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RICHARD BURNS
Ricardo arde na traqueia das virgens e faz doer os sexos
cansados de esfregaços lacónicos
alucinado nas madrugadas fendidas em particípios passados
e dores de parto ou fico sem saber se me queres
ou se me anseias como eu te anseio a ti.
Acesa a noite, é só mudar os nomes e as fitas
e seguir com polidez as horas núbeis maniqueístas
vingando as paredes onde se encostaram aqueles corpos que já foram nossos
e que agora, a esta distância, nos parecem tão vagos e inúteis.
Não aproveitamos nada do tempo que nos foi confiado
e continuámos a fazer piões nas curvas 3
assombrados e truculentos
desmotivados pelos paradoxos da arte.
Concluo que após todos estes anos
não valeu a pena vibrar com as máquinas de Deus, não foi constante o amor que nos fez cair a um
poço sem que alguém nos desatasse o sarilho.
Ricardo arde na traqueia das virgens e procura que a curva seguinte o leve mais ágil
lhe acelere os passos a demandar sem perdão as exsudações
e as trocas de borracha.
INSTANTE
Finalmente que chega Outubro porque em Setembro recusam-nos os beijos
que o cheiro a uvas e o choro das crianças fizeram parecer
uma amálgama de absolvições combinadas com os deuses.
Foi a mão que recusaste que me guiou esta noite ao estonteante torpor do álcool
ao aceso marulhar do cio com óbvias e prolíferas ficções
ao riso expectante e às carinhosas metáforas a colorir as noites chuvosas
vazias solitárias e criminosas.
Finalmente, decidi não deixar de beber – aliás, ultrapassei o muro que me detinha
no armário do decoro e posso dizer-te que gastei muito dinheiro
nesta compensação insensata ao coice do coração.
Posso até explicar que me lembrava da tua cara na penumbra 4
cada vez que vertia nas goelas
o acre gelado da cerveja, a intensa madeira da bagaceira, de olhar volátil na mistura.
Eu lembrava-me dela e do prazer que tenho em ver-te recriminar-me
por estar constantemente em fuga.
Não, eu apenas te imito, mas busco os inimigos lá fora, não os engulo e transcendo. Finalmente o
Outubro a doer-nos nos ombros, nós
que fizemos a vindima da carne ante o macio torpor da tarde,
aconchegados nas camas improváveis do sexo em fuga.
CHICO CEREJA
Quando o dia aguentava oito horas o Chico resistia cinco,
como os dedos da serviçal mão que estendia
ousando escarnecer da ingenuidade de quem lhe apontava o crime:
bolas de Berlim, natas à Nero
esfregadas na cara dos que não tinham coragem (a que sobrava ao Chico)
ronceiro cantador herói de hoje
corredor de seca e Meca com olho para estrangeiros.
Heróis-Banana, pois sim,
que fogem à alvorada esmagando o gelo?
Nada disso!
Enquanto os mamutes escoravam as virgens numa obstipada sensatez de azémola urbana 5
o Chico
chavenando-se com colheres
era o barómetro da multidão urgente de riso,
dos farrapos humanos repletos de bagaço
escondidos pelas mascarilhas de pedra-pomes.
AS SENHORAS
As senhoras que enfeitam as tardes de óculos na ponta do nariz
procurando o passo correcto da agulha a entroncar na lã
não encontram as palavras, como nunca encontraram a vida.
Durante a semana são cetáceos polimórficos, com as domésticas narinas a farejar e a recolectar
algas e aromas na areia.
Assim que a semana acaba, em vez de olhos têm pálpebras, cutículas de mensagens ajaezadas aos
vidros das viaturas.
E lá vão rendando a vida enquanto esperam e espreitam
a última nesga de gasóleo que o marido despejou sobre as acácias, em urrantes gestos de mastim de
sala…
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ROCK E ENROLE
Ao Roque tudo, ao Rock nada! Essa mão cheia de mostarda
que assinala estrias no ventre está-nos a trilhar os calos e figura já nos nossos pisa-papéis como
névoa de ciúmes a calcar
mais persistentemente e fundo até ao ui ou ao ai.
Vale mais o larilolela do Roque que o uambabalula do Rock, em sabores de todáfruta importados
directamente da tevê, decepando-se nos cotos rasgados de tanto coçar outras urgências em sentido
inverso.
Se o Roque sabe que não gostamos do Rock
é capaz de nos assar uma sardinha e oferecê-la também à pátria que o viu nascer, baixo e moreno,
com a sisuda face que só se alivia perante os amigos.
Se o Rock sabe que só gostamos do Roque, ainda nos bombardeia com a sua armada 7
armada em esperta
de pombas estilizadas que trarão bombas nas unhas
e as largarão como ovos podres em nome da paz. Cuidado Roque, o Rock de tudo é capaz!
DEVE E HAVER
Tavares emproado empossou em Assembleia-Geral a que geralmente o dirigia.
“Passo-lhe os documentos, o relatório que afinal de contas não apresenta nada para saldar… e as actas do meu
martírio, escritas nas febris jornadas
duas da manhã ou mais
grandes olheiras disfarçadas, mal disfarçadas demais…”
Tavares esticou o dedo
tocou à campainha e quem veio abrir recebeu-o de espanto
escancarado nos ossos. “És tu?” Tavares disse que sim e exigiu a sua quota-parte
e de papel e lápis assentou no “Deve e Haver”:
“Enquanto estivermos juntos
Nada nos há-de correr mal 8
Se falharmos nos estatutos
Corrigimos com o Regime Geral…”
Quando te pedirem para espreitares para cima, não queiras logo ver a lua.
