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É a finalização da trilogia iniciada em “Sexo Anal – Uma Novela

Marrom“, mas poderá ser lida de maneira independente, como os outros


dois volumes. Em “Boquete” temos o filho de um casal de pastores
evangélicos que precisa se casar por pressão dos pais, mas a garota
precisa ser virgem. Homossexual e cocainômano, perto dos 50 anos, ele
escolhe uma garota de 17 que ele acredita ser virgem. Ao mesmo tempo,
conhece e se apaixona por Vermelho, um ex-presidiário com alto Q.I.,
gerente de uma casa de prostituição, que odeia o jornalista Geraldo
Assis. Assis está preso a uma cadeira de rodas, muito debilitado, em
decorrência de um tiro que tomou na cabeça. Ele começa um tratamento
revolucionário enquanto começa a investigação da relação entre a casa
de prostituição, a igreja evangélica e o tráfico de drogas na cidade.
“A medida de uma alma é a dimensão de seu desejo.”

Flaubert
Prólogo

— Mãe, eu vou operar.


— …
— É, eu já decidi. Vou operar.
Virgínia abraçou a filha com os olhos rasos d’água, impressionada com a
maturidade e a determinação da menina — e ela só tinha dezessete anos!
“Como o tempo passa rápido”, pensou.
— Não se preocupe com nada, mãe. Eu cuido de tudo.
— ...
— Só devemos ter cuidado para que isso não caia nos ouvidos do papai.
O pai era médico, muito conhecido na cidade. Elas teriam que armar um
plano para que a operação ocorresse na capital ou em algum município
afastado; inventar boas mentiras.
— A operação é simples, mãe, coisa de um dia. A tia de uma amiga já fez,
quando decidiu se casar de novo.
A mãe sorriu. Se fosse realmente simples e fácil até mesmo ela podia
fazer uma dessas no futuro, quem sabe? Afinal, após alguns procedimentos
cirúrgicos bem-feitos — botox e rugas, manchas e seios —, ninguém dava a
ela os quase quarenta e cinco anos que tinha. “A Carol casa e acerta a vida,
quem sabe no futuro eu não separo do Júlio, faço uma operação dessas e
arrumo um gato novo?”, riu, pensando sério.
O negócio, para as duas, desde sempre, era pensar no futuro. Sabiam que
era uma grande besteira essa de “o futuro a Deus perten-ce”. Elas tinham
lido num desses livros de autoajuda que “é cada um quem faz seu próprio
futuro” — e acreditaram naquilo. Era o que ambas estavam fazendo ali,
sentadas no sofá da sala, em lágrimas. O choro era de felicidade pela visão
de um futuro melhor para ambas. E com bastante dinheiro.
Primeira parte: Os jogadores

Virgínia
Com Virgínia fora assim: difícilaté certo ponto. Ela tinha sido uma garota
sonsa, que cursou Jornalismo por curiosidade e falta de opção, e que teve
que trabalhar pesado no comércio para pagar a faculdade e ajudar a mãe; o
pai, taxista, morreu cedo e de repente, de infarto. Depois de namorar muito,
de algumas aventuras, ficou apaixonada por um escriturário que conheceu
numa balada e quase pensou em se casar com ele. Que burra. Benditas
hemorroidas, que a levaram até o consultório do doutor Júlio: bonito,
charmoso, inteligente, educado e, principalmente, rico. Muito rico. Casado,
mas oras. Eles transaram, naquele mesmo dia da consulta das hemorroidas,
no consultório dele. Foi ali, “por trás”, como ela gostava de dizer. E ele se
apaixonou. “Bendito o meu cu”, pensava baixinho.
Nunca mais trabalhou. Nunca mais pegou ônibus, coisa que odiava.
Ajudou a mãe, que também nunca mais encheu o saco e que passou a viver
sozinha, esperando pelas parcas visitas da filha e da neta, vivendo da
aposentadoria do marido morto e de algumas contribuições da filha.
Casada com o ricaço, Virgínia acordava na hora que queria, comia e bebia o
que queria, ia ao shopping, comprava o que queria, fazia academia. Viajou
para a Itália com Júlio e tirou foto ao lado da torre de Pisa. “Ficar rico
melhora muito a vida da pessoa”, concluiu. Quando engravidou, no segundo
ano do casamento, teve medo. Mas Júlio contratou duas babás e ela quase
só tinha o trabalho de tirar o peito de dentro da blusa na hora de dar de
mamar. Uma beleza. Até fazer a bebê arrotar ou dormir as duas babás
faziam — ela ouviu a Carol chorar apenas umas três ou quatro vezes no
primeiro ano.
Depois, começou a gostar de ser mãe. Sua diversão era comprar
roupinhas e vestir a garotinha. Carol era a sua Barbie. Trocava e destrocava
a roupa da filha três, quatro, cinco vezes numa tarde. Um pouco era falta do
que fazer. Quando a Carol completou cinco anos, Virgínia ficou entediada
de novo. Foi para o analista e intensificou a academia. Na análise, descobriu
que estava fazendo pouco sexo; o Júlio já tinha entrado naquela fase mansa.
Na academia, arrumou um amante. Resolveu seu problema. Mas tinha
medo que o Júlio descobrisse e o caso durou pouco. Foi o suficiente para
apagar aquele fogo que a estava consumindo. “De tempos em tempos uma
mulher precisa de um cara que nem o Bartolomeu”, suspirava, pensando no
personal trainer.
Nesse ínterim, a Carol já estava na escolinha e a rotina de Virgínia era
pautada pelos horários da filha. Virou uma boa rotina. A mãe voltou a curtir
a filhota, que ia perdendo o jeito de criancinha e adquirindo o jeitinho de
menina. De cabelos negros e olhos claros, ia ficar mesmo uma garota linda.
“Essa vai se dar bem na vida”, pensava a mãe.
Um dia, a professora da escolinha, a dona Clarete, chamou a mãe para
uma conversa sobre religião. Reparara que a Carol não sabia rezar, não
conhecia os princípios cristãos, sequer tinha uma ideia de Deus.
Realmente, aquela não era uma família religiosa e Virgínia achou
importante orientar a filha nesse sentido. Virgínia havia sido católica até os
doze anos, quando o pai morreu — depois nunca mais entrou em uma
igreja, vingando-se do Papai do Céu. A empregada da família, a Jane,
frequentava uma igreja evangélica, a Grande Igreja da Santidade
Triangular, e vivia rezando e cantando músicas de louvor e agradecendo
pelo pouco que tinha — e parecia sempre muito feliz, consigo e com a
Igreja. Virgínia foi primeiro, para saber como era. Depois, levou a filha e
arrastou o marido. Conheceram pessoas, fizeram amigos, e viram como
suas vidas eram vazias sem Jesus. Quer dizer, a Carol entendia pouco do
que acontecia ali, o doutor Júlio só ia por causa da mulher, mas Virgínia,
sim, ficou impressionada com os relatos, com os milagres e com o sentido
que tudo aquilo dava à sua vida vazia. Durante um tempo, virou fervorosa
crente, de Bíblia debaixo do braço, lendo trechos em seus longos momentos
de tédio, em casa. Durou uns cinco anos, até que ela desencanou daquilo. As
coisas sempre foram muito sazonais na vida dela. Virgínia continuava indo
à igreja, mas só para encontrar os amigos. Virou uma rotina social. E ia
também pela Carol, claro, que precisava da tal orientação, da tal “ideia de
Deus”.
Com doze anos a Carol era uma crentinha empedernida. Mas os
hormônios estavam ali, conspirando contra Jesus.

