ou teó­
rico: este último analisa, decompõe; o procedimento propria­
mente prático, ao contrário, sintetiza, pois compõe o fim com os
meios adequados para alcançá-lo.
Disso decorre um ponto importante: a ordem prática, a
bem dizer, não contém problemática, pois aqui não se trata de
demonstrar uma tese mas de alcançar uma finalidade.
Leiamos um trecho de um artigo de Jean Daniel. Ele não
nos fará mudar de registro de exemplos, pois também concerne
ao pós-comunismo soviético.
[- A finalidade:] “Como todos os reformadores que o prece­
deram na história - Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Catarina, a

4. La gloire cies nations ou la fin de I'Empire soviétique, Paris, Fayard, 1990,


pp. 400-1.

224
Grande, Alexandre II, Lenin e mesmo Kruchev -, Gorbachev
certamente empreendeu a tarefa gigantesca de modernizar seu
país sem com isso abandonar uma ambição imperial.” (...)
[- Meio. Eis aqui, particularmente, um que nào é anunciado
como um meio:] “Aposto como Gorbachev se resignará a uma
secessão da Lituânia, por menos camuflado que seja o termo de
independência.” A continuação, dois parágrafos adiante, é ainda
mais clara (falo do ponto de vista lógico): “Se adotarmos essa hi­
pótese de trabalho, a questão, para a União Soviética, será saber
por que meios ela pode permanecer imperial abandonando ao
mesmo tempo o imperialismo.”5
A união, a fecundação do plano precedente (fato-causa) e
deste resulta na famosa distinção tripartite: ver-julgar-agir (os
dois primeiros tempos correspondem ao plano: fato-causa; o se­
gundo faz atravessar a linha de demarcação entre os dois pri­
meiros tempos, de um lado, e o terceiro, de outro).

□ O estudo de um mal
Dizemos “mal” no sentido mais geral do termo: do infarto
do miocárdio ao craque de 1929· O plano é então naturalmente
o seguinte:
- o diagnóstico, isto é, o julgamento que identifica o que é
o mal. O diagnóstico subdivide-se às vezes em dois: in­
vestigar sintomas e investigar causas (a medicina fala de
diagnóstico respectivamente positivo e etiológico);
- o tratamento ou remédio. Também aqui pode-se subdivi­
dir: por exemplo, em tratamento sintomático e causal (o
que retoma a distinção dos dois tipos de diagnóstico), em
preventivo e curativo, em meios terapêuticos e resultados
(prognóstico, com e sem tratamento) etc.
A análise completa de um mal é também um estudo de or­
dem prática, pois busca um fim que é a saúde ou, de maneira
mais geral, o restabelecimento do bem; assim, nesse caso igual­
mente, o texto não se ordena em torno de uma problemática
mas de um fim a restaurar.

5. “L’adieu au siècle”, Le Nouvel Observateur, l Q-7 de fevereiro de 1990,


pp. 42-4, aqui pp. 42-3.

225
Paul Lemoine, pediatra, fala da crise de personalidade que
ocorre no momento da adolescência6:
[- Diagnóstico sintomático:] “É a revolta brutal: ele quer ser
‘grande’: até então aceitava-se como uma criança igual às outras:
‘a gente imitava os outros’, me dizia um deles. (...)”
Mas ele está ofendido■, pois não se sente levado a sério pe­
los adultos. Não tem mais direito como antes e é ferido por ser
tratado como pequeno, sujeito ainda às proibições e às ordens
que pesaram sobre ele até então (...).
Ao mesmo tempo ele está angustiado diante do caminho
rumo ao desconhecido. De vez em quando inquieto com as
transformações que se operam nele e que ele espreita com im­
paciência, e inquieto com aquilo que o espera: ‘Jamais serei ca­
paz.’ Essas angústias são muitas vezes agravadas pelos adultos;
por suas reflexões irônicas: ‘é só o começo, coisas piores virão’,
quando ele se debate em suas dificuldades (...).
Nessa incoerência, sentindo-se humilhado em sua imaturi­
dade, ele tem necessidade de afirmar-se diante de si próprio e
dos outros; e o fará pela oposição e pelas extravagâncias.”
[- Necessidade de diagnóstico causal:] “Ante a rudeza dessa
crise, os pais, habituados a um filho bem educado e obediente,
não compreendem o que está acontecendo. ‘Não o reconhece­
mos mais’ (...)”
[- Diagnóstico causal:] “E no entanto esse conflito é nor­
mal, sua ausência é que poderia causar inquietação: não se po­
de em dois anos passar da infância à maturidade sem se desfazer
de roupas, mas também das boas relações familiares; e isso é
necessário ao desenvolvimento da personalidade: é preciso uma
ruptura com o apego excessivo aos pais, e, por outro lado, o
‘eu’ aprende a se afirmar lutando. (...)”
[- Remédio; e este é antes de tudo preventivo, como o au­
tor tem o cuidado de nos advertir:] “O mais importante, como
sempre em medicina, é o tratamento preventivo. O conflito é
inevitável e é saudável! Mas sua intensidade irá variar muito
conforme tiverem transcorrido as etapas anteriores. (...)”
I- Remédio curativo:] “Quando a crise chegar, tratemos de
obter uma compreensão mútua. (...)”

6. Transmettre I’a mour. Une education a l’ecoute de I'enfant, Paris, Nou-


velle Cite, 1986, pp. 82-4. Sublinhado no texto.

226
Critérios literários

Reconheça os termos de articulação


Você os conhece bem, pois os passamos em revista por
ocasião do estudo do raciocínio: trata-se particularmente das
conjunções de coordenação empregadas com conhecimento de
causa. O especialista em informática Arsac quer demonstrar que
a máquina não consegue pensar, isto é, conhecer o sentido: “O
tratamento dos números se faz no computador sem nenhuma di­
ficuldade de princípio. Ora, eles não têm significação.”7 A con­
junção “ora” é um bom indicador da introdução de uma outra
premissa. No caso, o autor utiliza aqui um entimema para de­
monstrar que os computadores ignoram o sentido.

De maneira mais geral, reconheça bem o texto e o que


pertence ao metatexto, isto é, as indicações que não servem
imediatamente ao conteúdo, ao sentido do texto, mas que indi­
cam sua articulação lógica. É o caso dos termos de articulação,
como acabamos de dizer, mas também de todos os comentários
(de ordem lógica) que o autor introduz no próprio tecido de seu
texto. É algo como o código da estrada textual que o autor nos
fornece para dirigir-nos no território que ele abre diante de nós.
“A teoria da civilização de Freud desenvolveu-se a partir de
sua teoria psicológica (...). Mas essa abordagem psicológica pa­
rece falhar num ponto decisivo: a história progrediu ‘pelas cos­
tas’ dos indivíduos e por sobre esses indivíduos, e as leis do
processo histórico foram aquelas que governaram as instituições
reificadas e não os indivíduos. A essa crítica, respondemos que
a psicologia de Freud atingia uma profundidade em que o indi­
víduo era ainda a espécie, em que o presente era ainda o passa­
do.”8 Os termos em itálico, assinalados por nós, permitem dife­
renciar o que pertence ao texto e o que pertence ao metatexto,
ou seja, o que pertence à estrutura lógica do texto: tese, obje­
ção, resposta à objeção.

7. Jacques ARSAC, in Les machines a penser. D es ordinateurs et des hom ­


ines, Paris, Seuil, 1987, p. 226.
8. Herbert MARCUSE, Eros et civilisation. Contribution a Freud, “Poinls-
Sciences hum aines”, n- 22, Paris, Minuit, 1963, p. 104.

227
Isso significa que você eleve sempre efetuar sua leitura com
um recuo, como que em dois níveis:
- o nível imediato (o texto): é o sentido imediato do texto
que você lê;
- o nível mediato (o metatexto): é o de sua construção ló­
gica. A descoberta desse nível supõe um recuo constante
e, sobretudo, uma atitude ativa de leitura. Claro que o
autor está longe de sempre indicar esse nível; compete
muitas vezes ao leitor decifrá-lo. Isso se traduz por dois
tipos possíveis de anotações: uma é um resumo do que
você lê, a outra é a ordenação lógica; não falo aqui da
avaliação crítica nem das observações pessoais que não
interessam ao próprio texto.
Em suma, trabalhe sempre com óculos de foco duplo: tex­
tual e metatextual. Decifre a todo momento o nível em que você
se encontra. No começo, isso retardará sua leitura e até romperá
penosamente seu desenrolar fluido e contínuo; mas, com o trei­
no e a experiência, esse exercício se tornará uma segunda natu­
reza e fará suas leituras renderem consideravelmente.

Utilize, m as com discernim ento, subdivisões do texto


Essas subdivisões são de diferentes tipos: há os títulos e
subtítulos, e os índices de assuntos. Estes últimos reproduzem as
divisões presentes no texto: permitem portanto visualizar o pla­
no de maneira sinóptica. E sabe-se que, para penetrar na inteli­
gência de um texto, é preciso freqüentes vaivéns entre o texto e
seu plano.
Em geral você pode confiar nos manuais. Mas o caso dos
jornais requer mais cuidado. Primeiro porque seus títulos bus­
cam sobretudo atrair. Em seguida porque os subtítulos, com fre­
qüência também aliciadores, em geral não são colocados nas
subdivisões principais e não resumem o parágrafo: uma das ra­
zões disso é que não foi o autor do artigo quem os redigiu; um
outro foi encarregado de fazê-lo; ora, sua intenção é mais sedu­
zir do que orientar o espírito com rigor.
As revistas científicas não estão mais protegidas que as ou­
tras contra os subtítulos (involuntariamente) enganadores. As­
sim, num artigo sobre “A imunidade antibacteriana”, lê-se o se­
guinte subtítulo: “A reação inflamatória cria um meio hostil às

228
bactérias.” Ora, vejam como termina o parágrafo precedente: “A
indução ocasiona uma sucessão de ativações biológicas que re­
sultam, por um lado, na reação inflamatória que cria um meio
hostil ao desenvolvimento das bactérias e providencia elementos
necessários à reparação dos tecidos lesados pela infecção, e, por
outro lado, na destruição das bactérias por fagocitose.” O subtí­
tulo corresponde portanto ao primeiro ponto e caberia esperar
um outro subtítulo referente ao segundo ponto, a saber, “a des­
truição das bactérias por fagocitose”; na verdade, ele está incluí­
do no parágrafo de mesmo subtítulo910.
Também não nos enganemos com a função dos trechos
postos em destaque nos artigos ou entrevistas: eles procuram
evidenciar frases-choque, mais do que traduzir o pensamento do
autor. Assim, eis o que se pode ler em quadro numa entrevista
com Gérarcl Demuth, filósofo, psicólogo e sociólogo, executivo
da Cofremca: “Ainda funcionamos demasiadamente como uma
sociedade de gorilas”, “As pessoas buscam competência e emo­
ção”, “Seria preciso instalar detectores de exclusão”111. Ora, o
conteúdo da entrevista é bem mais rico e profundo do que fa­
zem supor essas frases de interesse acima de tudo geral.

Os critérios de estrutura do texto


Daremos apenas um exemplo: o critério de inclusão. O
que vem a ser? A inclusão é a repetição de uma palavra ou de
um grupo de palavras no início e no fim do parágrafo ou do
texto.
Muitos romances utilizam o “truque” da inclusão. Por
exemplo, o Prêmio Goncourt de 1991 começa por: “A sexta-feira
santa, naquele ano, caiu numa sexta-feira 13”, e termina assim:
“A sexta-feira seguinte, que era uma sexta-feira 13 e também,
naquele ano, a sexta-feira santa.”11
Tal procedimento literário, aliás nem sempre consciente,
exprime a extrema importância da idéia. Lembre-se que não é
raro um raciocínio começar ou terminar pelo enunciado da tese.

9. Philippe LAGRANGE, “L immunité antibactérienne”, in Supplément I m


Recherche, nQ237, novem bro cie 1991, pp. 25-9, aqui pp. 26-7.
10. Le Monde, 7 de janeiro de 1992, p. 2.
11. Pierre COMBESCOT, Les Filies dn Calvaire, Paris, Grassei, 1991, pp. 13
e 424.

229
A inclusão pocle ser portanto o sinal cie uma problemática.
Ela corresponde, em todo caso, à grande lei metafísica e espiri­
tual do exitus-reditus: tudo o que vem de Deus retorna a Deus.
Seu uso é universal: vale tanto em literatura quanto em fi­
losofia; encontramo-lo freqüentemente empregado na Sagrada
Escritura (não é por acaso que o evangelho de Lucas começa e
termina no Templo). Estende-se também aos meios audiovisuais:
o filme de Claude Lelouch, Itinéraire d'un enfant gâté, é enqua­
drado pela mesma cena, mas que se desenrola com anos de in­
tervalo, o que lhe dá uma grande força sugestiva; Os trinta e no­
ve degraus de Alfrecl Hitchcock começa e termina pela cena no
music-ball e pelo número do Senhor Memória.

Existem outros critérios de estrutura, mas eles interessam


sobretudo aos especialistas, aos exegetas. Citemos de lembran­
ça: as palavras-ganchos (palavras ou grupos de palavras que
terminam um parágrafo ou mesmo um capítulo e abrem um no­
vo parágrafo ou capítulo; também aí elas podem sublinhar uma
idéia importante, uma problemática), a simetria concêntrica ou
a estrutura em “forma de cebola” (ao contrário da inclusão que
sublinha as bordas do texto, essa estrutura simétrica pòe em
evidência seu núcleo. Também aí esse núcleo será na maioria
das vezes a tese central, a problemática sobre o argumento de
fundo. É possível encontrar um fundamento psicológico para
essa maneira de proceder que faz pensar no ato de descascar
uma cebola, ou no avanço progressivo rumo ao centro de uma
floresta, de uma igreja etc. Também nesse caso, não é sempre
conscientemente que o autor o utiliza), os quiasmas, as simetrias
cruzadas etc.

A lgum as outras “receitas”


- Reporte-se aos lugares chaves: início e final de parágra­
fo, observe as repetições de palavras.
- Mas não se detenha no esboço textual: passe da letra ao
sentido. Proceder assim permite leituras cursivas, se no­
tarmos que o autor começa sempre seus parágrafos
anunciando o que vai dizer ou resumindo o que disse.
Uma rápida espiada no meio do parágrafo permite saber
se há uma idéia nova.

230
- Leia os mesmos autores e observe seus “tiques”, suas ma­
neiras de proceder: eles fazem resumos de seu artigo? os
capítulos são introduzidos em posições chaves? seus títu­
los são bem escolhidos? Isso permite, aliás, selecionar os
jornalistas, os escritores mais pedagógicos ou com os
quais você tem mais afinidade.
Assim, lendo o livro de Bernard Sesboue, Les récits du salut
[Os relatos da salvação], você rapidamente perceberá que o au­
tor geralmente anuncia no início do parágrafo aquilo de que irá
falar; mais precisamente ainda, a primeira frase do parágrafo é
quase sempre sua problemática, o que mostra o raro rigor da
construção, além de tornar a leitura tão fácil quanto agradável e
permitir um percurso fluente sem inconveniente algum. Leiamos,
por exemplo, a primeira frase dos três parágrafos abrangidos pe­
lo subtítulo: “Uma estrutura doutrinal inscrita na trama dos rela­
tos”: “A estrutura fundamental da salvação cristã é a da aliança
consumada entre Deus e a humanidade pela vida, a morte e a
ressurreição do único mediador, Jesus, o Cristo” ( le parágrafo).
“As articulações dessa estrutura estão presentes no relato recapi-
tulador que é o Credo” (2e parágrafo). “Por outro lado, há ho­
mens, criados para ver Deus e situados no desejo e na necessi­
dade do dom de Deus” (3S parágrafo). A leitura de “por outro la­
do” convida a voltar atrás para achar o “por um lado” que é,
com efeito, a segunda frase do segundo parágrafo: “Por um la­
do, há Deus que se revela como Pai, Filho e Espírito.”12
Quanto tempo a leitura desse tipo de livros (ou de artigos)
faz ganhar! Comece por eles antes de se lançar em obras mais
complexas e menos bem ordenadas.

Enfim, como proceder no nível de um a obra inteira?

Conselhos gerais
De maneira geral, elimine a leitura demasiado escrupulosa.
Se tantas pessoas não conseguem ler livros volumosos, é porque
elas imaginam que é preciso ler tudo com a mesma atenção.

12. Jésus-Christ Vunique médiateur. II. Les récits chi salut , “Jésus et Jésus-
Christ" 51, Paris, D esclée, 1991, pp. 35-6.