Antes da lua há as nuvens. Passa antes por elas e já agora limpa os óculos.
Não queiras ter tudo de uma vez que uma mão não chega para os rebuçados. 9
Com a outra, limpa as cascas.
VINHO CÃO
Bem te avisaram te sopraram aos ouvidos agarrados ao silencioso lancil da elefante febre
que o vinho é o melhor amigo do homem
a seguir ao cão amarrado aos arames de quem crê que ter cães é disfarçar-lhes os dentes
amansá-los com festas em casotas ao frio
água quando em vez comida da que sobra
timbre evidente do provável extermínio do mundo nas restantes milhas de desassossego.
Quem bebe vinho e prende cães é o maior inimigo do homem
e é fisicamente improvável que um dia suba ao céu
pois deve julgar que as pernas são só para andar que os olhos são só para ver…
Enfim
não vale a pena dizer mais 10
prendam os homens
soltem os cães.
AO CU DE VIVIANE
Viviane dá-o de graça e acha graça que depois de casada
o seu legítimo esposo ache o outro orifício espaçoso
um verbo cheio de pleonasmos retumbantes a consagrar nos sábados de sobra
uma vez que lhe jurou toda a fidelidade quando consigo uniu
o tijolo e a cilindrada.
Depois dos orgasmos cronometrados
chucharão mutuamente nas línguas e prometem-se no final de cada párodo nocturno
doses reforçadas de magnésio que só as bananas poderão consagrar a fim de
primeiro enrijecer a verga segundo lubrificar a querida e terceiro ir aguentando a coisa
mesmo que só lhe apeteça virar para o que tem menos apetência.
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A MINHA TERRA ÉS TU
Como poderia eu deixar-te, ò minha terra,
e partir com as mãos vazias à procura de cerejas nas arvores exóticas?
Não teria mais o pólen da urze a coçar-me o nariz
nem as abelhas coladas às flores tecendo doces paisagens que capitulam no estômago.
Não teria o fértil som das gargantas cansadas
e o arremesso violento das vozes fechando os dias
nem a alvorada lúbrica que sucede a uma noite de geada
quando o sol num prazer mortiço a afaga com os dentes cheios de luz.
Não teria a voz da minha mãe a acordar-me para comer pão
nem os cães revoltos na lama a acusarem os pássaros pousados nas ramadas.
Mas ganharia o teu ventre húmido como uma calçada que passaria anos a percorrer com as mãos 13
acesas
ganharia o teu sorriso fresco como a sombra da laranjeira
os teus seios quentes como o xisto que amadurece a vida.
És tu
meu amor
a minha terra.
MERECER A VIDA
Merecer por merecer,
só a vida inquieta nos anexos de lacre que dizimam os ponteiros do relógio antigo.
Anteriores à vida,
só a vida que as botas calcam entre as serpentes de fumo
enrodilhadas nos planetas
nos globos oculares que se fingem jovens e adstringentes
qual vinho de uma colheita macia como o sol de Abril.
Fazem-se mal as contas e o tempo vai correndo a favor dos medrosos
esconjurando, piedoso, os artefactos sem crença sem objectivo e sem rumo
como os ladrões que seguiram Jasão e os seus fiéis argonautas, lesionados e de cócoras.
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RECUPERAÇÃO
Recuperemos agora, oh sim, recuperemos agora.
Já tenho as barbas brancas meu amor, sei fazer contas e seguro
as maravilhadas flores que o sorriso da princesa observou pelo vidro.
Tenho fome de ti, apetece-me cada ansiado olhar
e sei agora amar o granito da nossa casa e os cobertores amenos que ruborizam as faces dos outros.
Recuperemos, insistamos – a chuva serviu promessas, vimos tudo na penumbra. Recuperemos.
Eu abrigo-me nas vagas húmidas do teu sexo
na cereja incandescente que destapo com a língua
a razão obscena para descer à cidade.
Insistamos, estou farto de ser um homem sozinho.
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CARNE
Para carne tão branca és melhor que um animal
senão mais limpa e eficaz
sombria, sem seres assustadora
mortífera, sem que magoes os olhos ou os calos.
És a carne quente da madrugada
a imagem que se ata a uma sombra a uma voz a uma mão
e consegue criar anseios no proscénio da malícia,
o vinho que não recuso por amar o Douro,
as árvores, os pássaros e a Páscoa.
Nesta sexta-feira, minha santa, não me consigo redimir e só penso na tua carne
delícia salgada cheia de panos bordados a taparem o excessivo alerta da alimentação 17
prancha de luz onde me despeço antes de chocar os dentes no granito firme dos teus seios
rua de ofertas generosas que as montras desanimam por não resumirem em conteúdo idêntico
aquilo que não conhecia.
Para carne tão branca só muita fogueira e uma grelha ondulante para fritar em banho-maria os
sexos alvoroçados que agito na fuga do pudor.
REALISMO OU TRAGÉDIA?
Agora que já partiste os dentes de tantas dentadas na observação das tartarugas
te esqueceste dessa sempre simpática visita de mão dada pelo parque verde da tua cidade
deste leite ao gato e deleitaste o marido
só te resta mesmo
digo-to do fundo do meu coração virgem
dares-me um beijo com essa boca colorida e vacilante
até que os passos e a psicologia das personagens nos arrumem a um canto imitando o gorjeio dos
passarinhos
estético e complacente, com os polegares cheios de Primavera.
