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SUMÁRIO

Foi feito o depósito legal


Ficha catalográíica elaborada pela Associação Brasileira das Editoras
Universitárias (Abeu). Adaptada conforme normas da Edusp.

Machado, Maria Helena Pereira Toledo


Emancipação, Inclusão e Exclusão: Desafios do Passado
e do Presente / Maria Helena Pereira Toledo Machado e
l.ilia Moritz Schwarcz (organizadoras). - São Paulo: Editora
da Uni versidade de São Paulo, 2018.
400 p.; il.; 2515 cm.

Inclui imagens e tabelas.


ISBN 978-85-314-1680-4.

1. Emancipação. 2. Inclusão. 3. Exclusão Social. 4.

Escravi dão -Américas. 5. Racismo. 1. Schwarcz, Lilia


Moritz. li. Titulo.

CDD 326

lltHlilll 11 ,.liVtldON h
1rl11 p 1 11f1n1t1 tlu U11lvmsldudc de Sno Paulo
lhhl 1h1 l'111ç11 tln Jl1•luln, 111y A, C.itludc Universitária
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lllvlHA•J t:um crcln l:Tcl. (11) 30!JH000 / 3091-4150
www .cd u sp.com .br - e-m a il : edusp@usp.br
l'rlntcd in 13razil 2018
11 Apresentação 73 Polícia Militar e Justiça Criminal como Promotoras
de Desigualdades
PARTE 1 LUIZ EDUARDO SOARES
17 A Emancipação e seu Legado nos
Estados Unidos: De Lincoln a 87 Mulatos no Brasil e em Angola: Uma
Obama Abordagem Comparativa, do Século xvuao
ERIC FONER Século XXI
LUIZ FELIPE ALE N CASTRO
31 Raça, Racismo e Psicopatologia: Da
Viena Antissernita à Tim Pós-Direitos 117 Saúde, Segurança, Educação, População Negra: A Ro tina
Civis nos Estados Unidos das Desigualdades como Desafios do Passado e do Presente
SANDER L. GILMAN CYNTHIA GREIVE VEIGA

51 Nem Raça, nem Racismo: O que 131 Escravidão e Bd ucaçiio: Oúrigatoriedadc• Bscofm ·1• <I
Racializar Significa Construção do S1-{ieil0 J\lun.o 11.0 JJrm;ll Oilocwll lsfa
DIDIER FASSIN SURYA AAR ONOVIC H POMBO OI:! UAltHOS ll
DIANA GONÇALVES VlDAL
MULATOS NO BRASIL E EM ANGOLA:
VMA ABORDAGEM COMPARATIVA DO
SÉCULO XVII AO SÉCULO XXI
Luiz Felipe de Alencastro

Para Alfredo Margarido

D
o último quarto do século :>'.V. I até 1850, A ngola e a maioria das
capita nias brasileiras formaram uma rede sul-atlântica costurada por
um co mércio intercolonial que complementava, às vezes
contraditoriam en te,
as trocas com Portugal'. O comércio bilateral e a circulação de mascates,
comer ciantes, milicianos, magistrados, funcionários régios e missionários
estimularam relações entre os enclaves portuguese s nos dois lados do
Atlântico Sul. Como é sabido, 95% dos navios que introduziram africanos nos
portos brasileiro s saíram do Rio de Janeiro, Bahia e Recif e (nesta ordem)• .
Navios d e Lisboa viajando para Angola, e vice-versa, geralmente faziam
escalas em portos brasileiros. Na era da navegação a vela, os portos
brasileiros mencionados eram mais próximos de Luanda, Benguela e da Costa
da Mina do que elos territórios sul-americanos ao norte do cabo ele São Roque
(no llio Grande do Norte), que compunham o esta do do Grão-Pará e
Maranhão. No quadro atlântico, as viagens entre o Brasil e a costa ocidental
africana eram 40% mais curtas do que as rotas emprestadas por

1. A ideia de um sistema sul-atlânt ico a unir as áreas de produção de escravos na


Améri ca portuguesa e as áreas de reprod ução de escravos na África portuguesa não
é nova. Referindo-se principalmente a Angola, Oliveira Martinsafirmou cm lBBo: "A
África [por tuguesa! foi [...] quase até nossos dias, uma dependência do Brasil [...] as
duas colônias [sic] formavam um sistema"(Oliveira Martin s, O Brasil e as Colônias
Portuguesas, Lis boa, Livraria A ntonio Maria Pereira, 1888, pp. v1-v 11). Num texto
mais recente, explico as razões que me levarama considerar a noção de "redes sul-
atlânticas" maisapropria da do que a idei a de "sistema" sul-atlântico (Luiz Felipe de
Alencastro, "lhe Ethiopic Ocean: History and Historiograph y 1600-1975", Portuguese
Lil erary & Cultural Studies, n. 27, 2015, pp. t-79, p. 10).
2. David Eltis, "Dados Geográficos';Trans-Atlantic Slave 'f rade Database, 2010.Disponível
cm:slavevoyages .org/voyage/u nderstanding-db/ mcthodology-10. Acesso em: B set. 2017.
navios negreiros que singravam dos portos das Antilhas e da América do Nor te Mesmo um rápido exame das cifras disponíveis mostra que a população mu
para a África'. lata era também reduzida nos outros enclaves da Ãfrica portuguesa , exceto em
Ventos e correntes forma das pelo anticiclone de Santa Helena geravam Cabo Verde. Do pon to de vista demográfico, a com paração entre os mulatos no
no Atlântico Sul um sistema náutico específico, distinto do Atlântico Norte, e Brasil e em Angola parece sem sentido, tamanha é a desproporção das ci fras em
por isso denominado "Oceano Etiópico" pelos guias marítimos utilizad os ambos os lados do Atlântico Sul.
pelos ingleses e americanos até o início da navegação a vapor. Resta que a mestiçagem afro-luso-brasileira tomou dimensões atlânticas e
Portanto, comparar o Brasil colonial e Angola é juntar duas partes de um tornou-se o fundamento do iusotropicalismo, componenle da ideologia colonial
mes mo espaço social compartilhado por europeus, africanos, portuguesa na segunda melade do século xx, especialmente em Angola. Manuais
afrodt"'Cendentes e, na América do Sul, pelos índios. Ainda assim, é bem escolares, políticos e intelectuais ainda consideram a mestiçagem como um pa
sabido que os assentamentos evoluíram de maneira distintas em cada margem drão constante do colonialismo português na América, na África e na Ásia.
do Atlântico e que a popula ção e o território colonial brasileiros superavam Para entender esses paradoxos é preciso examinai além dos dados demográ
largamente os enclaves portu gueses cm Angola nos séculos XVIII e XIX'. Até ficos, os processos históricos que permeiam a situação dos mulatos. Como se
a década de i970, os mulatos não passaram de 2% da população angolana", ao verá mais adiante, a miscigenação constitui uma condição necessária, mas não
passo que, nos anos 17701 em São Paulo e em Minas Gerais, eles já sufi ciente, para a estratificação da população mulataº.
correspondiam, respectivamente, a i9% e 24% da população colonial e Na América porlugu esa, desde a virada do século xvr, os africanos
provavelmente representavam proporções similares nas capitanias brasileiras aparecem como elementos constitutivos da colonização. Ambrósio Fernandes
mais povoadas 6• Brandão, se nhor de engenho e comerciante com vasto conhecimento do
Apesar da escassez de referências, Gerald Render coletou < anali.sou dados além-mar ibérico, vivendo então na Paraíba, afirmou cm 1618 que o estudo
demográficos que demonstram essas disparidades7 • dos povos e culturas afri canos era essencial para entender o Brasil9• Essa
interpretação não era unívoca. Depois das rebeliões dos negros e mulatos da
3. David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade, tabelas 121e 127, segunda metade do século xvI em São Tomé, que destruíram engenhos na
referentesaos anos i776 -1830, pp. 117 e185. Sobre o espaço geopolítico denomin ado
"Oce ano Etiópico'; ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., 2015, passim.
ilha, o jesuíta Pero Rodrigues - grande conhecedor das redes escravistas sul-
4. Até 1900, apenas um décimo do atual território de Angola era ocupado pelos atlânticas - alertou a Corte para os per igos de um levante similar no Brasil.
portugueses: Luanda, a faixa do rio Cuanza indo de N'dalantando (ex-Salazar) a Em sua visão, a Coroa e os colonizadores deve-
Malange, Bengu ela, Moçamedes (hoje Namibe), Novo Redondo (hoje Sumbe) e alguns
poucos outros lugares.
s. Uados mais recentes mostram a seguinte distribuição racial em Angola: ovimbundu
37%,
kimbundu 25%, bakongo 13%, mestiço (europeus e africanos nativos) 2%, europeu 1% 1

ou
tros n%. CIA Worl<l Factbook, dez. 2010. Disponível em: \Vww.cia.gov/librar y/ Composiçi:o Racial da População ·-

publica tions/<lownload/download-2010/index.html. Acesso em: dez. 2010. Brasileira


Branca Mulata/Mestiça Negra
6. Dauril AJden, "'lhe Population of Brazil in the Late Eighteenth Century: A Preliminary Stu
Ano Número Número%
dy'; The Hispanic American Historical Review, v. 43, n. 2, pp. 173-205, p. 196. Total
% Número % Branca Mulata / Ne Outr
1777 l 581 4043
7. Composição Racial da População Angolana Ano Númer % Parda
Número gra
Númer % as
Índio Total
1845 5770 -- -- o· o s -
1832 0,03 % 0,10% 537H 923 99,9%53986503 1818 100000 27 5000 l3 200000 53 25000 375000
0 "6 00 % 0 9 0 0
4789946 1872 378728 38 418873 42 195454 2 993056
4278200 9 % 7 % 3 0 9
1 1&90 6302 44 593429 41 2 15 143339
198 % 1 % 097126 % 15
1940 26171 63 874436 21 603586 15 24223 4119'133
1 3738010
4145 266
f 778
1950 3202766
%
62
5
137867
%
27
9
569265
-------
%
11
0
32908
- 2
51836
1 % 42 % 7 % 2 142
59 713 56, 33073 31 886736 8, 4163 105818
1980
1
1 4830449
- 405 43 567 % 0 600

5673046
19 9 0,20 31 0,06 47776 99,
00 19 % 12 % 36 7%
19 20 0,48 75 0,18 42500 99, Gerald J. Bender, Angola under the Portuguese: The Myth and the Reality, i992, pp. 20-21;
20 700 % 00 % 00 3% complementado pelo Censo Brasileiro do IIJGE de 1980.
19' 44 1,20 280 0,75 30658 98,
10 083 % 35 % 29 1% 8. Discuti algumas dessas questões em "Géopolitique du Métissage';em "Symposi1m1·;
19 78 1,90 296 0,72 40366 97, Encyclo
50 H26 % 48 % 78 4% pa edia Universalis, Paris, Cebrap, 1984 1 pp. 969-977 e em "Continuidade Histórica do
19 172 3,60 533 1, 4604 95,
10%
60 529 % 92 362 3% Lu so-Brasileirismo'; Novos Estudos Cebrap, n. 32, pp. 77-841 1992.
19 290 5,10 9, Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), Rio de Janeiro,
70 000 %
Dois Mundos, 1943, p. 99.
riam preservar alianças com as comunidades indígenas para se proteger dos Dictionary of Proverbs, 21 out. 2010. Dispo1úvel em:
books.google.com.br/books'id=GtBxCgAAQBAJ&p g
afri canos, seus "principais inimigos" na Am érica portuguesa' º. =PA92. Acesso em: 8 set. 2017.
Definia-se a ambivalência da presença africana no Brasil: os africanos, ne
gros e mulatos eram um elemento constituinte da colonização, mas também uma
ameaça constante aos colonizadores. No meio tempo, o tráfico se intensificou
com 113 mil africanos desembarcados no século XVII e 850 mil no século xv1111•
Desde o final do século XVII, a América portu guesa já contava com cerca de 100 mil
colonos, a maioria mulatos e mestiços12 A • diferença entre a migração africana e
europeia para o Brasil dim inuiu depois da corrida do ouro em Minas Gerais. Mas
voltou a aumentar na primeira metade do século x1x com a intensifi cação do trá
fico negreiro para plantações do café do Centro-Sul.

A reprodução social dos mulatos em Angola e no Brasil


Textos dos séculos XVII e XVIII mostram a diferenciação e a presença
impor tante dos mulatos na América portuguesa. Deportado para a Bahia em
1657-1658, dom Francisco Manuel de Melo ali escreveu um livro que se
perdeu , intitulado Paraíso dos Mulatos, Purgatório dos Brancos e Inferno
dos Negros'3• A citação é uma variante de provérbios sobre a vida social na
Inglaterra e na França, prova velmente conhecidos por dom Francisco,
escritor refinado e homem viajado".