Carol
Ninguém perguntava para Carol o que ela sentia ou queria. Ela foi, desde
sempre, a bonequinha da mamãe. O pai estava sempre trabalhando muito
ou em congressos ou numa daquelas misteriosas reuniões noturnas da
maçonaria. Ela foi crescendo, obedecendo às ordens que lhe davam.
Quando entrou para a Igreja, entendeu que o mundo era do jeito que os
pastores diziam. Entendeu e acreditou. Assim, quando, com treze anos, foi
fazer um trabalho de colégio na casa de uma amiguinha, a Isadora, outra
riquinha mimada, e viu a menina dar uns beijinhos inocentes num dos
amiguinhos, ficou meio transtornada. Dentro dela, algo se movimentou.
Como uma onda. Não havia nenhum adulto na casa da amiga naquele dia,
só os cinco coleguinhas que lá estavam para pesquisar sobre Tiradentes. De
repente, ela olhou para um canto do quarto e lá estava a Isadora com a
boquinha colada na do Marquinhos, as duas linguinhas se mexendo. Um
choque.
Quando a mãe passou para apanhá-la, naquela tarde, ela quis contar. Mas
se conteve. Achava pecado. Mas bonito. Uma confusão.
Pensou naquilo durante uns seis meses, período em que desenvolveu um
comportamento meio estranho, evitando a Isadora, o Marquinhos e os
outros amigos. Falou brevemente com a Júlia, outra amiguinha, sobre o
ocorrido. A Júlia disse que era assim mesmo, que logo todas estariam
beijando rapazes, era uma coisa normal.
Umas semanas depois, no colégio, disseram que a Isadora tinha ficado
pelada para o Marquinhos. A fofoca correu a escola num dia em que a
Isadora tinha faltado à aula. Chegaram a dizer que a mãe da Isadora tinha
levado a menina ao médico, ao ginecologista. Naquela noite, Carol sonhou
com aquilo.
Caseira, religiosa, com acesso restrito à Internet — coisa do diabo! — e
com uma rotina que a impedia de ter contato com garotos, Carol teve uma
revelação um dia, numa aula de ciências. Falaram sobre sexo.
O professor, o seu Celso, mostrou fotos, para vergonha e risos incontidos
dos alunos. Num determinado momento, Carol fechou os olhos. Não era
vergonha, não era medo de Deus: era tesão. A calcinha ficou molhada, a
boca salivou e ela quis, pensou, sonhou, num devaneio de instantes, com
um cara grande e bem forte, pelado em sua frente. Queria abraçá-lo,
apalpá-lo, engoli-lo. Colocar o cara inteiro dentro de si, dentro de sua boca.
Ela não sabia, mas tinha herdado isso da mãe, esse tesão todo, esse
descontrole, aquela sanha.
Naquela noite, em casa, no banho, tocou uma siririca. Foi quase sem
querer. Ensaboou o corpo, baixou a mão sobre a barriga, chegou até a
pererequinha e tateou. Chegou a cair no chão.
Era uma putinha fogosa, a Carol.
Outro dia, teve um evento na igreja. Era aniversário do filho dos pastores,
o Fraguinha. Ele era conhecido por Fraguinha porque o pai era o pastor
Fraga, mas não era um garotinho. Longe disso: estava completando
quarenta e cinco anos. Era alto, forte, bonito e... solteiro. A pastora Alaíde, a
mãe, fez uma prece bonita, agradecendo a Deus pelo filho, que era um
exemplo de dedicação e obediência. Em sua fala eloquente, com os olhos
fechados, a pastora disse que queria que o filho encontrasse a mulher ideal
e que ela ia aparecer, no momento certo, para eles. Disse assim mesmo:
para eles.
A Carol já tinha visto Fraguinha por ali, sabia que era filho dos pastores,
mas nunca prestou muita atenção. Nesse dia, ela reparou nele. Fraguinha
desceu do púlpito e foi receber o cumprimento de cada fiel e abraçou a
Carol e ela o beijou no rosto e sentiu um cheiro bom. Era uma pele lisa e
perfumada, ele tinha passado um creme, era vaidoso. Ficou impressionada.
Fraguinha estava fazendo quarenta e cinco e ela tinha acabado de
completar catorze.
Sonhou com ele várias vezes, masturbou-se pensando nele — depois
rezava muito. Em sua cabecinha atrapalhada, ter tesão pelo filho do pastor
podia ser menos pior.
Impressionada pelo Fraguinha, aquele homenzarrão, e com os demônios
e os olhos de Deus a lhe vigiar, Carol beijou um menino. Foi numa festa a
fantasia do colégio. Ela estava vestida de Branca de Neve. Quando
percebeu, estava do lado do Reginaldo, um garoto louro e atlético, do time
de basquete, que vestia uma fantasia de soldado romano. Foi num canto
escuro do salão. Ele segurou no pulso dela e Carol abriu a boca. Não sabia
bem como fazer, mas fez. Lá embaixo, a bocetinha pulava alegre, como uma
rãzinha num lago raso.
Mais esperta, Carol começou a frequentar a casa da Júlia, dormia lá às
vezes. As duas ficavam na Internet vendo putaria. Chegaram a trocar umas
carícias e beijos, mas ambas gostavam mesmo era de homem. A Júlia era
católica, mas não se ligava muito nas coisas da religião. A Carol ficava com
uma culpa danada, chegou até a jejuar uma vez, pedindo perdão a Deus por
ter masturbado a amiga.
No aniversário de quinze anos do Reginaldo, teve uma festa grande, num
clube. Virgínia relutou em deixar a filha ir, mas, ora, ela mesma tinha
frequentado tantas festas, tinha feito tantas loucuras deliciosas, que era
realmente um pecado deixar a filha para sempre dentro da caixa, trancada
no quarto, sem experimentar as delícias da vida. Carol já ia fazer quinze
anos e a mãe preparava uma conversa para ter com ela, aquela conversa
sobre homens e relacionamentos e métodos anticoncepcionais. Sabia que
era inexorável. Deixou a filha ir.
A festa ia começar às dez da noite e Virgínia combinou de apanhar a filha
antes da uma da manhã.
A festa estava legal, divertida, todos dançaram muito, riram muito,
algumas meninas estavam com garotos, pelos cantos, aos beijos e amassos;
outras, mais avançadas, tinham fugido para o jardim — mas Carol estava
estranhamente calma. Olhava para tudo aquilo como se o futuro fosse dela,
como se não devesse ter pressa para coisa alguma.
Foi só quando olhou para o relógio e percebeu que já passava da meia-
noite e meia que teve um estalo. Como se seu coração disparasse, como se
fosse morrer, cair dura em instantes. Dali a pouco a mãe chegaria — e fim.
Aquela festa toda iria continuar ali e ela iria para casa, iria para a cama:
mais uma noite de lubricidade com os dedos e culpa posterior. Ficou
acelerada, desesperada. Se era para ter culpa, que fosse de algo que
realmente valesse a pena, pensou.
Dentro do peito, as batidas aflitas. Saiu em disparada atrás de Reginaldo.
Demorou um tempo para encontrá-lo, sentado em uma mureta próxima à
piscina, conversando com amigos, bebendo. Ela disse que precisava falar
com ele, apanhou-o pelo braço e saiu sem rumo. Não sabia o que queria
direito, não conseguia atinar as ideias, mas sabia que tinha pouquíssimo
tempo. O rapaz balbuciava, não entendia o que estava acontecendo — mas
era uma garota que o conduzia, uma garota bonita, que ele já tinha beijado,
então deixou.
Entraram por uma porta ao lado da casa de máquinas da piscina, Carol
enfiou a língua na boca dele — mas não gostou, estava com um gosto
horrível de cerveja. Levou a mão e agarrou o pinto do moleque, sobre a
calça, que estava endurecendo. Levou a outra mão, abriu a braguilha, tirou
o pinto para fora, arqueou o corpo e o levou à boca, fazendo igual aos
filminhos que tinha visto com a Júlia. Durou um minuto: Reginaldo espirrou
uma gosminha rala na boca da garota. Ela engoliu com gosto, limpou a boca
com as costas das mãos, abriu um sorriso satisfeito, o coração voltando ao
normal.
A festa tinha acabado para ela, foi para o portão esperar pela mãe, deixou
o Reginaldo lá no escuro, com a boca aberta de espanto e o pau para fora,
pingando.
Assim, antes dos quinze anos, começou a fama de Carol, a Rainha do
Boquete do Colégio Dom Aloísio de Oliveira Guimarães.