231
Uma leitura eficaz é antes de tudo uma leitura muito ativa;
ela jamais procede de forma contínua. Proceda, grosso modo, da
seguinte maneira:
- primeiro, leitura atenta do resumo eventual na contraca­
pa do livro;
- depois, percurso atento do índice de assuntos, tentando
compreender sua disposição;
- depois, leitura também atenta da introdução, a fim de
delimitar o objeto e o método da obra;
- a seguir, leitura sempre atenta da conclusão: quais são as
conclusões a que chega o autor? Perca o hábito de ler os
livros de informação como se fossem romances policiais
cuja leitura do último capítulo é preservada para não des­
vendar a trama!
- se o livro contém conclusões parciais, prossiga. Aplique
o princípio aristotélico que consiste em ir sempre pro­
gressivamente do mais geral ao mais particular, o que
respeita o ritmo natural da inteligência;
- então é possível começar uma leitura capítulo por capítu­
lo; também aí, identifique os esquemas que economizam
longos desenvolvimentos; observe igualmente o começo
e o final do capítulo para saber se o autor resume neles
seu pensamento;
- enfim, no extremo detalhe, examine a construção dos pa­
rágrafos. De novo, vá ao começo e ao fim: o autor resu­
me neles seu desenvolvimento? Se for o caso, você eco­
nomizou tempo e energia. Examine o meio: acaso ele
acrescenta uma idéia nova ou contenta-se em desenvol­
ver a idéia principal enunciada no início? Percorra rapida­
mente um capítulo que não tem a ver com seu tema de
pesquisa;
- faça anotações tanto sobre o texto imediato que está
lendo quanto sobre o texto em geral, as idéias mais glo­
bais; não hesite em fazer - de passagem, quando lhe
convém e à parte - observações de todos os tipos, como
foi dito mais acima: sobre o conteúdo, sobre seu interes­
se, sobre o estilo etc.13

13■ Cf. Catherine DEREMBLE, Pascal IDE, Veronique MAUMUSSON, Guide


de l'education. Comment accompagner ses enfants dans leur scolarite, col. “Les
grands m om ents”, Paris, Droguet et Aidant, 1992, pp. 75-6.

232
Exemplo

• Leitura do texto
Eis aqui um livro sobre Pascal e Sào João da Cruz". De
acordo com os princípios acima, lemos rapidamente a contraca­
pa, depois o plano (pp. 5 6 ‫ )־‬comentado na p. 36 e, sobretudo,
transportamo-nos sem demora à conclusão. Aqui está o que le­
mos (pp. 297 a 299■ Para não estender demais a citação, tivemos
que omitir sem prejuízos à análise alguns parágrafos):
f§ 1] ',Pascal discípulo de João da Cruz não é uma afirma­
ção a priori, uma tese a defender; não é sequer uma questão co­
locada de início. É o fruto de uma longa investigação cuja expo­
sição dos resultados mascarou as hesitações, os retoques, os
desvios, e que, deixando, como reconhecemos, muitos pontos
obscuros, não está encerrada. Nossas três partes se completam e
se convocam uma à outra. As relações da família Pascal com os
carmelitas descalços ocasionaram uma influência do Carmelo. A
marca carmelita constatada nos textos pascalianos supõe esses
contatos. E, se Pascal é um místico, a união a Deus não se im­
provisa, apesar do gênio e da independência. (...)
[§ 2] O estudo das edições mostra que a leitura do doutor
místico por Pascal foi muito possível, em particular na tradução
do padre Cipriano que lhe foi contemporânea e que ainda hoje
não envelheceu. (...) Em suma, o contexto histórico permite su­
por que a influência ocorreu. (...)
[§ 31 Estávamos em busca de alguma passagem que permi­
tisse revelar uma possível influência de João da Cruz sobre Pas­
cal. Ora, o confronto dos textos também produziu resultados
inesperados. Apesar da eventual possibilidade de fontes co­
muns, o número de idéias e temas idênticos, a similitude das ex­
pressões nos surpreendeu: coincidências muito impressionantes
para vidas diferentes e diferentes projetos! Assim podemos dizer
que Pascal leu o doutor místico. (...)
[§ 4] No plano espiritual também, em sua vida e em sua
obra, essa alma apaixonada pelo absoluto elevou-se muito. Pas­
cal, portanto, não apenas tomou emprestadas muitas idéias ou

14. André BORD, Pascal et jean de la Croix, “Beauchesnes religion”, n9 17,


Paris, Beauchesnes, 1987.

233

.d
Exem plo 11

• Leitura do texto
O artigo seguinte utiliza vários tipos de plano. Seu título é:
“Adolescência e desespero. Anorexia, bulimia e suicídios aumen­
tam. E os pais geralmente não assumem suas responsabilidades.”
(La Cmix-VEvénement, quinta-feira, 31 de julho de 1986, p. 6.)
Dividimos o texto em parágrafos, a fim de facilitar a colo­
cação em plano ulterior.
[§ 1) “Depressão, anorexia, suicídio: a recrudescência de
atos de desespero entre os jovens (quando não é a droga ou a
delinqüência) inquieta os psiquiatras. O Congresso mundial de
psiquiatria da infância interessou-se particularmente pelas con­
dutas alimentares perturbadas. Vários estudos americanos assina­
lam inclusive que 50% dos adolescentes americanos sofrem de
anorexia ou de bulimia. Esse tipo de comportamento verifica-se
dez vezes menos entre rapazes, mas estes apresentam igualmen­
te cada vez mais tais distúrbios.
[§ 2J O professor Philippe Jeammet (Universidade Paris VI),
que constata também um nítido aumento da anorexia e da buli­
mia na França, comenta: ‘Não são doenças, mas respostas que os
adolescentes encontram para os conflitos da adolescência.’ E ele
insiste na necessidade de intervir precocemente para evitar que
esses problemas persistam vários anos e se tornem verdadeiras
doenças, evoluindo para graves distúrbios da personalidade, o al­
coolismo, o encolhimento do cérebro e até mesmo a morte.
[§ 31 O psiquiatra observa que as jovens anoréxicas e bulí-
micas são com freqüência ‘crianças imagens’, isto é, moças que
se desenvolveram mais em função do que a mãe ou seu meio
esperava delas do que em função de seus próprios desejos. Ao
se separarem da mãe no período da adolescência e ao descobri­
rem seu corpo e sua sexualidade, elas ficam desnorteadas e pro­
curam dominar o que não entendem ‘controlando’ seu corpo.
l§ 4] Para evitar que os jovens se fechem nesse tipo de ati­
tude, os professores Jeammet e Remschmidt (R.F.A.) pregam ‘a
aliança terapêutica com a família para restabelecer trocas vivas e
sair do impasse’ e notam que a maior ou menor severidade dos
pais não interfere no aparecimento ou na reparação de tais dis­
túrbios.

236
[§ 5] Nos países ocidentais, a angústia e a depressão dos jo­
vens se traduzem por um aumento do número de tentativas de
suicídio e de suicídios consumados.
I§ 6] Causa de morte mais importante entre os jovens (vin­
do logo abaixo os acidentes na estrada), o suicídio concerne so­
bretudo aos maiores de 16 anos que vivem geralmente em famí­
lias desunidas, em que um dos pais está desempregado e em
que o recurso a calmantes é usual. Em geral são utilizados os
medicamentos que a família compra na farmácia.
[§ 71 Para o professor Serge Lebovici, os adolescentes não
conseguem identificar-se com seus pais, eles próprios muitas ve­
zes em crise. ‘É preciso, diz ele, que os pais deixem de ser imi­
tadores, que deixem de se colocar no lugar dos filhos e de
tomar, por exemplo, a iniciativa para lhes propor a pílula. Pou­
quíssimos pais sabem declarar nos dias de hoje: a responsabili­
dade é sua, mas não estou de acordo.”’

• Análise do texto
A primeira frase do primeiro parágrafo é introdutória. Ela
não apresenta exatamente a problemática, e sim seu objeto, que
é “a recrudescência de atos de desespero entre os jovens”. E, se
não existe tese, é porque o plano seguido é mais prático: não se
trata primeiramente de demonstrar, mas de resolver um proble­
ma prático que aparece como um mal. Ora, vimos acima o pla­
no de estudo sistemático de um mal.
-Primeira parte: primeiro mal estudado: os distúrbios de
alimentação dos adolescentes.
Diagnóstico positivo: § 1.
Diagnóstico causal: § 2 (na verdade esse parágrafo é com­
plexo: ele fala também do prognóstico e trata igualmente dos si­
nais e do remédio) e 3.
Remédio proposto (preventivo): § 4.
-Segunda parte: segundo mal estudado: o suicídio dos
adolescentes.
A ordem seguida é globalmente simétrica.
Diagnóstico positivo: § 5·
Diagnóstico causal: § 6.
Remédio proposto: § 7.

237
- Qual é a distinção entre as duas partes?
Isso diz respeito à ordem de determinação. O artigo parte
de um todo (o tema) que ele divide: “os atos de desespero entre
os jovens”. Prova disso é que o título do artigo e a exposição
começam desse modo (“a recrudescência de atos de desespero
entre os jovens”), e a segunda parte (início do parágrafo 5) co­
meça por chamar de volta o todo dividido, portanto, por um re­
torno ao mais universal: “a angústia e a depressão dos jovens”.
Qual é a divisão? É a divisão do gênero em algumas de suas
espécies: as condutas alimentares (divididas, por sua vez, como
um gênero em suas espécies, segundo o excesso e a falta: a bu­
limia e a anorexia) e os suicídios são duas espécies de ato de
desespero do jovem.

238
C a p ít u l o V I I

EXERCÍCIOS VARIADOS

Para o treinamento, dois tipos de exercícios são necessários.


Eles correspondem às duas realizações da dinâmica intelectual
(e da vida) que distinguimos no final da introdução; são como
os dois tempos do batimento cardíaco:
—a diástole que é escuta, recepção (e restituição): esse é o
primeiro tipo de exercícios;
- a sístole que é jorro, invenção: é o segundo tipo de exer­
cícios. Para estes, será suficiente você utilizar os muitos
exemplos corrigidos que são propostos. Aliás, a melhor
maneira de preparar-se para a redação é trabalhar bem a
leitura sistemática e lógica dos textos. Vamos nos limitar
a esta última.

Conselhos gerais

Os textos a seguir são graduados, tanto quanto possível,


por dificuldade crescente. Empregue os instrumentos lógicos es­
tudados nos capítulos anteriores. Proceda, mas numa ordem di­
ferente, segundo as etapas detalhadas nos capítulos I a VI:
- Primeiro momento: qual é o nível de leitura? A esse res­
peito, se você propuser esse texto como exercício, não
indique o autor, a fim de não influenciar de modo positi­
vo ou negativo. Que seja a simples leitura do texto a de­
cidir quanto a seu nível.
- Segundo momento: qual é a problemática? Precise eventual­
mente o tipo de proposição (universal, particular, afirmati­
va, negativa). Isso permite orientar o tipo de raciocínio.
- Terceiro momento, preliminar à demonstração: quais são
as divisões que o autor opera? Essas divisões podem di-

239
zer respeito tanto ao predicado quanto ao sujeito da pro­
blemática. De que natureza é a divisão? (gênero-espécies,
todo integral-partes etc.) Embora o capítulo III, que trata
do raciocínio, preceda o capítulo IV, que tem por objeto
a divisão, vimos que um dos interesses desta é preparar
o raciocínio. Daí a ordem adotada.
- Quarto momento: quais são os raciocínios empregados
para a demonstração? Qual a natureza desses raciocínios?
Determine primeiro o TM e depois formalize o raciocínio.
São as divisões que em geral fornecem o TM.
- Quinto momento: qual é o plano do texto?
- Sexto momento, eventual: uma ou várias observações crí­
ticas.

Editorial de Claude Sarraute

• Leitura do texto
Título: “Troco na mão”
“Em minha série Pego-o-metrô-francamente-não-é-nada-
divertido, eis uma cena (...):
- Um carnê de dez bilhetes, por favor, pede o primeiro a
chegar, estendendo uma nota de 50 francos.
- Não tenho troco, vá trocar no café!
[E a mesma cena se repete pelo menos seis vezes. C. Sar­
raute comenta:]
O golpe do troco, conheço, já me passaram cem vezes, a
você não? Vai ver que é de propósito! Querem nos fazer enjoar
dos transportes públicos, nos incitar a pegar nosso calhambeque
e a engarrafar Paris pelo prazer de estender a seguir uma mão
exigente diante de um pedágio de auto-estrada. Dinheiro na
mão. Lá eles jamais o recusam, como também aceitam cheques
e cartões de crédito, mesmo para quantias irrisórias. Chique e
choque, o bilhete da R.A.T.P.? Toma-lá-dá-cá, isto sim!”
(Claude SARRAUTE, “Sur le vif”, Le Monde, sábado, 12 de outu­
bro de 1991, p. 36.)

Primeiro momento: qual é o nível de leitura?


Ele pode ser sentido desde o início da leitura: o texto é fei­
to para excitar, irritar. Além disso, o estilo familiar quer criar

240
uma cumplicidade. É verdade que um texto que descreve uma
cena da vida cotidiana poderia informar, mas esse não é o caso
mais frequente. O último parágrafo, sobretudo, baseia-se num
raciocínio pelo exemplo, geralmente utilizado nos textos que
buscam mais convencer do que demonstrar. O argumento do
engarrafamento é manifestamente polêmico. Ele caricaturiza a
posição segundo um processo que vimos: com efeito, afirma
que a única alternativa ao problema da falta de troco no metrô é
o automóvel. Ora, há muitas outras soluções a considerar antes.

Segundo momento: qual é a problem ática?


A tese defendida por Claude Sarraute é: o metrô deveria
sempre ter troco.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?


O gênero é demasiado polêmico para que o autor analise
seus conceitos. Não obstante ele busca, mas sem explicitar, algo de
comum entre a auto-estrada e o metrô: transporte, serviço público?

Q uatio momento: quais sào os raciocínios


empregados p a ra a dem onstração?
O autor utiliza um raciocínio pelo exemplo que visa o cho­
que (mesmo se não é chique, o que não é o gênero literário de
C. Sarraute): a auto-estrada será o análogo do metrô.
- Prossilogismo: no pedágio da auto-estrada há sempre tro­
co (e, além do mais, aceitam-se cartões de crédito para
pequenas quantias). Ora, a auto-estrada é, de certa ma­
neira, um lugar de transporte comum a todos. Ou então:
o pedágio é como um serviço público. O autor não expli­
cita claramente, e essa é uma fraqueza de seu raciocínio.
Logo, os transportes públicos deveriam sempre ter troco.
- Silogismo principal: ora, o metrô é um transporte públi­
co. Logo, o metrô deveria sempre ter troco.

Editorial de um jornal de paróquia

• Leitura do texto
“Ontem à noite, de volta de Paray-le-Monial, escoteiros da
Europa de minha paróquia me confiam seu mal-estar diante do

241
‘condicionamento’ carismático que sofreram enquanto aguarda­
vam a chegada do Papa.
Fui formado numa religião em que as mediações desempe­
nham um papel fundamental. E eis que me é proposto o IMEDIA-
TISMO: imediatismo da Palavra, apreendida através do texto;
imediatismo da presença, apreendida através da experiência;
imediatismo da relação, expressa pela ‘palavra em línguas’.”
(A. M. de LA MORANDAIS, pároco da igreja Notre-Dame-du-Tra-
vail, “Le retour de l’Esprit?”, La voix de Montroiige et Montsouris.
Journal chrétien d’information du l4e, ne 212, novembro de
1986, p. 1.)

Primeiro momento: qual é o nível de leitura?


É só após a leitura e a análise do texto que você poderá
percebê-lo. À primeira vista, o texto é frio, objetivo. Mas a dis­
torção existente entre a conclusão e a demonstração proposta
mostra que há uma tomada de posição polêmica. A desqualifica­
ção é apressada.

Segundo momento: qual é a problemática?


A tese é mais categórica do que aparenta: a Renovação ca­
rismática não é (não faz parte da) religião cristã.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?


Ele distingue seu termo médio que é o imediatismo: o da
Palavra, o da presença, o da relação. Trata-se da divisão de um
gênero em suas espécies.

Quarto momento: quais são os raciocínios


empregados p a ra a demonstração?
É um silogismo de segunda figura: a Renovação carismática
é religião do imediatismo (o que o autor mostra indutivamente a
partir de três casos particulares: Palavra, presença (experiência),
relação). Ora, a religião cristã é religião das mediações, ou seja,
não é religião do imediatismo. Logo...