10. O padre Pero Rodrigues foi diretor de missões em Angola (1593) e superior dos j esuítas
no Brasil (1594-1603). Seu relatório para a Coroa data de 1597 (Serafim Leite,
História da Com panhia de Jesus no Brasil 1549-1760, lO vols., Lisboa/Rio de Janeiro,
Livraria Portugália/Ci vilização Brasileira, 1938-1950, vol. li, p. 358). Como explicitei
na tradução atualizada de "O Trato dos Viventes'; a intensificação do comércio negreiro
na segunda metade do sé culo e, sobretudo, nas primeiras décadas do século xvrn, faz
com que a escravidão e tra balho compulsório indígena se tornem secundários na maior
parte da América portugu e sa. Na sequência, as expedições de captura de índiosse
transformam em expedições de extermínio de aldeias que apareciam como um
embaraço à expansão do gado no vale do São Francisco e nas regiões vizinhas. Desse
modo, o tráfico negreiro também teve conse quências devastadoras para as
comunid<>d es indígenas do Brasil (Luiz Felipe de Alencas tro, The Trade in the
Living, Fernand Braudel Center, State University of New York Press, out.2017).
u. Ver Trans-Atlantic Slave Trade Database, out. 2010. Disponível
em:www.slavevoyages.org/ tast/index.faces. Acesso em: 8 set. 2017.
i2. Incluindo 30 mil brancos e 70 mil mulatos e negrose mestiços índios, ver fontes e
discus são em "A pêndice: Estatísticas de 500 Anos de Povoa mento'; Brasil: 500 Anos
de Povoa mento, Rio de Janeiro, IBGE, 2000, p. 22i.
13. Dom f rancisco foi deportado para Salvador em 1657-1658, Edgar Prestage, D.
Francisco Manuel de M elo: Esboço Biográfi co, Coimbra, Imprensa da Universidade,
1914, p. 291.
14. Bonaventure des Periers, Nouvell es Recréations, 1558: "Paris c 'est le paradis desf
emmes, l'enfer des mules, et le purgatoire des solliciteurs" ; J. folorio, Second Fruits, 1591,
"England is theparadise of women, thepurgatory of men, and the hell of horses'; Oxford
Cinquenta anos mais tarde, o provérbio foi retomado e reveladoramente jamais houve outros habitantes que não fossem os que entravam, nem o Estado
com pletado por André João Antonil, que também vivia na Bahia: "O Brasil tirou algum proveito dos que nas ciam, quando era certo que se vivessem em
é o infer no dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e sociedade os mesmos mulatos, casando uns com os outros, teriam [...] formado
mulat.::s"•s. A adição das "mulatas" na citação de Antonil pode muito bem imensas povoações' •
estar ligada ao há bito cultural que inspirou os poemas de cunho erótico
sobre as mulatas da Bah ia, escritos alguns anos antes pelo luso-baiano Na verdade, Sousa Coutinho descreve o sistema de paren tesco
• da maioria
Gregório de Matos'6 Pela pena de dom Francisco e de Antonil, aforismos dos povos ambundos. Quando desapareciam os vínculos com o pai português
britân icos e fra nceses foram adaptados às peculiaridades da sociedade ou lu so-africano da criança, a mãe nativa se mudava com seus filhos para a
escravocrata baiana e brasileira dos séculos xv11 e xvm. aldeia de sua família, assumindo sua cultura africana.Pertencendo a
Ciente da relevância social e demográfica dos mulatos no Brasil, Franci.sco comunidades matri lineares, os filhos viviam com sua família materna na casa
Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola (1764-1772), destacou seu o do irmão de sua mãe.
papel nos planos para estender a colonização e diversificar as atividades econô
micas na Africa Central Ocidental. 15. "O Brasil é o inferno dos negros, o purga tório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mu
Reportando-se à Coroa, ele destacou a falta de [colonizadores] residentes" e latas" André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil (1711), São Paulo, Editeira
Itatiaia, 1902, p. 90.
a "desordem" reinante entre os colonos de Angol a. O motivo de tal desordem 16. Ver por exemplo o poema "Mulatinh as da Bahia. Diversos outros poemasde Gregório
era de Matos traçam uma descrição erótica e ao mesmo tempo degradante das mulatas,
retra tando a misoginia comum a outros poet.:scontemporâneos.Ver João Adolfo
Hansen, A Sá tira e o Engenho, Gregório de Matos e a Bahia do Século xv11, Campinas,
a falta de multiplica ção das gentes, pois ainda tendo [os colonos) filhos das Editora da Uni camp, 2004, pp. 65, 198, 221, 348, 411-422, 499.
ne gras com que viviam [...] logo que morriam os pais,[os filhos] se 17. "Carta de dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho para Francisco Xavier de Mendon
ça Furtado'; Luanda, 24 nov. 1768, doe. 3, em Alfredo de Albuquerque Felner, Angola:
entranhavam pelos sertões seguindo as mães, de que nasce que sendo mais ou
Apon tamentossobre a Colonização dos Planaltos e Litoral do Sul de Angola, Lisboa,
menos povoados aque les[...] países [angolanos] por europeus e brasil eiros, Agência Ge ral das Colônias, 1940, vol. r, pp. 160-162.

7
Em 1759, o governador Antônio Vasconcelos já havia observado que muitos Oprimida e a Terra de Gente Tosta da: Luís Félix da Cruz e o Primeiro Poema
Angolano'; Literatura em Debate, v. 71 pp. 122-
mo radores de Massangano, cidade próxi ma de Luanda, frequentemente se
147, 2013.
muda vam para aldeias africanas. Exagerando, ele afirmava: "Quase do berço
saltam para o mato"'8•
Um lexto mais antigo, um poema escrito em Luanda na s últimas décadas do
século xvn pelo veterano angolista Luís félix da Cruz também descreve a
africani zação dos mulatos na passagem da cultu ra colonial para a cultura nativa,
num pro cesso inverso ao processo de "branqueamento"ocorrendo na América
portuguesa.

Aqui onde o meu desejo


não chega ao seu fim,
porqu e me acho sem mim
quando me busco.
Aqui onde o filho é
fusco e quase negro o
neto,
e todo negro o bisneto,
e tudo escuro·'9

Em outro despacho para a Coroa, Sousa Coutinho se refere à prostitu ição das
escravas. Nota ndo que os filhos das alegadas prostitutas eram vítimas de "des
truição" em idade precoce, ele acrescenta que as crianças mulatas sobreviventes
eram relegadas ao abandono. Para mitigar esses problemas e melhorar o povoa
mento, ele propunha "uma matéria que sempre [...] pareceu muito própria para
a popula ção deste reino (de Angola]:esta é a liberdade geral dos mulatos para
que o Estado os aproveitasse''. Depois da emancipação "dos mulatos, fuscos ou
pardos'; a administração colonial deveria ensinar- lhes vários ofícios. Surgiriam
então "casais industriosos" de mulatos, que diminuiriam a necessidade do aflu
xode colonos metropolitanos, reduzindo assim as despesas da Coroa com o trans-

18. Apud Catarina Madeira Santos, Um Governo "Polido"para Angola: Reconfigurar


Disposi tivos de Domínio (1750-c.1800), tese de PhD, Lisboa, Universidade Nova de
Lisboa, 2005,
p. 187. A questão dos mulatos e os relatóriosde Sousa Coutinho aqui mencionados tam
bém são discutidos na s páginas 187-197.
19. Como já havia sido assinalado, críticos literários e manuais de literatura atribuem
equi vocadamcnte esse poema ao poeta luso-baia no Gregório de Matos (Luiz Felipe
de Alen castro, O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, Séculosxv1 e
xvu, São Paulo, Companhia das Letras,2000, pp. 345-335). Francisco Topa demonstrou
que o autor do poema é Luís Félix da Cruz. Veterano angolista que testemunhou a
ocupação holan desa de Angola e a tomada de Luanda pela expedição de Salvador de
Sá em 1648, Cruz era cunhado do capitão mulato angolista Luís Lopes Sequeira,
vencedor da batalha de Am buíla (1665). Francisco Topa, "Entre a Terra de Gente
porte e o estabelecimento de casais portugueses em Angola 2º.Com os
mesmos argumentos, outro governador de Angola, o barão de Mossamedes, 20. "Carta de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, Governador e Capitão General de
propôs no vam ente em 1784, sem sucesso, a liberdade de lodos os mulatos21 Angola Luanda, 13 set. 1769, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro•
(mGB),
DL61,02.14 [íl46-47].A carta é seguramente endereçada a Francisco Xavier de Mendonça
A análise de Sousa Coutinho vale-se de processos internos e externos Furtado, se cretário de Estado da Marinh a e do Ultramar.
para explicar a atrofia da população mulata. Primeiro, ele aponta a redução 21. Catar ina Madeira Santos, op. cil., 2005, p. 193.
22. O governo de Sousa Coutinho em Angola já foi estudado por muitos historiadores. O
da repro dução social dos mulatos gerada por sua saída dos enclaves portu
tra balho mais recente é de Catarina Madeira Santos, op. cit., 2005. A tese, bastante
gueses e sua africanização nas aldeias nativas. Depois, ele esclarece as comple ta, subestima, entretanto, a determinada atividade de Sousa Coutinho para
razões que inibiam a reprodução dos mulatos no interior dos núcleos desenvolver o tráfico de escravos, principal fonte das rendas da Coroa em Angola.Na
medida em que Catarina Madeira Santos não analisa os números do tráfico angolano,
coloniais. ela deixa de lado uma questão central. Nos anos 1766-1770, em pleno governo Sousa
Sousa Coutinho era pragm ático o bastante para também estimular a vinda Coutinho, as exporta ções de escravos da África Ocidental (em sua maior parte
embarcados nos portos angola nos) subiram 19%, alcançando sua maior cifra
de colonos da Madeira e iniciar novas atividades econômicas em Angola. O
quinquenal desde a chegada dos portugue ses. Em colaboração com a Companhia de
fra casso desses experimentos foi analisado por vários autores e não será Pernambuco e da Paraíba, outra emprnitada pombalin a, Sousa Coutinho aprimorou as
discutido aqui22• Entretanto, seus planos frustrados de governo lançam luz sobre condições (estoques de alimentos para navios negreiros, regulação do comércio no
interior) que permitiram o pico histórico de 152 mil africanos deportados nesse
os obstá culosque a predominância do tráfico atlântico criava ao domínio período, cifra apenas superada em 17131-J785, quando a expor tação agrícola brasileira
português e so bre as circunstâncias adversas à reprodução social dos mulatos. volta a crescer. Uma pesquisa ainda a ser feita deveria focalizar a combinação
Linda Heywood e Roquinaldo Ferreira enfatizaram o papel que os mulatos aparentemente paradoxa l que caracterizou o governo Sousa Coutinho: cul to ao
Jluminismo e eficácia no comércio negreiro.
desempenharam em Angola 23• Apesar disso, ambos subestimam os embaraços 23. Linda Heywood, "Porn1guese into African: The Eightcenth -Century Central African Back
que travavam a estra tificação social dos mulatos, não obstante a existência ground to Atlantic Creole Cultures'; em Linda Heywood (org.), Central Africans and Cul
tural Transformations in the American Diaspora, Cambridge, Cambridge University Press,
mais ou menos generali zada da miscigenação. Ferreira faz referência aos 2002, pp. 92-96. Roquinaldo Ferreira, Transforming Atlantic Slaving: Trade, Wa1fare a11d
registros de batismo da paró quia dos Remédios, em Luanda, que mostram um Territorial Contrai in Angola, 1650-1800, Tese de Ph.D., Los Angeles, University of Califor
grande número de crianças de nia, 2003, pp.159-171.
oitenta casais de mulatos do Rio de Janeiro a fim de estabelecê-los como colonos, op.
cit.,
pais portugueses e mães africanas24. Poder-se-ia acrescentar que as crianças mu
2002, p. 97.
latas deviam ser também mais numerosas na generalidade dos núcleos coloniais,
dado que muitos brancos e mulatos tinham várias mulheres africanas25. Ainda
assim, a cultura matrilinear ambundo reduzia a significação estatística e social
das uniões inter-raciais. Como foi observado, parte da progênie mestiça desses
casais, muitas vezes ilegítima, se arraigava à cultura materna e se africanizava26.
Cabe lembrar que as aldeias nativas tributárias dos portugueses, tais corno os
ambundos próximos de Luanda e Massangano, assim como os ganguelas e os
ovim bundos vizinhos de Benguela, estavam relativamente ao abrigo da
violência ne greira que cativava e trazia comunidades do interior África Central
Ocidental para o tráfico atlântico.
Europeus e africanos interagiram em graus diversos na África subsaariana,
dando lugar a formas diferenciadas de crioulização cultural. Contudo, neste texto
nos concentramos na miscigenação e na evolução da população mulata em
Angola. Note-se que a chegada regular de mulatos de São Tomé e do Brasil em
Luanda e, principalmente, em Benguela, além dos pedidos das autoridades
locais solicitan do a vinda de mais mulatos, sugerem que o fraco crescimento do
contingente lu so-angolano frustrava as expectativas de utilizá-los como uma
camada interme diária para facilitar a dominação dos nativos".
Em 1800, governadores de Angola e Benguela voltaram a requisitar
mulatos livres do Brasil para colonizar a região. Linda Heywood menciona
que o gover nador de Benguela especificou que o grupo de mulatos devia ser
formado por• oi tenta casais26 Confirma-se que, a exemplo das famílias vindas
das ilhas ou da me-