Pois bem cara amiga,
agora que estamos sozinhos 19
só nos resta dar bom uso ao dente e ao certo não sei onde o acaso nos poderá levar
eu um trintão de joelhos falsos e tu uma trintona de outros tantos percalços.
Estes nossos acenos ao mundo são plataformas nuas decorativas arquitecturais
e o vazio que nos assalta as unhas é a carne do javali e da corça a juntarem-se para outra merenda
que as cartas já explicaram. Então, que dizes? Vamos ser realistas ou insistir na tragédia?
LATITUDES, CÃES
As vozes dos cães libertam-se na noite
quando a geada os apanha desprevenidos sem roupa
roçando a dócil dentadura nos anéis das suas correntes.
Quando arrotas vinho e caldo
verde de raiva por seres mais um sem trela preso às circunstâncias
à faca e ao queijo à mão amansada por pudor às coutadas,
róis-te a ti próprio como animal mascavado na tontura dos rissóis
e desfaleces com a pálpebra inane e cheia de frustradas ameaças ao ventre
procurando o cheiro pilhado nas armadilhas da rotunda dos ossos, engodo sério dos pedintes.
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ANTES O SEXO
Antes o sexo entrava vagarosamente com o vigor das vespas açuladas ao açúcar
majestoso no interior das barrigas
esperneando no fácil intróito que se coíbe de razões.
Hoje é a vara que se encolhe ante o frio televisivo
entre o pijama e o aquecedor
descaindo o lábio ao aprumo das duas guelras arfando de vício
no sono dos esotéricos esófagos
carne de vinha-d’alhos padecendo de riso e de perífrases no esterno.
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POEMA ENCADERNADO
Os vultos pré-câmbricos afastam-se das janelas
aperreando-se com ósculos escuros face à matilha de encefálicos crânios derretidos
pelo granizo cruel da televisão.
De vez em quando, costuma sair um dente dos sorrisos em compromisso com as horas
e quebra o tabu dos cronómetros com outra alavanca para o vazio.
Se por acaso os vejo
recebo-os de recibo na mão, e não me volto para o outro lado enquanto
não me pagarem por ter de assistir a este espectáculo estranho e efémero.
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AS HORAS A TEMPO
Sei as horas a tempo e as domésticas frases que se engolem
todos os dias ao juntar dos talheres
sei o que se diz o que se atira apressadamente
antes que as sirenes anunciem outras angústias ao jantar das famílias
bílis insana rondando os incautos Invernos
onde quem chega tem pelo menos pão e água.
Sei quem manda e quem obedece ao sarcasmo de ter açúcar
e a mais um ou dois entraves ao coração aceso e mendicante a adornar os dias sem pressa.
Atiro-lhe farpas, resumo inversos noctívagos e dependentes.
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ESPELHO-ME EU ESPELHO-ME EU
Espelho-me eu, espelho-me eu,
e haverá alguém mais bonito do que eu?
A réstia de camomila entornada nos poros
a rosa de monções arejando a preguiça
a sombra latejante e húmida das açoteias
o sapo a coaxar lá no brejo… não são decerto mais belos, mais eloquentes do que eu sozinho
com estes dentes que agora vejo
a morder as sensações vizinhas
as marés de gritos o barro o barulho dependurado nos risos
nas verosimilhanças
dilatando o rol dos aflitos. 27
Espelho-me eu nos espelhos retrovisores
pedindo a mão para ultrapassar quem fica estacionado nas estradas da vida
inundados de manhãs a acordar em fuga
submersos em visões inúteis pensadas com o desvelo próprio dos solitários, ansiando os ventres
que se aconchegam nas palmas nos colchões.
Espelho-me eu, e haverá alguém mais incrível do que eu?
Catálogo de calos, igualdades em serviço ansioso
e pontapé para a frente,
sempre virado para o ataque.
MONTANHA DE SUSPIROS
Ò montanha de suspiros que descubro nas sombras deste lençol
encostado ao rosto sublinhado pelas alianças de açúcar que te lambi nos
dedos, rendido ao capcioso apagar do hipocampo.
Que tem vê de costas rosnando de pé em riste como castanha que se apanha ao acaso na berma
quente das tardes de Outono
prevê as curvas e a eléctrica máscara que a polaina
afaga na madeira entorpecida de gritos.
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PESPONTO E ESPANTO
Não te espantes com qualquer coisa que isso cega.
O demasiado fácil promete bordados mas deixa-se ancorar ao tempo
com a mastigada refeição no bucho, de enegrecidos peitorais.
Não te arvores em defensor das árvores e deixa de lado a madeira das balsas com que irás
deslizando até ao fim
cardíaco de honra apetecida
com a máscara de dedos cheirando a maçãs
como cadela prenha que procura um buraco no capim para depositar os filhos longe dos pontapés
dos animais de calças.
Não te esqueças de prometer algo a ti próprio sempre que finda o dia
e de encontrar mais um cabelo branco nos muitos que caíram, 29
olha que os sorrisos de arame despedaçam-se rápido.
Acima de tudo, pinta os muros da tua casa e lança as dúvidas ao charco antes que chegue a manhã
cheia de acenos em crista.