Fraguinha
“Não é fácil ser filho de pastores” — esse era o mantra de Fraguinha,
frase cunhada tão logo aprendeu a articular ideias.
Ele tinha razão. Ser o exemplo de exatidão, retidão e conduta cristã,
desde a mais tenra idade, tinha um custo muito alto. Significava rotina
rígida, educação austera, privações de todos os tipos. Quando os pais, o
pastor Fraga e a pastora Alaíde, fundaram a Igreja, ele tinha três anos — e a
família era bem pobre. O pai contava que um anjo apareceu-lhe numa
madrugada, pedindo que fundasse a sua própria denominação para a
salvação da humanidade. O tal anjo havia confirmado a ideia, que Fraga
também partilhava, de que sexo era uma coisa suja, só destinada à
procriação; que a oração e a adoração deviam tomar pelo menos duas
horas do cotidiano das pessoas, sob quaisquer circunstâncias; que o dia do
juízo final viria nos próximos cinquenta anos e que a criança que nasceria
de seu filho, o Fraguinha, seria o salvador da humanidade. Ou um dos
salvadores, isso não tinha ficado muito claro. Mas seria o seu neto um dos
condutores, através de sua Igreja, da salvação de todos os seres; uma
espécie de “novo Noé”, algo assim. Muito tempo depois, o próprio
Fraguinha diagnosticou o pai como esquizofrênico, mas era tarde.
A última parte da profecia do pastor havia colocado Fraguinha no centro
da igreja, justamente como exemplo dos ensinamentos. Conforme o garoto
foi crescendo, junto com a igreja, essa parte foi sendo deixada meio de lado.
O dinheiro estava entrando, alugaram um salão maior para os cultos,
depois construíram um templo grande. E uma casa grande, para a família,
em um condomínio fechado. E compraram carros. E blindaram os carros. E
mandaram Fraguinha para um internato evangélico austero, na capital. Ele
tinha doze anos, conhecia trechos inteiros da Bíblia de cor, todas as orações
e salmos e todos os preceitos estapafúrdios que orientavam a doutrina do
pai, os fundamentos da Grande Igreja da Santidade Triangular. No internato
da capital, só para garotos, conheceu os esquemas de poder, de
relacionamento social, de abuso e das injustiças de Deus: os mais fortes
sempre levavam vantagem, os mais articulados conheciam favores, os mais
ricos subornavam. Ele foi seviciado, obrigado a abusar de outros, castigado
com crueldade por seus cuidadores; aprendeu a corromper e a se deixar
corromper. E foi obrigado a dizer sempre “Amém”.
Nos cinco anos que Fraguinha ficou no internato, tornou-se um homem
completo, com uma visão total do mundo. A sua visão. Na verdade, não era
muito diferente de seu pai; talvez ambos tivessem o mesmo tipo de
transtorno mental, algo genético: ele via o mundo de uma maneira muito
específica e isso o colocava como o centro do Universo. Podia bem ser
classificado como sociopata — e sabia disso. Adquiriu uma visão objetiva
de si mesmo.
O período em que esteve no internato foi também de grande
desenvolvimento físico, de esmero nas aulas de educação física — já que
sabia que o mundo era dos mais fortes. Desenvolveu um corpo atlético, de
músculos definidos. Quando saiu, não quis mais estudar: foi ajudar os pais
na construção e expansão da Grande Igreja da Santidade Triangular —
sabia que ali estava um instrumento de dinheiro e poder.
Outra coisa que sabia era que não gostava de mulheres. Achava-as fracas,
opacas, sem capacidade intelectual, ingênuas. Os anos de dominação no
internato formaram nele um tipo de gosto sexual que podia ser chamado de
sadomasoquista — e ele também sabia disso, mas tinha uma teoria
amparada na doutrina cristã para seu comportamento sexual: sempre
evocava para si Efésios ou Colossenses. Mas antes de ser um ser sexual,
Fraguinha tinha um grande autocontrole: nunca pensava em sexo; sexo não
estava em sua pauta, só o poder, a dominação e o dinheiro.
Depois que deixou o internato, teve uma postura de observação e
avaliação de tudo. Viu e estudou como funcionava o trânsito de dinheiro
dentro da Igreja, como era feito o pagamento de propinas a fiscais de todos
os tipos, como ficavam os impostos, como era a contabilidade. Descobriu
que o escritório de contabilidade estava desviando dinheiro e decidiu
contratar um contador para ter um controle maior sobre as finanças.
Conversou com o pai, que gostou do envolvimento do filho. Na verdade,
Fraguinha queria ter o domínio total sobre as finanças, preparava a sua
tomada de posse irrestrita. Sua importância foi crescendo dentro da Igreja
ao longo de vinte anos.
Durante um culto, pai e filho anunciaram: procuravam contadores para
trabalhar na Igreja — foi ideia de Fraguinha. Algumas pessoas se
ofereceram, Fraguinha falou com elas, mas achou que nenhuma tinha o
perfil que procurava. Nesse culto estava o Santino, ex-presidiário que havia
encontrado Jesus. Ele tinha um amigo que sabia tudo sobre contabilidade,
igualmente ex-presidiário, que estava procurando uma oportunidade de
reintegração na sociedade.
Foi assim que Fraguinha conheceu Vermelho.

Vermelho
André Cardoso, ruivo como o fogo, de família humilde e apelidado de
Vermelho logo quando apareceram os primeiros fios de cabelo, tinha sido
um aluno exemplar. Com dezessete anos concluiu o colégio e prestou
vestibular para Ciências Contábeis, em faculdade pública, passando em
primeiro lugar. Comemorou os dezoito anos com a família, durante as férias
de dezembro, em Ubatuba. Todos vislumbravam um horizonte brilhante
para ele. Tudo ia bem, muito bem.
Numa tarde qualquer, ainda durante as férias, antes de começar a
faculdade, comprou umas cervejas e foi visitar um amigo, o Sandrinho, um
ano mais novo. Assim que chegou, notou que o Sandrinho estava com uma
amiga em casa, a Laura, da mesma idade. E não havia mais ninguém por lá,
os pais do amigo tinham saído.
Quis ir embora, achou que estivesse incomodando, mas os dois,
Sandrinho e Laura, pediram que ele ficasse. A Laura era desinibida, estava
com uma saia curtinha, andava para lá e para cá, cantava, distribuía energia
sexual. Todos beberam as cervejas que Vermelho levou.
O sol estava alto, era verão, os meninos tiraram as camisetas — e
Laurinha disse que também ia tirar. Todos riram e se animaram e ela subia
e descia a camiseta sem mangas, deixando que os meninos vissem seu
umbigo, o início do vão do colo. Não era uma menina bonita, mas era bem-
acabada, magra falsa, cabelos negros escorridos, aparelho nos dentes. Fazia
o tipo safadinha.
Como também havia bebido e estava um pouco zonza, Laurinha jogou-se
no sofá depois da brincadeira da blusa, abrindo um pouco as pernas.
Vermelho era o mais sério entre eles e o único que não era mais virgem: já
tinha pegado uma prostituta bancada pelo pai. Ele observava com atenção a
excitação de Sandrinho, que tinha o pau visivelmente tinindo dentro da
calça.
De súbito, a menina disse que estava ficando tarde e que precisava ir
embora — mas antes tinha que ir ao banheiro. Foi quando Sandrinho falou
com Vermelho.
— Essa menina tá louca pra dar. A gente vai deixar ela ir embora? Ela vai
dizer pra todo mundo que veio aqui, esfregou-se na nossa cara e nós não
fizemos nada.
— Eu não...
— Ela está só esperando que a gente pule em cima dela!
Eles estavam bêbados. E assim que Laurinha saiu, Sandrinho a agarrou,
pedindo ajuda a Vermelho. Vermelho a segurou e Sandrinho tirou o pau
para fora. Vermelho quis participar daquilo, animado com a visão do pau
intumescido do amigo.
Depois de bons minutos de abuso, quando a menina se deixou abater e
Vermelho caiu estirado no tapete, um pouco pela bebida e muito pelo
esforço de ter segurado Laura, e Sandrinho estava desnorteado pelo gozo,
ela conseguiu se levantar e correr para a porta. Estava sem roupa e assim
ganhou a rua, gritando. Um carro parou, os vizinhos saíram, Vermelho e
Sandrinho enfiaram-se nervosos dentro de suas roupas. A polícia chegou
logo.
Foram todos para a delegacia, onde dois policiais e um garoto, aprendiz
de repórter policial, curraram ambos, Sandrinho e Vermelho, a pedido do
pai da menina, um conhecido comerciante local. Sandrinho, menor de
idade, foi liberado, mas Vermelho foi recolhido por seis meses. Passou
quase duzentos dias na cadeia, onde foi submetido a todos os abusos
imagináveis pelos presos da cela dezenove, a maioria composta por
criminosos sexuais.
O episódio marcou a vida de todos, especialmente a de Vermelho, o
brilhante estudante. A família o renegou, os amigos sumiram e ele,
envergonhado de tudo, só encontrou abrigo com uma prostituta, aquela
com quem tivera a sua primeira experiência sexual. Ninguém sabia o
verdadeiro nome dela, era conhecida na zona por Sara Kubitcheca.
Vermelho virou protegido de Sara, tornando-se, na sequência,
administrador da casa Recanto Drinks. Sua experiência com números fez
com que os negócios progredissem no puteiro. Em alguns momentos,
Vermelho parecia até mesmo feliz, vivendo em um dos aposentos da casa,
juntando algum dinheiro. Mas dentro dele crescia o ódio e o desejo de
vingança. Especialmente contra aquele aprendiz de repórter que abusara
dele na delegacia. Ele acompanhou a carreira de jornalista daquele garoto,
viu-o crescer como alguém importante dentro da imprensa da cidade. Lia
suas matérias, recortava-as, colecionava. Todos os seus dias foram
cadenciados por aquele nome: Geraldo Assis.