242
Texto de Carrel

• Leitura do texto
“Não podemos empreender a restauração de nós mesmos e
de nosso meio antes de haver transformado nossos hábitos de
pensamento. Com efeito, a sociedade moderna cometeu desde
sua origem um erro intelectual. Erro que repetimos sem cessar
desde o Renascimento. A tecnologia construiu o homem não se­
gundo o espírito da ciência, mas segundo concepções metafísi­
cas errôneas. Chegou o momento de abandonar essas doutrinas.
Devemos romper as barreiras que foram levantadas entre as pro­
priedades dos objetos.
É numa interpretação equivocada de uma idéia genial de
Galileu que consiste o erro de que padecemos hoje. Galileu dis­
tinguiu, como se sabe, as qualidades primárias das coisas, di­
mensões e pesos, que podem ser medidas, de suas qualidades
secundárias, forma, cor, odor, que nào são mensuráveis. O
quantitativo foi separado do qualitativo. O quantitativo, expresso
em linguagem matemática, nos deu a ciência. O qualitativo foi
negligenciado. A abstração das qualidades primárias dos objetos
era legítima. Mas o esquecimento das qualidades secundárias,
nào. Ele teve conseqüências graves para nós. Pois, no homem, o
que nào se mede é mais importante que o que se mede. A exis­
tência do pensamento é tão fundamental quanto a dos equilíbrios
físico-químicos do soro sangüíneo.
A separação do qualitativo e do quantitativo tornou-se mais
profunda quando Descartes criou o dualismo do corpo e da al­
ma. A partir de então, as manifestações do espírito tornaram-se
inexplicáveis. O material foi definitivamente isolado do espiri­
tual. A estrutura orgânica e os mecanismos fisiológicos adquiri­
ram uma realidade muito maior que o prazer, a dor, a beleza.
Esse erro fez nossa civilização tomar o caminho que conduziu a
ciência a seu triunfo e o homem à sua decadência. (...)
Certamente, o qualitativo é mais difícil de estudar que o
quantitativo. Os fatos concretos nào satisfazem nosso espírito,
que gosta do aspecto definitivo das abstrações. Mas a ciência
nào deve ser cultivada apenas por ela mesma, pela elegância de
seus métodos, por sua clareza e sua beleza. Ela tem por objetivo

243
o benefício material e espiritual do homem. Devemos dar tanta
importância aos sentimentos quanto à termodinâmica.”
(Dr. Alexis CARREL, L bomme cet inconnu, Paris, Plon, 1935, pp.
338-9.)

Primeiro momento: q ual é o nível de leitura?


Esse texto dirige-se à inteligência. Ele é claro, de desenvol­
vimento contínuo, recorre apenas a argumentos acessíveis à ra-
zào e não suscita afetos particulares.

Segundo momento: qual é a problem ática?


A tese de nosso autor é que o homem de hoje deve conhe­
cer todo o real. Trata-se de uma proposição universal afirmativa.
Prova disso é o sentido da última frase do texto.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?

□ Divisão do sujeito
O conhecimento do real é de dois tipos: ou é um conheci­
mento do que é qualitativo (as “qualidades secundárias”), ou é
um conhecimento do que é quantitativo (as “qualidades primá­
rias”). Aplicada ao homem, essa divisão produz dois conheci­
mentos diferentes: o conhecimento da alma (do espiritual, dos
sentimentos...) e o conhecimento do corpo (do orgânico etc.).
O tipo da divisão deve ser considerado segundo os dois as­
pectos do todo que é dividido: trata-se ao mesmo tempo do real
e do conhecimento. Em relação ao real, é a divisão de um todo
integral em suas partes. Em relação ao conhecimento, é a divi­
são de um gênero em suas espécies.

□ Divisão do predicado
O homem divide-se em homem de ontem (que errou inte­
lectualmente) e em homem de hoje (e de amanhã) que deve se
corrigir intelectualmente. É a divisão de um sujeito em seus aci­
dentes.
Como vemos, as duas divisões se recobrem e permitem as­
sim fundamentar o raciocínio que virá a seguir.

244
Quarto momento: quais são os raciocínios
empregados p a ra a dem onstração?
O TM é a divisão do predicado que é uma quase-defínição.
O conhecimento integral do real abrange o qualitativo e o quan­
titativo. Ora, o homem de hoje deve unir conhecimento do qua­
litativo e do quantitativo (a prova é histórica e se fundamenta na
divisão do sujeito dada acima). Logo...

Q uinto momento: q u a l é o p la n o do texto?


- Tese (§ 1).
- Prova em dois tempos históricos (§§ 2 e 3).
- Objeção e resposta (§ 4).

Sexto momento: observação crítica


A divisão do predicado é um pouco curta. Por um lado, é
preciso ter claro que no pensamento de Carrel o qualitativo en­
globa a ordem substancial. Por outro lado, é falso afirmar que “o
quantitativo, expresso em linguagem matemática, nos deu a ciên­
cia”. Existem disciplinas científicas não matematizadas.

Texto de Lévi-Strauss

• Leitura do texto
Lévi-Strauss procura a origem da exogamia, isto é, da
proibição de casar-se com uma mulher de dentro da tribo, do
clã. Em outras palavras, a proibição do incesto.
“Quer seja de uma forma direta ou indireta, global ou espe­
cial, imediata ou adiada, explícita ou implícita, fechada ou aber­
ta, concreta ou simbólica, é a troca, sempre a troca, que sobres­
sai como a base fundamental e comum de todas as modalidades
da instituição matrimonial. Se essas modalidades podem ser
aceitas sob o termo geral de exogamia (...), é com a condição de
perceber, por trás da expressão superficialmente negativa da re­
gra de exogamia, a finalidade que tende a assegurar, pela
proibição do casamento nos graus proibidos, a circulação, total
e contínua, desses bens do grupo por excelência que são suas
mulheres e suas filhas.
O valor funcional da exogamia, definida no sentido mais
amplo, foi, com efeito, precisada e afirmada ao longo dos capí-

245
tiilos precedentes. Esse valor é primeiramente negativo. A exo-
gamia fornece o único meio de manter o grupo como grupo,
evitar o fracionamento e a compartimentaçào indefinidos que a
prática dos casamentos consangüíneos acarretaria: se se recor­
resse a eles com persistência, ou com demasiada freqüência, es­
tes nào tardariam a fazer ‘explodir’ o grupo social numa quanti­
dade de famílias que formariam outros tantos sistemas fechados,
mundos sem portas nem janelas (...). Acontece portanto com as
mulheres o mesmo que com a moeda de troca cujo nome elas
com freqüência carregam (...) Em face da endogamia, tendência
a impor um limite ao grupo, e a discriminar no interior do grupo,
a exogamia é um esforço permanente para uma maior coerência,
uma solidariedade mais eficaz, e uma articulação mais flexível.
É que a troca, com efeito, não vale apenas o que valem as
coisas trocadas: a troca - e conseqüentemente a regra de exoga­
mia que a exprime - tem, por si mesma, um valor social: ela for­
nece o meio de ligar os homens entre si e de sobrepor, aos la­
ços naturais do parentesco, os laços doravante artificiais, visto
que subtraídos ao acaso dos encontros ou da promiscuidade fa­
miliar, da aliança regida pela regra.”
(Claude LÉVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté,
Paris, Éd. Mouton, 2- ed., 1967, cap. XXIX, pp. 548-50.)

Primeiro m om ento: q u a l é o nível de leitura?


Esse texto dirige-se à inteligência. Extraído da conclusão da
tese de Lévi-Strauss, ele enuncia claramente, tranqüilamente, as
conclusões mais gerais a que chegou o antropólogo.

Segundo m om ento: q u a l é a problem ática?


A tese é que a exogamia é a origem da cultura. Cumpre
portanto nào se limitar ao que é apenas uma tese parcial: a exo­
gamia tem a troca por fundamento.

Terceiro m om ento: quais sào as divisões que o a u to r opera?

□ Divisão do sujeito
A exogamia apresenta um duplo valor:
- negativo: ela impede o fechamento do grupo em si mesmo;
- positivo: ela permite a troca.

246
□ Divisão do termo médio
A própria troca apresenta um duplo aspecto: um funda­
mento (uma causa material) natural, que é o parentesco, e uma
finalidade cultural, artificial.

Q uarto m om ento: quais são os raciocínios


em pregados p a ra a dem onstração?
Lévi-Strauss demonstra sua tese por um silogismo de pri­
meira figura: a exogamia permite a troca. Ora, a troca tem valor
cultural, social (já que supõe a instituição de regras). Logo...

Q uinto mom ento: q u a l é o p la n o do texto?


O texto estrutura-se sobre o silogismo:
- premissa menor: enunciado (§ 1); desenvolvimento (§ 2);
- premissa maior (§ 3).

Sexto m om ento: observação crítica


A teoria de Lévi-Strauss tem o mérito da clareza, mas é cri-
ticável quanto a seus dois fundamentos: a exogamia não tem
por função única nem primeira permitir a troca (seria reduzir in­
devidamente o homem ao econômico); e a troca não é o funda­
mento primeiro da cultura.

Texto de Jacques Maritain

• Leitura do texto
“Se a humanidade superar as terríveis ameaças de escravi­
dão e de desumanização que enfrenta hoje em dia, ela terá sede
de um novo humanismo e ansiedade de redescobrir a integrida­
de do homem, bem como de pôr fim às divisões internas que
tanto pesaram sobre a era precedente. Para corresponder a esse
humanismo integral, deveria ser promovida uma educação inte­
gral - aquela cujas principais características tentei esboçar neste
livro.
O individualismo burguês acabou. O que terá importância
capital para o homem de amanhã são as conexões vitais do ho­
mem com a sociedade, isto é, não apenas com o meio social
mas também com o trabalho comum e o bem comum. O proble-

247
ma é substituir o individualismo da era burguesa, não pelo tota­
litarismo ou o coletivismo da colmeia, mas por uma civilização
personalista e comunitária baseada nos direitos humanos e que
atenda às aspirações e às necessidades sociais do homem. A
educação deve pôr fim à discordância entre a exigência social e
a exigência individual dentro do próprio homem. Este deve de­
senvolver, portanto, ao mesmo tempo o senso de liberdade e o
senso de responsabilidade, o dos direitos humanos e o das obri­
gações humanas, a coragem de assumir riscos e de exercer a au­
toridade em favor do bem geral juntamente com o respeito à
humanidade em cada pessoa individual.
A educação de amanhã deverá também acabar com a cliva­
gem entre a inspiração religiosa e a atividade secular no ho­
mem, se é verdade que um humanismo integral deve contar en­
tre seus traços principais com um esforço de santificação da
existência profana e temporal. E a educação de amanhã deverá
igualmente acabar com a clivagem entre o trabalho ou a ativida­
de útil e a floração de vida espiritual e de alegria desinteressada
que o conhecimento e a beleza oferecem. Percebemos aqui o
caráter autenticamente democrático da educação de amanhã. Ca­
da um deve trabalhar, ou participar do fardo da comunidade hu­
mana, segundo suas capacidades. Mas o trabalho não é um fim
em si: o trabalho deve proporcionar o lazer para a alegria, a ex­
pansão e o deleite do espírito.”
(Jacques MARITAIN, Poiir une philosopbie de 1’é ducation, Paris,
Fayard, 1966, p. 102.)

Prim eiro m om ento: q u a l é o nível de leitura?


Contra toda a aparência, esse texto dirige-se à inteligência,
com uma ponta polêmica, porém, assestada contra “o individua­
lismo burguês”. Mas estas palavras não são utilizadas num senti­
do marxista, sentido esse que desperta o ódio e deforma a inteli­
gência.

Segundo m om ento: q u a l é a problem ática?


O tema é evidente: Maritain fala da educação e da educação
de amanhã. Ele repete suficientemente essas palavras para nos
convencermos disso. Mas o que ele diz a respeito? Diz muitas
coisas. Como encontrar um predicado que encerre essa multipli-

248
cidade? O texto o diz explicitamente. Mas o conhecedor de Mari-
tain o encontrará com mais facilidade, pois é o título de uma de
suas obras principais (Humanisme integral, Paris, Cerf, 1968).
Eis aí a tese: a educação de amanhã deve promover o hu­
manismo integral. É mais ou menos o que diz a segunda frase do
primeiro parágrafo (invertendo predicado e sujeito, por razões
extralógicas). Trata-se de uma proposição universal afirmativa.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?

□ Divisão do predicado
Encontramos três divisões do predicado distribuídas no 2-
e no 3S parágrafos:
Um humanismo integral integra diferentes elementos. O
que ele une?
- em seu agir: as exigências individuais e sociais (§ 2);
- em seu espírito: secular e religioso (§ 3);
- em seu “fazer”: ao mesmo tempo trabalho e lazer (§ 3).
Ora, a ação, a atividade do espírito e o “fazer” abrangem
toda a atividade do homem (os três H: bearl, bead, band). Tra­
ta-se aqui, portanto, da divisão de um todo em suas partes inte­
grais: o lerino humanismo integral, caro ao autor de Distinguer
pour unir [Distinguir para unir], tem assim também uma conso­
nância lógica.

□ Divisão do sujeito
A educação divide-se em educação de ontem (a do indivi­
dualismo burguês e a do totalitarismo, a que divide o homem
em vez de unificá-lo) e em educação de amanhã. É a divisão de
um acidente em seus acidentes.

Q uatio momento: quais são os raciocínios


empregados p a ra a dem onstração?
O TM é a união no homem entre as exigências sociais e in­
dividuais, as atividades seculares e religiosas, o trabalho e os la­
zeres.
Maritain faz um silogismo de primeira figura: unir esses di­
ferentes tipos de atividade realiza o humanismo integral. Ora, a
educação de amanhã unirá essas diferentes exigências. Logo...

249
A premissa menor é manifestada pelo exemplo contrário
do individualismo burguês, portanto pela divisão do sujeito e
não mais do predicado.

Q uinto momento: qual é o plano do texto?


A ordenação é clara e demonstrativa.
- Problemática: § 1.
- Demonstração: ela se distribui segundo os diferentes as­
pectos do TM (que são as divisões do predicado):
primeiro aspecto: § 2;
segundo e terceiro aspectos: § 3·

Texto de Sigmund Freud


Atenção, o texto de Freud põe em jogo dois tipos de argu­
mentação diferentes. Além disso, e é outro de seus interesses,
ele detalha uma definição.

• Leitura do texto
“Penso que a resposta a nossas duas questões foi suficien­
temente preparada. Vamos encontrá-la ao voltar os olhos para a
gênese psíquica das idéias religiosas. Essas idéias que professam
ser dogmas não são o resíduo da experiência ou o resultado fi­
nal da reflexão: elas são ilusões, a realização dos desejos mais
antigos, mais fortes, mais prementes da humanidade; o segredo
de sua força é a força desses desejos. Já vimos: a impressão ater­
radora da angústia infantil havia despertado a necessidade de
ser protegido - protegido e amado -, necessidade que o pai sa­
tisfez; o reconhecimento do fato de que essa angústia dura a vi­
da inteira fez com que o homem se apegasse a um pai, a um pai
desta vez mais poderoso. A angústia humana diante dos perigos
da vida tranqüiliza-se ao pensamento do reino benevolente da
Providência divina, a instituição de uma ordem moral do univer­
so assegura a realização das exigências da justiça, tão seguida­
mente deixadas irrealizadas nas civilizações humanas, e o pro­
longamento da existência terrestre por uma vida futura fornece
os quadros de tempo e de lugar em que esses desejos se realiza­
rão. Respostas às questões colocadas pela curiosidade humana
diante destes enigmas: a gênese do universo, a relação entre o
corporal e o espiritual, elaboram-se de acordo com as premissas

250
do sistema religioso. E é um formidável alívio para a alma indi­
vidual ver os conflitos da infância emanados do complexo pater­
no - conflitos jamais inteiramente resolvidos —serem-lhe, por as­
sim dizer, retirados e receberem uma solução aceita por todos.
Quando digo: tudo isso são ilusões, cumpre que eu delimite
o sentido desse termo. Uma ilusão não é a mesma coisa que um
erro, uma ilusão tampouco é necessariamente um erro. A opinião
de Aristóteles, segundo a qual os vermes seriam engendrados pe­
lo lixo (...) era um erro (...). Era uma ilusão da parte de Cristóvão
Colombo acreditar ter descoberto um novo caminho marítimo
das índias. (...) O que caracteriza a ilusão é ser derivada dos de­
sejos humanos; deste modo ela se aproxima da idéia delirante
em psiquiatria, mas também separa-se desta, mesmo sem levar­
mos em conta a estrutura complicada da idéia delirante.
A idéia delirante está essencialmente - sublinhamos esse
caráter - em contradição com a realidade; a ilusão não é neces­
sariamente falsa, isto é, irrealizável ou contraditória com a reali­
dade. Uma jovem de condição modesta pode, por exemplo, criar
a ilusão de que um príncipe virá buscá-la para casar. Ora, isso é
possível; alguns casos do gênero realmente ocorreram. (...)
Dadas essas explicações, voltemos às doutrinas religiosas.
Tornaremos a dizer: as doutrinas religiosas são todas ilusões,
não se pode verificá-las, e ninguém pode ser obrigado a tê-las
por verdadeiras, a crer nelas.”
(Sigmund EREUD, L avenir d ’une illusion, Paris, PUF, 7a ecl.,
1987, pp. 43-5.)

