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O trabalho em serviços de saúde mental no contexto
da reforma psiquiátrica: um desafio técnico, político e ético
Abstract This paper deals with mental health Resumo O presente artigo aborda o trabalho em
taken within the context of Brazilian Psychiat- saúde mental, situando-o no contexto da Refor-
ric Reform and profiling the transformations in ma Psiquiátrica, demarcando as transformações
the organization of work processes. This has oc- ocorridas na organização dos processos de traba-
curred as a result of the advances with respect to lho, em decorrência dos avanços referentes à im-
the implementation of the services that replaced plantação dos serviços substitutivos ao modelo
the classic psychiatric model and the reconfigu- psiquiátrico clássico e à reconfiguração do objeto
ration of the scope of intervention and practices. de intervenção e das práticas. Nesta perspectiva,
From this standpoint, the paper seeks to pinpoint busca-se evidenciar as contradições e problemas
the contradictions and problems related to this desse processo e seu impacto na organização dos
process and its impact on the organization of work processos de trabalhos, na gestão dos serviços e na
processes on the management of services and on saúde do trabalhador. Por fim, apontam-se estra-
worker health. Lastly, strategies are prepared for tégias de enfretamento da problemática evidencia-
the purpose of tackling the problem, chief among da, entre as quais destacam-se: a ressignificação
which are the following: the redefinition of spac- dos espaços, das práticas e das relações entre os
es, practices, and the relationships among the dif- diferentes sujeitos – gestores, trabalhadores e usuá-
ferent actors, namely managers, workers, and us- rios; adoção de mecanismos de cogestão; e, super-
ers; the adoption of co-management mechanisms; visão clínico-institucional.
and clinical-institutional supervision. Palavras-chave Saúde mental, Reforma dos ser-
Keywords Mental health, Healthcare reform, viços de saúde, Serviços de saúde mental, Gestão
Mental health services, Health personnel man- de pessoal em saúde
1
Grupo de Pesquisa Vida e agement
Trabalho, Centro de
Ciências da Saúde,
Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Av.
Paranjana 1.700, Itaperi.
60740-000 Fortaleza CE.
sampaiojackson@gmail.com
2
Laboratório de
Humanização da Atenção e
da Gestão em Saúde,
Universidade Estadual do
Ceará (LHUAS, UECE)
4686
Sampaio JJC et al.
busca-se dar conta desta multiplicidade não car- não houve qualquer iniciativa formal de assis-
tesiana de determinações que se apresentam, na tência. Nestes 283 anos, o lugar do louco era a
maioria das vezes, de forma mascarada, umas rua, a prisão e os movimentos messiânicos.
com a face das outras, em reuniões de equipe, Período II - De 1887 até 1962, quando houve
estudos de caso, supervisão clínico-institucional, a inauguração do Hospital de Saúde Mental de
seminários teóricos e esforço sistemático de pes- Messejana-HSMM, instituição pública, de res-
quisa. No presente estudo, discute-se o trabalho ponsabilidade do governo estadual. Entre este
em saúde mental, contextualizado no cenário de hospital e o Asilo de Alienados havia ocorrido,
uma década do MBRP, enfatizando os proble- em 1936, a instalação de um hospital privado, a
mas emergentes, com destaque para a tensa tran- Casa de Saúde São Gerardo. Em 76 anos, para
sição entre antigos e novos modelos, antigas e dar conta, sucessivamente, das concepções de
novas sociabilidades. cuidado associadas à alienação, à psicopatia e à
psicose, foram implantados três instituições de
pequeno porte, uma filantrópica, uma privada e
Saúde Mental e Trabalho uma pública, e muito tardias em relação aos
no Cenário da Política de Saúde Mental modelos ocidentais de origem.