Geraldo Assis
Geraldo Assis começou cedo no jornalismo policial. Com doze anos ficava
ouvindo, com atenção demasiada, as notícias no rádio. Gostava do jeito
como o locutor Castanheira Júnior contava os causos e notícias. A
dramaticidade, os pormenores. Depois imitava.
O pai de Geraldo era alfaiate, tinha feito umas camisas para Castanheira.
E conseguiu que o locutor o recebesse, com o filho. Foi um dos dias mais
felizes da vida do garoto. Geraldo tinha catorze — e com quinze anos estava
ajudando Castanheira, em um estágio não remunerado na emissora. Um dia
foi designado para cobrir um acidente de trânsito, um repórter havia
faltado. Castanheira chamou um táxi, entregou o pesado gravador de rolo
para o garoto e... não é que ele se saiu muito bem? Passou a repórter
policial.
Alto e magricela, Geraldo vivia para a rádio, para as coberturas policiais.
Praticamente abandonou os estudos: visitava delegacias, frequentava
reuniões de policiais, ia a churrascos da PM. Não tinha interesse em
garotas, não tinha amigos que não fossem tiras, gambés, guardas
municipais. E Castanheira. Não gostava nem dos outros locutores ou do
pessoal da rádio: achava gente besta, interessada em música besta, uma
turma vaidosa e mais ligada em status que em trabalho. Ele estava
interessado em trabalho — trabalho que, no caso, era chegar sempre
primeiro nas ocorrências, levantar as circunstâncias, descobrir detalhes,
entrevistar envolvidos. Tinha nascido para aquilo.
Um dia apanharam dois garotos que haviam estuprado uma jovem. Era
filha de um comerciante, uma menina bonita de dezesseis ou dezessete
anos. Os garotos chamaram a garota para a casa de um deles, os pais
estavam viajando. Deram bebida para a menina e a molestaram. Com medo
do que podia acontecer, um deles ameaçou-a e bateu nela. A garota
conseguiu escapar, fez um escândalo na rua e logo a polícia chegou e
apanhou os rapazes. Um era menor, o outro era maior de idade. Enquanto
os PMs falavam com os suspeitos, o pai dela chegou. Queria matar os
garotos, os policiais não deixaram. Geraldo viu uma conversa estranha
entre o pai e os PMs.
Na delegacia, antes de contatar os pais dos garotos, os policiais levaram
os dois para uma salinha nos fundos. Um dos PMs chamou Geraldo.
— Nós vamos comer os moleques.
Geraldo foi junto. Foi sua primeira grande matéria para a rádio, mas ele
não contou sobre a curra, claro. Aquela foi também sua iniciação sexual.

Sara Kubitcheca
Sara Cristina de Almeida nasceu em Goiânia, a família foi para Brasília
em busca de oportunidades quando ela tinha sete anos. Era a mais nova de
três irmãs: havia ainda Márcia e a Maria Estela, com nove e dez anos.
A mãe era analfabeta, o pai era mestre de obras, fã do Juscelino, o
“grande incentivador da construção civil no Brasil”. Brasília se expandia,
vivendo dias de migração. Muita casa para fazer, muito prédio para erguer,
seu Joselito, o pai, ganhava dinheiro. Não muito, mas o suficiente para dar
boas condições para todas. Foi quando aconteceu a febre do ouro de Serra
Pelada.
Todo mundo começou a subir para a Serra, à procura de pepitas. E muita
gente estava, de fato, encontrando-as. Joselito fez um caixa, deixou um bom
dinheiro para a esposa e foi para o garimpo. Nunca mais voltou. Na última
carta, dava instruções claras para as meninas, já que a mulher não sabia ler:
a vida estava por conta delas. Elas bem podiam considerar pintar a casa de
vermelho, botar uma lâmpada vermelha na porta, e atender alguns homens.
Nada havia de errado naquilo, já que era a única maneira de ganhar algum
dinheiro. Quando as meninas contaram para a mãe a sugestão do pai, ela
acatou. A mãe ficaria na administração da casa, oferecendo cerveja, beliscos
e as próprias filhas para os abastados trabalhadores braçais do Planalto
Central. Era mesmo a única opção.
Mas as três garotas ainda eram menores de idade. Maria Estela, a mais
velha, estava prestes a completar dezessete. A mãe considerou, dentro de
sua lógica restrita: mal não deve fazer. A casa vermelha, da rua Piauí,
número 493, na Asa Norte, tornou-se uma das mais frequentadas da cidade.
Sara começava na vida com catorze.
Aí tudo aconteceu rápido demais: as irmãs começaram a emprenhar;
homens, que não iam mais embora, começaram a mandar na casa; a mãe
adoeceu e morreu em cinco anos. Com vinte e cinco, Sara era experiente
para saber que Brasília não dava mais futuro. E sabia também que devia ter
algum problema físico que a impedia de engravidar. Era infértil — essa era
outra certeza.
Com o sonho de ser mãe, através de algum método científico moderno, e
de ter uma vida decente, decidiu deixar tudo ali e ir para o real centro do
país: São Paulo. Queria encontrar um emprego e um cara legal, fazer um
tratamento médico para engravidar. Mas descobriu, assim que chegou, que
a capital era muito grande e assustadora para ela. Escolheu, então, na
sequência, uma cidade de médio porte, no interior do estado.
Foi, mas não conseguiu atingir quaisquer metas de seus sonhos. Era
limitada demais, ignorante demais para trabalhar em qualquer coisa que
fosse. Só conhecia homens e paus e suores e hálitos fedidos. E sabia como
faturar em cima disso, tinha essa experiência.
Procurou uma casa de má fama na cidade e jogou a âncora. Como
conhecia o riscado como ninguém, logo virou sócia. Depois patroa. A
ascensão coincidiu com seu declínio físico precoce. Não era feia nem gorda,
mas exalava aquele ar de mulher rodada demais.
A crise aconteceu quando os travestis começaram a dominar o espaço
historicamente dedicado a casas de meninas, no centro da cidade. Ela ainda
resistiu por um tempo, mas teve que sair. A situação coincidiu com a
chegada daquele garoto, o Vermelho, que ela tinha descabaçado há tempos
e que sabia como ganhar dinheiro. Ela fez dele filho e marido. E mudou,
com ele, o Recanto Drinks para a área rural. E Vermelho mostrou para ela
como faturar ainda mais com aquele negócio decadente.

Virgínia e Geraldo Assis


Quando Virgínia se formou em Jornalismo, não conseguiu emprego em
lugar nenhum: foi trabalhar no comércio, vendendo sapatos. Ficou um bom
tempo nisso, até que ligaram, um dia, de um jornal, oferecendo uma vaga.
Pagava mal, mas era uma oportunidade. E ela não imaginava que ia
trabalhar diretamente com Geraldo Assis.
Ele já era o mais influente repórter da cidade, cobrindo as mais
importantes ocorrências policiais, mas também revelando a podridão da
política, as falcatruas, os desmandos dos figurões da cidade. Tinha mais de
vinte anos na área. Foi o acaso que juntou os dois: um crime de estupro,
seguido de morte, de uma adolescente. Foi quando Virgínia teve contato
com o que havia de mais sórdido no jornalismo e na sociedade local — e
decidiu que aquilo não era vida para ela.
Aí, uma outra oportunidade apareceu: a de se casar com um cara rico —
e ela foi; deixando todo o resto para trás. Mas não deixou de acompanhar,
através das páginas dos jornais, o que acontecia a Assis, as suas incríveis
coberturas policiais. Acompanhou tudo, até o fatídico dia.
Ele investigava um esquema de desmanche de carros e tráfi-co de
influências, comandado por uma socialite, dona de uma agência de veículos.
O caso ficou conhecido como “Os três dias de inferno na cidade”, já que
muitos acabaram morrendo de forma violenta ao longo de apenas três dias.
Assis foi uma das vítimas desses dias sangrentos: levou um tiro na cabeça, à
queima-roupa. Mas não morreu: ficou inválido, prostrado em uma cadeira
de rodas. O caso teve repercussão nacional e Virgínia ficou compadecida do
ex-colega. Entrou em contato com o dono do jornal, o Beto, e ficou sabendo
que Assis estava morando em uma chácara, na região rural da cidade,
cuidado por uma enfermeira e um caseiro, bancados por Beto e alguns
poucos amigos. Ela quis colaborar: enviava uma contribuição mensal e
anônima para o colega. Um dia, tomou coragem e foi visitá-lo.
Assis estava muito magro e abatido, uma sombra do repórter ativo, altivo
e grandalhão que tinha sido. Dentro da redação, nos tempos áureos, Assis
destacava-se entre os repórteres pelo seu tamanho e sua agitação; era
impossível ignorá-lo nos breves momentos em que estava junto dos
colegas. Agora, cumpria uma rotina de remédios, televisão, breve leitura
dos jornais, banhos assistidos pela enfermeira, cochilos e lembranças de
tempos idos. A visita de Virgínia animou-o, mas apenas momentaneamente.
Ela sentou-se ao seu lado, esforçando-se para entender as palavras que o
amigo dizia, apático, um fiapo do que tinha sido. Ela disse que tinha
saudade dos bons tempos, deu-lhe um abraço e estava quase partindo, com
lágrimas nos olhos, quando ouviu Assis sussurrar:
— Eu merecia mais uma chance.
Ela foi embora, sem saber como podia ajudá-lo.