24. A situação dos mulatos no Brasil eem Angola também é discutida por Rafael de Bivar
Mar quese, "A Dinâmica da Escravidão no Brasil: Resistência, Tráfico Negreiro e
Alforrias, Sé culos xvJI a xrx'; Novos Estudos: Cebrap, v.74, pp.107-123, 2006, e Flávio
Gomese Roquinal do Ferreira, "A Miragem da Miscigenação';Novos Estudos: Cebrap, v.
80, pp. 141-160, 2008.
25. Jill Dias afirma que a poligamia foi comum entre os colonizadores até o fim do século x1x,
Jill Dias, "Angola'; em Valetim Alexandre e Jill Dias (orgs.), O Império African o 1825-
1890, Lisboa, Estampa, 1998, p. 511, Nova História da Expansão Portuguesa, v. x.
26. Analisando o comércio imbangala e tchokwe em Angola durante o século X IX, Isabel
de Castro Henriques escreve que, em casais mestiços, mesmo quando brancos
secasam com mulheres africanas, exceto pela presença do pai, os filhos dos mulatos
são "inteiramente confiados à sua maternidade africana" (Isabel de Castro Henriques,
Commerce et change ment en Angola au XIx' siecle, Imbangala et tshokwejace à la
modernité, 2 vols., Paris, I:Harmatt an, 1995, v.2, p. 33).
27. Roquinaldo Ferreira indica que a maioria dos exilados políticos ecriminais (degredados)
deportados do Brasil para Angola no século XVJII eram mulatos, op. cit., 2003, p.
165.So bre os mulatos brasileiros em Benguela, José C. Curto, '.Americanos' in Angola:
The Brazi lian Community inBenguela, c. 1722-1832, texto não publicado, 2003.
28. Linda Heywood cita um apelo urgente, em i8oo, do governador de Benguela solicitando
trópole, os mulatos são-tomens es e brasileiros também contribuíam para contra Palmares, uma ordem régia de 1699 eximia de pu nição os colonos e
dar consistência ao domínio colonial. Resta que a inserção dos mulatos seus empregados que matassem qualquer quilombola. Indo mais longe na
brasileiros conheceu percalços e sua estraneidade persistiu em Angola. repressão aos quilombolas, um decreto régio prescreveu em 1741 que lugares e
Assim, depois de 1822, quando notícias sobre a Independência chegaram moradas contando cinco escravo!; fugidos já deviam ser considera dos
nos portos negreiros por quilombos, e portanto, concentração de criminosos, nos termos da lei3º.
tugueses, mulatos foram denunciados em Benguela e Moçambique como Na circunstância, uma família de negros ou mulatos livres vivendo fora
sepa das cidades ou das fazendas, incluindo o pai, a mãe e três filhos, podia ter
ratistas e conspiradores pró-brasileiros 29. seus mem bros livremente assassinados ou aprisionados para serem vendidos
A medida que os enclaves coloniais se expand iam na América portuguesa , como escra vos. Salvo se pudessem provar seu estatuto de pessoa s
o contraste entre a situação dos mulatos do dois lados do Atlântico Sul se
alforriadas ou livres. Tais práticas repressivas ameaçavam indivíduos e
acen tuou. Com a exploração do ouro, o tráfico de escravos e a escravidão
famílias afrodescendentes vivendo isoladamente, sem contato com os núcleos
africana se disseminaram pelo interior. Todavia, o crescimento das áreas de
coloniais.Por causa disso, negros e mulatos livres viam-se na contingência de
minas de ouro e diamante ampliou a escravidão urbana e gerou novos
viver na proximidade dos colonos, en tretendo relações com antigos senhores
impasses. Na sua grande maioria, os reinóis que se deslocavam para as zonas
ou com instituições cristãs (irmandades, paróquias) aptas a atestar que eles e
de mineração desconheciam as práticas escravistas e a cultura afro-bra sileira.
seus descendentes não eram escravos fugi dos. Permanecendo na vizinhança
Confrontados à gestão de escra vos e de negros e mulatos livres empregados
ou no interior das fazendas e cidades, empre-
nas cidades e nos campos, os senho res neófitos enfrentavam d ificu ldades e
resistências. Daí a ampliação das leis e práticas de controle das fugas e
29. Ofício de dezembro de 1824, de João Manuel da Silva, governador de Moçam bique,
rebeliões de escravos. Capitães do mato encarre gados de capturar os escravos para Manuel Gonçalves de Miranda, Instituto Histório e Geográfico Brasileiro, Does.
fugidos e de atacar quilombolas, ativos desde as primeiras décadas do século África/ Moçambique, DL88,04.26.oi., Roquinaldo Fer reira, op. cit., 2003, p. 171, nota
102
XVII na Bahia e em Pernambuco, tiveram seu regi mento geral para a América
30. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil: Ensaio Jurídico, Histórico, Social [1866],
portuguesa publicado pela Coroa em i724. Emitida logo depois da guerra Petró polis, Editora Vozes, 1976,2 vols., vol. 1, pp. 50-51.
gados de maneira coercitiva ou remunerada, negros e mulatos livres e libertos 35. Herbert S. Klein e Francisco Vida! Luna, Slavery inBrazil, Nova York, Cambridge
Univer sity Press, 2010, pp. 263, 276.
densificavam a mestiçagem e a estratificação social dos mulatos. 36. Desde o livro pioneiro de Fritz Teixeira Salles (Associações Religiosas no Ciclodo Ouro: In
Consequentemen te, somando-se à miscigenação, a reprodução social dos trodução ao Estudo do Comportamento Social das Irmandad es de Minas no Século xv111,
mulatos aparece como o resultado da coerção racial engendrada pelo Belo Horizonte, Editora UFMG, 1963), as conexões das irmandades com a escravidão e a
cultura afro-brasileira têm sido estudadas extensivamente. Ver, por exemplo, Mariza de
escravismo luso-brasileiro. Carvalho Soares, Devotos da Cor:Identidade Étnica, Religiosidad e e Escravidão no Rio de
Leis e práticas racistas permeavam a sociedade colonial brasileira e a ima
gem dos mulatos na literatura e em narrativas históricas é quase sempre pejora
riva3'. Todavia, apesar ou por causa da arbitrariedade imposta a suas vidas, os
mu latos pareciam viver em condições relativamente melhores do que as dos
pretos e africanos escravizados32• Segundo oscálculos de Stuart Schwartz, os
mulatos representavam apenas 10% da população escrava da Bahia no período
i648-1745, mas recebiam 45% das alforrias. Da mesma forma, os mulatos eram
menos de 6% dos escravos registrados nos engenhos de açúcar analisados no
mesmo período, mas detinham 20% dos trabalhos domésticos e
qualificados.Contrariamente aos escravos negros, que trabalhavam
principalmente nas plantações de cana-de
-açúcar33. Pesqui sas de Klein e Luna sobre Minas Gerais e São Paulo
referentes ao período 1150-1850 encontraram a mesma tendência favorecendo
os mulatoS34 • Seu livro mais recente confirma esse padrão, demonstrando a
maior coesão so cial dos mulatos, dado que suas taxas de matrimônio eram
superiores às• dos ne gros livres35
Em resumo, ao inverso do que ocorria em Angola, as condições sociais no
en
torno dos enclaves luso-brasileiros eram mais adversas aos mulatos livres e
al forriados, enquanto a situação no interior dos povoados coloniais era-lhes
mais favorável.
Vários historiadores demonstraram a importância das irmandades
católicas,
mais especificamente as de Nossa Senhora do Rosário, na americanização
dos africanos e seusdescendentes36• Observe-se que no século XVI e início do
século

31. Para uma análise dos textosde 1633 a 1824, ver Raimundo Agnelo Soares Pessoa,
Gentesem Sorte: Os Mulatos no Brasil Colonial, Tese de doutorado, Franca,
Universidade Estadual Paulista, 2007.
32. Como afirma March Bloch, "a arbitrariedade é um elemento essencial da noção de
escra
vidão (March Bloch, La sociétéf éodale, Paris, Albin Michel, 1982, p. 245).
33. Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia i550-
1835, Londres, Cambridge University Press, 1985, pp. 137 e 278.
34. Herbert S.Klein e Francisco Vidai Luna, Slave1y and the Economy of São Paulo 1750-
1850,
Stanford, Stanford University Press, 2003, pp. 165-167.
xvH. mission ários ensinavam no Brasil o culto de Sumé, epítome indígena de Controvérsias sobre a aplicação da Lei Suntuária de 1749, cujo capítulo g ne
são Tomé que supostamente havia vivido com os índios do litoral antes da gava às pessoas de cor livres e libertas o direito de usar vestimentas de seda ou
chegada dos europeus. Porém, a tentativa missionária devincular o santoral joia s, sublinharam o destaque social eeconômico dos mulatos do Brasil.
católico da cultura ind ígena - frutuosa na maior parte da América hispânica Criticando a legislação, os negociantes de Lisboa argumentaram contra uma
-, não obteve resultados no Brasil37• Com particu lar apelo religioso nas medida que os privava de um importante contingente de consumidores. "Na
comunidades afro-bra sileiras, surgiu mais tarde o culto a são Benedito, um república da América [portuguesa] são os mulatos os que constituem o maior
santo negro algumas vezes representado como um angolano nativo da região corpo e parece que esta inferior condição com que nasceram não os deve
de Quiçama 36• privar do crédito e estimação de que se fazem credores na república donde
No final dascontas, Nossa Senhora Aparecida, versão afro-brasileira de eles constituem maior corpo"39•
Nossa Senhora da Imaculada Conceição, muito cultuada no Portugal
bragantino, se tor nou o principal culto católico no Brasil. Como é sabido, a Jan eiro, Século ;.v. m, Rio de Janeiro, 2000; Mary Karash, "Construindo Comunidad es,
as lr mandades de Precos e Pardos no Brasil Colonial e Goiás'; trabalho apresentado na
imagem da santa foi encontrada no início do século xvm no rio Paraíba, entre confe rência American Counterpoint: New Approaches to Slavery and Abolition in
o Rio de Janeiro e Minas Gerais, bem no meio da rota trilhada por milhares de Brazil, Gilder Lehrman Center, Yale University, out. 2010.
37. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil isoo-1627, 7. ed., São Paulo, Itatiaia, 1982, p.
africanos e negros escravi zados. O culto brasileiro à padroeira negra
112; Simão deVasconcelos, Crónica da Companhia de Jesus, 2 v., Petrópolis, 1977, vol. 1,
contrasta com os cultos de países la tino-americanos com uma história pp. 83, 123-124.
colonial distinta, onde a santa medianeira as sumiu feições indígenas. É o caso 38. An tônio de Oliveira de Cadornega, História Geral das Guerras Angolanas (1681), 3 v., Lis
boa, Agência Geral do Ultramar, v. 3, p. 27. Sobre o culto de São Benedito no Brasil,
no México, com a Virgem de Gu.adalupe, no Equador, com Nossa Senhora de
Julita Scarano, Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Gualupe, no Peru e na Bolívia,com Nossa Senhora de Copacabana, na Pretos no Distrito Diamantino no séculoxv111, 2. ed., São Paulo, 1978, pp. 38-39.
Argentina, com a Virgem Santa de Luján, e no Paraguai, com Nossa Senhora 39. "Representação da Mesa do Bem Comum de Lisboa contra a Pragmática de 1749';
apud fris Kantor, Pacto Festivoem Minas Colonial: A Entrada 1iiunfal do Primeiro Bispo
de Caacupe. Em última instância, o culto de Nossa Senhora Apa recida na Sé deMa riana, 1748, Dissertação de mestrado, São Paulo, Universidade de São
endossa o mulato, e não o mestiço indígena, como o elemento central do Paulo, 1996, p.113.
povoamento colonial no Brasil.
Cedendo à reclamação dos comerciantes lisboetas, a Coroa revogou a proibição 42. Fréderic Mauro considerou Ferdinand Denis o primeiro brasilian ista francês, Ferdinand Denis,
Histoire et descriptiondu Brésil, Paris, Didot Freres, l839, p. 147; Gilberto Freyre, So· brados e
algumas semanas mais tarde•º. Mucambos, São Paulo, Global, 2006, capítulo u: "Ascensão do Bacharel e do Mu· lato'; p. 727.
Decerto, restrições contra os mulatos persistiram . ivlas sua situação 43. André Pinto de Sousa DiasTeixeira, A Ilha de São Nicolau de Cabo Verde nos Séculos XV a
XVIll, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2004, pp. 159-180.
social muitas vezes facilitava seu caminho rumo ao "branqu eamento''. A
metamorfose é descrita na conhecida citação de do inglês Henry Koster,
comerciante e senhor de engenho em Pernambuco no início do século xrx:
"Conversando nu ma oca sião com um homem de cor que estava ao meu
serviço, perguntei-lhe se certo ca pitão-mor era mulato. Respondeu -me: 'Era,
porém já não é!'. E como lhe pedisse explicação, concluiu: 'Pois senhor,
• um
capitão-mor pode ser mulato?"'41 Destacada pela primeira vez por Ferdinand
Denis em 1839, retomada em seguida por vários autores, e especialmente por
Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (1936), no capítulo essencial em
que estuda a ascensão dos mulatos no século x1x, a cita ção se tornou uma
ilustração emblemática da classificação racial brasileira, mais baseada na
situação social do que na aparência física. Reiteradament e mencio nada, a
citação se tornou autoexplicativa, obnubilando a complexidade da con dição
dos mulatos no Brasil42•
No outro lado do mar, Cabo Verde e, em menor grau, São Tomé ilustram
o pa pel decisivo do tráfico negreiro e da dessocialização dos africanos na
formação de uma comunidade de mulatos. Africanos foram regularmente
trazidos dos por tos subsaarianos para os dois arquipélagos, primeiro como
escravos e mais tarde como trabalhadores. Seu desenraizamento e a prática
de uma coerção escravis ta similar à que existia no Brasil criaram nas duas
ilhas condições para o surgi mento de um contingente de mulatos mais
significativo do que o de Angola.
Em Cabo Verde, o primeiro Censo, datado de 1731, mostrou uma
distribuição racial que perdurou nas décadas seguintes: um número
significativo de mulatos, seguido pelo contingente de negros e por um
pequeno número de "brancos da terra'; definidos mais propriam ente como•
"mulatos" por um oficial régio em 1800•3 A proporção mais el evada de
mulatos em Cabo Verde em comparação com São Tomé resultou de vários
fatores, como pesquisas científicas recentes demonstra-