Primeiro momento: qu a l é o nível de leitura?


Esse texto não é polêmico, ele dirige-se à inteligência.
Atenção: não é por concluir pelo oposto de nossas próprias con­
vicções que ele é passional ou perverso... Seria ainda menos le­
gítimo pensar assim pela simples menção do nome do autor,
Freud. Esse texto tem, ademais, o mérito da clareza e do rigor, o
que não é tão freqüente no psiquiatra vienense, cujo estilo é ad­
mirável mas a precisão nem tanto.

Segundo momento: qual é a problem ática?


A tese é muito clara: a religião é uma ilusão. Trata-se de
uma proposição universal: ela não é passível de nenhuma exce-

251
çào. É o que faz também sua vulnerabilidade, como se compreen­
de facilmente.

Terceiro momento: quais sào as divisões que o a u to r opera?

□ Divisão do sujeito
Freud, que não é filósofo e muito menos teólogo, não se
detém em definir a religião, mas destaca algumas de suas carac­
terísticas para ele decisivas: os dogmas (e crenças) referentes a:
- Deus em sua natureza de Pai e de Providência;
- o universo em sua origem e em sua ordem providencial;
- o homem em sua estrutura (material e espiritual) e em
sua vida.
É como a divisão de um gênero em suas espécies.

□ Divisão do predicado
Freud procede por divisões para chegar à definição da ilu­
são. Remetemos ao que foi dito antes. Ele a define em compara­
ção com o erro e o delírio. Sistematizando:
- o erro é um enunciado contrário ao verdadeiro de causa
intelectual;
- o delírio é um enunciado contrário ao verdadeiro de cau­
sa afetiva (cuja causa é um desejo, ou uma angústia);
- a ilusão é um enunciado de causa afetiva que pode ser
falso ou verdadeiro. Sua lógica é a do desejo, eis tudo.
Poderíamos estabelecer uma divisão dicotômica da seguin­
te maneira:
- conhecimento errôneo de causa intelectual: o erro propria­
mente dito (Freud não o distingue aqui explicitamente da
mentira que é um erro intelectual, mas de causa intencio­
nal, voluntário);
- conhecimento de causa afetiva:
- sempre errôneo: o delírio (que é uma doença psiquiátrica);
- às vezes errôneo, às vezes verdadeiro: a ilusão; e temos
aí nossa definição da ilusão. Trata-se de um conhecimen­
to de causa afetiva (o gênero) que é às vezes correto (di­
ferença).

252
Quarto momento: quais são os raciocínios
empregados para a dem onstração?
Freud estabelece sua tese por um silogismo de primeira figu­
ra. A esse silogismo vem misturar-se uma indução que estabelece
a premissa menor: partindo da menor, chega-se a seguir ao mais
universal. Por razões pedagógicas, seguiremos a ordem inversa.

□ A premissa maior
É a definição da ilusão: a ilusão é uma crença “derivada
dos desejos humanos”. Uma definição, por si, não se demonstra.
Na verdade, Freud procede de uma dupla maneira:
- De um lado, manifesta sua definição a partir de um
exemplo. Efetua uma indução-abstração. Um único caso
singular é suficiente para manifestar o universal que está
contido: o exemplo de Cristóvão Colombo mostra clara­
mente que foi um desejo que causou a cegueira e a ilu­
são. Os diferentes exemplos dados no 3e parágrafo são
uma confirmação que se poderia estruturar como uma
indução.
- De outro lado, Freud procede por divisões para chegar à
definição da ilusão. Veja o que foi dito acima.

□ A premissa menor
Ora, tal é o caso da religião: ela baseia-se no desejo. É o
que foi estabelecido antes: os dogmas realizam os “desejos mais
antigos, mais fortes, mais prementes da humanidade”.
Freud o demonstra assim: o consolo da aflição, da angús­
tia, é um desejo muito antigo e muito poderoso. Ora, o homem
tem três angústias fundamentais: os perigos da vida, as injusti­
ças, a morte. E a idéia de Providência apazigua a angústia dos
perigos da vida, a instituição de uma ordem moral apazigua a
angústia da injustiça e a crença na vida futura apazigua a angús­
tia da morte. Portanto a religião apazigua as angústias (que fa­
zem parte da vida afetiva) do homem.

□ Conclusão
O começo do 4S parágrafo a enuncia, recordando a premis­
sa menor: “ninguém pode ser obrigado a tê-las por verdadeiras,
a crer nelas”.

253
O silogismo é muito rigoroso, uma vez que se baseia na
própria definição do predicado, a saber, a ilusão.

Q uinto momento: qual é o p la n o do texto?


- Prova da premissa menor: § 1.
- Prova da premissa maior: § 2 e 3:
- enunciado: primeira frase do § 2,
- demonstração, ou melhor, estabelecimento da definição
por diversas distinções:
—primeira distinção (entre ilusão e erro): § 2,
- segunda distinção (entre ilusão e delírio): § 3■
- Conclusão: § 4.

Texto de Marcei Jousse

• Leitura do texto
Leia o seguinte texto, que apresenta uma das intuições
mais fundamentais de um antropólogo original e infelizmente
pouco conhecido, Marcei Jousse (especialista em transmissões
orais nas civilizações de tipo semítico).
“O lance genial para o homem foi tomar clara consciência
do Mimema que brotou espontaneamente em seus músculos mo­
delados. Esse ‘Mimema’, com efeito, não é senão a reverberação
do gesto característico ou transitório do objeto no Composto hu­
mano, nessa viva e misteriosa síntese que podemos ver atuar glo­
balmente, mas da qual não saberíamos dissociar o elemento que
seria espírito puro e o elemento que seria corpo puro.
Do nosso ponto de vista, que é rigorosamente antropológi­
co e de modo nenhum metafísico, temos portanto apenas o di­
reito de falar de Composto humano. Lidamos com um complexo
que é completamente espiritualizado, se ouso dizer, e quase
completamente materializado, no sentido de que ele não poderá
se exprimir, a si mesmo e aos outros, a não ser por intermédio
dos mimemas gestuais.
É pelo Mimema que o homem constrói sua primeira ex­
pressão que é portanto, não o que se chamou de Linguagem,
mas a Mimagem. É graças a essa ‘Mimagem’ que funciona o
Pensamento. O Pensamento sendo simplesmente uma intelecçâo
de ‘Mimemas’.

254
Essa Antropologia do Mimismo nos dá a solução funda­
mental do grande problema que, de uma forma ou de outra, os
meios étnicos mais diversos, concretos ou algebrizados, por toda
parte e sempre colocaram: o problema do Conhecimento.
O homem só conhece o que ele acolhe em si mesmo e o
que ele repete. É o mecanismo do Conhecimento por nossos
gestos de repetição. Jamais poderemos conhecer o que está to­
talmente fora de nós. Só podemos conhecer aquilo que intussus-
cepcionamos mais ou menos perfeitamente. Cada indivíduo dife­
re como intussuscepçâo. Depois que a intussuscepção se operou
e se repetiu em nós, há a conservação pessoal das repetições.
Essa conservação, vitalmente pessoal, depende da riqueza das
intussuscepções e da força da personalidade, pois nem todos so­
mos iguais. Nessas profundezas, o homem é inteira e intuitiva­
mente invadido e modelado pelo real. É como que possuído por
seu invasor, que ele exprime e sopesa conforme a estrutura de
seu organismo. O Imitador torna-se, de certo modo, o ser imita­
do e conhecido em seus gestos, e faz disso como uma nova en­
carnação.
Aristóteles, com uma espécie de intuição genial, havia dito:
‘O Homem é o mais imitador de todos os animais, e é pelo Mi­
mismo que ele adquire todos os seus conhecimentos’ (Poética,
IV, 2).
Com mais precisão antropológica, dizemos: o Anthropos é
um animal interacionalmente imitador. Ou seja, apenas o Ho­
mem ‘intelige’ as interações do real. Aqui, poderão intervir as
afetividades, as sensibilidades. Mas o caráter específico do ho­
mem consiste em inteligir as Interações do real. Precisamos sem­
pre partir da Interação. Em realidade, não somos senão recepto­
res de Interações.”
(Marcei JOUSSE, L antbropologie du geste, col. “Voies ouvertes”,
Paris, Gallimard, 1974, pp. 54-5.)

Primeiro momento: qu a l é o nível de leitura?


Esse texto denso e técnico dirige-se à inteligência. Um sinal
disso é dado pelo presença de alguns neologismos: “mimema,
algebrizado, intussuscepção”.

255
Segundo m om ento: q u a l é a p ro b le m á tic a ?
A tese universal afirmativa do autor condensa toda a suá
antropologia: “o homem é um animal interacionalmente imita­
dor”. É a primeira frase do último parágrafo. Como se compreen­
derá facilmente, essa problemática, para o autor, é uma defini­
ção. Com efeito, “homem” desempenha o papel de gênero e “in­
teracionalmente imitador” o de uma diferença.

Terceiro m om ento: q u a is são as divisões q u e o a u to r opera?

□ Divisão do predicado
“Precisamos sempre partir da interação.” A interação existe
em dois universos: o primeiro tipo de interação encontra-se na
natureza, o segundo tipo existe no homem e provém do real
que é sua origem. Ora, como o homem acolhe essas interações,
sendo ele “receptor de interações”? Jousse distingue diferentes
atos no homem: mimagem, linguagem, intussuscepção, repeti­
ção, conservação, pensamento. Todos esses processos são agru­
pados sob o termo vago e geral de conhecimento. Com base no
que o texto deixa perceber, estamos diante da distinção de um
todo em suas partes virtuais: as interações do real são primeira­
mente intussuscepcionadas (isto é, repetidas e imitadas), depois
são conservadas, podendo enfim nascer o pensamento e a lin­
guagem, assim como a afetividade e a sensibilidade.

□ Divisão do sujeito
O sujeito, que é o homem, pode ser considerado sob dois
pontos de vista diferentes: metafísico e antropológico. Segundo
a primeira perspectiva (§ 1 e 2), é preciso dividir o homem em
corpo e espírito (distinção de um todo em suas partes integrais);
segundo a outra perspectiva (§ 2), como reconhece explicita­
mente Jousse, o homem é uno, embora composto, não cabendo
à antropologia diferenciar as partes. Ora, é o mimema que ex­
prime e causa essa unidade.

Q uarto m om ento: q u a is são os raciocínios


em pregados p a ra a dem o n stra çã o ?
O grande raciocínio é um silogismo de primeira figura: o
real é interação; ora, conhecer é tornar-se aquilo cjue se co-

256
nhece; logo, quem conhece deve repetir as interações, isto é,
imitá-las.

Q u in to m om ento: q u a l é o p la n o do texto?
- Precisões preliminares (§ 1 a 5).
—Definição do homem: primeiro esboço por Aristóteles (§ 6);
definição precisa (§7).

Sexto m om ento: observação crítica


Poderíamos apelar para uma noção um pouco bárbara que
foi apresentada anteriormente em quadro: a noção de predicá-
vel. Para Jousse, o núcleo, a essência do homem, o que a lógica
dos predicáveis chama “a diferença específica”, é seu caráter “in-
teracionalmente imitador”. Tanto é que uma das últimas frases
fala do “caráter específico do homem”. Mas será isso tão certo?
Será que essa não é antes a propriedade, o próprio do homem?
Além disso a imitação, que ele diz ser específica ao conhe­
cimento, não será antes sua conseqüência? E essa concepção do
real como interação, herdada em linha direta de Bergson, mere­
ce também ser questionada.

Texto de René Girard

• Leitura do texto
Este texto muito rico, que requer uma leitura atenta, forne­
ce uma das teses essenciais do pensamento de Girard sobre a
origem do que ele chama a “crise sacrificial”, em outras palavras:
a origem da violência.
“... não é necessário postular um instinto de morte ou de
violência. Uma terceira via se oferece à pesquisa. Em todos os
desejos que observamos, não havia apenas um objeto e um su­
jeito, havia um terceiro termo, o rival, ao qual se poderia tentar,
por uma vez, dar a primazia. (...) O rival deseja o mesmo objeto
que o sujeito. (...) A rivalidade não é o fruto de uma convergên­
cia acidental dos dois desejos pelo mesmo objeto. O sujeito de­
seja o objeto porque o rival também o deseja. (...)
Ao nos mostrar no homem um ser que sabe perfeitamente o
que deseja, ou que, se parece não sabê-lo, tem sempre um ‘in­
consciente’ que sabe por ele, os teóricos modernos não percebe-

257
ram talvez o domínio no qual a incerteza humana é mais flagran­
te. Uma vez satisfeitas suas necessidades primordiais, e às vezes
até antes, o homem deseja intensamente, mas não sabe exatamen­
te o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser do qual ele se sente
privado e do qual um outro lhe parece provido. O sujeito espera
desse outro que ele lhe diga o que se deve desejar para adquirir
este ser. (...) Nâo é por palavras, é por seu próprio desejo que o
modelo designa ao sujeito o objeto supremamente desejável.
Voltamos a uma idéia antiga mas cujas implicações talvez
sejam desconhecidas; o desejo é essencialmente mimético, ele
está calcado sobre um desejo modelo (...). O mimetismo do de­
sejo infantil é universalmente reconhecido. O desejo adulto não
é em nada diferente, salvo que o adulto, em particular em nosso
contexto cultural, tem vergonha, na maioria das vezes, de se
modelar a partir de outrem; ele tem medo de revelar sua falta de
ser. (...)
Dois desejos que convergem para o mesmo objeto opõem-
se mutuamente. Toda mimese que envolve o desejo desemboca
automaticamente no conflito. Os homens são sempre parcial­
mente cegos a essa causa da rivalidade. O mesmo, o semelhante
nas relações humanas, evoca uma idéia de harmonia: temos os
mesmos gostos, gostamos das mesmas coisas, somos feitos para
nos entendermos. O que acontecerá se tivermos realmente os
mesmos desejos?”
(René GIRARD, La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972, pp.
204-5.)

Primeiro momento: qual é o nível de leitura?


Esse texto dirige-se evidentemente à inteligência. Suas inci­
dências éticas são secundárias.

Segundo momento: qual é a problemática?


O desejo mimético é a origem da violência. Essa tese é uni­
versal afirmativa.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?


Para Girard, o desejo se distingue em função dos diferentes
protagonistas, a relação sendo no caso triangular: sujeito, objeto
e rival. Trata-se da divisão de um todo em suas partes integrais.

258
Girarei distingue também o desejo em desejo infantil e desejo
adulto: trata-se da divisão de um todo em suas espécies, a rigor,
em suas partes virtuais.
Voltando-nos para o predicado, constatamos que Girard
parte das relações humanas. Ele distingue duas: as relações har­
moniosas e as relações violentas ou conflitivas; as primeiras são
fundadas no mesmo, no semelhante, as segundas no outro e no
diferente. É a divisão do gênero em suas espécies.

Quarto momento: quais são os raciocínios


empregados para a dem onstração?
Girard estabelece sua prova por um silogismo de primeira
figura, muito rigoroso. As premissas dividem os parágrafos. Para
cada premissa, ele estabelece sua tese em positivo e em negati­
vo, opondo-se a um certo número de lugares-comuns que pre­
valecem nas ciências humanas.
Eis o silogismo: o desejo necessita sempre a presença de
um rival. Ora, chama-se mimética essa similitude. Em outras pa­
lavras, todo desejo humano é mimético.
Girard opõe-se particularmente à concepção freudiana que
se interessa apenas pela relação dual sujeito-objeto no desejo.
Ele assinala que existe sempre um terceiro termo, o rival. Por
quê?
Isso é demonstrado de uma dupla maneira: por silogismo
(§ 2) e por indução (§ 3). A razão proposta no parágrafo 2 é a
seguinte: o desejo humano é incerto, sem objeto. Ora, o rival es­
pecifica esse objeto. Logo, o desejo necessita a presença de um
terceiro que é o rival.
A indução baseia-se nas diferentes idades da vida, jovem,
adulta, e é portanto bastante completa. Ora, a presença do rival
é fonte da violência.
Com efeito, a presença de um rival implica a existência de
um desejo mimético. Ora, o desejo mimético, a existência de
dois desejos rivais que têm o mesmo objeto, desencadeia um
conflito, portanto a violência. Girard opõe-se à concepção se­
gundo a qual o mesmo é fonte de harmonia. Logo, o desejo é a
causa da violência.

259
Quinto momento: qual é o plano do texto?
Premissa maior:
-T ese enunciada: § 1.
- Prova dedutiva: § 2.
- Prova indutiva: § 3■
Premissa menor: § 4.