e da Gestão do Cuidado em Saúde Período III - De 1963 até 1991, ocasião em
que se inaugura o primeiro Centro de Atenção
O cenário histórico dos problemas a serem en- Psicossocial-CAPS, na cidade de Iguatu, situada
frentados é observado a partir da perspectiva do no sertão central. Estes 29 anos são complexos e
Ceará, um estado brasileiro com território de 149 contraditórios. A Ditadura Militar brasileira de-
mil km2, no qual habitam oito milhões e meio de sencadeou um processo de criação de hospitais
pessoas, que gera um Produto Interno Bruto na privados e o Ceará inaugurou um Manicômio
ordem de 60 bilhões de dólares anuais e tem por Judiciário e seis hospitais psiquiátricos privados,
capital a cidade de Fortaleza. O território que conveniados com a Previdência Pública. Influên-
atualmente representa o Ceará foi ocupado pe- cias norte-americanas, derivadas da Mental He-
los europeus, em 1603, mais de 100 anos depois alth Law, geraram experiências ambulatoriais e
do início da colonização brasileira. O estado é treinamento em Psiquiatria de médicos genera-
produto colonial português tardio e se situa, listas, via Programa Integrado de Saúde Mental-
quase totalmente, no semiárido equatorial, com PISAM. Paralelamente a estes dois processos,
população concentrada na região metropolitana desenvolveu-se, no Ceará, uma linha autônoma
da capital6. do MBRP que vai resultar numa grande experi-
O Ceará apresentou dinâmica própria de de- ência de reforma do HSMM, na criação do CAPS
senvolvimento, como a direção do processo de de Iguatu e no início da tramitação da Lei Esta-
ocupação, do interior para o mar, contrariando dual de Reforma Psiquiátrica, a segunda do Bra-
o padrão brasileiro; a ausência de matérias pri- sil, apresentada à Assembleia Legislativa Estadu-
mas coloniais; a pequena dimensão do escravis- al e aprovada nove anos antes da lei brasileira.
mo, uma vez que a pecuária e a agricultura algo- Período IV – De 1992 a 2011, são 20 anos que
doeira baseavam-se no arrendamento de mão acompanham a implantação do Sistema Único
de obra livre; a ocupação econômica tardia, deri- de Saúde-SUS, iniciado em 1986, com grande pio-
vada da forte resistência indígena; além de irrup- neirismo local. O Ceará antecipa as experiências
ções de secas inclementes, de movimentos messi- brasileiras do Programa de Agentes Comunitári-
ânicos e de pronunciamentos separatistas, até os os de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da
espasmos da industrialização retardatária e trun- Família (PSF), do Planejamento Estratégico com
cada de hoje. Estas características determinaram Programação Pactuada Integrada (PPI) e da cria-
e caracterizaram o quadro político e sociossani- ção das macro e microrregiões de saúde. Este pe-
tário do estado6. ríodo pode ser discriminado em três fases:
Na perspectiva da história da assistência psi- 1ª fase - de 1992 a 1996, momento de aprova-
quiátrica convém destacar quatro períodos sig- ção da Lei Estadual e criação de projetos pionei-
nificativos: ros, bem sucedidos, que foram os CAPS de Igua-
Período I - De 1603, início do processo colo- tu, Canindé, Quixadá, Cascavel e Aracati, cida-
nial, até 1886, quando foi inaugurado o Asilo des situadas entre 60 e 400 km de distância da
Alienados São Vicente de Paula, da Santa Casa capital. O município de Quixadá estabeleceu um
de Misericórdia, instituição filantrópica associa- modelo de CAPS que supervisiona ações de saú-
da à Igreja Católica. Antes de sua inauguração de mental na atenção primária, atua como reta-
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Nesse processo ocorre a aquisição de novos pelos usuários, buscando integrar o homem em
saberes e modos de agir em saúde, tendo em vis- suas diversas dimensões: biológica, existencial,
ta à adequação dos trabalhadores aos novos ser- cultural, socioeconômica, ético-política, filosófi-
viços e à rede. Ocorreu também uma inversão na ca e religiosa. Segundo as normas do Ministério
lógica de organização do processo de trabalho, da Saúde11, os CAPS devem ter uma equipe mí-
antes pautada pela rigidez hierárquica, pela ativi- nima, cujos critérios de inclusão das categorias
dade individualizada e pela separação trabalha- profissionais são: a população adstrita, a com-
dor/produto, trabalhador/significado e objeto do plexidade e o projeto terapêutico do serviço.
trabalho. Passa-se, agora, ao desenvolvimento Emerge, portanto, a dimensão de trabalho em
do trabalho em equipe, em dinâmica interdisci- equipe fundamentada na interdisciplinaridade,
plinar e mais horizontal, na qual se prima pela rompendo a fragmentação dos saberes e a hie-
construção coletiva dos processos de trabalho. rarquização das relações.