40. Alvará Porque V. M. Haporbem ... Ordenar que por Hora não Tenha Efeito o Cap0 9 da
Pragmatica de 24 de Mayo a Respeito dos Negros, emulatos das Conquistas, Lisboa, 20
set. l749, Arquivo da Universidade de Coimbra, Colecção Conde dos Arcos, v. 9, [347V]
n. 420.
4l. Henry Kostcr, Travels in Brazil, 2 vols., Londres, Longman, Hurst, Rees, Orme &
Brown,
18l7, v. 2, pp. 209-2l0.
ram". Na verdade, em São Tomé predominava uma economia há língua crioula. Mas o português angolano é muito mais marcado que o
açucareira escra vista que importou 100 mil africanos. Mas a português bra sileiro pela fonética e a sintaxe do português europeu.
malária e a febre amarela, endêmi cas na região, restringiam a Fortemente influenciada pela imigração colonial posterior à Segunda Guerra
presença de colonos. Situação diversa existia em Cabo verde, onde Mundial, a língua portugue sa de Angola se tornou uma língua
o ambiente epidemiológico era menos hostil aos portugueses e verdadeiramente nacional na sequência do crescimento exponencia l de
para onde foram deportados apenas 25 mil escravos africanos•5• Luanda durante a guerra civil do último quartel do século XX47• Em certa
Em Cabo Verde medrou uma língua crioula, hoje considerada medida, a dualidade que separa o português angolano - lín gua oficial do país
o idioma na cional, além do português - a língua oficial. - e as línguas nativas com estatuto de línguas nacionais (um bumdo,
Contrastando com essa evolução, no Brasil, afora os sistemas quimbundo, kikongo, côkwe, nganguela e o ukwanyama) reflete a atro fia da
lexicais formados pelos quilombolas e seus descenden tes ou população mulata angolana.
pelos cultos religiosos afro-brasileiros (língua de santo), não há
uma lin guagem crioula. Yeda Pessoa de Castro, referência
obrigatória nos estudos et nolinguistas afro-brasileiros, considera
44. O Censo de 1950 registrou apenas 7% de mulatosem São Tomé. Pesquisas recentes
q ue a proximidade entre o português arcaico dos séculos xvr-xvm mos tram que parte deles veio de outras regiões da África {GilTomas et ai., "The
e as línguas bantos fusionou os dialetos crioulos em um português Peopling of Sao Tome (Gulf of Guinea): Origins of Slave Settlers and Adrnixture with
the Portuguese'; Human Biology, v. 74, n. 3, pp. 397-411, 2002.
mestiço que hoje diferencia o português brasileiro do português 45. Maria Jesus Trovoada et ai., "Insights from Patlern of mtDNA Varíation into the
europeu•6• Genetic History of São Tomé e Príncipe'; Intemational Congress Series, v. i26l, pp. 377-
379, 2004; Rita Gonçalves,Helder Spinola e António Brehm, "Y-Chromosome Lineages
Desse modo, a evolução linguística no Brasil unificou a
in São Tomé e Príncipe and Cabo Verde Islands: Different Input of European
linguagem territorial, desfazendo dialetos de base africana e Influence';Forensic Science Interna tional: Genetics Supplement
1
Series, v. 1, n. 1, pp. 2w-
tornando as comunidades afro-brasilei ras permeáveis ao padrão 211 2008.
46. Yeda Pessoa de Castro, Falares Africanos na Bahia, Rio de Janeiro, Academia
cultural e racial dominante. Tal processo cultural favo receu a Brasileira de Letras/Topbooks, 2005, pp. 117-120.
reprod ução social dos mulatos. Como no Brasil, em Angola não 47. Gerald J. Bender mostra que apenas 28% dos colonos portugueses que viviam em
Angola em 1970 tinha m nascido na colônia, op. cit., 1992, p. 227.
Mulatos no Brasil e em Angola no Século x1x Alencastro, "Prolétaires et Esclaves: immigrés portugais et captifs africains à Rio de
Janeiro 1850-1872'; Cahiers du CRIAR, n. 4, pp. 119-1561 1984.
Depois da Independência, a Constituição de i824 introduziu um
sufrágio censitário de dois graus. Qualquer cidadão do sexo masculino de
mais de 25 anos - incluindo analfabetos - com 100 milréis de renda anual
poderia votar como eleitor de primeiro grau - o votante -, elegendo
eleitores de segundo grau - os eleitores. Com uma renda anual míni ma de
200 mil réis, esses eleitores escolhiam os ti tulares dos postos eletivos na
esferas municipal, provincial e nacional. Mesmo atendendo a esses
requisitos, homens forros não podiam ser eleitores de egun do grau.
Porém, a escassez de indivíduos brancos habilitados a se qualificar como
vo tantes para escolher os eleitores de segundo grau (cada um destes
precisava do voto de trinta votantes) induziu uma interpretação mais liberal
das regras relati vas aos votanteS46 • Assim, desde que cumprissem as
exigências legais, negros e mulatos livres e alforriados podiam se qualificar
como eleitores de primeiro grau ou votantes. Na circunstância, negros e
mulatos livres e forros dispuseram no Brasil novencentista de um estatuto
político mais avançado do que nos Estados Unidos•9• Acresce que,
diferentemente dos estados sulistas americanas, os negros e mulatos - exceto
no Rio de Janeiro - não sofreram a competição de imigrantes europeus no
mercado de trabalho dos centros urbanos até o final do século XIX5º.

48. Pela mesma razão, fazendeiros e senhoresde engenho permitiam que trabalhadores
ar rendatários -agregados e moradores - residissem e usassem lotes de terra de
suas prn priedades. Sobre esses agregados, Richard Graham escreve:"[...] podemos
concluir ra zoavelmente que a maioria dos agregados eram negros ou mulatos.
Fora das poucas cidades brasileiras, oseleitores do primeiro estágio do processo
eleitoral eram em geral agregados", Richard Graham, "Pree Africans Brazilians
and the State in Slavery Times", em Michael Hanchard, Racial Politics in
Contemporary Brazil, Durham, Duke Univer sity Press, 1999, p. 38.
49. Negros livres e alforriados tinham seu direito de voto amplamente negado nos Estados
Unidos antes da abolição. Como observam Engerman e Sokoloff, no começo da Guerra
Civil, apenas o estado de "Nova York (onde a exigência da propriedade de 250 dólares
apli cava-se somente a eles) e cinco estadosda Nova Inglaterra (onde indivíduos de
ascendên cia africana eram excepcionalmente raros) tinham estendido o direito de voto
aos negros''. Na década de 1890 e na prim eira década do século xx, taxas para votar e
testes de alfabe tização foram instituídos nos estados do Sul com o objetivo de
restringir o sufrágio dos afro-americanos. Analisando os países latino-americanos, os
autores não mencionam en tretanto o direito devoto aos negros livres e alforriados no
Brasil do século XIX,Stanley L. Engerman e Kenneth L. Sokoloff , "The Evolution of
Suffrage Institutions in the New World'; The foumal of Economic History, v.651 pp. 891-
9211 2005.
50. No Rio de Janeiro, cidade mais importante da América do Sul, com 260 mil
habitantes em 18501 os imigrantes portugueses ocuparam progressivamente
empregos antes ocupados por escravos e homens de cor livres. Luiz Felipe de
No cenário atlântico, considere-se que Independência também teve com o fim do tráfico legal de es cravos (1831), abrindo perspectivas econômicas
reper cussões na política colonial de Portugal. Confrontado à crescente pressão para os colonos da África52 Ao longo do século XIX, o escravismo brasileiro
britâ nica contra o tráfico de escravos e à perda da América portuguesa, Sá da constituiu uma referência para as re lações de trabalho na África oitocentista
Bandeira, primei ro-ministro po11uguês, propõe em 1836 uma mudança portuguesa.!)estacando os efeitos da dessocialização dos africanos deportados
profunda na políti ca colonial africana. No decreto desse mesmo ano que para o Brasil após serem pelo tráfico atlântico, o governador de Angola,
aboliu o tráfico atlântico de escravos, ele afirma: "A Índia, primeiro, depois o Calheiro e Menezes (1861-1862), propôs a de portação de nativos de Angola para
Brasil fez-nos deixar a África, nosso mais natural campo de trabalhos''. Em Moçambique e vice-versa, com o fito de os submeter mais facilmente o trabalho
vez de serem vendidos no exteri01 os africanos deveriam ser utilizad os nos compulsório em ambas as colônias53•
territórios da África portuguesa. Na sua interpretação, diante da alta do preço No meio tempo, por volta de 1850, houve um crescimento da população
dos escravos subsequente ao fim do tráfi co negreiro, decretado no Brasil em mu lata em Luanda, como demonstrou José Curto.Atraídos pelos empregos
1831, os fazendeiros brasileiros perderiam mercados para os produtos tropicais criados após o fim do tráfico de escravos para o Brasil e pelo aumento das
cultivados nas colônias portuguesas. Nessa perspectiva, ele entend ia que a exportações para a Europa, mulatos se deslocaram do interior para a capital da
Coroa deveria acentuar a colonização de seus ter ritórios africanos5 . colônia.Contudo '
Tais ideias eram endossadas por vários líderes políticos e autoridades
colo niais lusitanas. Outro reformador da política colonial portuguesa, 51. Relatório do Governador Geral da Província deAngola, Sebastião Lopes de Calheiros e Me
Sebastião Xavier Botelho, ex-desembargador no Rio de Janeiro, inspirado por nezes, Lisboa, Imprensa Nacional, 18671 pp. 364-365.
52. Sebastião Xavie r Botelho viveu no Brasil na década de 1810 e era desembargador no
seu conhecimento do escravismo brasileiro, sugeriu uma proteção gradual para Rio de Janeiro. Mais tarde, ele foi, sucessivamente, capitã o-geral de Angola e de
os escravos nascidos nas propriedades dos colonos (ditos "escravos crioulos") Moçambiqu e, Escravatura, Benefícios que Podem Provir às Nossas Possessões d'África
para extinguir progres sivamente a escravidão e reforçar a presença portuguesa da Proibição da quele Tráfico, Lisboa, José B. Morando, 1840, pp. 30-35, 40.
53. "Carta ao ministro do Ultramar'; Luanda, 31 jan . 18621 Relatório do Governador
em Angola e Moçambique, que ele havia sucessivamente governado. Como Sá Geral da Província de Angola, Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, op. cit., 18671
da Bandeira, Botelho acredi tava que as exportações brasileiras declinariam pp. 82-87.