Sexto momento: obsewação crítica


É possível interrogar-se sobre o sujeito da problemática (se­
rá que todo desejo nasce da rivalidade, da mimese?), sobre o
predicado (como se define a violência? Nào há confusão entre a
combatividade e a rivalidade normais e esse excesso que a vio­
lência implica?) e finalmente sobre a ligação entre sujeito e pre­
dicado (o desejo é a única ou a principal fonte da violência?).

Texto de Simone de Beauvoir

• Leitura do texto
“A palavra ‘amor’ nào tem o mesmo sentido para um e para o
outro sexo, e essa é uma origem dos graves mal-entendidos que os
separam. Byron disse com razão que o amor é apenas uma ocupa­
ção na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher. É
a mesma idéia que Nietzsche exprime em A gaia ciência·.
‘A mesma palavra amor’, diz ele, ‘significa de fato duas coi­
sas diferentes para o homem e para a mulher. O que a mulher
entende por amor é bastante claro: não é apenas a dedicação, é
uma doação total de corpo e alma, sem restrição, sem nenhuma
consideração pelo que quer que seja. É essa ausência de condi­
ção que faz de seu amor uma fé, a única que ela possui. Quanto
ao homem, se ele ama uma mulher, trata-se do amor que ele
quer dela; portanto ele está muito longe de postular para si o
mesmo sentimento que para a mulher; se houvesse homens que
sentissem também esse desejo de abandono total, podem estar
certos, nào seriam homens.’
Há homens que em certos momentos de sua existência po­
dem ter sido amantes apaixonados, mas não há um único que
possamos definir como ‘um grande apaixonado’; em seus arre­
batamentos mais violentos, eles jamais abdicam totalmente; mes­
mo se caem de joelhos diante da amada, o que eles desejam

260
ainda é possuí-la, anexá-la; permanecem no centro de suas vidas
como sujeitos soberanos; a mulher amada é apenas um valor en­
tre outros; eles querem integrá-la à sua existência, não absorver
sua existência inteira nela. Para a mulher, ao contrário, o amor é
uma demissão total em proveito de um senhor.”
(Simone de BEAUVOIR, “Uamoureuse”, Le cleuxième sexe, “Fo-
lio-Essais”, Paris, Gallimard, t. II, cap. II, pp. 376-7.)

Primeiro momento: qual é o nível de leitura?


Durante a leitura, sente-se crescer a tensão entre o homem
e a mulher. O clima é portanto passional. O texto dirige-se tam­
bém à inteligência, mas indiretamente.

Segundo momento: qual é a problemática?


A tese defendida por S. de Beauvoir é que o amor, para a
mulher, é uma alienação. Trata-se de uma tese universal afirma­
tiva.

Terceiro momento: quais sào as divisões que o autor opera?

□ Divisão do predicado
A alienação é definida como “total demissão em proveito
de um senhor”. Essa demissão irá dividir-se como um gênero em
suas espécies: existe a alienação do operário, da mulher etc.

□ Divisão do sujeito
O amor é uma relação; e a relação distingue-se, de um la­
do, segundo os termos em relação e, de outro, segundo a natu­
reza de seu fundamento. O que vem a ser essa relação no amor?
Para a autora, o amor é abandono total da vontade em proveito
do homem.
- Os termos em relação sào evidentemente o homem e a
mulher: ele é o amado e ela a amante, por essência.
- Qual o fundamento da relação amorosa? É um funda­
mento único: a paixão da mulher; ora, essa paixão acaba
por identificar-se à mulher.

26l
Quarto m om ento: quais são os raciocínios
em pregados p a ra a demonstração?
O raciocínio será um silogismo de primeira figura. Ele
baseia-se na definição do amor:
- o amor é total entrega do próprio ser nas mãos de um
senhor. Ora, é isso a alienação. Logo, o amor é alienação.

Q uinto m om ento: qual é o pla n o do texto?


- § 1 e 2: premissa maior (que oferece argumentos de auto­
ridade).
- § 3: retoma a premissa maior e conclui o raciocínio.

Sexto m om ento: observação crítica


Esta avaliação diz respeito à definição do amor, portanto
ao sujeito da problemática.
Em primeiro lugar, a autora tem uma concepção romântica,
passional do amor. Ela reduz o amor ao sentimento. Ora, se o
amor é um ato da vontade, a relação que ele estabelece não é
mais por essência desigual, entre um senhor e um escravo, mas
é igualitária, entre duas pessoas iguais.
Mas hã uma segunda crítica mais profunda: diz respeito à
identificação entre a mulher e o amor. O fundamento disso é a
filosofia existencialista professada por Sartre que não era desco­
nhecida de Simone de Beauvoir! Para o existencialismo sartrea-
no, a existência precede a essência, a natureza do homem iden-
tifica-se a seu projeto. Por isso, o amor acaba por definir a mu­
lher (“sou o que faço”).

Texto de Françoise Giroud

• Leitura do texto
Este texto é extremamente denso. Um estudo lógico cerra­
do permite revelar pouco a pouco a argumentação sutil e com­
plexa que embasa a simplicidade aparente da idéia.
“Assim que uma mulher transpõe a fronteira do território
masculino, a natureza do combate profissional muda. As virtu­
des que se exigem então de uma mulher, pergunta-se quantos
homens seriam capazes de mostrá-las.

262
Eu disse há pouco que a evolução atual das mulheres, a
forma que ela assumirá - e pode fracassar é a meu ver o tema
de perturbação mais profundo das sociedades desenvolvidas,
juntamente com a partilha do poder de decisão. Ateou-se um in­
cêndio que diz respeito ao essencial das coisas, e em primeiro
lugar à família. A origem é a pílula, naturalmente. Não porque
ela permite evitar os filhos - esse é o aspecto acessório, por
mais cômodo cjue seja - e sim porque, pela primeira vez na his­
tória da humanidade, cabe às mulheres a decisão sobre o objeti­
vo mais fundamental. Biologicamente. E não apenas lhes cabe a
decisão, como elas não podem escapar dela, uma vez que não
tomá-la é uma forma de tomá-la.
E claro que essa responsabilidade maior está na origem do
movimento de fundo que se manifesta neste momento, e que
ela conduz à exigência de responsabilidades sociais.
Mas tudo isso é complicado. As mulheres não têm medo de
perder o que elas não têm, não é mesmo?... A autoridade, o co­
mando, o poder, em suma, a decisão exercida por alguém que
não se sente ameaçado em sua virilidade ou obrigado a tranqüili-
zar-se a seu respeito, não terá nem os mesmos efeitos nem o
mesmo caráter. Portanto, todo acesso em massa das mulheres a
postos de responsabilidade deveria ter conseqüências considerá­
veis, inestimáveis, na condução dos assuntos humanos.”
(Françoise GIROUD, Si je mens, Librairie Générale Française,
1974, Paris, pp. 140-1.)

Primeiro momento: qu a l é o nível de leitura?


A problemática mostra-se confusa à primeira leitura. Se o
texto é manifestamente simples em sua expressão, é porque não
se dirige apenas à inteligência. De fato, esse texto desperta pai­
xões em certas categorias de pessoas (feministas etc.): no caso,
o desejo de poder, o ódio à autoridade (especialmente masculi­
na), o rancor (ainda em relação ao machismo masculino) etc. O
texto dirige-se portanto à vontade e à afetividade sensível, so­
bretudo à combatividade. Trata-se de afetos positivos? Tudo de­
pende de seu referencial de valores...

Segundo momento: qual é a problem ática?


A problemática não é outra senão: a mulher é um agente
revolucionário. Isso o surpreenderá, pois o predicado (“agente re-

263
volucionário”) não é designado: a tese está portanto oculta. Em
sua crueza e radicalidade, ela seria recusada por muitos leitores.
No entanto, é exatamente essa a intenção de F. Giroud. A idéia
está aí, ainda que as palavras não estejam.

Terceiro momento: quais são as divisões que o autor opera?

□ Análise do predicado
Em primeiro lugar, o texto identifica revolução e “perturba­
ção do poder”, isto é, mudança de poder. Por sua vez, o poder
é identificado com a autoridade e a força. Para a autora, essas
identificações são quase-defínições. Enfim, e chegamos à distin­
ção, o poder divide-se como um todo em suas partes virtuais,
em autoridade detida pelo homem e autoridade detida pela mu­
lher. Ora, de fato (por causa da situação social atual), mas não
de direito, a autoridade pertence atualmente apenas ao homem.

□ Análise do sujeito
Pode-se considerar a mulher numa dupla perspectiva: so­
cial e biológica; no plano social, é preciso subdividir: a mulher
responsável que toma a pílula (e se “masculiniza”) e a mulher cul­
pada, irresponsável (que recusa tomar a pílula e permanece mu­
lher).
Cabe notar que a primeira divisão é a de um todo virtual
em suas partes, e a segunda (subdivisão de social), a de um aci­
dente em suas partes.

Quarto momento: quais são os raciocínios


empregados para a demonstração?
O termo médio é a pílula anticoncepcional. O que nos dá a
série de silogismos seguintes:
A revolução é a mudança de poder. Ora, o poder político é
a autoridade. Ora, a autoridade pertence apenas ao homem.
Ora, a pílula anticoncepcional masculiniza a mulher. Logo, a
mulher é um agente revolucionário (pois, para resumir a argu­
mentação, a pílula permite-lhe tomar o lugar até então reservado
ao homem e portanto mudar o poder).

264
Sexto momento: observação crítica
Após esse “descascamento", percebe-se melhor o interesse
da lógica: ela explicita e revela o que uma simples leitura deixa­
ria despercebido; ela sobretudo desativa as bombas intelectuais
que esse gênero de textos fazem explodir em nós, freqüente­
mente sem o sabermos: com efeito, mesmo e sobretudo se não
desarticularmos esse tipo de escrito, o impacto intelectual-afetivo
permanecerá intacto.
Ora, o texto é de inspiração marxista. A discussão em ter­
mos de poder (identificado com a autoridade) e a dialetização
das relações (particularmente homem-mulher) são dois sintomas
típicos disso.
Se quiséssemos entrar nos detalhes, é cada proposição do
catassilogismo que seria preciso avaliar:
- Será a revolução proletária o motor da história?
- A autoridade é a totalidade do poder político?
- A mulher é mulher em seu corpo ou também em seu psi­
quismo?
- Pode a pílula mudar a natureza (sexuada) da mulher?
Ela pode negar artificialmente uma de suas dimensões (a
saber, a procriação); mas interfere na dimensão erótica
ou das relações?

265
C a p ít u l o V I I I

CO M O REDIGIR UMA DISSERTAÇÃO

Na última parte da introdução, distinguíamos quatro gran­


des situações intelectuais típicas: ler, escrever, escutar, falar. O
primeiro capítulo estudou em detalhe os instrumentos intelec­
tuais que permitem ler com inteligência. Trata-se dos mesmos
que são empregados na escrita, mas diversamente empregados.
Pois a leitura está para a escrita assim como a receptividade para
a atividade: a parcela de restituição é mais manifesta no caso da
escrita.
Ora, o caso da dissertação é exemplar. Ele apresenta todas
as dificuldades de um trabalho de redação e passa por todas as
etapas necessárias à confecção de um texto. Entretanto, a disser­
tação opera a partir de um tema delimitado e segundo critérios
acadêmicos. Excluímos portanto o caso do trabalho puramente
original que apela antes de tudo à criatividade. Esta não é total­
mente banida da leitura de um texto ou da redação de uma dis­
sertação, mas mesmo assim submete-se a limites muito estritos,
muito circunscritos às normas da dissertação. Em suma, este capí­
tulo nada dirá sobre o caso da criação literária (seja qual for sua
natureza: redação de um artigo, de um romance etc.).
Mais ainda, o caso da dissertação de filosofia é exemplar. A
experiência mostra que os que têm êxito na dissertação filosófi­
ca são os que têm êxito nos outros tipos de dissertação: de um
lado, porque as regras, os princípios de método são os mesmos;
de outro, porque a utilização destes é mais delicada em filosofia,
em razão da dificuldade da matéria: as dificuldades e soluções
da dissertação de filosofia incluem as dos outros tipos de disser­
tação. Claro que se deverá adaptar estes conselhos, sobretudo
nos casos do comentário de texto ou da dissertação científica.
Enfim, nos interessaremos pelo caso mais freqüente: o da
dissertação de vestibular. Há apenas uma diferença de extensão

267
ou de grau de dificuldade, não de natureza, em relação a outros
tipos de dissertação filosófica, como a de licenciatura.
O mais simples e mais pedagógico será tomar um único
exemplo que servirá ao longo de toda a exposição. Seja o tema
de dissertação filosófica arquiclássico: “Será o homem apenas
consciência?”
Para as questões de organização, de material, de técnica de
anotações, permitimo-nos remeter ao nosso livro Travailler avec
métbode c ’est réussir [Trabalhar com método é obter êxito]1.

A S D IFEREN TES ETAPAS

Assim como para a leitura rigorosa de um artigo ou de um


livro, há diferentes etapas (sete) a percorrer, o que significa duas
coisas: 1) É preciso percorrê-las todas; 2) é preciso percorrê-las
na ordem.
Este capítulo terá um aspecto mais escolar e dará regras
um pouco formais, porque o essencial já foi dito. Basta aplicá-lo:
podemos assim passar quase diretamente ao “Como?” pulando o
“Por quê?” e o “O que é?”. Por uma questão de simplicidade, a
exposição reduziu ao mínimo indispensável a utilização dos ins­
trumentos elaborados no primeiro capítulo, de modo a limitar o
jargão e a tornar a técnica de dissertação o mais abordável pos­
sível. No limite, este capítulo poderia ser lido sem levar em con­
ta os capítulos precedentes, recorrendo-se apenas, caso haja ne­
cessidade, às palavras chaves na página 3·
O tema acaba de ser distribuído pelo professor, seja para
ser desenvolvido em casa, seja no exame. O que se deve fazer e
não fazer?

Primeira etapa: ler o tema

O que não deve ser feito


Começar por esmiuçar cada palavra, esquecendo de tomar
uma visão de conjunto. É o pânico que o induz a isso. O grande

1. Précis de m éthodologie pour Fétudiant chrétien, “Guide Totus”, Paris,


Le Sannent-Fayard, especialm ente caps. I e IV.

268
risco é sair cío tema. E sair cio tema é tão arriscado quanto sair
da pista...

O que deve ser feito


Leia o tema. Confesse que você não havia pensado nisso!
Especifico, insistindo mais uma vez: leia atentamente, palavra
por palavra, o que diz o tema.
Sejamos mais concretos: o homem é um todo; a inteligên­
cia está conectada à sensibilidade. Isso significa, portanto, que a
perspectiva do tema é estressante; e isso é sobretudo verdade
no dia do exame.
Ora, o estresse não é uma coisa ruim. Pelo contrário, dá a
noção do perigo e mobiliza os meios fisiológicos e psicológicos
para enfrentar o obstáculo. Em situação de estresse as glândulas
supra-renais secretam hormônios que, por exemplo, aumentam
os ritmos cardíaco e respiratório (respiração mais rápida, mais
curta), o que permite realizar um esforço eficaz. Os especialistas
em esportes extremos dizem todos: perder o medo é perder a
noção do perigo. A dissertação de vestibular ainda não foi ho­
mologada entre os esportes de condições extremas, mas é bom
que ela cause um mínimo de estresse, pois assim prepara para
confrontá-lo à dificuldade2. Alguém me contava que um dia foi
perseguido por um cachorro e que só conseguiu salvar os fundi­
lhos trepando numa árvore. No dia seguinte, ao passar diante da
árvore, ficou estupefato, indagando-se como tinha feito para al­
cançar galhos tão altos: gratidão aos hormônios de estresse!
Mas convém um meio-termo, pois, lançados em quantida­
des demasiado grandes, estes engendram reações nào controla­
das e não coordenadas. Portanto, calma! Respire fundo durante
um tempo para relaxar e leia muito lentamente todo o tema de
dissertação.

Segunda etapa: colocar a problemática

O que nào deve ser Jeito


- Lançar-se ao papel e começar a anotar tudo o que vem à
cabeça. A auto-organização espontânea costuma ser rara:

2. Para maiores detalhes, ver Construire sa personnalité , Paris, Le Sarment-


Fayard, 1991, cap. IV, pp. 200 ss.

269
a técnica do brain-storming tem uma eficácia reduzida:
retêm-se apenas algumas idéias por cento. Mergulhar no
dicionário ou nos livros de filosofia para ver o que os fi­
lósofos antes de você pensaram a respeito do tema. Você
recolherá uma grande quantidade de opiniões, mas como
juntar em feixe trigo, beterraba e abacaxi? Não se começa
uma casa acumulando pedras, mas perguntando-se que
tipo de casa se deseja; se for na montanha, há de se pre­
ferir talvez a madeira à pedra...
- Dividir o tema em palavras não é muito melhor. Esse ti­
po de método conduz diretamente à dissertação-salsicha,
que é um gênero a proscrever formalmente. Com efeito,
seria regredir ao nível da primeira operação do espírito.
Ora, ela está a serviço do juízo (segunda operação do es­
pírito) colocado pela problemática. É verdade que a or­
dem da inteligência supõe que se passe do mais comum
(o tema) ao mais distinto, dividindo; mas primeiro con­
servando sua estrutura molecular, não pulverizando-a.