Visualiza-se, portanto, a incorporação de No âmbito da clínica na atenção psicossocial,
novas tecnologias, inscritas no campo relacio- observa-se a construção de uma clínica do cole-
nal, as tecnologias leves9, como ferramentas im- tivo, sem prejuízo das ações de caráter individu-
prescindíveis à operacionalidade dos processos al. Em resposta aos desafios de respeitar a singu-
de trabalho em saúde mental, implicando a cons- laridade dos sujeitos e de atender as suas necessi-
trução de novo modo de operar as relações dos dades, as equipes têm implantado uma lógica de
trabalhadores entre si e destes com os gestores e organização do trabalho a partir do acolhimen-
usuários dos serviços. Assim, percebe-se que, to, da construção de projetos terapêuticos sin-
como qualquer trabalho vivo em ato, o processo gulares com a definição de técnicos de referência
de trabalho em saúde mental, em todas as fases e discussão coletiva de casos clínicos de maior
de sua realização, está sempre sujeito aos desíg- complexidade12. Destaca-se a inserção dos usuá-
nios do trabalhador em seu espaço autônomo, rios em grupos terapêuticos e ocupacionais, em
particular, de concretização da prática. Desta for- conformidade com suas necessidades e desejos,
ma não é passível de total controle como nos inclusive com a perspectiva de inserção no mer-
modos de produção fabril/taylorista. cado de trabalho.
A oposição ao modelo manicomial e ao psi- No âmbito da gestão, tem-se buscado alter-
quiátrico clássico imprimiu significativas modi- nativas frente ao desafio de desenvolver linhas de
ficações nas relações de poder entre usuários e cuidado, mediante a construção e a consolida-
trabalhadores. Enquanto nos asilos e nos hospi- ção de redes de atenção à saúde mental, com sis-
tais psiquiátricos tradicionais a relação é marca- tema de referência e contrarreferência. Alguns dis-
da pela hierarquia rígida, pela cisão entre sujeito positivos têm possibilitado esse processo, entre eles
e objeto do conhecimento, pelo uso da violência o matriciamento em saúde mental na atenção pri-
institucionalizada e pelo controle nos serviços mária e o acompanhamento e o monitoramento
substitutivos, as relações devem ser construídas das internações hospitalares pelas equipes dos
a partir de lógica diversa. Aqui, o trabalhador CAPS.
passa a ser um facilitador nas negociações dos Diante dos avanços, desafios, conflitos e con-
projetos dos usuários, mediando propostas tan- tradições desses processos, apresentam-se à ges-
to do lado destes como do lado da sociedade10. tão do trabalho demandas que necessitam serem
No âmbito das instituições psiquiátricas clás- equacionadas, particularmente aquelas percebi-
sicas, apesar da atuação de diversas categorias das pelo coletivo de trabalhadores.
profissionais compondo equipes multiprofissi-
onais, a organização do trabalho fundamenta-
va-se no modelo médico-hegemônico. Os traba- Contradições e problemas que emergem
lhadores atuavam de modo subordinado ao sa- no cotidiano dos trabalhadores
ber e à prescrição médica, inexistindo equilíbrio na atenção psicossocial
entre os saberes cuja articulação é demandada
pela complexidade do objeto, transformados em Os desdobramentos da Reforma Psiquiátrica,
reféns do saber e do poder da Psiquiatria. presentes no caso do município de Fortaleza,
Na construção da atenção psicossocial ocor- particularmente no referente à implantação dos
rem modificações nos modos de organizar os CAPS, oferecem um ângulo privilegiado para re-
processos de trabalho e de produzir suas ações. fletirmos acerca dos avanços e dos efeitos adver-
Tal situação impôs a urgência de ampliação das sos desse processo nas equipes de trabalhadores,
equipes de saúde mental numa perspectiva de no contexto de implantação, organização e ges-
atender as necessidades de saúde apresentadas tão dos dispositivos.
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desses problemas, com vistas à melhoria da quali- ca. Conforme proposto por Rollo19, essas estra-
dade de vida no trabalho, o que em última instân- tégias podem ser desenvolvidas em três âmbitos:
cia, impacta na qualidade dos serviços prestados. 1. individual do trabalhador - acompanhamen-
to individual em programas de atenção biopsi-
cossocial, com equipe interdisciplinar. Enfim, es-
Considerações Finais truturação da atenção à saúde do trabalhador
na instituição; 2. coletivo da equipe - estabelecer
A atuação da equipe de saúde mental nos servi- as metas e os objetivos da equipe de forma par-
ços substitutivos tem sido marcada por avanços ticipativa, com processo avaliativo regular, mais
na construção do modelo de atenção psicossoci- autonomia para a reorganização do processo de
al, porém marcada pela emergência de contradi- trabalho, entre outras estratégias; e, 3. institui-
ções e ampla problemática intrínseca ao proces- ção/rede/organização - descentralização e demo-
so de implantação desses equipamentos, com cratização do poder, mediante o empoderamen-
repercussão na configuração dos processos de to dos trabalhadores, reconhecimento e celebra-
trabalho, nas relações estabelecidas entre os dife- ção de resultados, criação de programas e pro-
rentes atores, na satisfação e na dinâmica prazer/ cessos de educação permanente.