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BAFO DA TARDE
Ao andar para trás
sentindo o bafo da estrada romper as ilhargas
como ventre que se ausenta em sermões da cabidela entreaberta
a plena refeição de assombros e o desejo macerado sob pena de aviso prévio, assisto ao febril ocaso
da tarde.
Quando se duvida que o dia tem aquelas horas todas,
é retornar aos passeios cinco minutos antes das lojas fecharem
e aos bares uns cinco minutos depois. Ali se encontram os aleijões do tempo
e o lacre aceso do pavor, que não descansa.
Ali se encontram as farsas e os pincéis do medo
as escoras da vida e os palavrões que se desfiam balcão a balcão. 33
Ali, quando se conta um segredo, as tartarugas pisam mais leve o macadame e deixam-se ficar para
trás, ouvindo o que não querem ouvir.
TOUREIO
Eras tu que dizias "mais um molinete na vida!"
dentes de riso insultando os olhares que se aproximavam quando o gatilho do sério te ajudava a
brilhar sem ser visto. As pessoas passam e mesmo assim nunca te trataram tão mal como agora o
fazem, moendo ervilhas na sevícia morna da tarde
apanhando cerveja de borco
no mais temperamental estilo: é bem feito, dizem os outros
sentados nas bancadas agradecendo aos curros
a atirar migalhas de pão na insondável matriz de devaneios. Coisas assim
não prestam não rimam não deixam margem de manobra e só o corpo se encarrega de assobiar
com a ruptura dos ombros em charco de anemia
encolhendo-se como vértebra de arroz esperando o denso e inanimado suspeito 35
passe de peito.
JANTAR JUNTO
Jantar junto aos pais, das ameaças que se fazem ao cair da Primavera, quando os cobertores
esquecidos do Inverno já aleijam e fazem tropeçar o sono pelos bafos mais quentes da noite. Os
pés que se emprestaram aos sapatos ficam agora flácidos e festejados nas breves ânsias de
assombros clínicos, mergulhando na solidez sisuda dos guardanapos.
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CUIDAR DO AMOR
Não cuides desse amor e ele passa-te ao lado, como comboio sem destino que o vento trouxe nas
palavras de quem escuta ao longe o silvo pronto e longo.
Os deuses deram-te tudo, mãos e ameaças de mãos, e deixaram-me a contemplar quem passa,
desejando o óbvio mas impedindo a vontade vinte vezes ao dia. Desconhecia que ter é também dar
ainda mais do que aquilo que se investiu
e eu, que nunca tive nada de meu que se mostrasse mas apenas eu próprio,
percebo agora que não é isso que as esposas procuram num homem
nem o cabelo nem a barba nem a camisa nem as calças,
só o que se mostra e vive.
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SEM NADA
Serei sempre um poeta sem nada, porque o nada foi sempre o que tive demais.
Antes que me esqueça de sentir em demasia, deixa-me apertar-te os dedos contra os meus dentes e
sair com a mão em dúvida, negociando o pente e o cabelo para encontrar a melhor imagem disto.
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CARNE NAVAL
Era só isso que eu queria, morder-te a carne
entrar no teu Carnaval de rastos
festejando-te o dorso e a pele
água fértil de rasantes risos
e adormecer à sombra do dócil colapso.
Quando te entregares sem resistência ao côncavo do meu peito e sovaco
arrastando a mão no meu interior e inteira abrires as palavras sem cansar os dias
planando nas eróticas frases com que aquecemos o provável sexo
passeares pelas brasas domadas frente ao relógio e ao cheiro verde da luz dos ecrãs
anunciando passagens mais sérias e aberturas de ópticas respiráveis, serei feliz.
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EU QUE DISSE
Eu que disse “merda” quando te foste e outra vez “merda” quando soube que não voltavas
não sei que mais dizer depois de tantas esperas e outras tantas esperas antes do nascer das
madrugadas.
Já me vão faltando forças para deglutir os números e os acessórios que me trazem em fértil dádiva
os liofilizados cidadãos.
Eu que disse “merda” torno a copiar as minhas palavras e digo mesmo “merda”
que estou a ser tratado abaixo de cão a quem negam o direito ao cio e as prestações mais incríveis
que antes de mais não chegam para pagar a réstia do salário.
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QUASE
Quase desato a rir quando o vejo
pés maiores que os sapatos, mãos que as algibeiras já não calçam
vagabundo sem medo
enfrenta a vida em cada copo entornado
acotovelando-se para dizer tudo em poucas palavras “uma sandes de fígado quanto é?”.
Engana-se na pergunta, devia dizer “uma sandes de fígado, como é?” ou “uma sandes de fígado, é para quê?”
ele que masca a realidade em itálico e quando a engole
com a cebola que ainda lhe escorre dos beiços
julga comer o lavagante que reconheceu nas espreitadelas aos restaurantes de risos.
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DEAR SIMMONS
Que pena Simões seres um português desse calibre
um atirador de pólvora seca que refoga as angústias escolhidas pelos outros.
Tu que rejeitaste o que se usava dizer
naquele tempo em que ao lume o presunto era servido com pudor, agora americanizaste-te e já
gritas pelo véu da ignorância com todas as letras do bagaço?
Uns dizem que cresceste com esses cabelos brancos à Fangio, pronto para as curvas, outros dizem
que é assim que tudo acontece, sem artifícios nem leis.