Carol e Fraguinha
O avanço sexual de Carol apontava para uma carência de menina
mimada. Tornou-se uma devoradora de garotos do colégio, embora
mantivesse uma postura de garota íntegra, religiosa e vaidosa. Vestia-se
muito bem, tinha as melhores amigas, todas da mais alta sociedade. Ia aos
cultos dominicais, trabalhava nos eventos sociais da igreja, estava sempre
disponível para as atividades religiosas. Ia crescendo e encorpando,
virando uma mulher vistosa e atraente. Com dezessete, conhecia bem os
homens e o sexo. Foi quando teve a oportunidade de um contato mais
próximo com Fraguinha.
Em uma tarde de adoração, Fraguinha, já batendo nos quarenta e oito
anos e preocupado com a pressão dos pais para se casar e ter um filho, viu
aquela garota jovem e linda, que estava sempre por ali com a Bíblia em
mãos. Ele se aproximou e conversaram um pouco. Não foram mais que
cinco minutos e a proposta veio, direta e fulminante, para espanto da
garota:
— Quero te levar para conhecer meus pais. Quem sabe não podemos ter
um futuro?
Carol ficou confusa. Um futuro? Mas aceitou. Marcaram para o próximo
domingo, ali mesmo, na igreja. Ela devia chegar por volta das três da tarde,
ele ia marcar com os pais.
Quando ficou sabendo, Virgínia exultou. A diferença de idade era brutal,
mas isso podia não ser exatamente um ponto desfavorável. Dentro de sua
lógica particular, Virgínia pensou que a filha iria ter uma vida abastada e
que podia se tornar uma viúva rica ou, na pior das hipóteses, podia fazer
um belo pé de meia durante um tempo e depois deixar o velho filho do
pastor. Carol era jovem e dez anos passam assustadoramente rápido. Vinte
anos passam assustadoramente rápido, ela sabia. E incentivou a filha.
— Mas, mãe... Eu quero curtir a vida, viajar, conhecer pessoas. E também
quero estudar, fazer faculdade, quem sabe Jornalismo...
A mãe estremeceu. Lembrou-se dos tempos de faculdade, das bebedeiras
e ressacas e orgias e da chatice das pesquisas, dos estudos, dos professores
ensebados. Depois, do trabalho em si, dos jornalistas egocêntricos e
metidos, do chefe machista e tarado. E do salário de merda. E das coisas
terríveis que via no dia a dia do jornalismo, nas ruas.
— Pense no futuro, minha filha. O pastor Fraguinha pode te dar a vida
que toda mulher sonha.
A filha considerou. E ela bem que achava o pastor bonito e magnético.
No dia combinado, a mãe a vestiu com sobriedade, conversou com ela,
pediu que ela mais ouvisse do que falasse. Depois, as duas iriam avaliar o
que havia sido dito. Levou a filha até a igreja para a tal conversa, deixou-a
na porta e ficou esperando.
Fraguinha não estava lá. Um homem recebeu Carol e a levou até um
aposento nos fundos da igreja, onde havia uma cadeira e, diante da cadeira,
um sofá de três lugares. Ele apontou, para que Carol sentasse na cadeira, e
disse que os pastores já viriam. Ela ficou lá, parada, apreensiva, quando
entraram os dois, o pastor Fraga e a pastora Alaíde, e sentaram no sofá,
cada um em uma ponta. Por um instante, Carol achou que o lugar vago, no
centro, seria de Fraguinha, mas logo percebeu que aquele lugar era a
distância que o casal mantinha um do outro, respeitosamente.
Eles fitaram a garota durante alguns instantes, até que a pastora abriu
um sorriso e iniciou a conversa.
— Oi, Carol. Nosso filho gosta muito de você, disse que te observa há
algum tempo e acha que você também gosta dele. É verdade?
Era um interrogatório. Pensando na mãe, Carol preferiu responder com
monossílabos.
— Sim.
— Nós conhecemos você e sua família, sabemos que são fiéis em nossa
congregação há muito tempo. E ficamos muito felizes que nosso filho tenha
se interessado por uma... das nossas.
Carol meneou a cabeça, sem saber o que dizer. Isso era ainda melhor que
monossílabos.
— Você gosta da nossa igreja e pretende continuar fiel aos nossos ideais?
— Sim.
— Você sabe que o pastor Fraga teve uma revelação de que o nosso neto
será o continuador da nossa Igreja, o salvador da Humanidade, e um grande
peso estará sobre os seus ombros?
O pastor Fraga estava ali, afundado no sofá, como se tudo aquilo não
fosse com ele, com uma cara amorfa, talvez cochilando atrás dos óculos
grossos.
— Sim.
A apreensão crescia e uma pequena ânsia de vômito parecia chegar a
Carol. Ela se sentia desconfortável na cadeira dura, diante daqueles dois
pesos mortos sobre o sofá. Por um instante, achou que Fraguinha
observava tudo de algum lugar estratégico, talvez estivesse mesmo atrás
dela, assistindo à conversa.
— Você sonha em ter filhos, Carol?
— Sim — respondeu, titubeante. Na verdade, nunca havia pensado
naquilo.
— É uma questão importante, queremos que nosso neto seja criado
dentro da Igreja e preparado para ser um pastor, como o nosso filho.
— ...
— Se você aceitar, bem, namorar com o nosso filho e vier a se casar com
ele, acha que pode ter um filho que vá continuar o nosso trabalho?
Carol hesitou ainda mais. A pergunta envolvia várias condicionais que
faziam parte de um futuro distante. Não era apenas uma conversa para ver
se ela satisfazia a expectativa dos dois, se poderia haver um namoro, uma
aproximação entre Fraguinha e Carol. Já estavam fazendo planos para seu
filho homem, que ela sequer sabia se ia nascer um dia. Arriscou:
— Mas... E se o filho não for homem?
O pastor Fraga tossiu seco, a pastora emendou:
— Querida, conhecemos alguns desígnios de Deus. Além do mais, está na
Bíblia. E o meu marido viu isso em sonhos. O filho do nosso filho será
homem e irá conduzir a Humanidade pelo melhor caminho. Palavra da
salvação!
O pastor juntou as mãos e fechou os olhos — ou o que dava para ver de
seus olhos atrás daquelas lentes. Carol também fechou os seus — de medo.
A pastora achou que fosse resignação.
— Acho que podemos observar as coisas, ver como tudo vai caminhar,
Carol. Gostamos de você, sabemos que é uma menina direita, justa e fiel. Eu
e meu marido aceitamos que você e nosso filho se conheçam melhor. E
vamos orar para que tudo caminhe bem.
— ...
— Mas, para que tudo se confirme, para que toda profecia se cumpra e
para que você possa desposá-lo e ter o filho que irá nos conduzir à salvação
você precisa...
— ...
— Você, minha filha, você precisa...
— ...
— Ser virgem.
Carol gelou.
— Você é virgem, não é, minha filha?
— Sim.
Ela mentiu com temor, mas com uma ponta de satisfação.