sofrimento dos trabalhadores. Esforços nessa perspectiva vêm sendo adota-
Os discursos dos trabalhadores de saúde dos no Brasil, por meio da implantação da Polí-
mental, contendo queixas referentes aos baixos tica Nacional de Humanização da Gestão e da
salários, aos entraves burocráticos para a reali- Atenção em Saúde-PNH, cujas diretrizes apon-
zação de projetos inovadores, às precárias con- tam para o cuidado sensível aos usuários dos
dições de trabalho, à falta de espaços para refle- serviços de saúde, ressignificação dos espaços de
xão das práticas, muitas vezes não revelados nos atuação dos trabalhadores e das relações no
documentos oficiais dos gestores, expressam a âmbito organizacional19.
falta de investimentos financeiros, com vista à Procura-se, portanto, a valorização do tra-
consolidação e à qualificação da atenção. balho, mediante a ressignificação das estruturas,
Considerando a dimensão da responsabili- dos processos e das relações, com transforma-
dade/comprometimento dos trabalhadores, par- ções das formas de sociabilidade que envolvam
ticularmente dos terapeutas de referência, com o trabalhadores, gestores e usuários em sua expe-
cuidado prestado aos usuários, chama-se aten- riência cotidiana de produção, organização e con-
ção para o fato de que o profissional não deve dução dos serviços de saúde, enfim mudanças
assumir a responsabilidade pela totalidade exis- nos modelos de gestão.7
tencial, sucessos, insucessos e modos de andar a Para tal, aposta-se na democratização e na
vida do usuário no território, sob o risco de so- horizontalização da relações de comando, expres-
brecarga e de sofrimento pelos possíveis fracas- sas na possibilidade de participação dos diferen-
sos, inerentes à condição humana, que este ve- tes atores nos processos decisórios, potencializa-
nha a ter em sua vivência na cidade. da pela implementação de instâncias colegiadas e
A tarefa deve ser compartilhada com a equipe, rodas de equipe; no estímulo e respeito à auto-
e mais que isso, respeitar a autonomia do usuário nomia dos sujeitos e coletivos no contexto insti-
de modo que ele seja corresponsável pelo projeto tucional, o que possibilita ampliar seu potencial
terapêutico. Isto implica em consciência dos limi- de compreensão e de intervenção no mundo do
tes, tanto da capacidade de intervenção de cada trabalho e, ao mesmo tempo, permitindo a cor-
trabalhador, quanto da dimensão econômico- responsabilização e o aumento da satisfação no
operacional do processo de reforma psiquiátrica. trabalho7.
Por outro lado, enseja desenvolvimento de A supervisão clínico-institucional apresenta-
habilidades. É preciso que as equipes busquem se como dispositivo potente para qualificar o
aprofundar e aperfeiçoar procedimentos que per- cuidado na atenção psicossocial, a organização
mitam o ordenamento da demanda, a qualifica- dos processos de trabalhos e a promoção da re-
ção do processo de trabalho e, apesar das limita- flexão sobre os processos de gestão. Ela tem o
ções estruturais, primar pela resolutividade dos potencial de promover a reflexão crítica entre os
serviços. Definir, de forma clara, como deve ser a trabalhadores e minimizar o risco de reprodu-
articulação com a rede de atenção, o relaciona- ção das práticas psiquiátricas clássicas.
mento com a Justiça e com as políticas de assis- Enfim, constitui tarefa especial da supervisão
tência, tanto quanto com as de emprego e renda. clínico-institucional, por exemplo, devolver para
Torna-se evidente a necessidade de adoção de a equipe, discriminando as várias determinações
estratégias de enfrentamento dessa problemáti- que estejam atuando numa crise ou numa supe-
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Colaboradores Referências
Apresentado em 08/09/2011
Aprovado em 30/09/2011
Versão final apresentada em 05/10/2011