O que deve ser feito

Pergunte-se: qual é a questão que me colocam?

□ Por quê?
Dedicamos um capítulo inteiro a essa questão tão importan­
te, se não for a mais importante. Ela é tão essencial que conheço
um professor que aconselha a seus alunos escrever em letras
maiusculas bem visíveis, no dia do exame, no alto da folha de
rascunho: QUAL É A QUESTÃO QUE ESTÃO ME PROPONDO?

□ O que é?
Quais são os critérios da verdadeira problemática? É o mo­
mento de aplicar o que estabelecemos no capítulo II. Uma ver­
dadeira problemática comporta dois conceitos e apenas dois. Es­
se é o critério decisivo. Um bom número de dissertações ficam
comprometidas porque são compostas de múltiplos conceitos,
porque seu autor (o aluno) quer sempre dizer tudo na proble­
mática, encerrando ao mínimo o TM com ela. Quem muito abar­
ca, pouco une.

270
Além disso, o predicado é mais universal que o sujeito.
Enfim, uma problemática deve colocar uma verdadeira
questão, deve mobilizar a atenção e o interesse do leitor. Se vo­
cê se perguntar: “É o homem consciente?”, a resposta tem mui­
tas chances de ser positiva e sem surpresa, e o desenvolvimento
enfadonho.

□ Como?
Do tema proposto pelo professor à problemática escolhida
pelo aluno.
De um estrito ponto de vista lógico, segundo os critérios
empregados na primeira parte, é possível distinguir três tipos de
problemáticas:
- O tema que é um juízo colocado sob forma interrogativa.
Cumpre ainda distinguir se há dois ou mais conceitos, e
sobretudo se a resposta é dada por sim ou não ou se im­
plica outras respostas possíveis. Por exemplo: “O que
nos ensinam do homem as ciências do homem?” é um
tema que pede uma resposta complexa.
- O tema que tem a forma de um juízo em modo afirmati­
vo. “Eu é um outro”. Essa forma é mais rara.
- O tema que não tem mais a forma de um juízo, mas de
uma justaposição de um ou de vários conceitos. Por
exemplo: “Ver” (um único conceito) foi um tema de filo­
sofia proposto no concurso de ingresso à Escola Normal
Superior em filosofia: “Verdade e evidência”, “Natureza e
cultura” (dois conceitos).
De um ponto de vista bem mais prático-habitual sem fun­
damento lógico rigoroso, mas muito cômodo, distinguiremos as
problemáticas claras e as problemáticas obscuras.
- As problemáticas claras:
No caso ideal, é a problemática de dois conceitos proposta
em forma interrogativa que pede uma resposta por sim ou não.
E preciso também que os termos não sejam nem difíceis (técni­
cos), nem ambíguos. Fazem parte ainda das problemáticas claras
as afirmações com dois conceitos, a exemplo da que propuse­
mos mais acima: “Será o homem apenas consciência?”
A tendência do vestibular tem sido propor cada vez mais
temas que correspondam aos critérios da problemática clara.

271
- As problemáticas obscuras■.
Num ano, foi colocada esta questão: “Será a inconsciência
o álibi do inconsciente?” O termo “álibi” já não é simples de
compreender; além disso, a repetição da mesma palavra (“in­
consciente”) numa problemática não é propícia à compreensão:
o aluno tem medo de se atrapalhar, e com razão.

Apliquemos essas distinções.


Toda a sua tarefa de estudante é chegar a uma problemáti­
ca clara. Enquanto não tiver chegado a isso, você tem todas as
“chances” de se perder na logomaquia laboriosa.
Às vezes você terá que limitar o tema de dissertação para
extrair sua problemática. Mas é a única maneira de avançar. Ca­
so contrário, há o perigo da erudição mal controlada, ou então
de a memória, ou pior, a imaginação, tomar o lugar da inteligên­
cia. Se seu tema for “Justiça e violência”, você deverá deter-se
num aspecto da questão; por exemplo: “A justiça pode se exer­
cer sem violência?” Mas isso está longe de esgotar toda a ques­
tão das relações entre justiça e violência. Daí, sua tese não dever
contrair demais o tema. De qualquer maneira, você não pode
tratá-la na totalidade no espaço de uma dissertação. Eis por que
determinar uma problemática é ter a coragem de escolher. E es­
colher é morrer um pouco...

Esclareça bem os termos da problemática.


Se os termos lhe parecerem difíceis ou ambíguos, você será
tentado a não sair deles. Você os repetirá com medo de mudá-
los, pois seu sentido permanece vago. Por exemplo, se tiver
uma dúvida sobre o sentido de consciência, vale a pena consul­
tar o dicionário. Seria lamentável limitar o sentido de consciên­
cia à consciência moral (é o sentido do “Consciência, instinto di­
vino”, de Rousseau em La profession de fo i du Vicaire Savoyard
[A profissão de fé do vigário saboiano].
Mas não aproveite isso para, em primeiro lugar, examinar
todos os sentidos dos termos de sua problemática. Na maioria
das vezes, é mais do que o suficiente o sentido comum que vo­
cê tem deles. Não caia no jogo de suas angústias.
Enfim, uma vez colocada a problemática em forma de
questão, reformule-a de diferentes maneiras para dominar bem

272
seu sentido. Jamais se deixe encerrar numa formulação. Por
exemplo, sua problemática é: “Será o homem apenas consciên­
cia?”. Você pode traduzi-la: “Pode-se reduzir o homem à cons­
ciência?”, “Uma parte da pessoa humana é não consciente?”, “A
totalidade do homem se resume à consciência?”, “Encontra-se
nele outra coisa além da consciência?” etc.
Você verá que proceder assim torna a inteligência livre,
pois isso coloca à sua disposição um “teclado” ampliado de pa­
lavras (não de conceitos); a melodia será mais variada, a leitura
mais agradável. A boa gestão das palavras flexibiliza o espírito.

Terceira etapa: estabelecer a resposta

O que não deve ser feito


- Mergulhar no raciocínio, pesquisar diferentes respostas.
- Acumular material (fazer leituras em todas as direções,
confrontar citações etc.)
Em ambos os casos, a razão é a mesma que para a segun­
da etapa.

O que deve ser feito


Responda à questão que você formulou graças à segunda
etapa.
A razão dessa terceira etapa é essencial e corresponde à vi­
da da inteligência: ela está ordenada para o verdadeiro. Ora, a
conclusão é primeira em finalidade e última na execução. Se vo­
cê quiser sair de férias, não começará por fazer as malas ou por
calçar os esquis, começará por perguntar-se onde, quando e co­
mo irá. O fim é portanto primeiro na ordem da intenção, mas só
será alcançado ao término da realização, pois é ele que move
todas as energias e orienta todos os meios. Ora, é a conclusão,
isto é, a resposta dada à problemática, que desempenha o papel
de finalidade que mobiliza sua dissertação. É sumamente impor­
tante, pois, que você a decida o mais rápido possível. Dela de­
pende a coordenação dos esforços subseqüentes. E se você a
recolocar em questão, todas as etapas ulteriores serão modifica­
das com isso; do mesmo modo, se resolver ir à praia e não mais
à montanha, é bem provável que tenha de trocar a passagem de
trem e no mínimo o conteúdo de sua mala.

273
A dificuldade logo surge: mas como saber de imediato a
resposta ao tema? Não será cair no dogmatismo? Na verdade,
uma armadilha muito mais temível o ameaça, que é o ceticismo
sincretista. Além disso, a experiência mostra claramente que, se
você não responder de imediato à questão, jamais a responderá.
É uma questão de boa navegação: se quiser avançar, já deve ter
uma idéia da direção de seu objetivo. Não digo ter a conclusão
na cabeça com todos os detalhes. Por outro lado, o plano, que
constitui a quarta etapa, permitirá escapar às tentações de rigi­
dez intelectual. Enfim, fixar a resposta é prova de comedimento,
não de prometeísmo; ignorar onde você vai é começar um tra­
balho que não tem fim. Por exemplo, quando interromper a co­
leta de material? Muitas das angústias e das tentativas de aborda­
gem que nunca chegam a abordar devem-se ao fato de o objeti­
vo, portanto o termo, não ter sido fixado: ele se afasta à medida
que se acredita tocá-lo. Confunde-se objetivo com horizonte. E
fica-se às voltas com divisões de tempo do gênero: tema dado
há três semanas, dez dias para juntar a documentação e uma
noite em claro para redigir às pressas uma dissertação enciclopé­
dica desossada que lembra deploravelmente a mesa de trabalho
de Gaston Lagaffe [personagem trapalhão de uma história em
quadrinhos francesa],
A atitude a tomar é portanto refletir por um momento dian­
te de sua problemática e decidir a resposta que lhe parece ver­
dadeira.

A questão em questão

Philonenko interroga-se com inquietude sobre essas filosofias


que se interessam apenas pelo questionamento por si mesmo
(é o caso, por exemplo, de um Heidegger e de seus discí­
pulos).
"A filosofia deveria analisar bem menos a questão relativa à
questão (...) do que a idéia de conclusão. (...) E à idéia de
conclusão que devemos sempre voltar. Quando acabamos

274
um projeto, psicologicamente não nos sentimos mais ligados
por ele e todas as suas determinações. Todos sabem por ex­
periência que uma tarefa inacabada - mesmo se ela expõe
coisas inacabadas como aqui - é obsedante. Se jamais
conseguíssemos concluir, mesmo muito modestamente, não
teríamos nenhuma liberdade. Devemos procurar resolver pro­
blemas, ainda que saibamos que suas conclusões finais per­
tencem a um futuro muito distante. N o entanto trabalhamos
neles sem descanso porque queremos concluir. A questão é
importante - a conclusão o é ainda mais."

(Alexis PHILONENKO, L'archipel de la consdence européenne, "le collège de philoso-


phie", Paris, Grasset, 1990, p. 260 . Sublinhado por nós.)

Quarta etapa: estabelecer o plano

O que não deve ser feito


Também aqui, sucumbir à tentação sempre recorrente de
juntar material. Esse é um trabalho sem fim (nos dois sentidos
do termo). Com efeito, como limitar a acumulação se você não
definiu o plano? É ele que finalizará e portanto limitará suas pes­
quisas. Ora, o que não é limitado é indefinido, portanto confuso
e fonte de pânico.
Cumpre assim começar por planificar. Mas qual plano? Há
três tipos de plano a evitar sistematicamente.
- O plano dogmático contenta-se em afirmar ou demons­
trar, sem jamais descobrir a contradição. Você procede
então por uma longa litania de: “Porque..., porque...,
porque...” Mas a verdade é uma busca; raramente ela se
evidencia de forma repentina, e é bom que seu trabalho
exprima o caráter “aporético”, problemático da questão
abordada. Você escreve, por exemplo: “O homem é
consciência, não há dúvida, Descartes o mostrou de ma­
neira definitiva”, e não leva em conta a objeção de Freud
segundo a qual o homem se define primeiro pelo seu in­
consciente.

275
Isso não quer dizer que jamais se deva concluir, já que dis­
semos o contrário na etapa precedente. Mas esse tipo de plano
conclui em excesso e demasiado cedo.
- Inversamente, há o plano que não conclui jamais - é o
famoso plano dialética, tese-antítese-síntese. Diga-se de
passagem, nem as palavras nem o sentido habitual dado
a essas palavras é hegeliano, trata-se antes de uma cari­
catura.
Esse plano, com efeito, é sempre do gênero: 1)A. 2) não-
A. 3) junto os pedaços e não concluo. Por exemplo: 1) O ho­
mem é consciência. 2) O homem não é consciência. 3) O homem
é ao mesmo tempo dotado de consciência e inconsciente.
- Evite, por fim, o plano-salsicha dividido em função dos
conceitos da problemática, isto é: 1) O sujeito. 2) O pre­
dicado. 3) A união dos dois. Por exemplo: 1) O homem.
2) A consciência. 3) Será o homem apenas consciência?
Com efeito, a experiência mostra que as duas primeiras
partes em geral nada têm a ver com o tema: você começa a falar
do homem em geral, para encher o vazio da folha em branco
(“O importante é conseguir encher quatro (ou dez) páginas!”).
Além disso, é raro que a terceira parte se fundamente nas análi­
ses e nas conclusões das duas primeiras.

O que deve ser feito


Deve ser feito um plano

□ Por quê?
Todos os professores da terra martelam os ouvidos de seus
alunos com esse famoso plano que constitui, juntamente com a
problemática, uma das duas chaves do êxito da dissertação. No
final das contas, talvez eles tenham razão!
E que o plano dita as idéias. Lembre-se sempre do princí­
pio de Tomás de Aquino: “A ordem entre as idéias vale mais do
que as próprias idéias”, que remete a este outro, de seu mestre
Aristóteles: “O próprio do sábio é pôr ordem.”3 Livre-se da ilu­
são constante de que as idéias secretam o plano.

3. Metafísica, Liv. I, Cap. II.

276
□ O que vem a ser um plano?
Ocupamo-nos abundantemente do plano no capítulo VI.
Lembremos apenas que não se deve confundir a ordem do pla­
no (ou ordem de determinação) e a ordem do raciocínio.

□ Como?
Vimos os planos a evitar cuidadosamente. Mas, então, que
plano propor? Você talvez se lembre que havíamos distinguido
dois tipos de plano, conforme o texto girasse em torno de uma
ou de várias problemáticas (cf. capítulo VI). Aqui, voluntaria­
mente, estruturamos a dissertação a partir de uma única proble­
mática. Mas a grade então proposta para a leitura (tese, provas,
conseqüências, objeções) não é aplicável tal e qual, pois não le­
va em conta suficientemente o trabalho da escrita, a vida da in­
teligência em busca do verdadeiro, como tornaremos a ver den­
tro de um instante.
Proporemos dois planos-padrão. Assim como os conselhos
que damos, eles são extremamente formais e gerais. Cabe a vo­
cê completá-los e aplicá-los pelos exercícios. O primeiro tipo de
plano é o mais fácil de praticar. Comece por se familiarizar com
ele.

Primeiro tipo de plano


- Formule a tese.
- Demonstre-a.
- Coloque a você mesmo um certo número de objeções.
- Tente resolver essas objeções mostrando a pertinência
delas e integrando-as em sua resposta.
Por fim, conclua sobre sua tese, levando em conta a contri­
buição das objeções.

Exemplo
- Tese: “O homem é consciência.”
- Prova: você pode tomá-la da filosofia de René Descartes.
- Dificuldades: aqui, Sigmund Freud será bastante útil.
- Responda às objeções, disponha sua tese em função das
críticas feitas por Freud. Por exemplo: a consciência não
é a totalidade do homem, mas ainda assim constitui o es­
sencial.

277
O plano é portanto tripartite. Nào se iluda com a aparên­
cia: ele nada tem em comum com o plano dialético. Se quisésse­
mos encontrar-lhe uma origem na história, ele lembra antes o
modelo dos requisitórios romanos (a defesa adota com freqüên­
cia o seguinte plano: “Por certo, meu cliente é culpado... Mas
queiram considerar as múltiplas circunstâncias atenuantes, o fato
de ele ser jovem, sua infância infeliz... Por isso não posso senão
pedir a indulgência do júri...”) ou o princípio medieval compro­
vado das questões disputadas (leia-se, por exemplo, um artigo
da Suma teológica de Santo Tomás cie Aquino).
A vantagem imensa desse tipo de plano é que ele é um
discurso a várias vozes que integra a diversidade das opiniões, e
sobretudo porque respeita a atitude da inteligência certamente
questionadora, mas orientada para o verdadeiro e a conclusão.
Respondemos assim à objeção de dogmatismo levantada
mais acima.

Segundo tipo de plano


Ele apela mais às noções elaboradas na segunda parte. Es­
se plano consistirá em dividir o sujeito ou o predicado, de prefe­
rência este último, e em tornar a colocar a problemática em fun­
ção dos diferentes aspectos ou sentidos que foram distinguidos.
Por exemplo, pode-se distinguir dois sentidos no termo
consciência: 1) o sentido mais geral (desde Descartes) que iden­
tifica consciência a conhecimento; 2) o sentido restrito de cons­
ciência reflexiva (conhecimento não de todas as coisas, mas do
sujeito, do eu). Nesse caso, o trabalho terá duas partes. E será
preciso aplicar a problemática às duas partes distinguidas:
- será o homem apenas consciência no sentido amplo de
conhecimento?
- será o homem apenas consciência no sentido restrito de
consciência reflexiva?
Esse plano é mais difícil de aplicar, pois não é tão fácil dis­
tinguir de maneira adequada um predicado. Ele requer um míni­
mo de prática e de cultura filosófica, se não quisermos que a
distinção operada seja arbitrária. Assim, seria errado distinguir,
sem mais, inteligência e consciência.
No entanto, esse é o plano mais operatório e que permite
as resoluções mais sutis e mais corretas. Paciência...