não houve nenhuma medida ou projeto das autoridades coloniais para lhes 55. Alexandre Herculano, Opús culos 11. Lisboa, Presença, 1983, p.69.Cerca de 233 mil
portu· gueses (incluindo aqueles de Açores e Madeira) desembarcaram no Rio de Janeiro
ou torgar privil égios5•. entre 1844 a 1878, um número que apenasseria alcançado em Angola um século
Rompendo a matriz espacial colonial que havia predominado no Atlântico depois.Ver Luiz Felipede Al encastro, op . cit., 1984.
Sul durante três séculos, o fim do tráfico n egreiro gerou reformas e transforma
ções em Angola, em Portugal e no Brasil. A emigração crescente de colonos
por tugueses em direção ao Brasil, sobretudo para o Rio de Janeiro, abriu um
impor tante debate em Lisboa: o governo deveria deixar seus cidadãos
emigrarem para o Rio de Janeiro ou deveria canalizá-los para Luanda? O
assunto foi discutido no Conselho Ultramarino em vários momentos. Em ias2,
os consel heiros propu se ram o redirecionamento para as colônias africanas
da emigração portuguesa que se dirigia para a Guiana Britânica (Demerara) e
para o Brasil.
Sucede que as remessas de divisas efetuadas pelos imigrantes portugueses
estabelecidos no Rio de Janeiro e em outras regiões brasileiras proporcionavam
benefícios financeiros consideráveis para Portugal e para as famílias dos
imigran tes.Portanto, a nova política de estímulo à colonização da África
entrava cm con flito com interesses econômicos em Lisboa e especialmente rto
Porto, de onde a maior parte dos imigrantes embarcava rumo ao Brasil.
Levando em conta a im portância dessasremessas financeiras, Alexandre
Herculano, que se interessou pelo tema durante anos e cuja opinião era infl
uente em Lisboa, considerou a emi gração para o Brasil mais lucrativa para
Portugal que o envio de colonos para a África. Numa fórmula que seu tornou
célebre, ele resumiu em dezembro de 1873: "A nossa melhor colônia é o Brasil,
depois que deixou de ser colônia nossa"ss. Outro empecilho ao
redirecionamento da emigração para as colônias africanas residia nos custos
elevados da transferência e assentamento de colonosde Portugal continental,
dos Açores e da Madeira em Angola e Moçambique.
Não era a primeira vez que o Brasil entravava a colonização em Angola.
Em 1655, respondendo a reiteradas instru ções da Coroa de que algodão e
açúcar de viam ser cultivados em terras angolanas, "assim como é feito no
Brasil';o conse lho municipal de Luanda explicou que os custos de produção
em Angola e, aci ma de tudo, o fluxo do tráfico bilateral su l-atlântico
inviabilizavam o esquema

54. José C.Curto, "The Anatomy of a Demographic Explosion:Lu anda, 1844 -1850';
The lnter nationalf ournal of African Historical Studies, v.32, n.2/3, pp. 381-405, 1999.
Na verdade, a popu lação mulata de Luanda decrescera durante asprimeiras décadas do
século XIX,ver José C. Curto e Raymond R. Gervais, "The Population History of
Luanda during lhe Late Atlantic Slave Trade, 1781-1844';African Economic History,
n.29, pp.1-59, 2001.
56
econômiC0 Dois séculos mais tarde, o projeto de criar "um novo
Brasil" em Angola, defendido por Sá da Bandeira e endossado por 56. A Câmara de- Luanda explicou que o empreendimento encontrava dificuldades locais
autoridades que preten diam enviar colonos à África, foi mais uma vez (fal ta delenha ea má qualidade da cana-de-açúcar africana).Além disso, dadasas
rotascomer ciais da área, com pouco transporte direto para Lisboa e um alto nível de
frustrado pelo Brasil, que atraía a maior parte dos emigrantes atividade no tráfi co escravista para o Brasil, o algodão eo açúcar
portugu esess1• eventualmenteproduzidos em Angola teriam ueparar em poosbrasileiros
antesdeseguirem para Portu&al. Oscustos do transporte fa nm os ben a1colas
Outro intelectual e líder político, Andrade Corvo - tido por Calvet de
angolanos chegarem a Lisboa a um preço mais alto do que seus si
Magalhães corno "um dos mais notáveis estadistas portugueses" e por milare brasile1r s.co_nsulta do Conselho Ultramarino, 21jun. 1655, AHU, Angola, caixa 6/IB.
Valentim Alexandre como o principal reformador colonial de seu tempo - 57. º.destm.o da em1graçao portuguesa para o Brasil, outros países ou para An gola e Moçam
bique foi um tema recorrente, discutido por mais de um século, atéi950. Exceto nos anos
também formulou um a análise global do ultramar. Em 1875, como de 193-1945, em pl ena Seg1111da Guerra Mun d i al, os portugu eses que emigraram
ministro do Exterior e do Ultramar, ele apresentou seus projetos no para 0 eenor sempre xcederam osque sedirigiram às colônias. Ver Claudia Castelo,A
Parlamento de Lisboass. Migra çao de Metropolitanos pa ra Angola e Moçambique 1945-1974, vm Congresso
Luso-Afro
Num período de acirrada concorrência colonial europeia na África, ele ·Brasileiro de Ciências Sociais, set. 2004, Coimbra, 30 out. 2010. Disponível em:
enfa tizou a necessidade de formar tropas nativas para assegurar a defesa www".ces. u c.pt/la 2004/pdfs/ClaudiaCastelo.pdf. Acesso em:8 set. 2017.Cláudia
Castelo, Passagens
do territó rio angolano. De modo mais geral, And rade Corvo via Angola a para Áfri ca: O Povoamento deAngola e M oçambique com Naturais da Metrópole192o-1974,
partir da dicoto mia colonizadores/colonizados, portugueses/africanos, Porto, Afrontamento, 2007.
58. João de Anr de Corvo (1824-1890), min istro do Exterior de Portu gal entre 1871e
sem levar em conta 0 1878, foi também mm 1stro do Ultra mar entre 1872 e 1877, Escritor e reformador
papel dos mulatos ou da cultura luso-africana.Numa declaração rara em seu político importan te, And rade Corvo é um autor que merece ser mais bem
tem conhecido.Ver José Calvet de Ma galhães, "Portugal e Inglaterra: De D. Pernando ao
po e digna de nota, ele defende uma política não racista na África, e Mapa Cor-de-rosa (n)';Janus, 1999-
2000, 10dez. 2010. Disponível em:\'VW\V.janusonline.pt/arqtúvo/1999_2000/1999_2000_1_25.
osvalores da Liberdade e Justiça que transformariam os angolanos em uma html. Acesso em:8 set.2017; Valentim Alexandre, "A Questão Colonial no Portugal
"parte integral" da nação portuguesa. Todavia, como outros autores de seu Oito centista';em Joel Serrão e A. H.de Oliveira Marqu es, Nova História da
Expan são Portu guesa, v.x, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pp. 101-108.
tempo, Andrade Corvo não considerava as uniões inter-raciais, a
59. Relatórios do Ministro e Secretário d 'Estado dos N!!gócios da Marinha e do
miscigenação ou a ascensão dos mula tos em Angola como componentes Ultramar, Lis boa, Imprensa Nacional, 1875, pp.64 e 174-183.
constitutivos da colonizaçãos9.
O exame da política ultramarina à luz da evolução histórica do Brasil entesourar, eis aí o propó sito destas instituições, exclusivamente nascidas do espírito
mercantil''. Oliveira Martins, op. cit., 1888, p.41;Jaime Cortesão, O Ultramar
apresen ta-se como tema central do livro de Oliveira Martins O Brasil eas Colônias Português Depois da Restauração, Lisboa, Portuga lia, 1971, p. 115.
Portuguesas (1880), possivelmente a obra mais importante sobre a problemática
colonial por tuguesa60.Para Oliveira Martins, Angola e Moçambique, ainda
reduzidas à situa ção de feitorias, poderia m se transformar em colônias de
plantação desde que as autoridades consegLússem submeter os nativos ao
trabalho compulsório:"Aos por tugueses cumpre, pois, explorar, e não colonizar
a África''. Enfatizando o aforismo de Herculano citado, Oliveira Martins era
"terminantemente" contra o redirecio namento para Angola de emigrantes
portugueses que desejavam se estabelecer no Brasil. Na sua opinião, o futuro da
África portuguesa estava nas mãos dos ne gros e não dos brancos:os africanos
deviam ser induzidos a trabalhar eficazmen te sob o controle de administradores
lusitanos. Caso contrário, era melhor vender ou arrendar as colônias portuguesas•
para outros países ou empresas europeias61
Refletindo sobre o Brasil que ascendera à Independência sob a mesma
dinas tia que governava Portugal - na altura em que a maioria das novas
repúblicas americanas enfrentava turbulências -, Olivei ra Martins elogia a
colonização lu sitana na América do Sul. Nas suas palavras, ao contrário dos
Países Baixos e das companhias de comércio colonial holandesas,
organizadas para pilhar povos ul tramarinos, Portugal "criou nações, [...j fez
germinar e nascer [...) novas pátrias ultramarinas''. Citadas e endossadas por
Jaime Cortesão e outros autores portu gueses, essas observações
fundamentaram a ideia do "excepcionalismo colonia lista" português,
precursora das teorias lusotropicalistas de Gilberto Freyre e de
seus seguidores62.Como os outrosreformadores coloniais citados, Oliveira
Martins
tampouco faz referência aos mulatos em Angola. Mais ainda, ele reprovava total-

60. Leitor atento de Leroy-Beaulieu, Oliveira Martins constatou entretanto que as duas
cate gorias, "colônias de exploração" e "colônias de povoamento'; típicas do século
x1x, não se adaptavam à evolução da história ultramarina portuguesa e europeia. Ele
propõe então, muito apropriadamente, três tipos de estabelecimentos aos quais foi
dado "o nome gené rico de colônias": a) as feitorias ou colônias comerciais; b) as
fazendas ou colônias depro dução agrícola, destinadas à exportação; e c) ascolônias
propriamente ditas, ou estabele cimentos de população fixa. Oliveira Martins
adequadamente considera também outra categoria, as feitorias, mais próximas da
história portuguesa e europeia na Ásia e na Mi ca antes do século XIX. Ver Paul
Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples moder nes, Paris, Guillaumin et
Cie,1874; Oliveira Martins, op. cit, 1888, p. 214
61. Oliveira Martins, op .cit, 1888, pp. 239-240.
62. ''Acusem-nos de termosinstalado na América um sistema feudal, acusem-se osvícios
da nossa administração colonial; mas ofato é que ela criou nações, fez germinar e
nascer as sementes de novas pátrias ultramarinas, ao passo que as Companhiasdos
Holandeses ja mais criaram coisa alguma, a não ser um sistema hábil de rapinar o
trabalho indígena, de pois determinadoo período dasrendosas piratarias. Saquear e
mente a miscigenação portuguesa na África. Suas ideias sobre o assunto eram intercolonial europeia66. Essa mudança teve um impacto direto na
ra dicais. Mencionando os novos rumos do Brasil pós-escravista, ele comunidade mulata de Luanda.
aconselhava o governo brasileiro a evitar a imigração asiática, desejada pelos Como diversos autores demonstraram, na segunda metade do século xrx, os
fazendeiros, para não arruinar o futuro do país: "Um Brasil chinês, isto é, a mulatos e a cultura luso-africana ganharam destaque em Angola. Uma elite
substituição de um dos focos de civilização europeia na América por uma com-
nação mestiça e abastardada,
é uma perspectiva repugnante"63. 63. Oliveira Martins também propõe reformas sociais e agrárias em Portugal a fim de evitar a
De uma maneira ou de outra, a evolução e a independência da América emigração e aprimorar a economia do país. "(Hoj e] o Brasil é uma colônia melhor para
nós do que a África, todavia, a melhor de todas as nossas colônias seria o próprio Reino''.
por tuguesa (a "perda do Brasil") r:ontinuaram sendo a principal referência dos Ele também pensava que um governo brasilei ro preferiria que os imigrantes europeus
pro jecos coloniais lusitanos do século xrx64 • Ainda assim, nada semelhan te transformassem o país em uma "nação europeia, e não mestiça" ( op. cit., 1888, pp. 15-
153, 175-176, 233-256, 287-288).
aos pla nos de Sousa Coutinho para os mulatos angolanos no século XVIII foi
64. Para um ensaio sobre esse assunto, ver Gabriel Paquette, "After Brazil: Portuguese Deba
concebido no século x1x. O bviamente, a influência do racismo científico tes on Empire, c. 1820-1850';Journal of Colonialism and Colonial History, v. 11, n. 2,
oitocentista, explí cita na citação de Oliveira Martins, ajud a a explicar o 2010. Seria interessante fazer a mesma pesquisa temática para o período 1850-1890.
65. Como demonstra Valentim Alexand re, Oliveira Martins seguiu então u movimento nacio
desaparecimento do mula to nos planos dos formuladores da política angolana. nalista que "sacralizava o Império:e reconsiderava suas opiniões sobre a inutilidade
Uma nova etapa intervém no final do século, quando a Partilha da África das possessões ultramarinas. Valentim Alexandre, "Questão Naciona l e Questão
e o Ultimato Britânico (1890) forçaram a retirada portuguesa de territórios Colonial em Oliveira Martins';Análise Social, v. 31, n.135, pp. 183-201, 1996.
66. Ver, por exemplo, debate do Parlamento em 1912, sobre um projeto a respeito da
ocupados ou reivindicados por Lisboa e suscitaram um movimento coloniza çãode Angola por judeusrussos, quando Freitas Ribeiro, ministro das Colônias,
nacionalista para pre declarou: "Precisamos salvar Angola povoando-a com osportugueses''. (Diário da
Camara dos De putados , sessão de 21maio 1912.Dispon ível em: www.pr
servar a integridade das colônias65.A partir de então, os territórios imeirarepublica.org/porta l/ ima ges/stories/sa_o49_1912_05_21.pdf. Acesso em :23 nov.
ultramarinos 2010.) Ameaças diretas a Angola vi- 1lham de movimentações dos bôeres e de alemães do
passaram a ser fortalecidos e povoados por portugueses, visto que a sudoeste da África no rio Cunene e no planalto de Huila.Ver debate na Assembleia
Nacional Constituinte, 25jul. 1911, 7 ago. 1911, 16 ago. 1911, 10 mar. 1916, 6 ago. 1918,
imigração estrangeira devia ser evitada no contexto da rivalidade
Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Lis boa. Disponível em:
debates.parlamento.pt/?pid=r3. Acesso em: 8 set. 2017.
kimbundu com trajes ou comportamento português, Jill Dias, op.cit., 1994, pp. 51-52, e
posta de negros e mulatos escolarizados e ta mbém por filhos da terra 77, nota 30. Sobre os docu mentos escritos nas sociedades angolanas, ver Catarina
Madeira Santos e Ana Paula Ta· vares, Africae Monumenta: A Apropria çcio da Escrita
(descen dentes das antigas famílias de colonos) apregou opiniões pelos Africanos, v.1, Lisboa, Instituto
autonomistas em Angola e parte de seus membros expressaram suas 1