Eu sei Simmons my dear… Para quem diz que ter saúde é tudo na vida
não ter dinheiro não leva a lado algum, só ao mar da insignificância
das anémonas que vigiam as ostras e dos lavagantes inquietos a presumir disfarces.
Sermões ao sábado, Simões? Deixa-te de assobios e canta, rosna mesmo ao ilustre directivo 46
imitando o herói antes do expectante párodo que o coro de sátiros atirou à repartição.
Não existe maior racionalidade do que a da administração, positiva, implacável e isenta, dócil
rabanada de cifrões manifestando-se ante o voo do mosquito pairando no balcão picando os
agrafes e o resto de tinta. Sabes que mais Simões? Sermões ao sábado não adiantam processos.
VIGIAR OS PASSOS
Vigiar-te os passos como antílope a nascer das folhas da tamareira
e após a madrugada saber-te em toda a mancha que desatas para beber.
Olhar-te os flancos para te ter acesa nas sombras vagas do estio.
Se nada te importuna desce as escadas e eleva-te
vem ter mãos com as mãos que te apoquentam o ventre e os seios na escuridão
os seguram e desejam sempre desde sempre,
vamos comer com desmesura a desmesurada vida.
É pois aqui que eu fico e quero andar sendo teu
ter-te no corpo e no sexo que seguras e devoras na loucura insensata do sossego.
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OS ALICERCES DA CARNE
Quando os alicerces da carne se erguem mais alto que as pulseiras
e os instantes se tornam breves como enfeites à janela
mascarando o odor das petúnias em nácar de romance velado,
dói ainda mais o coração
olhando frontalmente a fronte dos acenos misturados com arroz e mel
acreditados na simples impressão de assombros.
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ALMA SUPLENTE
O meu cão é a minha alma suplente, a marca destemida que adapta os orifícios às chaminés
a charrua que adoça as vertigens dos solstícios. E o meu cão sabe medir
melhor que eu próprio as palavras, pois não as diz
ladra-as com o focinho ofegante ante as bainhas das calças, o nosso maior desassossego.
Não é crime ser cão, ter unhas cheias de terra e o pêlo sempre enxuto. Crime é ter uma alma que
destapa as razões planetárias quando convoca as horas e chora, molhando os capilares vítreos de
massiva expressão.
O meu cão é a minha alma suplente, o andrajo animal que em lucubrações vegetantes me alicerça as
horas, a fatia mais quente do meu silêncio.
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ESCUTA
Se souberes escutar o noitibó rondando as colunas
o seu uivo a doer como espelhos e matrizes que se encostam ao ouvido para perceber
o que lá vem antes que chegue
se souberes esperar pela chamada que os pássaros transportam na fuga para a costa e só depois
escolheres que objecto tomar antes de obviamente te enfeitares com os colares de guerra
aquele açúcar que os teus avós te mostraram enquanto a colher da mamã estava depositada no
emprego ou a descansar na pia
se souberes perceber que os cães se coçam e nada lhes dói
até que a tua mão emprestada ao inacessível recanto da pele empurre a caspa para fora ferrada pelos
caninos do canino
só então estarás pronta para te governares pelos teus próprios meios 51
vestindo o visor que te prometeram naquela tarde onde os corpos em triunfo se festejaram.
NOVIDADE
Agora que sei o espaço vazio do teu sexo
e a carne que se encolhe sem mais planos
só me resta mesmo o incrível amplexo
e o espanto ocasional de tantos anos.
E aqueles passos oferecidos à colheita
essa semelhança que atira outras farpas
é teatro obsceno e de fronteira
como as mãos as pernas o nariz e suas asas.
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OS ESPAÇOS VAZIOS
Amar com essa força os sexos vacilantes
ouro de viagens deserdando as mãos ocas
e o xisto aceso da máscara posta antes de outra viagem
ao centro da carne e das bocas.
Outra mão a rebuscar as veredas húmidas
do teu corpo alimentado pelo igual fantasma de assobios
a ribombar paredes ou venais vinhos que o Douro destapa
sem lembrança de outra mão. Os espaços vazios.
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LIÇÃO DE VIDA
Foi então que eu percebi a vida, quando Maria do Carmo me trouxe um molho de couves e
gabando-lhe o viço disse “Tome, estão fresquinhas!”. Eu aceitei-as como se fossem um tesouro
rebuscado dos ossos da terra e bendisse o dia em que a encontrei com as mãos cheias de estrume a
lavar maçãs. Regressei a casa e fiz uma sopa, alterando previamente e com denodo o ponteiro dos
relógios para que a refeição durasse mais que uma escassa hora. As sementes da terra, sei-o agora,
não se devem ocultar mesmo que pareçam outra felicidade que os fogões alegram.
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O CORPO EM BRASA
Quando o corpo te arder e as brasas das horas te desviarem os sorrisos ante os espelhos da
multidão como gomos de asfalto mordendo a luz
quando os teus queridos gestos se espalharem sem mácula pela visitada planície de morfinados
quando sentires o rosto coriáceo e as mãos acesas buscando o inconsolável que já teve solução
e depois de saberes tudo isso e outras coisas mais
as palavras brotarem como uma trepadeira como um vulcão,
saberás o que penso agora.
Esta vida é demasia
é silêncio apoquentando as mensagens de assombro como lanternas que os outros rompem sem
percepção sem memória nem dignidade,
um passo à virtude acesa e casta. 55
Se para isso só serve o auto-sexo e as inomináveis incisões na virgem, amavelmente vamos carpindo
acenos despidos de madrugadas.