278
Quinta etapa: construir o raciocínio

O que não deve ser feito


- Aqui também, nada de lançar-se precipitadamente a redi­
gir. Tampouco essa é a fase de juntar material. Decidida­
mente nossos reflexos primários e aparentemente tran-
qüilizaclores não são os melhores conselheiros!
É preciso antes planificar. É preciso também arejar e evitar
algumas armadilhas elementares, mas muito tentadoras:
- Os pseudo-raciocínios (o que chamamos o raciocínio por
acidente). O grande risco é sempre fazer um plano cujas
partes tenham apenas um vínculo exterior. É a disserta-
ção-fleuve, não no sentido do roman-fleuve (romance-
rio), mas no sentido de que as partes não se articulam
umas às outras. Elas dão de beber a um regato que não
consegue crescer e que se pergunta o que irá lançar ao
mar da Verdade, e inclusive se chegará até ele.
- A substituição dos raciocínios pelas citações. Mais vale
resumir o pensamento de Descartes com suas próprias
palavras do que citar uma página inteira dele. Trata-se de
plagiá-lo ou de repeti-lo modificando os termos? De mo­
do nenhum, seu trabalho é despir a armadura lógica de
sua demonstração e restituí-la para além da roupagem
das palavras. O principal trabalho, quando expomos o
pensamento de outrem, é manifestar sua ordem, sua inte­
ligibilidade. Uma ou algumas citações curtas, escolhidas
com critério, serão então bem-vindas para ilustrar seu
propósito. Elas o realçam ao invés de ocultá-lo.
Na mesma ordem de idéias, não tome todos os seus argu­
mentos de outros autores, salvo, é claro, se o tema for expressa­
mente histórico; por exemplo: “A teoria cartesiana da alma”.
Buscar auxílio em um autor não é submeter-se a seu pensamen­
to. Em contrapartida, deixe-se estimular por seus ilustres prede­
cessores. Você tem uma inteligência, utilize-a sem temor.

O que deve ser feito


Utilize as regras do raciocínio que foram estudadas em de­
talhe no capítulo III. Utilize primeiramente o silogismo. Busque

279
seus termos médios, isto é, os conceitos capazes de unir os ter­
mos da problemática. Mas não hesite em variar os tipos de racio­
cínio: recorra a entimemas, raciocínios pelos exemplo, induções.
Isso varia o estilo e mantém a atenção, sem fazê-lo de maneira
nenhuma afastar-se de sua problemática.
Além disso, utilize os raciocínios para demonstrar não ape­
nas a tese principal, mas também para manifestar cada subtese
enquanto ela não for suficientemente evidente.
Enfim, lembre-se do que dizíamos sobre o plano de um
texto articulado em torno de uma problemática: é possível intro­
duzir conseqüências ou objeções, desde que não se tornem de­
masiado invasoras, sem jamais perder o fio de sua argumenta­
ção, bastando indicá-lo com uma frase (“Uma conseqüência in­
teressante é...”; “Observe de passagem...” etc.)
Por exemplo, na primeira parte de sua dissertação, você
quer demonstrar que o homem é consciência, que ele é dotado
de consciência.
Você pode proceder assim: o homem é pensamento; ora, o
pensamento é consciência; logo, o homem é consciência. Esse é
o raciocínio principal que estrutura toda a sua primeira parte.
Cada proposição pode constituir um parágrafo.
Mas não se detenha em tão bom caminho. É preciso agora
expor cada uma das premissas.
- O homem é pensamento. Com efeito, o homem é dota­
do de linguagem; ora, não há linguagem sem pensamen­
to; logo...
- O pensamento é consciência. Você pode apelar para
Descartes, mas lembrando-se dos conselhos que foram
dados: nada de citações quilométricas. Você pode tam­
bém elaborar um raciocínio, por exemplo, um entimema:
o animal não é dotado de consciência; ora, o animal não
pensa.

Donde se obtém o plano final da primeira parte:


O homem é pensamento:
- com efeito, o homem é dotado de linguagem;
- ora, não há linguagem sem pensamento;
- logo, o homem é pensamento.
Ora, o pensamento é consciência:

280
- com efeito, o animal não é dotado de consciência;
- ora, o animal não pensa;
- logo, o pensamento é consciência.
Portanto, o homem é consciência.

Sexta etapa: reunir o material

O que não deve serfeito


Devorar a Biblioteca nacional. Perca suas ilusões! Você não
lerá tudo. Em geral é preferível reflexão a erudição, e esta jamais
deve dissimular sua falta de reflexão.

O que deve ser feito


Foi de propósito que colocamos em penúltimo lugar essa
etapa que com muita freqüência e erroneamente é situada em
primeiro. Em filosofia, dir-se-ia que é a finalidade (primeira e
terceira etapas) que comanda a forma (quarta e quinta etapas), e
que fim e estrutura ditam a matéria.
Trata-se agora de encher de carne o esqueleto que foi
montado.
- Se já não tiver feito isso, esclareça os diferentes sentidos
das palavras-chaves do texto. Inclua sempre essas preci­
sões léxicas em seu plano.
- Distribua o material de acordo com sua competência e
sua capacidade de assimilação. No final do secundário, é
muito raro que se possa manejar mais de dois ou três au­
tores com competência, sem deformar o pensamento de­
les. Portanto, convoque apenas um número limitado de
autores. Para o tema proposto, confrontar Descartes e
Freud é suficiente e significativo. Aliás, de maneira mais
geral, é preferível estudar em detalhe alguns autores do
que multiplicar as referências que dispersam o pensa­
mento e nada provam.
- Melhor ainda, prefira estudar bem alguns textos princi­
pais de autores também principais do que permanecer no
incerto da apresentação desses autores.
- Utilize as citações com discernimento. As citações são co­
mo o sal na comida: tudo depende da medida. A multi­
plicação das citações sufoca mais o discurso do que o fa-

281
vorece, sobretudo se as referências são de segunda mão (tiradas
de um dicionário, por exemplo). Ela não engana ninguém, prin­
cipalmente o professor que sabe o que seus alunos leram e po­
dem ler; sem falar que em geral ele conhece os manuais à dis­
posição deles. A inteligência, o saber, não se manifestam na
quantidade, mas na escolha judiciosa das citações.
- Enfim, seja flexível. Se, ao pesquisar o material, você
perceber que não levou em conta uma idéia essencial, in­
tegre-a em seu plano, alterando o mínimo possível sua
ordenação. Também aí o melhor é muitas vezes o inimi­
go do bom. Não existe plano ideal. Pratique um vaivém
entre o plano e os materiais, adaptando o primeiro aos
segundos. Se não encontrar mármore na pedreira, retire
as colunas da fachada!

Agora, você está bem preparado para a última etapa de sua


maratona dissertativa.

Sétima etapa: redigir


Você pode agora entregar-se à alegria por tanto tempo
contida da redação...
Este último ponto tem a ver, em boa parte, com a técnica
literária de escrita, e portanto não nos concerne. Remetemos aos
manuais ad boc. Vamos nos contentar apenas com conselhos e
observações de ordem lógica.

O que não deve ser feito


Começar pela introdução, redigir o desenvolvimento a partir
de seu impulso e terminar pela conclusão. A ordem da escrita será
poitanto a da leitura. Mas a linearidade deve ser proscrita. Por quê?
Porque a redação do desenvolvimento é muitas vezes geradora de
idéias novas, quer você faça, quer não um rascunho. Portanto isso
poderia levá-lo a mudar sua introdução em alguns pontos.

O que deve ser feito

• Em que ordem redigir?


Comece pelo desenvolvimento. A seguir, redija a conclusão
e, somente no final, a introdução. É verdade que isso nem sem-

282
pre é praticável, sobretudo no dia do exame quando, de fato, no
papel, você deve efetivamente começar pela introdução. Proce­
da então assim:
- No rascunho: respeite a ordem de que falamos:
Plano detalhado o máximo possível (juntamente com os ra­
ciocínios: portanto você entrelaça a ordem de determinação com
a ordem de demonstração); a experiência mostra que, por ques­
tão de tempo, raramente é possível redigir todo o texto no ras­
cunho. Mas às vezes é bom, e até necessário, redigir no rascu­
nho uma parte mais delicada, difícil.
Redação da conclusão.
Redação da introdução.
- Ao passar a limpo: redação de todo o texto, na ordem da
leitura.

• Alguns conselhos para a redação de cada parte

- Quanto à introdução:
A introdução ideal responde às seguintes questões: de que
se está falando? (o leitor gosta de saber aonde vai) Por que se
está falando? Como se está falando disso? É inútil comentar essa
ordem: você pôde vê-la praticada em todo este livro e perceber
sua eficácia. Uma boa introdução contém portanto, e nesta or­
dem, os seguintes pontos: o objeto do trabalho (isto é, a questão
ou problemática), seu interesse, as grandes balizas do plano (dê
apenas as duas ou três partes principais; as subdivisões serão
evidentes ou anunciadas à leitura de cada parte).

- Quanto ao desenvolvimento:
Um plano muito preciso é sua bússola. “Carnalize” seu pla­
no, ilustre, recorra às citações, dê alguns corolários sugestivos
etc. Mas não perca jamais o fio de Ariadne que é o plano. Toda
dissertação é sempre suscetível de se mover num labirinto no
qual quem corrige seria o impiedoso Minotauro, sem nenhum
Teseu para salvá-lo no dia do exame.
- Quanto à conclusão:
Uma boa conclusão é tanto fechamento quanto abertura.
Ela lembra o que foi dito ao resumir os pontos principais, e con­
clui com firmeza ao responder à problemática (essa é sua fun-

283
ção essencial); depois ela mostra que o tema nào está esgotado,
que ele comporta ainda eventuais dificuldades, que há corolários
fecundos. A conclusão compreende assim duas partes: recapitu-
lativa e aperitiva. Mas a primeira é a mais importante: é necessá­
rio que, no final, a inteligência esteja em um repouso relativo.

Resumo
Retomemos a analogia da construção da casa, pois é uma
parábola eloqüente da dissertação. Quem quer construir uma ca­
sa passa pelas seguintes fases: em primeiro lugar, pergunta-se se
irá construir uma casa (primeira e segunda etapas); depois, ne­
cessariamente, responde (terceira etapa); então procura um ar­
quiteto e determina o plano, global (quarta etapa) e mais deta­
lhado (quinta etapa); somente então é que se acumula o material
(sexta etapa) e que estruturas e acabamentos são executados
(sétima etapa).
Lembremos enfim que esses conselhos valem para a disser­
tação filosófica, mas que é fácil aplicá-los, mediante adaptação,
aos outros “gêneros literários” de dissertação.

Alguns conselhos gerais

Existem receitas para fazer um a boa dissertação?


Não existem receitas, mas apenas métodos. A diferença é
capital: a receita é do padronizado, o método é do sob medida.
Todos gostariam de “macetes” (supostamente infalíveis); ora,
não há macetes.
O conselho mais importante é o seguinte: para avançar, o
único meio é fazer o máximo possível de planos. Pratique. Se
você está terminando o secundário, faça planos uma hora por
semana. Estude também os do professor, mas jamais para apren­
dê-los de cor, seria cair outra vez na mania da receita. E cumpre
reconhecer que o estresse do vestibular, a perspectiva do exa­
me, faz aumentar a tentação. Mas ela não fortalece a inteligên­
cia, pois a receita jamais integra-se ao espírito: ela lhe é imposta
de fora, não penetra, apenas veste o espírito.
Nào é lendo um manual de natação que se aprende a na­
dar, é mergulhando na piscina. O mesmo vale para a dissertação.

284
Há necessidade de outros meios além dos que foram
expostos?
Sei que alguns professores e manuais propõem técnicas de
dissertação bem mais sofisticadas. Isso me parece uma complica­
ção inútil quando as regras enunciadas acima foram devidamen­
te assimiladas e sobretudo quando se compreendeu seu funda­
mento lógico. Além do mais, a multiplicação das regras corre o
sério risco de fazê-lo cair no pensamento padronizado (ou na
redação padronizada) que acabamos de fustigar com rigor.

Uma reflexão freqüentemente ouvida: a dissertação


filosófica é um gênero difícil?
Respondamos com firmeza: não.
É verdade que uma longa tradição filosófica, sobretudo ale­
mã, enraizou em nossos espíritos o axioma segundo o qual “tu­
do o que é profundo é obscuro”. Dei alguns exemplos disso
(capítulo II). O bom filósofo germanófono Alexis Philonenko
eleva-se de maneira vigorosa e corajosa contra essa opinião ce-
rebralizante, elitista e pretensiosa. ( Op. cit., p. 247, com exem­
plos na p. 86 e sobretudo 279 ss.)
A experiência mostra claramente que o estudante que apli­
car o método descrito em detalhe nessa terceira parte estará se­
guro de alcançar no mínimo a nota média no dia do exame. Não
é que o conteúdo não conte, mas ele vem em segundo lugar,
sem ser secundário; repitamos uma última vez: a ordem entre as
idéias é o primeiro sinal de uma verdadeira inteligência. A me­
mória e a erudição são apenas o carvão do espírito.

285
CONCLUSÃO

Ao final deste livro, espero que você em princípio não te­


nha aprendido coisas novas, mas que esteja se sentindo mais
“inteligente”, isto é, que esteja dominando ainda mais essa ex­
traordinária caixa de ferramentas que é a razão e que qualquer
pessoa tem à sua disposição. Como toda operação bem lubrifi­
cada, o bem-pensar ou o pensar corretamente é fonte de alegria
legítima. Como o esportista que sente que todos os seus múscu­
los lhe respondem, você começa a sentir que seu pensamento
não é mais um intruso, mas um hóspede, e que logo será todo
seu. A eficácia de sua inteligência foi multiplicada. Ora, a inteli­
gência é mais vegetal do que animal: ela não pára de crescer.
Mas lembre sempre duas coisas: o pensamento é feito para
a verdade; a verdade é feita para o amor.
O pensamento é feito para a verdade. Há sempre um júbilo
da inteligência que descobre como ela funciona, como a alegria
da criança que tagarela, brincando com sua voz e com as pala­
vras que inventa, como a alegria do apaixonado que ama seu
amor. Mas Narciso acabou por afogar-se na bela imagem que
lhe devolvia o lago no qual se mirava. Os gregos conheceram
essa tentação de fazer funcionar sua razão com avidez e em vão:
foi a crise de crescimento dos sofistas. Alguns propunham, a
quem quisesse ouvi-los, demonstrar, na hora e mediante dez ar­
gumentos, a tese que lhes fosse proposta e, logo em seguida,
provar a tese contrária com outros dez argumentos. Foi a humil­
dade de Sócrates (“sei apenas uma coisa, é que nada sei”), e o
dom de sua vida, que tiraram a razão dessa catástrofe consterna-
dora, narcísica e esterilizante.
Ora, o espírito tem fome dos seres mais do que de seu ato
de pensar; ele foi feito para abraçar o universo. Ele é abertura
acolhedora e generosa, ele apela à doação dos seres. E, mesmo

287
se nenhuma verdade estanca definitivamente a sede da inteli­
gência, esta busca o apaziguamento da resposta, não a angústia
do questionamento perpétuo. A verdade não é uma amante ru­
de, mas antes uma rainha da qual a inteligência é a serva alegre
e fecunda.
Concretamente, isso significa que você deve agora pôr em
prática a arte de pensar e continuar (ou começar) a se cultivar.
A verdade é feita para o amor. A pessoa, com efeito, é ser
de doação; o ser só recebe a verdade das coisas (diástole) para
inclinar-se para elas e amá-las (sístole). E o que dizer então
quando se trata de pessoas?
Mas, em seu próprio dinamismo, a verdade chama o amor.
Por quê? Gostaria aqui de passar a palavra a um dos maiores
pensadores de nosso tempo, Hans Urs von Balthasar. Estas bre­
ves reflexões são de uma riqueza que ultrapassa qualquer co­
mentário. Merecem que você medite sobre elas longamente e
com freqüência: “Podemos ser tomados de pavor ao constatar o
quanto as coisas no fundo são desnudas, apesar de toda prote­
ção de que possam se cercar, a que ponto também elas nos en­
caram, por assim dizer, sem o menor intermediário, a que pro­
fundidade podemos, por nosso lado, sondá-las com o olhar até
o núcleo delas, o quanto enfim elas próprias se traem, ou me­
lhor, são já traídas antes mesmo de terem pensado em se expri­
mir de uma maneira consciente. É nessa nudez que a verdade
lança seu grito para implorar a proteção de um amor que com­
preenda. No ato do conhecimento como tal, deve haver uma ati­
tude de benevolência, senão de compaixão, que acolha o objeto
sem defesa envolvendo-o numa cálida atmosfera de amor e de
discrição.”
E mais: “O mistério do ser, como dissemos, é um mistério
essencial, um mistério irredutível, um mistério cuja grandeza in­
teira só irrompe vitoriosa no momento em que a verdade parece
plenamente revelada e desvelada. É muito simplesmente o mis­
tério da profundidade, da interioridade, do valor inestimável do
ser. É nessa profundidade que se enraíza tanto a possibilidade
como a realidade do amor. Ora, se o amor vive no coração do
ser, e se esse coração permanece sempre íntimo e misterioso
por essência, é o mistério, portanto, que quer para si mesmo
permanecer mistério. O amor, que é o sentido e o fim de todas

288
as coisas, de modo nenhum aspira a chegar ao fundo de si mes­
mo sem deixar mistério, ele é mistério tão substancial que será
sempre, a seus próprios olhos, uma maravilha inconcebível. Ele
próprio se oculta de si mesmo porque se considera demasiado
luminoso, demasiado evidente para si mesmo. Ele é o coração
adorável de todas as coisas, mas ele próprio nào se adora, ao
contrário, desvia de si seu olhar num movimento inexprimível."
(Pbénoménologie de la vérité, Paris, Beauchesnes, 1952, pp. 1956‫־‬
e 202; cf. toda a passagem pp. 195-205 )

A César o que é de César. Começamos citando Pascal, termi­


namos por ele: “Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.”
(Pensées, ns 3, ed. Chevalier, e nL>253, ed. Brunschvicg, in Oeu-
vres completes, “Bibliothèque de la Plêiade”, Paris, Gallimard.
1954, p. 1089.)