demandas na imprensa luandense . Contudo, reagindo às ameaças europeias


6

em suas fronteiras africanas, Lisboa co meçou a reforçar o controle


metropolitano sobre a administração angolana. Na virada do século x1x e nas
primeiras décadas do século xx, o aumento progressi vo da chegada de
colonos, a censura da imprensa local e reslrições ao acesso ao
ensino cercearam as atividades da elite luso-angolana6ª.Foi quando também
ocorreu o declínio das oligarquias mestiças que viviam no interior
(Massangano, Golungo Alto, Ambaca, Caconda) e cultivavam produtos
agrícolas de exportação. Sob o efeito da competição dos reinóis que se
instalavam em Angola e de restri ções impostas pelas autoridades, essas
famílias luso-africanas perdem boa par te de seu status econômico e
político69. Outro grupo mestiço significativo, os am baquistas, comerciantes e
camponeses africanos que escreviam em linguagem luso-quimbundo (o
ambaca), se identificavam como cristãos e conectavam as comun idades
Luba-Lunda ao comércio atlântico, também sofreu o impacto das
transformações do final do século x1x. Efetivamente, sua importância
diminuiu depois da introdução da navegação a vapor no rio Cuanza, da maior
penetração dos comerciantes reinóis no interior, e do crescimento das trocas
angolanas com países industrializados'º.

67. Os "filhos da terra" também eram chamados de "filhos do país''. Ver "Catálogo dos Gover
nadores de Angola" (1825), em Coleção de Notícias para a História das Nações
Ullramari nas, Lisboa, Academia Real das Sciencias, tomo 3, parte 2, 1826, p. 427.
68. Douglas L. Whceler, "'Angola Is Whose l lousc?' Early St irrings of Angolan Nationalism and
Protest, 1822-1910:African Historical Studies, v.2, n. 1, 1969, pp. 1-22. Marcelo
Binencourt, "A Respostas dos 'Crioulos Luandenses' ao Intensificar do Processo Colonial nos
Finais do Século XIX'; em A África e a Instalação do Sistema Colonial (c. 1885-c. 1930), Atas
da m Reu nião Internaciona l de História da Africa (1999), Lisboa, !ICT, 2000, pp. 655-671;
Marcelo Bit tencourt, Dos Jornais às Armas: Trajectórias da Contestação Angolana,
Lisboa,Vega, 1999; Aida Freudenthal, "Voz de Angola em Tempo de Ultimato'; Estudos
Afro-Asiáti cos, v. 23,
n.1, pp.139-169, 2ooi.
69. Jill Dias, "Mudanças nos Padrões de Poder do 'Hinterland' de Luanda: O Impacto da Co-
lonização sobre os Mbundu (e. 1845-1920)'; Penélope: Faz er e Desfa zer a História, n.
14,
pp.43-91, 1994· .. . .
70. Beatrix Heintze, Pioneiros Africanos:Carauana.s de Carregadores na Àfnca Centro-Ociden-
tal (entre 1850-1890), Lisboa, Caminho, 2004; Beatrix Heintze, "Between Two Worlds: lhe
Bezerras, a Luso-African Family in the Nineteenth Century Western Central Africa'; em Ph.
J. Havik e Ma lyn Newin (orgs.), Creole Societies in the Portuguese Colonial Empire,
Bristo.1, University of Bristol, pp. 127-153, 2007. Jean-Luc VeUut, "New Perspectives on
the Ambaqw sta Netv10rk'; 111e foumal of African History, v.45, n. 2, pp. 327-329,
2004. No século XIX, a palavra "ambaquista" designava qualquer africano falante do
Mulatos e luso-africanos tornavam-se econômica e socialmente menos Contradizendo a crença colonialista na superioridade cultural e racial europeia,
rele vantes, ao passo que a população branca , pela primeira vez, ultrapassava a cafrealização punha em risco a reprodução social dos colonizadores e
o con tingente dos mulatos. De acordo com os dados populacionai s gerais frustrava o ala rgamen to da ocupação territorial efetiva 7". Ainda que seja
(ver tabela da página 88), houve também uma queda acentuada na população possível distinguir a enft»ali zação (o "vazamento social" de brancos para
mulata. Em Angola em 1845, os mulatos somavam 5770 indivíduos, e os comunidades africanas) da africn nização (a incorporação de mulatos no
brancos, 1.832. Em 1900, esses números eram, respectivamente, 3112 e 9198. sistema de parentesco de suas mães), os dois processos il ust ram os fenômenos
Sabe-se q ue a colônia complexos subjacente sao conceito de raça e seus derivados75•
foi atingida por fomes e epidemias no final do século x1x, e sua população
negra de Investigação Científ ica Tropical, :wo:.i; e Ca1111Jiw M11d111ru Snn111 ."Écrirc lc pouvoir
também registrou um decréscimo no mesmo período, ainda que em en Angol a';Ann ales. Histoire, Sciences Socla lcs, v. G4 11. 11, pp.7r,7 ?<Vi, :l•JU•J,
71. Ji:I R. Dias, "Famine and Discasc in the l listor y of A11goln r. 1U,lll t <) 111 '/111• }01t1110/ of
menores proporções 7 . Porém, a forte queda de 46% no número de '
Afrl · can History, v.22, n. 3, pp. 349-378, 1981.
habitantes mulatos (comparado aos 11% de queda da popu laçãQ negra) 72. Assim como muitos outros pesquisadores, considero co111u colonos os lt11l jj1111111•11 pni111
pode igualmente ter sido pro vocada por restrições à reprodução social gueses que chegaram a Angola até a independência da colônia.
73- Mulatis mutandis, nos Estados Unidos, como sugere Aaron Gullickson, a hostilidade do
dos mulatos. De fato, a crescente che gada de petits blancs de Portugal pobres brancostambém contribuiu para o declínio dos mulatoscomo um grupo distinto
acirrou a competição por status social e a hos tilidade dos colonizadores ao no início do século xx.A categoria dos mulatos "era visível o bastante para receber o re
grupo racial intermediário12• Provavelmente esse contexto desfavoráve l conhecimento oficial nos censos norte-americanos de 1850 a 1920 (exceto em
1900)';Aaron Gullickson, "Racial Boundary Formation at the Dawn of Jim Crow: The
impeliu mais mulatos a viverem com suas famílias mater nas, incorporand Determinants and Effects ofBlack/Mulatto Occupational Differences in the United States,
o-os à cultura e às aldeias nativas73• 1880';The American Journal of Sociology, v.116, n. i, pp. 187-231, 2010.
74. Ver os comentários de Alfredo Margarido, "Linérature et Nationalité'; Poli tique Africaine,
Além disso, como foi assinalado anteriorm ente, as autoridades criticavam
V.29, pp. 58-70, 1988.
as uniões inter-raciais, temendo efeitos indesejad os miscige nação. Quase 75. Como em outras partes deste texto, me apoio no ensaio de Lo'ic J.D. Wacquant, "For an
sempre, elas procuravam também evitar a cafrealização, islo é, a imersão de Analytic of Racial Domination';Political Power and Social 1heory, v.11, pp. 221-234,
1997.
brancos po bres nas comunidades de suas esposas ou companheirns africanas.
Mestiçagem e Pre· conceito de Cor na Primeira República'; Tempo, n. 1, 2009.
Como observa Claudia Castelo, para prevenir a cafrealização, Lisboa contro Disponível em: goo.gl/ FkeFBH.
Acesso em: 11set. 2017.
lou a ida de colonos portugueses para Angola até os anos 1960, opondo-se à 80. A exigência de alfabetização foi revogada apenas em 1985.
entrada de colonos pobres solteiros e estimulando a chegada de famílias
portuguesas. Desde os anos 1940, os colonos com famílias superavam o número
de colonossol teiros que entravam em Angola 76 • Em última análise, a
ascendência dos mula tos e dos luso-africanos em Angola se tornou pouco
significativa a partir do início do século xx.77• O projeto de transformar Angola
em "outro Brasil" estava agora fora do campo das possibilidades coloniais
portuguesas 16• Sobretudo no que concerne à estratificação de uma camada
populacional significativa formada por mulatos.
Ébem sabido que a migração europeia em massa e as teorias do darwinismo
social adotadas por intelectuais influentes transformaram igualmente o estatuto
do mulato no Brasil. Decerto, à diferença do contexto americano, nenhuma lei
brasileira proibia os casamentos inter-raciais79• Mas preconceitos e restrições le
gais indiretas implicavam uma evidente discriminação, como mostram as con
sequências da lei eleitoral. Até 1882, desde que atendessem ao critério da renda
anual, homens adultos não alfabetizados podiam votar. Promulgada em 1882, na
implantação das reformas que levaram à abolição da escravidão (1888), a proibi
ção do voto dos analfabetos excluiu da cidadania os brasileiros pobres, fossem
eles negros, mulatos ou brancos. Contudo, como a porcentagem de analfabetos
negros e mulatos era (e ainda é) maior do que a de brancos, os afro-brasileiro s
sofreram uma restrição mais significativa de seus direitos de cidadaniaªº·