Vermelho e Sara Kubitcheca


Quando o pai de Vermelho o levou para perder o cabaço, Sara era apenas
uma das sócias do puteiro Hora Feliz, que depois se tornaria o Recanto
Drinks. O pai tentou indicar várias garotas para o filho, mas ele não se
interessou por nenhuma. Algumas eram bem jovens e bonitas, porém o
garoto sussurrava no ouvido do pai que queria uma mulher mais madura.
Foi quando viu Sara, que estava em uma outra mesa, com outros homens.
— Quero aquela.
Para Vermelho, em sua mente privilegiada, essa trepada inaugural devia
ser com alguém mais experiente, já que ele não sabia se a coisa toda iria
funcionar. Uma garota jovem podia exigir mais do que ele talvez pudesse
dar. Vermelho sabia que algo não estava exatamente bem em seu corpo.
Nos bailinhos do colégio ou nas festas de amigos, quando dançou ou beijou
algumas garotas, não sentia um tesão verdadeiro. O pau nunca parecia
suficientemente duro. Em casa, quando assistia à televisão, sentia algo
estranho quando aparecia um tipo específico de homem — e ele se
questionava se não seria viado. Sentia uma atração estranha por homens
grandes e peludos, tipos meio gordos. Sonhou, um dia, com um cara desses,
com um pau grande e roliço. Mas não desgostava de mulheres, não era isso
— apreciava as formas e os desenhos de algumas. Mantinha-se confuso,
sem saber o que fazer, o que querer e o que sentir.
Não ia decepcionar o pai — queria ver como se sairia com uma mulher.
Mas não podia ser uma garotinha que depois fizesse galhofa sobre a sua
atuação.
O pai, um tanto contrariado, esperou uma brecha e falou com Sara.
Foram, Vermelho e Sara, para o quarto.
Embora tivesse apenas dezesseis anos, Vermelho era um homem, com
corpo formado e bonito. Sara era veterana e sabia, através do pai do garoto,
que ele era virgem. Com cautela, iniciaram uma conversa que foi relaxando
o rapaz, até que ela se despiu, provocando nele um início de ereção. Sara
achou que a meia-bomba era pelo nervosismo e o chupou, usando boa
sucção: sabia que assim conseguiria forçar a rigidez. Com o pau duro,
colocou rapidamente a camisinha e, sem perder tempo, sentou em cima do
membro. Vermelho não estava exatamente nervoso ou excitado, deixou as
coisas acontecerem e gozou por causa da cadência ritmada. Não pelo tesão,
que não estava ali. Após o gozo, ficou satisfeito, agradeceu à moça e disse
que esperava que todas as outras garotas que ele conhecesse no futuro
fossem tão gentis e amáveis como ela. Sara quase chorou. Era um elogio
legítimo, como ela nunca tinha ouvido.
Na cadeia, quase dois anos depois, Vermelho teve que entrar no jogo da
mulherzinha da cela dezenove: um dia tinha que chupar alguém, no outro
tinha que dar e, muito eventualmente, tinha que comer. Gostava mais de
comer. Conseguia, enfim, uma ereção e uma excitação verdadeiras quando
tinha que comer alguém, ainda mais se fosse na base da pressão, do
enfrentamento. Tinha um cara na cela, o Jorjão, que ele até gostava de
chupar. Era um cara grande e gordo, todo peludo. O grande tesão era
quando chegava a vez de comer o Jorjão: achava que aquilo era, sim, amor
verdadeiro.
Quando saiu da cadeia, Vermelho sabia que os amigos e a família tinham
conhecimento sobre o que rolava na cela dezenove — e ficou
envergonhado. A família e os amigos também sentiam repulsa pelo que ele
tinha feito à menina, do rumo que havia dado para a sua vida. Assim, não
havia ninguém lá, na cadeia, no dia em que ele foi colocado em liberdade.
Não quis ir para casa, sabia que ninguém o queria. Não queria bater à
porta da família e suplicar por espaço e atenção, encarar seu pai e sua mãe,
andar pela mesma rua que eles, sob os olhares dos vizinhos, dos amigos.
Andou bastante sem rumo, naquele dia, sem saber para onde ir e, quando
percebeu, estava próximo da região dos puteiros. Pensou em Sara, talvez
ela pudesse abrigá-lo por uns dias. Procurou por ela — e ficou sabendo que
ela tinha assumido a casa. Ao saber da história dele, Sara o abraçou.
Quando Vermelho se inteirou sobre o que estava acontecendo na região
central da cidade, com o jogo pesado dos travecos por espaços, sugeriu
mudar o negócio para a área rural. Sara gostou, e ele a ajudou nos negócios.
Para evitar possíveis assédios sexuais de Sara e das meninas, Vermelho
anunciou que se manteria casto: o sexo havia gerado problemas e traumas,
ele não queria mais. E assim esteve por vários anos, vivendo apenas das
lembranças lúbricas da cadeia. Recordava também, obsessivamente, do
abuso dos policiais e de Geraldo Assis — sempre com um misto de dor e
prazer. E de ódio por Assis. Mas, quando um tempo depois Sara ficou
carente e quis a presença de Vermelho, ele não teve como dizer não. Vez ou
outra repetiam a cena daquele primeiro dia em que transaram.
Um dia, Vermelho recebeu a visita de um companheiro de cadeia,
Santino, um viciado em drogas que já tinha ido em cana, três ou quatro
vezes, por porte e tráfico. Ele disse que estava limpo e que frequentava uma
igreja — e a tal igreja estava precisando de alguém bom com números para
a administração. Foi assim que Vermelho conheceu Fraguinha.

Fraguinha e Vermelho
Pode-se dizer que foi amor à primeira vista. Fraguinha estava sentado
em seu escritório, na igreja, entrevistando candidatos para a vaga de
contador. Todos pareciam sérios demais para ele, para o que ele desejava
de verdade: a autonomia das contas, o desvio do dinheiro. Primeiro, tudo
devia parecer bastante honesto para os pais. A cota de 40 por cento do total
arrecadado ia para uma conta secreta dos pais, em nome de um laranja — e
isso, é claro, devia continuar. Os outros 60 por cento eram para a
manutenção da Igreja, para alguns auxílios sociais e para as altas despesas
da família. A ideia de Fraguinha era otimizar tudo, negociar reduções de
despesas, subornar algumas pessoas, conseguir uns 20 por cento desses 60
para uma conta dele, em nome de um outro laranja que ele escolhesse —
talvez o próprio contador. Mas devia ser alguém de confiança. De confiança
— e não necessariamente honesto.
Quando Vermelho entrou na sala, conduzido por Santino, Fraguinha
corou — ele não corava desde o dia em que tomou banho com um amigo no
internato e o rapaz, de treze anos, igualmente ruivinho, disse que o amava.
Vermelho era um homem bonito e imponente, com viço — mas, claro, longe
de ser um garoto. Um pensamento fugidio de Fraguinha foi que aquele
homem podia fazê-lo feliz. Restava saber se ele entendia mesmo de
números.
Vermelho se sentou e começaram a conversa. Em alguns minutos,
Fraguinha teve que pedir para que Santino saísse. Eles iam começar a falar,
de fato, sobre valores reais. Santino obedeceu e Fraguinha se abriu.
— Quero enxugar essas contas, quero parar de pagar uns impostos,
quero renegociar uns subornos e desviar uma grana. Você está comigo
nessa?
O fato era que Vermelho estava bastante impressionado com Fraguinha.
Vermelho encontrava-se diante de alguém importante, influente, poderoso,
rico e que reunia todas aquelas características que, estranhamente, o
atraíam sexualmente: era alto, grandalhão, uns bons quilinhos acima do
peso e parecia ser bastante peludo e bruto por debaixo do paletó.
Imaginou, dentro de sua mente racional e de sua capacidade assertiva, que
podia ficar com esse homem para o resto de seus dias. Com ou sem sexo.
A tensão sexual podia ser sentida por alguém que estivesse ali. Mas, além
disso, havia em ambos uma vontade de independência e uma sede por
poder que os unia.
Vermelho podia continuar ajudando Sara e o Recanto Drinks.
E podia trabalhar, durante o dia, na administração da Igreja, pensou.
Aceitou o salário e as condições oferecidas pelo novo patrão.
— Esse dinheiro... que será desviado...
— Realocado — corrigiu Fraguinha.
— Realocado... Você pensa em aplicá-lo?
Era uma boa pergunta. Fraguinha não tinha pensado nisso, mas achava
que um fundo de renda fixa seria o mais indicado.
— Pode ser — considerou Vermelho —, mas acho que é possível
multiplicar esse dinheiro de maneira considerável.
Fraguinha arqueou as sobrancelhas.
— Como?
— Com drogas — respondeu Vermelho. — Com drogas?