289
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

Este guia prático da arte de pensar tem sua origem na cha­


mada lógica clássica, cujo fundador é Aristóteles. Portanto, cita­
remos sobretudo suas obras e os manuais que sistematizaram e
vulgarizaram seu pensamento (principalmente os manuais de fi­
losofia neotomista). As outras obras clássicas geralmente se ins­
piraram em Aristóteles, enriquecendo-o ou criticando-o. Você
encontrará em todas essas obras a bibliografia e os desenvolvi­
mentos, em particular formais, que o presente livro, de caráter
intencionalmente mais introdutório e sobretudo prático, não
contém.
Há pouco mais de um século, porém, a lógica matemática
adquiriu uma amplitude considerável. Mais formal, mais especia­
lizada, ela está para a lógica clássica assim como a física mate­
mática para a filosofia da natureza. Essa lógica matemática não é
de nenhuma utilidade para aprender a descobrir (ou a construir)
uma problemática, um raciocínio, um plano, etc. Em compensa­
ção, tornou-se indispensável para a formalização das ciências
matematizadas e em informática.
Ademais, se a lógica é uma arte de demonstrar, ela é tam­
bém uma arte de persuadir: esse é o papel da retórica. Como es­
te tratado não desenvolve nem a lógica matemática nem a retóri­
ca, remetemos a algumas obras que tratam desses assuntos (ob­
viamente, você pode sempre recorrer às enciclopédias).

Livros de lógica clássica

- ARISTÓTELES, Organon, dividido em seis tratados (/. Ca­


tegorias, II. Da interpretação, III. Primeiros analíticos, IV.
Segundos analíticos, V. Tópicos, VI. Refutações sofísticas),

291
ed. francesa, trad. Tricot, “Bibliothèque des textes philo-
sophiques”, Paris, Vrin, 5 tomos (nova edição, 1969 a
1974). Essa é a obra de base, fonte inesgotável à qual se
deve sempre voltar.
- Alain ARNAUD e Pierre NICOLLE, La logique ou Vart de
penser contenant, outre les regies communes, plusieurs
observations nouvelles, propres à former le jugement, col.
“Champs”, Paris, Flammarion, 1970. Um clássico.
- Robert BLANCHE, Le raisonnement, “Bibliothèque de
Philosophie contemporaine”, Paris, PUF, 1973· Claro e
minucioso.
- BOSSUET, Logique du dauphin, col. “Les grandes leçons
de philosophie”, Paris, Editions Universitaires, 1990. Um
tratado completo de lógica clássica cujo interesse é mais
do que histórico.
- Lewis CARROLL, Logique sans peine, trad, francesa, Paris,
Hermann, 1966. Esse livro do autor de Alice no pais das
maravilhas é divertido e muito claro.
- François CHEN1QUE, Elements de logique classique. I.
Part de penser et de juger, II. L'art de raisonner, Paris,
Dunod, 1975. Livro muito claro. Exercícios. Amplamente
inspirado na obra seguinte (do cônego Collin).
- Henri COLLIN, Manuel de philosophie thomiste. I. Logique
formelle. Notions de métaphysique générale, de Cosmolo-
gie et d ’Esthetique, Paris, Téqui, reed. Muitos exercícios e
quadros esclarecedores.
- Gilbert DLSPAUX, La logique et le quotidien. Une analyse
dialogique des mécanismes d ’argumentation, col. “Argu­
ments”, Paris, Minuit, 1984. Concreto e original.
- Gilles DOYON e Pierre TALBOT, La logique du raisonne­
ment. Theorie du syllogisme et applications, col. “Philoso­
phie”, Sainte-Foy, Le Griffon, 1985. Centrado no silogis­
mo. Múltiplos exercícios.
- Paul FOULQUIÉ, Traité élémentaire de philosophie. II. Lo­
gique et morale, Paris, Editions de 1’école, nova ed., 1950.
Claro, mas muito geral.
- Henri-Dominique GARDEIL, Initiation à la philosophie de
St Thomas d ’A quin. I. Introduction et Logique, Paris, Cerf,
1952. Muito claro.

292
-Je a n GLUTTON, Apprendre à vivre et à penser, “Le Signe”,
Paris, Fayard, 1970.
- Régis JOLIVET, Traité de philosophie. /. Logique et cosmo-
logie, Lyon-Paris, Emmanuel Vitte, 7- ed., 1965. Claro.
-Jacques MARITAIN, Elements de philosophie. II. L’ordre
des concepts, Paris, Téqui, 1923· Completo, claro e bem
documentado.
- P. MOUY, Logique, Paris, Hachette, 1944.
-P ie rre OLERON, L argumentation, “Que sais-je?” 2087,
Paris, PUF, 1983; idem, Le raisonnement, “Que sais-je?”
1671, Paris, PUF, 2a ed., 1982.
- Chaim PERELMAN e Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Traité
de Vargumentation, Bruxelas, Editions de 1’Université de
Bruxelles, 5â ed., 1988. Livro original e interessante, ainda
que incrimine demais o raciocínio forçado.
- Charles SERRUS, Traité de logique, Paris, Aubier, 1945■
-Jo h n STUART MILL, Système de logique inductive et de­
ductive, trad, francesa, Paris, Alcan, 1889■
- Jean TRICOT, Traité de logique formelle, Paris, Vrin. Limi­
tado ao aspecto formal da lógica clássica. Sistemático e
minucioso.
- Roger VERNEAUX, Introduction générale et logique,
“Cours de philosophie”, Paris, Beauchesnes, nova ed.,
1964. Escolar, límpido.

Livros de lógica formal

- Robert BLANCHE, La logique et son histoire. D’Aristote à


Russell, col. “U”, Paris, Armand Colin, 1970. Bem elabo­
rado.
-G a sto n CASANOVA, Lalgèhre de Boole, “Que sais-je?”
1246, Paris, PUF, 4a ed., 1979·
- François CHENIQUE, Comprendre la logique modeme. I.
Classe, proposition et prédicat, II. Logiques non classiques,
relations et structures, Paris, Dunod, 1974. Sempre nota­
velmente claro.
- Louis COLJTURAT, Lalgèhre et la logique, Paris, Librairie
Albert Blanchard, 1980.

293
- Roland FRAISSE, Cours de logique matbématique, Paris,
Gauthier-Villars, 3 tomos, 1971-1975. Técnico.
-Jean-Blaise GRIZE, Logique moderne, Paris, Gauthier-
Villars, 1973, 3 tomos. Ultrapassa o quadro de uma in­
trodução.
- Gilbert HOTTOIS, Penser la logique. Une introduction
technique, théorique et pbilosopbique à la logique formel-
le, Bruxelas, Éditions Universitaires, 1989· Apresenta a ló­
gica ‘clássica e a lógica formal contemporânea. Claro.
- Stephen C. KLEENE, Logique matbématique, trad. france­
sa, série “Epistémologie”, col. “U”, Paris, Armand Colin,
1971. Um clássico. Bastante difícil.
- Denis VERNANT, Introduction à la pbilosopbie de la logi­
que, “Philosophie el langage”, Liège-Bruxelas, Pierre Mar-
gada, sem data. intermediário entre lógica clássica e lógi­
ca formal.

Livros de retórica

- ARISTÓTELES, Rhétorique, trad, francesa, Paris, Les Bel­


les-Lettres, 3 tomos, 1967 a 1973· O livro fundamental.
- Alain CANU, Rbétorique et communication en 2 questions
et 19 exercices, col. “Travail à grande efficacité”, Paris,
Éditions d’Organisation, 1992. Escolar.
-Jean-Paul GOUREVITCH, La propagande dans tons ses
états, Paris, Flammarion, 1981.
- Jean-Noêl KAPFERER, Les chemins de la persuasion, Paris,
Dunod, 1986.
- Olivier REBOUL, Im rbétorique, “Que sais-je?” nQ 2133,
Paris, PUF, 1984; La rbétorique, théorie et pratique, col.
“Premier cycle”, Paris, PUF, 1991■

294
ÍNDICE

Prefacio: ‘Por que uma arte de pensar?”................................ VII


Palavras-chaves......................................................................... IX

INTRODUÇÃO: UM DISCURSO DOS MÉTODOS.................. 1


Primeira lei: proceder do conhecido ao desconhecido......... 3
Por que é preciso proceder do conhecido ao desconhe­
cido? .................................................................................. 3
Conseqüências.................................................................. 4
Segunda lei: a inteligência vai do mais universal ao mais parti­
cular ........................................................................................... 5
Por que o espírito deve proceder do mais ao menos uni­
versal? ................................................................................. 6
Conseqüências................................................................... 10
Terceira lei: a inteligência tem três ato s................................. 13
Por quê?............................................................................. 13
Confirmação fornecida pela gramática............................... 13
Recapitulação..................................................................... 14
Corolários........................................................................... 14
Quarta lei: tal objeto, tal inteligência...................................... 20

I. O NÍVEL DE LEITURA........................................................... 23
O que é?..................................................................................... 23
O texto que se dirige à sensibilidade................................. 24
O texto que se dirige à inteligência.................................... 26
O texto que se dirige à vontade........................................ 27
Diferença entre os textos que se dirigem à inteligência e
os textos que se dirigem à vontade.................................... 28
Por que o distanciamento crítico?............................................. 29
Primeira razão..................................................................... 30

295
Segunda razão................................................................... 31
Como proceder?......................................................................... 33
Primeiro, observar suas reações imediatas......................... 33
A seguir, determinar friamente o nível do texto................ 34
Em particular, como reconhecer um artigo, um texto sus­
cetíveis de manipulação?.................................................... 35
Exercícios................................................................................... 46

II. A PROBLEMÁTICA PROBLEMÁTICA.................................. 51


Por quê?..................................................................................... 52
Primeira função da tese: formular o que diz o texto.......... 52
Segunda função da tese: dizer o verdadeiro (ou o falso).... 55
Interesses mais secundários da tese................................... 56
O que é a tese?.......................................................................... 58
Problemática, tese e conclusão.......................................... 58
Natureza da tese................................................................. 58
Tese, sujeito e predicado................................................... 69
As diferentes espécies de tese............................................ 70
Como descobrir uma tese?........................................................ 71
Inventário dos critérios....................................................... 73
Exemplos de aplicação desses critérios............................. 80
Exercícios................................................................................... 83

III. O RACIOCÍNIO: JUNTAR FEIXES OU CATAR ESPIGAS?.. 87


O raciocínio em geral................................................................ 87
Por quê? Para que serve?.................................................... 87
Qual é o domínio de exercício dos raciocínios?................ 90
O que é o raciocínio? Qual a sua estrutura?....................... 93
As diferentes espécies de raciocínio.................................. 95
Como reconhecer as diferentes espécies de raciocínio?.... 101
Observação mais geral de método.................................... 104
O silogismo................................................................................ 105
O silogismo mal-amado..................................................... 105
Exemplos de silogismo...................................................... 107
O que é?............................................................................. 109
Como?................................................................................ 116
A indução................................................................................... 118
Porquê?.............................................................................. 118

296
O que é a indução?............................................................ 119
Como?................................................................................ 127
O raciocínio por similitude...................................................... 128
Por quê?............................................................................. 128
O que é?............................................................................. 132
Como?................................................................................ 135
O entimema............................................................................... 136
O que é?............................................................................ 136
Por quê?............................................................................. 138
Como?................................................................................ 138
Uma forma particular de entimema: a teoria...................... 141
Os pseudo-raciocínios............................................................... 148
O raciocínio por acidente.................................................. 148
O raciocínio dialético......................................................... 149
Conclusão.................................................................................. 149
Exercícios................................................................................... 151

IV. DIVIDA PARA REINAR....................................................... 165


Por que dividir?.......................................................................... 165
A divisão serve primeiramente à definição........................ 165
A divisão também serve à argumentação, ao raciocínio.... 166
A divisão serve para planejar os textos.............................. 167
O que é a divisão?..................................................................... 16
Definição da divisão.......................................................... 167
As diferentes espécies de divisão....................................... 168
Os limites da divisão.......................................................... 170
Como dividir?............................................................................. 171
Os quatro critérios.............................................................. 171
Como reconhecê-los num texto?........................................ 175
Exercícios................................................................................... 177

V. A FINIÇÂO DA DEFINIÇÃO ................................................ 183


Por que definir?...................................................................... 183
O que é a definição?................................................................. 186
As palavras com vários sentidos........................................ 186
As definições falsas ou ruins............................................... 187
Os diferentes tipos de definição........................................ 188
Os limites da definição....................................................... 193

297
Como definir?............................................................................. 195
Os critérios da definição correta: como definir bem.......... 196
Localização da definição que está no texto........................ 201
Avaliação dessas definições................................................ 202
Exercícios................................................................................... 203

VI. O PLENO DO PLANO......................................................... 213


Por que pôr ordem num texto?................................................ 213
O que é a ordenação?............................................................... 214
O texto que gira em tomo de uma única problemática.... 215
O texto que possui várias problemáticas............................ 218
Limites da ordenação do plano.......................................... 220
Como pôr em ordem, descobrir um plano?............................ 222
Critérios lógicos.................................................................. 222
Critérios literários................................................................ 227
Enfim, como proceder no nível de uma obra inteira?........ 231
Exercícios.................................................................................... 235

VII. EXERCÍCIOS VARIADOS.................................................... 239


Conselhos gerais........................................................................ 239
Editorial de Claude Sarraute............................................... 240
Editorial de um jornal de paróquia..................................... 241
Texto de Carrel................................................................... 243
Texto de Lévi-Strauss.......................................................... 245
Texto de Jacques Maritain................................................... 247
Texto de Sigmund Freuct.................................................... 250
Texto de Marcei Jousse...................................................... 254
Texto de René Girard......................................................... 257
Texto de Simone de Beauvoir............................................ 260
Texto de Françoise Giroud................................................. 262

VIII. COMO REDIGIR UMA DISSERTAÇÃO........................... 267


As diferentes etapas.................................................................. 268
Primeira etapa: ler o tem a.................................................. 268
Segunda etapa: colocar a problemática............................. 269
Terceira etapa: estabelecer a resposta................................ 273
Quarta etapa: estabelecer o plano...................................... 275

298
Quinta etapa: construir o raciocínio................................... 279
Sexta etapa: reunir o material............................................. 281
Sétima etapa: redigir........................................................... 282
Resumo............................................................................... 284
Alguns conselhos gerais............................................................ 284
Existem receitas para fazer uma boa dissertação?......... 284
Há necessidade de outros meios além dos que foram
expostos?........................................................................... 285
Uma reflexão freqüentemente ouvida: a dissertação
filosófica é um gênero difícil?.......................................... 285

Conclusão................................................................................... 287

Bibliografia sumária................................................................... 291

299
IMPRESSÃO E ACABAMENTO

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TEUFAX.: (011) 218-1788
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Exercícios rilosóficos

W. C. Booth, G. G. Colornb e J. M. Williams


A Arte da Pesquisa

Pascal Ide
A Arte de Pensar

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