76. Entrevista de Claudia Castelo ao Observatório da Emigração, 30 jun. 2010. Disponível


em: observatorioemigracao. pt/ np4/4707.htm1.
77. Douglas Wheeler afirma: "Num momento em que o assimilado começava a
conquistar
um status e uma posição mais altos, o aumento da imigração europeia proveniente de
Por tugal e das ilhas aniquilou a superioridade numérica de que gozara até 1890. Os
europeus começavam agora a competir por empregos, e a política governamental,
embora alegas· se não ser discriminatória, começou a restringir o acesso a alguns cargos
burocráticos au· mentando as exigências educacionais''. Douglas L. Wheeler, op.cit.,
1969, PP·i2-13.
78. Todavia, até 1950 o Movimento Democrático de Angola (MDA), uma organização
autôno ma formada por brancos liberais, sustentou o projeto de transformar Angola em
"outro
Brasil';ver Juliana Marçano Santil, "Cemétis qui naus trouble Les représentatio ns du
Bré sil dans l'imaginaire poli tique angolais: l'empreinte de la colonialité sur lesavoir,
tese de doutorado, Université de Bordeaux rv, 2006, pp. 256-257. Ver também Fernando
Pimenta, "Ideologia Nacional dos Brancos Angolanos (1900-1975) '; trabalho
apresntado no vm Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, set.
2004.
79. Os regulamentos de muitos municípios e associações incluíam, de fato, cláusulas rc.iais
contra negros e mulatos no século xx. Por exemplo, o regulamento da guarda mumc1pl
de São Paulo de 1906 proibia a admissão em suas fileiras de negros e mulatos, ver
Caroh· na Vianna Dantas, "O Brasil Café com Leite: Debates Intelectuais sobre
Dadas as contingências resumidas anteriormente, o contraste entre os dois dos indígenas à comunidade nacional - continuaram marcando a política
lados do Atlântico Sul era patente no início do século xx. Decerto, havia um indigenista brasileira . Por meio de sua filiação pombalina, tais ideias
con tingente populacional e uma cultura mulata em Angola. Mas no Brasil o também estavam presentes nas reflexões de Andrade Corvo sobre a evolução
mulato constituía um sujeito histórico mais perene e detinha um estatuto mais dos nativos em Angola.
estável. O intercâmbio intelectual luso-brasileiro pross eguiu .ainda na campanha abo
licionista da segunda metade do século XIX, visto que abolicionistas portu gueses
e brasileiros compartilhavam a mesma agenda na luta pelo fim da escravidão e
A clivagem do século XX de suas sequelas no Brasil e na África portuguesaª2•
Após a abolição da ercravidão na África portuguesa, diversas leis governa Perturbadas depois da proclamação da República, as relações entre o Rio
mentais procu raram regular o trabalho dos nativos em Angola, tal como de Janeiro e Lisboa novamente se estreitaram após a instauração do regime
ocorria em outras colônias e ex-colônias europeiasª'. republi cano em Portugal (1910). Num período de forte imigração portuguesa
Substituindo o conceito de evangelização que fundamentou os para o Brasil, principalmente para a capital federal, as transferências
descobrimen tos, o conceito de "civilização" foi instrumental na política culturais entre os dois países se intensificaram. Referindo-se à imigração, e
pombalina na América portuguesa depois da expulsão dos je suítas. particularment e aos japo neses vindos para São Paulo, aos ex-escravos e seus
Incorporado ao Diretório (1759), esse princípio laico de jus tificação do descendentes, à questão in-
colonialismo - pela primeira vez posto em prá tica numa colônia europeia -
passou a orientar a política indigenista portuguesa no Brasil. No século 81. Maria Paula G. Meneses, "O 'Indígena' Africano e o Colono 'Europeu': A Construção da
Diferença por Processos Legais'; e-cadernos CES, jul. 2010, pp. 68-93. Disponível em :
seguinte, a ideia de "civilização" se generaliza e se transfor ma num eces. revues.org/403. Acesso em: n set. 2017.
componente essencial da segunda expansão europeia (1857-1947). 82. Em janeiro de 1881, Joaquim Nabuco visitou e foi homenageado pela Assembleia de Lis
boa. Em sua presença, os parlamentares votaram uma lei que eliminaria oscastigos físi
Os princípios civilizadores do Diretório e de sua legislação
cos na África portuguesa. Joaquim Nabuco, OAbolicionismo, São Paulo, Publifolha, 2000,
complementar - a distinção entre tribos "mansas" e "bravas'; o ensino da p. 78, nota 10.
língua portuguesa aos índios, a tutela legal sobre as tribos e a assimilação
dígena, debates na imprensa, nas Assembleias e no Congresso articulam a nova 89. Va le notar que, em 1946, quando a tradução norte-americana do livro de Freyre foi
publi
diversidade social às velhas hierarquias brasileiras83 • Confrontado a acusações cada, mais da metade dos estados norte-americanos tinham leis que proibiam o
de massacres de índios perpetrados por íazendeiros em Santa Catarina, o gover casamen to inter-racial. Irving G. Tragen, "Statutory Prohibitions against Interracial
Marriagc':
no federal criou, em i910, o Serviço de Proteção aos Índios (sPr), primeiro órgão
nacional exclusivamente voltado à administração da população indígenaº•. O po
sitivismo sociológico, com seu compar::> livismo e suas referências históricas,
foi igualmente influente no Brasil e em Portugal nas questões relativas aos
direitos dos povos nativosº5• Desde 1902, o renomado juri sta positivista João
Mend es Júnior escrevia um livro influente sobre os direitos dos indígenas do
Brasil06•
Como se sabe, a im igração portuguesa e ita liana alentou as esperanças das
elites de "branquear" a popul ação do Brasil por meio da incorporação de novos
habitantes europeusª7• Nesse contexto, revertendo as ideias racistas predominan
tes, Gilberto Freyre publicou seu Casa-Grande e Senzala (1933)ªª, o livro seminal
que situou a miscigenação no centro da história brasileira e os negros e mulatos
como um componente essencial da nação89 •

83. Sobre as reações contra a chegada dejaponeses e negros estrangeiros no Brasil, ver Jair de
Souza Ramos, "Dos Males que Vêm Com o Sangue: As Representações Raciais e a
Catego ria do Imigrante indesejável nas Concepções sobre Imigração da Década de
20';em Mar cos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), /laça, Ciência e Sociedade
no Brasil, Rio de Janeiro, Fiocruz, 1996, pp. 59-82.
84. Embora o primeiro diretor da SPI, ogeneral Cândido Rondon, um militar descendente
dos
bororós, positivista e grande conhecedor das culturas ameríndias do Brasil,
concebesse as etnias indígenas do Brasil como "naçõesautônomas com as quais
queremos estabele cer relações de amizade'; a maioria da opinião pública e do
governo eram muito menos liberal com o controle e uso dos territórios índios. Mércio
Pereira Gomes, "Por Que Sou Rondoniano'; Estud os Avançados, v.23, n. 65, pp. 173-
191.
85. Sobre o positivismo e as ideias republicanas cm Portugal, ver Fernando Catroga, "A Im
portância do Positivismo na Consolidação da ldeologia Republicana em Portugal'; Biblos,
V. 53, PP· 283-327, 1977,
86. João Mendes Júnior, Os Indígenas do Brasil, seus Direilos Individuais e Políticos, São
Pau·
lo, Hennies Irmãos, 1912, pp. 58-64. O livro contém uma série de conferências feitas
pelo autor nos anos anteriores.
87. Muitos estudos foram publicados sobre a imigração, identidade nacional e assuntos cor
retalos, ver, por exemplo, Jeffrey Lesser, Negotiatil•g National Jdentity: lmmigrants,
Mino rities, and the Struglef or Ethnicity inBrazil, Durham, Duke University Press,
1999; e os co mentários de Jair de Souza Ramos, ''Afinal, o que é Preciso Para Ser
'Brasileiro'? Leitura de um 1exto que Fala sobre as Lutas por Esta e Outras
Identidades História, Ciência e Saú de - Manguinhos, v.7, n. 1, pp. 197-204, 2000.
88. Sobre o racismo e as políticas de imigração no Brasil durante esse período, ver Endrica
Geraldo, O 'PerigoAlienígena ':Política Imigratória e Pensamento Racial no Governa
Vargas (1930-194.<;), tesede doutorado, Campinas, Unicamp, 2007. 1-lá uma extensa
bibliografia em Casa-Grande e Senzala e em outras obras de Freyre. Para u m ensaio
recente e importan te, ver Peter Burke e Maria Lúcia G. Pallares-Burke, Gilberto
Freyre: Social Theory in the Tropics, Piterlen, Peter Lang, 2008.
No meio tempo, as capitais europeias debatiam as políticas coloniais na gerenciar o controle colonial por meio da mestiçagem e do parentesco
África e, em particu lar, a expansão dos povoamentos na Argélia e na transétnico parecia impraticável e, de fato, estruturalmente inviável em
África do Sul. Na Argélia, o Décret Crémieux (1870) garantiu a cidadania Angola94.
francesa aos judeus a rgeli nos cujas origens eram bem anteriores à invasão
francesa. Pouco depois, o Code de ['[ndigenat (1881) distinguia os direitos California Law Review, v. 32, n. 3, pp. 269-280, 19'14 .Tais leis1 ainda existentes em nove
dos cidadãos franceses dosdireitos dos "súditos';nativos das colônias da es tados em 1967, foram derrubadasnaquele anos pela Suprema Corte. Ver Ewa A.
Golebio
França, aos quais era atribuída uma nacionalida de sem cidadania. Ao wska, "TI1e Contours and Etiology of Whites' Attitudes Toward Black-White Interracial
mesmo tempo, maispoderes eram delegados às autoridades coloniais Marriage';Journal of Black Studies, v. 38, n . 2, pp. 266-287, 2007.
90. Isabelle Merle, "De la 'légalisation' de la violence en contexte colonial: Le régime de
responsáveis pelas comunid ades nativas9º. Repercutindo em Portugal, l'indigénat en question'; Politix, v. 17, n . 66, pp. 137-162, 2004.
0 debate ocorrido na França concentrou-se no estatuto diferenciado dos 91. Laure Blévis, "Lcs avatars de la citoyenneté en Algérie coloniale ou les paradoxes
habitan tes das colônias e na formação de uma camada racial e cultural d'unc catégorisation';Droit et Société, v.48, pp. 557-580, 2001..
92. "Os assimilados eram indígenas que tinham que passar por um período de exames
intermediária, ca paz de desempenhar um papel mediador para a reforçar a fim de provar que eram cristãos, que sevestiam à maneira europeia, que eram
o domínio colonial9'. monógamos e que falavam português. Nunca passaram de 1% da população colonial"
(Miguel Vale de Almeida, Portugais Colonial Complex: From Colonial
Dessa maneira, práticas brasileiras, europeias e americanas pavimentara
Lusotropicalism to Postcolonial Lusophony, trabalho apresentado no Queen's
m a evolução para a categoria de assimilado (1926) e para o Ato Colonial Postcolonial Research Forum, abr. 200B. Disponível em: miguelvaledea
de 1930, re gulamentando o governo das colônias portuguesas 92• O ato e lmeida.net/wp-conte nt/uploads/2008/05/portugals-co lonial-complex.pdf. Acesso em;
11set. 2017).
suas questões cor relatas já foram estudadas e não serão discutidos aqui93• 93. Isabel Castro Henriques, op. cit., 1995, v. l, pp. 29-30.
Entretanto, a elaboração administrativa da categoria de "assimilado" tem 94. Como Marcelo Bittencourt afirma, a premissa do estatuto do assimilado baseia-se na
um importante significado. O re curso a um dispositivo legal para criar os ideia de que os luso-africanos com direito a ele tinham abandonado completamente
sua cul tura africana. Analisando os ambaquistas, Beatrix Heintze emprega o termo
"assimilados" - camada intermediária africana destinada a amortecer as transethnic kinship (parentesco transétnico) para definir:"certos fenômenos
tensões entre colonos e nativos - expõe a ine xistência de processos sociais normalmente ou supos tamente associados à etnicidade, invoc<:ndo os laços ou
barreiras étnicas vis-à-vis outrcis grupos étnicos são, ao menos temporariamente ou
de estratificação dos mulatos. Na verdade, qual quer projeto visando parcialmente, dissolvidos, transcen-
A invenção da mestiçagem luso- 97. Gilberto Freyre criticava o estatuto do "assimilado'; classificando-o como "inadequado
Ele também atacava o apartheid estabelecido pela Diamang, multinaciona l belga, ameri
brasileira como um padrão global cana e britânica, nas suas minas nas províncias lundas de Angola. Após a independência
português angolana, ele alegou, no limite da má-fé, que essas críticas mostravam que ele condena-
Como foi estudado, após terem sido censu radas ou ignoradas, as ideias de
Freyre sobre a mestiçagem brasileira e a excepcionalidade da colonização por
tuguesa foram cada vez mais adotadas pelo governo de Lisboa a partir do final da
década de 195095• Uma verificação nos debates parlamentares ocorridos na As
sembleia Nacional de Lisboa mostra que as ideias de Frcyre são citadas apenas
cinco vezes entre 1935 e 197496• Uma vez em 1944, a respeito da língua e das
insti tuições de Portugal, seguida de uma outro citação, em 1953, enaltecendo a
alega da ausência de racismo em Portugal e nas suas colônias. Em 1962,
referindo -se à perda de Goa, ocorrida no ano anterior, um parlamentar
purluguês enfatiza - pela primeira e única vez - o conceito freyriano de
lusotropica lismo. Nesse mes mo ano aparece a primeira e única referência
parlamentar meritória a um mula to (encontrado por Livingston e na Áfr ica do
Sul nos anos 1850), apresentado corno um súdito leal de Portugal e como um
autêntico português.
Sucede que sérias adversidades impactaram a políti ca colonial portugu esa
em 1961e1962. Além da tomada dos territórios coloniais da Índia pelo exército
india no, a independência das colônias francesas na África Subsaariana (1960), a
derro ta da França na Argélia e as tragédias da descolonização do Congo Belga
expuse ram as vulnerabilidades da África portuguesa. Aliado tradicional e
decisivo do colonialismo português no pós-guerra, o Brasil votou pela primeira
vez contra o regime salazarista, apoiando a resolução 1742, de 30 de janeiro de
1962, em favor da independência de Angola. No plano militar, a investida da UPA
(mais tarde FNLA) no norte angolano em 1961, marcava a primeira ofensiva
armada em Angola.
A decisão de Lisboa de extinguir o estatuto de assimilado em
1961apresenta va-se como uma resposta às acusações de discriminação racial
feitas pela ONU, mas constituía também o fracasso da engenharia social
destinada a constituir uma camada intermediária para facilitar
• o domínio
colonial Na realidade, em
97

didos ou minimizados''. Beatrix Heintze, "Translocal 'Kinship' Relations in Central