CANTO DE NATAL
Eu sei que me ouves respirar nessa casa azul cheia de víboras
roçando-se pelas paredes a transmitirem a memória da carne
e a adivinha adversa que o riso fez despontar ao pressentir o álcool.
Eu sei que o teu coração é uma borboleta de gelo
e os teus pulmões incisivos dão a vitória à vida
resumindo-se acesos em duas linhas
e no espaço ancorado às sobrancelhas rubras de um cigarro.
Eu sei que me esperas e só sei isso, não sei outra coisa, pendurada nas escadas
olhando com fastio os almanaques onde se contam as teorias e os dias assombrados
a febre que custa respirar
o peito e as vitaminas que ofuscam a soez existência de um nativo ausente em época natalícia. 57
LUZES OU SEIOS?
Se isso são seios ou luzes verdes cheias de tempo
que os gatos acarinham como se fossem novelos abertos nas calçadas tenras de juízo
se isso são os teus seios não o posso dizer não os distingo
não tenho pena para o fazer
nem o cansaço a agitar-me a velha pistola de versos rudes me ajuda.
Eu vi-os nus na penumbra
enquanto as cigarras carpiam o verão de Santo António e o vento
soprava acenos no espelho dos teus olhos e nas ruas inquietas do teu corpo.
Vi-os nus evanescentes oblíquos
e vejo-me dividido neste inferno da memória usando os sonhos para me acalmar
ao vasculhar nos corredores do meu corpo o cheiro anis da tua boca 58
o almiscarado dos teus cabelos e o silencioso sabor do teu sexo.
Se um dia voltares e não tiveres mais as gemas
mas a carne desabrochada e eternamente celeste
deixa que os toque
mostra-me a lucidez e o talco suave que enrolo nos lábios e por segundos sinto.
SEIOS OU LUZES?
Conheço esses seios desde sempre
essa madeira acesa essa bossa de égua baia que o cio da tarde pica nos flancos
e deixei-os
trocando-te por um invisível vento que topei antes da científica mão da vida me ter aleijado os nós
dos dedos e a palma também já rude da mão.
Eu cobria-te de olhares, era um minotauro de sustos que cavalgava rente ao muro
limando os chifres nas arestas desse labirinto de risos, prisões das planícies de nós próprios, e tu
desafiavas a chuva e compunhas lareiras e madeixas de lume em torno do meu peito.
Está bem, disse-te na despedida, mas voltei a chamar esse nome que adorava a cada instante
tão teu como imensamente meu
meu pássaro de mel minha chuva de Agosto 59
minha meiga feiticeira meu amor do arroz doce com canela
cabelos de sisal pele de sândalo
minha casa dos meus seios.
TAURUS
Oh sim rectilínea fêmea
passa-me as mãos pelo cabelo que eu ardo só de pensar
que hão-de existir mais dias em que te poderei contemplar à luz incandescente das palavras.
Faz-me aquelas coisas que o decoro impede,
recita-me de cor as horas e o sucesso modificado pela ansiada troca.
Ò curvilínea estrada de capilares
carne própria para mim
para a minha cruz imprópria e seca ao sol da penúria,
faz-me triscélias nas orelhas com a língua
faz-me cócegas no pénis morde-me
como se fosse um caramelo que a noite descasca no esplendor magico e máximo. 60
Só tu tens essa virtude de amar a menos a minha potência cardíaca
só tu te enleias te entregas de gatas e pedes carícias violentas nas nádegas
enfim só tu sabes porque contaste as horas da ausência
a vertigem da partida e a indómita paixão
que nos fez caminhar como os caranguejos de lado para a vida
mas sempre a ganhar areia.
NOVIÇA
Fiel noviça, obscena maravilha destapada pela angústia,
redimi-me por ti e voltei a comer batatas
lúcido na minha altivez de exegeta das flores.
Descobri que nua brilhas com a intensidade dos limos
que trazes toda a água nos beijos cansados
e que o aroma das luzes nos convida a lambermo-nos mutuamente
na pele nas orelhas e nas pálpebras.
Descobri depois que somos os animais mais intensos e miméticos
os cruéis assassinos das horas em toda a dimensão do nosso acaso.
61
DEIXA
Deixa-me outra vez provar-te aí
nessa rosa discricionária nesse ventre incandescente
que os dicionários não acham.
Deixa-me saber o sabor desse anel de fogo que os dedos osculam
que as polpas palpam que os olhos visitam numa ânsia de ver e não tocar.
Deixa que te abra as pernas
que te ensine a lei da vida e com fidúcia te assegure este amor absolvido
depois das respostas adequadas
te penetre num vagido canino e te morda com a lucidez de um demente
que te ama porque tem tinta nas mãos.
Deixa, minha querida boneca, que te meta a mão nos cabelos, 62
te dê um beijo nas pálpebras e te peça que não partas.
MARCAS ROSNADAS
Marcas rosnadas da insídia
nacarados felinos, nariz secreto
imito Bocage e chamo-te, ò Lídia
insiste comigo se não for insurrecto.
Insiste naquilo proveitosa dama
quero espreitar a tua púbis-lodo
sobre o teu corpo na minha cama
meter-te bem fundo o meu sexo, todo.
63
E QUE MAIS
Que mais pode um homem desejar quando chega bêbado a casa
que o abanar de rabo de um cão a dizer que o compreende
com toda a avidez das suas plumas extrovertidas?