Carol e Reginaldo
Tão logo terminou a conversa com os pastores, Carol ganhou a rua e
entrou no carro da mãe, que cochilava — mas acordou curiosa. Carol
parecia meio em choque e a mãe não parava de fazer perguntas. Carol
apenas disse que as coisas estavam indo rápido demais, que os pastores
falaram em casamento e em filhos — ou melhor, em filho e não era
qualquer filho — e ela não estava exatamente animada em se casar com um
cara trinta anos mais velho do que ela. Virgínia achou melhor não forçar a
barra naquele momento.
Em casa, Carol ligou para Reginaldo, chamou-o para tomar um lanche à
noite. Informou a mãe que não ia ao culto, que ia sair com uns amigos. Sim,
pensou Virgínia, era tudo estranho e rápido demais para ela, era bom que
espairecesse um pouco.
Reginaldo tinha acabado de ganhar um carro do pai, presente de
aniversário de dezoito anos, um carro negro, importado e grande, com um
som fantástico. Foi estacionar em frente ao casarão da família para todo
mundo saber que ele tinha chegado.
Carol deu um beijo na mãe e procurou o pai, mas o doutor Júlio estava
em mais uma reunião da maçonaria, uma daquelas reuniões de domingo,
onde os bodes decidem o destino da Humanidade.
Carol entrou no carro e, com ela, seu perfume delicioso que denunciava o
que Reginaldo já sabia: ela queria foder. Não iria ligar, convidando para um
lanche, se não quisesse trepar. E bastou entrar no carro, com aquele vestido
esvoaçante e aquele cheiro de volúpia, para Reginaldo sacar que a noite ia
ser boa.
Andaram um pouco pelo centro da cidade, passaram por alguns bares,
Carol dizendo “esse não, aquele não”.
— Vamos pegar umas bebidas e cair na estrada, que tal?
A sugestão de Reginaldo foi acatada pela Carol: apanharam um litro de
vodca, gelo e alguns copos plásticos em uma loja de conveniência. Logo
estavam em uma rodovia, ouvindo rock no volume máximo e entorpecendo
os sentidos.
A noite estava quente e Reginaldo abriu o teto solar. Em um trecho
especialmente escuro da rodovia, parou no acostamento. Desligou o carro,
ficou em pé em seu banco, tirando o tronco para fora, através do teto solar.
Deu um urro para a lua. Carol sabia o que fazer: desabotoou a braguilha do
rapaz e o chupou. Quando estava prestes a gozar, ele a empurrou, deslizou
pelo teto solar e arrancou a calcinha de Carol. Partiram para o banco de
trás, onde foderam por cerca de vinte minutos, entre goles de vodca que
caíam no assento ainda plastificado, cheirando a carro zero.
Na volta para a cidade, bem bêbados e com o som ainda rolando alto,
Carol tentou conversar.
— Regi, tem um filho da puta de um cara que quer casar comigo.
— Porra.
— É, o cara tá louco, quer casar comigo de to-do jei-to.
— Manda ele se foder, caralho.
— Mas... O cara é rico pra ca-ce-te.
Carol falava separando as sílabas do final da frase quando estava bêbada.
— Puta que pariu! Dá um golpe nesse viado.
— O cara quer casar comigo, esse fi-lho-da-pu-ta!
— Porra, casa com esse filho da puta então, Carol.
— Mas porra, o cara é bem mais velho que eu. Bem-mais-ve-lho!
— Porra, casa e mata o filho da puta!
Os dois riram.
— O cara quer casar comigo, ca-ra-lho!
— Você deve ter dado uma chave de buceta no cara, hein, Carol?
Reginaldo riu, Carol não.
— Ué, que foi? Vai me dizer que o cara quer casar com você e nem te
pegou ainda?
— O cara quer casar comigo, porra!
Carol repetia a frase, meio fora de si.
— E você ainda não trepou com ele, Carol?
Ela ficou quieta, com um ar triste e pensativo.
— Esse é um dos problemas, Regi. O cara quer casar, mas acha que eu
sou virgem. Vir-gem, ca-ra-lho!
— Porra, e você quer casar com o cara?
— Tô pensando nisso, caralho. Mas eu não sou mais vir-gem, por-ra!
— Porra, Carol. Vai te fuder. Costura essa porra de buceta e fica virgem
de novo, caralho.
Uma luz acendeu na cabeça da menina.
Segunda parte: As reformas
A sede da Grande Igreja da Santidade Triangular ficava na região central
da cidade, no local onde havia funcionado o maior cinema da região. A
fachada era pintada de um amarelo opaco e uma espécie de outdoor, grande
e colorido, fazia a propaganda: “Sejam bem-vindos à Grande Igreja da
Santidade Triangular, onde você encontra o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”
Do lado direito do outdoor tinha uma foto grande do pastor Fraga, de terno
preto e com uma Bíblia na mão esquerda; na outra ponta, em uma foto
menor, estava a pastora Alaíde, muito maquiada e com um despropositado
vestido florido. Mais no canto, abaixo da pastora Alaíde, em foto ainda
menor, estava Fraguinha, com um paletó bege e sem gravata. Em letras
pequenas, abaixo de Fraguinha, podia-se ler: “Um dia, Ele voltará para
júbilo dos que creem! (Isaías, 3,25)” O outdoor feio e cafona tinha mais de
dez anos e estava desbotado, Fraguinha queria trocar aquilo, colocar algo
mais chamativo, mais bonito, mais moderno.
— Meu filho, logo tudo isso será seu, você continuará o nosso trabalho.
Mas acho importante que você considere que os fiéis não podem achar que
estamos gastando o dinheiro das doações com futilidades.
— Isso não é futilidade, pai, é marketing! — tentava explicar Fraguinha.
— Eu não entendo disso, mas acho que a maior propaganda que
podemos fazer é a nossa postura de humildade e dedicação: é isso que o
povo vê e aprova.
O povo, no caso, não conhecia profundamente a vida abastada daquela
família — e isso era bom. A mansão em que moravam ficava no melhor
condomínio fechado da cidade e tinha sete funcionários. Os pastores não
sabiam dirigir, tinham dois motoristas à disposição o dia todo. Na Igreja, da
administração até o curso de novos pastores, eram quinze funcionários.
Havia ainda uma organização de voluntários para diversas tarefas, muitas
delas servindo a interesses pessoais da família de pastores. Entre as tarefas
e obrigações diárias do pastor Fraga e de seu séquito, estava a supervisão
de cinco igrejas espalhadas pela periferia da cidade e de quarenta e duas
igrejas espalhadas pelo Brasil — e a denominação só crescia, como um bolo
fermentado dentro do forno. Só na cidade, a arrecadação com donativos
chegava a impressionantes sete mil reais por dia, o que dava cerca de
duzentos mil reais por mês. As outras quarenta e duas filiais enviavam
mensalmente, para os cofres do pastor Fraga, cerca de dois milhões de
reais, descontados os custos operacionais. Menos de 10 por cento de todo
esse valor era suficiente para as despesas totais da Igreja, incluindo os
aluguéis dos seis templos na cidade.
O velho Fraga tinha ainda um acordo — que ele chamava de “convênio”
— com a prefeitura. Na verdade era só um acordo escuso com o prefeito:
para não criticar ou não falar mal da prefeitura durante os cultos, recebia
um depósito de trinta mil reais por mês. Rigorosamente 40 por cento de
tudo o que era arrecado com doações nos templos ia para uma conta
secreta do pastor; conta que só os três membros da família conheciam.
Fraguinha chegava à sede da Igreja bem cedo, por volta de sete da
manhã, e ficava até o culto diário mais importante, o das sete e meia da
noite. Geralmente, acompanhava a abertura dos trabalhos do culto, falava
algumas palavras e saía. Algumas vezes, apanhava o carro blindado e
passava pelas outras unidades da Igreja para falar com fiéis da periferia e
para ver como estava o culto naquelas unidades, dar uma olhada na
arrecadação do dízimo, ver se os pastores não estavam roubando nada. Só
lá pelas dez e meia da noite é que ia para casa, direto para o quarto, onde
jantava — o pessoal da cozinha preparava o cardápio que ele indicava,
geralmente frango, salada e arroz integral. Ele tomava um ou fazia um
pouco de exercícios na sua academia privada, que ficava contígua ao
quarto. Por volta da uma da manhã, quase todos os dias, ligava o laptop,
pesquisava um pouco sobre outras denominações religiosas e entrava num
chat fechado, que debatia a expansão das igrejas evangélicas no Brasil.
Eventualmente, via um pouco de putaria no site “Men and Boys”.
O ritmo de Fraguinha era frenético, ele não tinha vida social, não tinha
amigos, não fazia nada a não ser cuidar dos negócios da Igreja, pensar
sobre a expansão da Igreja, imaginando novas maneiras de faturar ainda
mais. Em alguns momentos, achava que estava cansado daquilo, que devia
parar, pegar uma grana e fugir para algum lugar, Caribe, Tailândia, Grécia,
buscar o descanso, o remanso, um cara forte e bonito para chupar. Mas
sabia que era bastante saudável, tinha muita energia, podia deixar isso para
mais adiante, quando tivesse dinheiro suficiente para fazer tudo, tudo!, o
que realmente quisesse. Embora não soubesse, de maneira clara, o que era
aquele tudo.
Foi quando apareceu Vermelho e ele se interessou — primeiro,
fisicamente. Vermelho era um cara estranhamente mesmérico com aquela
cabeleira vermelha, aquelas mãos grandes, aquele jeito rústico de ex-
presidiário. Depois, o interesse recaiu sobre a direção para qual Vermelho
apontava: prostituição e tráfico de drogas. Aquilo não podia ser mais difícil
do que administrar uma Igreja. Mas era ilegal. A excitação por fazer algo
que explorasse e corrompesse ainda mais os outros foi um lampejo
brilhante na mente de Fraguinha. Ele ponderou se o seu interesse pela
Igreja não era, na verdade, uma forma de se vingar da sociedade, essa
sociedade burra e hipócrita. Fraguinha adorava ver aqueles fiéis tão
pobres, humildes e fodidos enfiando as mãos nos bolsos, tirando trocados
amassados e fedidos, tudo o que tinham, e colocando nas cestinhas
enquanto cantavam “Eu dou, Senhor, pois a vida tu me deste”, uma
composição tola que o pastor Fraga tinha escrito, segundo ele, também
inspirada por um anjo.
Explorar garotas através da prostituição e financiar o tráfico de drogas,
saber que esse povo nojento e imundo estaria enfiando a mão no bolso,
atrás dos últimos trocados, para comprar uma trepada com uma
desqualificada qualquer ou ainda uma pedra de crack, fazia o coração de
Fraguinha pular dentro do peito. Era excitação verdadeira; era emoção de
encher os olhos d’água.
Esse cara, o Vermelho, e esse novo horizonte, de sexo e drogas, deram a
Fraguinha um ânimo renovado. Sentia-se motivado, agitado. Mas ele tinha
esse problema, essa menina, a tal Carol, e a pressão dos pais para ter um
neto. Sabia que teria que lidar com isso, mas não sabia exatamente como.
Chegou a pensar em ter uma conversa bastante direta com a garota,
oferecer-lhe dinheiro, e contar que ele não estava nem um pouco
interessado nela, em sua virgindade ou numa porra de filho. Mas e se ela
fosse mesmo uma dessas crentes fervorosas? E se ela achasse que podia ser
a porra de uma nova Nossa Senhora, a porra da mãe de um novo Jesus?
Fraguinha foi conversar com o pai.
— Pai, eu vou pintar a igreja, vou mudar essa fachada horrível,
precisamos modernizar, vamos fazer novas fotos, vou criar um novo
logotipo, vamos inovar...
— Filho...
— Pai, eu entendo que o senhor não quer demonstrar que está gastando
o dinheiro dos fiéis de maneira irresponsável, mas não podemos ficar para
trás. Veja o que as igrejas estão fazendo, com programas em horário nobre
na TV, com boletos bancários e até pagamento de dízimo com cartão de
crédito! Não podemos caminhar tão devagar contra a tendência...
Fraga juntou as mãos e fechou os olhos, como se estivesse pensando
sobre o assunto, mas era só cansaço. Ele estava velho, sabia que não tinha
muito mais tempo de vida, não ia conseguir tocar as coisas do seu jeito para
sempre.
— Faça como bem entender, meu filho. Mas eu quero um neto em dois
anos. Case com a moça o mais rápido possível e nos dê um neto. E tudo será
seu.