African Politics of the 19th Century'; Global Studies in Global Social History, v.4, pp. 179-
204, 2010, p. 1871 nota 18.
95. Para um ponto devista brasileiro,ver Waldir José Rampinelli, As Duas Faces da Moeda:As
Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao Colonialismo Português, Florianópolis, Editora da
UFSC, 2004, pp. 59-64. Para uma abordagem do ponto devista portugu ês, ver Cláudia
Cas telo, OModo Português de Estar no Mundo: O Luso-tropicalismo ea Ideologia Colonial
Por tuguesa 1933-1961,Porto, Afrontamento, 1998.
96. Fiz a pesquisa no site do Parlamento de Portuga l. Disponível em:
debates.parlamento. pt/?pid=mc. Acesso em: u set.2017.
1960, os assimilados em Angola, incluindo mulheres e crianças, contavam Jaime Cortesão reconfortou o orgulho regiona lista paulista abalado pela derrota
41mil pessoas. A maioria delesvivia em Luanda. Somados os mulatos ao seu de 1932'º'.
ersatz ju Críticas políticas e universitárias às ideias de Freyre sobre a colonização
rídico, os assimilados, eles representavam 8,93 dos habitantes da capital. o nú por tuguesa, a miscigenação luso-africana e seu corolário biológico, o
mulato, se tor-
mero não é trivial, mas tampouco é transformador•ª.
Yves Léonard mostra que Adriano Moreira, então ministro do Ultramar,
va coloni lis?10 po:ruguês na Africa. Ver "O Brasil em Face das Africas Negras e Mesti
promo veu as teorias lusotropicalistas de Freyre como "ideologia ças, conferencia realizada em 10 jun .1962 no Gabinete Portuguêsde Leitura, Lisboa, Edi
substitutiva"do colonia lismo português99 E Ch ristian Geffray pergunta: por ção de um grupo • de amigos e admiradores portugueses para distribuir gratuitamente às
escolas, 1963, pp. 10, 13-14, 19. Ver entrevista de Freyre em O Estado de S. Paulo, g jul.
que a ideologia lusotropica Jista nasceu no Bral'il? Por que nad a semelhante
1979
surgiu na América espanhola? Por que não há um "hispanotropicalismo"? 100 apud Bernardo Ricupero (org.), Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, Beco do A20ugue
Edito rial,2010, pp. 174-175.
A resposta está na amplitude dos problemas coloniais - inexistentes na
98. s brancos (58256) representavam 16,7% da popu lação de Luanda, os "mestiços';a maio
Espanha - que Portugal teve que enfrentar depois das descolonizações na mulatos (14 719), 4,3%, os assimilados (15576), 4,6%, eos "mdígenas" ou nativos (258
britânicas, francesas e belgas. Os esforços de Freyre para emprestar um 156), 74,3%, (Chrisline Messiant, i961: L'Angola Colonial, l'histoire et la société, les
premises du mouvement nationaliste, Bâle, P.Schlettwein Publishing, 2006, pp. 313-316,
significado normativo à sua interpretação da sociedade luso
tabela 12).
-brasileira, e seu decidido apoio à presença de Portugal na África, pesaram 99. Yves Léonard, "SalazarismtJ et lusotropicalisme, histoire d'une appropriation'; Lusotopie,
na adoção do lusotropicalismo como ideologia ju stificativa do colonialismo 1997, pp. 21J·226.
ioo. Christian Geffray, "Lelusotropica lisme comme discours del'arnour dans la servitude"
portu guês. Esse tipo de convergência ideológica luso-brasileira já havia Lu- sotopie, 1997, pp. 361-372. '
ocorrido nos anos 1940-1950 - com os sinais trocados - com a experiência º • De.fato, a aversão e Cortesão ao "fascismo ibérico:um revisionismo histórico português
1 1

histórica portugue sa justifica ndo a história brasileira, ou melhor, paulista . estimulado pela aliança Franco-Salazar, o levou a interpretar os ataques bandeirantes às
missões jesuítas no Paraguai, nos anos 1630 einício dosanos 1640, como uma ofensiva
De fato, ao apresentar as expedições escravistas dos bandeirantes como ações an ti-hispânica que teria levado à Restauração de 1640 e à independ ência portuguesa.
antiespanholas no contex to dos conflitos luso-espanhóis da Restauração d e Char les R. Boxer criticou as ideias de Cortesão sobre as incursões dos bandeirantes.
Ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., 2000, pp. 334-335, 443 nota 228.
1640 e da guerra do Alentejo,
.
naram mais frequentes no final dos anos 1950. Quando dados do censo latos que supostamente apoiavam o presidente José Eduardo dosSantos ("Os Mulatos do Zé
Ou'; em 25 mar. 2006, apud Petra Kátia Amaral Catarina, Sociedade Civil Angolana:
angola no de i960 foram publicados, mostra ndo que o percentual de mestiços Contributos para a Democracia, Paz e Desenvolvimento, Mestrado, Universidade Técnica
em Angola era de i%, muito menor que os 9% observados na África do Sul
do apartheid, Freyre começou a minimizar o papel central que até então
atribuíra ao mulato.
Em i966, ele publica um artigo intitulado "Interação Eurotropical: Aspectos
de Alguns dos seus Vários Processes - Inclusive o Lusotropical''. O enunciado
do título expressa o movimento de recuo de Freyre. Referindo-se ao censo de
1960, ele critica o "simplismo estatístico" que não levou em conta grupos mais
amplos de Angola e Moçambiqu e. Antecipando o conceito de "crioulização';
ele afirma que vastos contingentes das duas colônias portuguesas seriam
"sociocultu ral mente tão mestiços quanto os mestiços e q uanto muitos dos
brancos''. Em 1962, ele havia considerado a miscigenação como a "principal
característica" do colonia lismo português, mas, em 1966, Freyre amplia e altera
suas reflexões, enfocando uma perspectiva europeia ("interação eurotropical"),
para descrever fenômenos mais amplos de acultur ação. Na sequência, sem
falar dos mulatos, ele sub.linha o "estilo lusotropical" de "convivialidade entre
europeus e não europeus" como a forma de preservar a África portu guesa do
destino das colônias belgas, france sas, britânicas e holandesas"102•
Desmateriali zado na nova exegese do lusotropicalismo freyriano, o mulato
tem seu estatuto alterado em Angola. De fato, à medida que aumentava a chega
da de colonos em Angola nos anos i950 e 1960, muitos mulatos e assimilados
ade riram à rebelião anticolonial. Boa parte dessas adesõesfavoreceu o MPLA,
embo ra a UNITA também contasse com assimilados e mulatos em suas •

fileiras'º Na sequência, ataques de propaganda da Unita e do FNLA, inspirados


3

ou não pelos serviços de segurança coloniais, passaram a visar a alegada


ascendência política dos mulatos no MPLA'º4. Desde logo, oponentes angolanos
passaram a criticar o partido e depois o regime do MPLA com ataques racistas,
transformando o mula to em um dos componentes do facciosismo nos conflitos •

civis angolanos'05

102. Gilberto Freyre, "Interação Eurotropica l:Aspectos de Alguns dos Seus Vários
Processos - Inclusive o Lu sotropical';Journal of Inter-American Studies,v. 8, n. 1, pp.
1-10, 1966; Gilber to Freyre, op. cit., 1963, p. 10.
103. Citando Leon de Costa Dash Junior, Clarence-Smith escreve que a Unita tinha, nos anos
1970, cerca de io% demestiços em suas tropa s. W. G. Clarence-Smith, "Class Structure
and Class Struggles in Angola in the 197os';f oumal of SouthemAfrican Studies,v.7, n. 1,
pp. 109- 126, 1980.
104. Sobre a MPLA e os assimilados ver Ch.ristine Messiant, "Sur la premiere génération du MPLA:
1948-1960 -Mário de Andrade, entretiens avec Christine Messiant (1982)'; Lusotopie,
1999, pp. i85-221.Christine Messiant, op. cit., 2006, pp. 109-118, 313-350.
105. Ver, por exemplo, os ataques do semanário oposicionista angolano Agora contra osmu
Neste lado do Atlântico Sul, a identid ade mulata também experimentou negros'º9• Como afirma Edward Telles, "os efeitos gerais do branquea mento pela
mu danças nas últimas décadas. Fazendo ainda eco à citação de Koster educação não são tão grandes quanto foi sugeri do anteriormente e, no caso dos
formulada no começo do século xix, a história de Robson, prestigiado homens mais escuros, quase não há efeitos""º.
jogador negro do Flu minense nos anos 1950, ilustra a crença persistente no Em 2012, a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal estatuindo a cons
processo de "branquea mento" social. Nu m incidente do trânsito carioca cm titucionalidade das cotas nas universidade s federais mudou a interpretação da
que um amigo seu branco lançou insultos racistas contra pedestres negros, sociedade brasileira e da história luso-brasileira. A maior instância judiciá ria do
Robson pediu moderação, sen tenciando: "Eu já fui preto e sei o que é país reconheceu, após longo estudo, que existe no Brasil uma discriminação
isso!"106 • étnica
Entrementes, a reintrodução de critérios raciais nas PNADs do final dos
anos 1970 e nos censos subsequentes a i980 favoreceram novas pesquisas e de Lisboa, 2006, p. 123,nota 173, nov.2010). Insultos racistas mais ríspidoscontra os
aborda gens das classificações raciais'07 Na realidade, boa parte das pesquisas mulatos angolanos podem ser encontradosnos
• comentários de jorn ais on-line,jan. 2011,
Disponí vel cm: municipioecunha .net/_files/SociedadeCivilAngolana.pdf.
recentes oferece uma análise mais complexa do que o processo de
106. Mário Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, 5. ed., Rio de Janeiro,Faperj, 2003, p. 318.
mestiçagem. De um lado, alguns dados demonstram que, em um certo nível 107. Sobrediscussão do Censo e demografia afro-brasileiros, ver Elza Berqu6, "Demografia da
social, os mulatos des frutam de um estatuto melhor do que os negros. Para Desigualdade: Algumas Considerações sobreos Negros no Brasil'; Novos Estudos Cebrap,
V. 21, PP· 74-84, 1988.
mencionar apenas um tó pico desse tema, pesquisas sobre a mortalidade 108. Pesquisa feita por Estela Garcia Tamburo, apud Elza Berquó, op. cit., 1988, tabela 2,
infantil indicam que, entre as mães analfabetas, a taxa de mortalidade é de 95 p. 76.
por mil para os brancos, 110 por mil para os mulatos ("pardos") e 120 por mil 109. Pesquisa de Edward E. Telles apud Marcelo H. R. Tragtenberg, "Programa de Ações
Afir mativas da UFSC: Fundamentos e Resultados Preliminares';nov.2010. Disponível
para os pretos 1º6• De outro lado, não aparecem diferenças entre a situação de em:goo. gl/stGFcK. Acesso em: 11 set. 2017.
mulatos e negros, como mostram os da dos do Censo de 2000 sobre pessoas uo. Edward E. Telles, •Racial Ambiguity among the Brazilian Population';versão revisada de
um trabalho apresentado no colóquio do Departamento de Sociologia da Brown Univer
com idades entre 25 e 64 anos que entram em universidades. O percentual
sity em set. 1998. Disponível em: www.sscnet.ucla.
de brancos é de 13,4%, e o percentual de mula tos de 4,0% se equipara ao dos edu/soc/facu lty/telles/Paper _ Racial AmbiguityBra zil.pdf. Acesso em:
também seu livro Race in Another America :
'1 set. 2017. Ver
The Significance of Skin Color in Brazil, Princeton, Princeton University Press, 2004.
estrutural - embora não inscrita nas leis -, que as universidades públicas
têm o direito constitucional de combater 111

Ao fim e ao cabo, uma rede de práticase instituições se entrelaçam para for-


mar um sistema específico de dominação racial no Brasil. Nesse sistema, o
es tatuto dos mulatos permanece amplamente dependente das
arbitrariedades cn rai zadas nas relações sociais. Parafraseando o trecho
célebre de Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo (1949): no
Brasil, não se nasce mulato:
torna-se mulato112 •

m. Ver o site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/cms/ver


Texto.asp?servi co=processoAudienciaPubli caAcaoAfirmativa. Acesso em: nset. 2017.
112. A citação de Beauvoir é, evidentemente: "Não se nasce mulh er, torna-se
mulher':Simone de Beauvoir, "O Segundo Sexo'; Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1980, v.2, p. 9.

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