Agora que me tornei invisível e nas minhas estantes velhas só resta o arroz que
a mim mesmo atirei
agitando as palavras antes da maliciosa aposta das mãos
resta apenas desistir dos avanços
ser perfeito e dominar a intensidade das obvias conjunções.
Qualquer um vai ser responsável por aquilo que transmito
quando o ébrio de mim se envaidece nas amostras dos calcanhares
nas óbvias criminosas e macias ondulações do perónio. 64
Não tenho mais nada para vos dizer
cidadãos de rodas omissas mas cheios de gana e olímpicas tatuagens no fémur.
Vão dormir que o vosso mal é sono.
SE ACASO ALGUÉM
Se me perguntarem
digo-lhes que eras um cavalo de gás a morder as uvas
um pássaro que despia beijos e compunha ovações sem perceber
que se aproximava das divindades.
Eu não quis isso, e deixei que fosses outra manhã a entrar-me pelas narinas,
afugentei os pavões que atravessavam os nossos lençóis
observando-nos com os olhos das caudas
descobrindo as orgias e as facas sem gume sem serviço
em cada beijo que te abraçava até doer na boca e na língua.
Mas ainda hoje sinto os girassóis dos teus seios a rondarem-me os olhos
quando assombrado acordo, confundido pelas narrativas do tempo. 65
OS ÍNGREMES AROMAS
Os íngremes aromas do teu sexo despertam-me o sangue
e não basta mais cheirá-los
sinto que os devo comer
lambendo-os com a volúpia na língua, uma carne igual à tua
que procura na fenda minguada um regresso mais capaz à vida.
O aroma dos teus braços o secreto vagido que operas
quando as mãos se encobrem de tantas observações tantas primaveras
e os teus seios como luas
que ao vê-los esqueço tudo
que existo e só desejo tê-los agarrá-los mamá-los
tão belos que fico mudo e desisto de te classificar 66
minha mulher de veludo
meu amor nunca esquecido.
AS MÃOS
As mãos querem ser pássaros e voar até à tua garganta
macias como a púbis das virgens
acabadas de lavar na geada vegetal das madrugadas,
elas enlaçam-te a traqueia
heras obscenas carregadas de oblíquos olhares de vetustas observações
pedintes do prazer húmidas como paredes sem sombra
volitivas aspergindo nós de casta onírica, contada da minha paixão.
E eu quero abraçar-te esse pescoço lamber-te a língua e o sexo
morder-te os cotovelos e os sovacos
e os seios leitosos e meus.
67
A NOITE
A noite em que comemos pão doce
e avistamos uma trovoada de murmúrios a descer-nos pelos ombros,
foi a mais breve que tive.
Eu era o castanho dos teus olhos e tu o espaçoso do meu peito
eu amava-te com as mãos inquietas e tu estalavas os dedos para me açoitar o
sono. A noite em que comemos bolachas e aguardamos a girândola cega do emotivo
festejar do Santo António nas ruas
marcou-me a fúria no peito
e na extenuada camisa de felicidades observadas nos bolsos dos outros.
Foi mais breve o momento
senti-o na pele 68
um garfo a dizer-me
“acorda!”
um profundo golpe, ò minha sereia de luz.
BARCO DE PAPEL
Um barco de papel a ondular na bombazina da vida
uma máscara coalhada na terra azul das focas
um vestibular organismo a depurar ocasiões de silêncio
assim te sinto nesta noite de Fevereiro
enquanto os gatos adoçam a noite com o ronronar do momento
e as flores assomam a obscenidade da Primavera
numa carícia pintada a olheiras.
Assim te sinto meu amor porque te sei toda
uma linha atravessada na minha vida
um armário insano onde despedaço os rins
a chuva que percute na memória a promessa inviolada de um amor eterno 70
e desejo morrer lentamente ao teu lado
enquanto as flores, as maçãs e as uvas sucedem as estações com o brio das colheitas.
PRINCESA
Minha princesa garbosa, nasceste para prolongar a vida
para a acolher nos braços que esticas até ao céu instantâneo das palavras.
Nasceste para unir os corações desavindos pela absurda arrogância do tempo
e trazes nos olhos o visco mágico dos génios das florestas.
Eu sou um macho maduro que aprecia o vinho quente
que os antepassados me estendem num abraço
e tu és a razão da colheita, o amor que nasce por si próprio
e a azeitona potencial que tempera a vida.
Estou à tua espera com os olhos em chama
quero-te oferecer as minhas mãos para que as uses quando te penteias
ou quando precisas de afagos 71
porque tu sabes amar apenas e os arpões que apontas servem para caçar sorrisos.
FECHO
As tuas costas voltaram-se no presépio do tempo
li-o na noite em que ramificamos os dedos que pintamos os lábios com
o vinho lúbrico dos genitais
e rosnando à madrugada nos cobrimos com essa geada quente.
Eu guardo-te na alma porque te abri o corpo com a minha enxada obscena
e nesse centro ansioso entrei com a violência das chuvas e sai com a doçura dos lírios.
Tu és a maravilha mais insolente da minha vida
a mulher que me ateou o fogo e me prendeu à roda inteligente do ser
a cereja gulosa a árvore espérmica
a flor misantropa a filiação total da carne
e eu quero untar-te os lábios 72
com o pequeno corno do amor que aplacas entre as tuas pernas.
DELICIOSA VIRGEM
Deliciosa virgem, pardal de corda
já te soube minha nesta cova acesa do corpo
rebuscando outra ansiosa espera no marulhar sereno dos peixes.
Rosa de assombros
a tua mão descoberta entre o pavio e a chama
aguarda a lua com a mancha vermelha transbordando como aviso à iniquidade...
Quero ver-te nua, sem disfarces.
Guarda-me, pecaminosa baby-ocre, estou aqui para as curvas
com chocolate, livros e escova dos dentes.
Eu vou se chamas
eu fico se insistes 73
mesmo sem pijamas
nem promessas evidentes.
POEMA DA CÓPULA
A cópula maravilha os olhos e as unhas que descascam a pele
com a insondável montagem de acenos
e eu sei que tu gostas da cópula entre as pernas
e que eu te roce os flancos com o meu pêlo e as minhas ninhadas de beijos.
A cópula é mais que um chocolate que se derrete lentamente na boca
e são as nossas línguas que tornam a cópula sangrenta
como as costas dos apanhadores de cacau
e eu sei que tu gostas da cópula
de te vestires de bronze te maquilhares com saliva
até que esses seios rejubilem de quentes e duros com um pénis entroncado no coração.
A cópula a régua e esquadro 74
as mãos manchadas de sémen e os olhos que se aninham
nos cabelos nas orelhas e também nos dentes
e eu sei que tu gostas da cópula
de seres virada como um animal ferido nas patas
que agradece festas no ventre e a mão que sabe curar
a ferida aquosa que exibes para selar palavra por palavra.
ASAS
Meu amor
eu tenho as asas abertas como dois pêndulos
que gritam carnívoras razões e novidades ansiosas
e quero mostrar-te em todo o meu comprimento
as árvores obscenamente nuas e ultrapassadas neste Outono ausente de orgasmos.
Eu sei meu amor que nada mais me importa
senão a mão relutante e gasta ou as vezes que bebemos o felino espasmo das taças da nossa boca.
Repara em mim meu amor
tenho o coração em pedaços
e não posso viver sem o pulsar dos nossos pulmões em uníssono.
75
Ò FLOR OBSCENA
Ó flor obscena, ò senhora das dúvidas que me refrigeras o colo colapsado,
eu denuncio-te, ciosa, alargando olheiras com a liberdade das ópticas,
eu amarroto-te amarro-te às linhas castradas das páginas
eu aperto-te os dedos e sinto os ossos contumazes – nada de ti me interessa, excepto o alaranjado
silêncio nocturno que partilhas com as casas
o pranto de sopa o larvar ocaso das unhas em contrição jocosa.
Eu sou o aritmético, o aluno pobre dos cifrões, a mão que balança no Cáspio odor dos odres
platinados, o Danúbio invisível das ponderações, ò senhora!
e tenho-te acesa nas pálpebras, ordenada nas prisões, magica na lã das puberdades alentadas
eu tenho-te num luar de palha,
eu amo-te à luz do oleado principio das descobertas maravilhosas ------------------------------------------ 76
--------------------------------------meu amor--------------------------------------------eu quero-te.
BEBIA-TE, COMIA-TE
Bebia-te o sangue como se fosse
uma armadilha que entrelaçava dramaticamente nos lábios
comia-te a carne como se fosse o corpo sagrado que venero desde o alvorecer
mordia-te os lábios para que sentisses que o meu amor é verdadeiro
e penetrar-te-ia com a ânsia dos potros soltos nos tapetes de poejo.
Eu sei que quando te apanhar na minha cama te vou magoar intensamente com os meus dedos nos
teus dedos
com a minha respiração nos caracóis dos teus cabelos
com a minha sombra nas cutículas das tuas unhas
e com os meus beijos na tua língua solta e desamparada, porque eu te amo como quem ama o
efémero despertar do dia, quando o suor desponta dos corpos em vigília, 77
amo-te como quem ama os girassóis brindando o sol com o arquear mágico da sua dorsal verdura
amo-te como quem ama a vida e a vê extinguir-se
todos os dias no fechar dilacerado das horas.
Tu, meu amor, dás-me contínuos nós na garganta, apertas-me o pescoço e agrilhoas-me o coração,
e eu amo-te com toda a volúpia renascida no teu sexo e quero fazer de ti uma oficina da nossa
carne unida.
AO MEU PAI
Meu pai, agora sei porque me levavas aos ombros - eu tinha medo de tropeçar.
A vida, sabia-lo tu, tem perigos escondidos debaixo das pedras ou quando se abre um armário, mas
tu foste o senhor das estradas,
o leão feroz que sabia quantas horas uma semana nos deixa em jejum.
Também sei agora que quem tem óleo nas mãos traz a garganta enegrecida, os olhos ossificados e
os passos obliterados.
Eu supunha isso, mas os deuses só agora me abriram os olhos.
Sim, tu vinhas de madrugada com historias na carteira,
o sonâmbulo marulhar do coração trazia-te à família… e contavas os jogos de cartas ao luar diáfano
do Douro, sabias como se enganava a fome
e mostraste-me o valor do trabalho, quando me acordavas para regar as hortas 78
de uma terra que não era tua mas tratavas como um ninho.
Meu pai, eu sou agora um pardal a balouçar num ramo de alecrim, um acaso aceso no tempo, o
novo senhor das estradas, aquele que planta batatas ao alvorecer das palavras.
79
Nunc et semper.