— Sara, esse lugar está muito caído, precisamos dar uma ajeitada nesse
puteiro.
Sara lavava a louça da noite anterior, estavam apenas os dois na cozinha,
as meninas dormiam. Vermelho já tinha tocado nesse assunto antes, queria
reformar a casa, fazer um palco decente para os shows das meninas,
comprar umas poltronas mais confortáveis para os clientes e,
principalmente, pintar a fachada, colocar um letreiro luminoso. Era ele
quem controlava o dinheiro, cuidava das contas, mas Sara sabia que as
coisas não iam muito bem.
— Não temos dinheiro para isso, querido.
— Sara, a cada mês abre um puteiro melhor. Você devia dar um pulo na
casa da Amanda, ver o que ela fez por lá. Tem até máquina de fumaça.
Daqui a pouco ninguém vem mais aqui. As pessoas querem um lugar bonito
e sofisticado. Nossas meninas já não são grande coisa; se não tivermos um
ambiente agradável nossa receita vai cair ainda mais.
— ...
— Comecei a trabalhar lá na igreja, vai entrar uma graninha extra, acho
que podemos comprar umas tintas, nós mesmos pintamos, botamos as
meninas para ajudar...
O Recanto Drinks ficava a cerca de quinze quilômetros do centro da
cidade, em uma zona rural marcada pela plantação de laranjas. A estrada
era asfaltada, era bem fácil chegar ali. A área era grande, com uns dois mil
metros quadrados, com cerca de alambrado e um portão eletrônico
encimado por um letreiro pequeno, com o nome da casa, em neon azul.
Havia o estacionamento, em chão de terra batida. A casa, que antes era uma
casa de fazenda, tinha cômodos grandes e estrutura boa, mas conservava a
mesma pintura desde sempre, um amarelo que, um dia, tinha sido vívido.
Ao entrar, o cliente via um balcão do lado direito, onde funcionava o bar, e
um palquinho com cerca de trinta centímetros de altura, onde aconteciam
os strips. Entre o balcão e o palco não havia espaço para mais que cinco
mesinhas com quatro cadeiras cada uma. Adiante, no próximo cômodo,
ficava uma outra sala, que eles chamavam de “reservado”, onde havia mais
seis mesinhas. Ali, era mais escuro do que a sala principal e servia para que
as meninas fizessem o trabalho de entretenimento mais agressivo, com
aqueles que não queriam um programa, só queriam, digamos, “namorar e
beber”. Essa sala dava acesso para dois corredores que levavam aos
quartos, dois à direita e três à esquerda. Durante o dia, esses quartos eram
usados pelas dez meninas que trabalhavam ali. Mais adiante, seguindo pelo
corredor da esquerda, havia a despensa e a cozinha, aos quais os clientes, é
claro, não tinham acesso. Às cinco da tarde, todos os dias, as meninas
tinham que recolher seus pertences pessoais dos quartos, colocar em malas
ou sacolas, e levar para a casa da Sara, uma casinha bem menor, que ficava
nos fundos do terreno e tinha sido, antes, a residência do caseiro da
fazenda. Vermelho morava naquela casa com a Sara, mas cada um tinha seu
quarto. Em dia de grande movimento, geralmente em época de pagamento
ou véspera de feriado, Vermelho apanhava os pertences das meninas e de
Sara e trancava tudo dentro do seu carro, um Escort velho, liberando os
dois quartos da casinha para clientes. Era uma correria, mas funcionava.
A média de programas era de cem por semana, de segunda a domingo —
a casa abria religiosamente todos os dias. Isso dava um faturamento de
cerca de quarenta mil reais por mês. As meninas ficavam com 40 por cento
do valor do programa, uma inovação de Vermelho, já que Sara, antes,
pagava metade. Dos programas sobravam, então, cerca de vinte e quatro
mil reais por mês. A receita do bar era de cerca de três mil reais por
semana, o que gerava um total bruto em torno de trinta e cinco mil reais
por mês para Sara e Vermelho administrarem a coisa. Aí, havia a folha de
pagamento de propinas mensais para que a casa funcionasse: eram cinco
mil por mês para o delegado seccional, cinco mil para o comandante da
Polícia Militar, quatro mil para o secretário municipal de segurança, dois
mil para o fiscal da prefeitura, dois mil para os três policiais militares
encarregados pela área rural — eles davam uma mão na segurança dos
clientes, na chegada e saída, e eram chamados sempre que acontecia algum
problema: um cliente bêbado e agressivo, alguém que decidia sair sem
pagar. Por sorte — e por causa da amabilidade de Sara e da austeridade de
Vermelho —, os problemas eram poucos.
Havia ainda outra lista de pagamentos: dois seguranças, dois atendentes
do bar, uma cozinheira e um auxiliar. Computadas as compras mensais de
reposição, a alimentação das meninas, mais os pagamentos de telefone,
água, energia elétrica e o garoto nerd do site — que cobrava pouco e às
vezes se contentava com uma trepadinha — sobrava, no final, cinco ou seis
mil reais, que eram divididos entre Sara e Vermelho. Ou seja: era muito
trabalho para pouco dinheiro. Mas era o que tinham e o que sabiam fazer.
Entre a sugestão da reforma do lugar, a conversa com Sara e o convite de
Fraguinha para trabalhar na contabilidade da igreja, Vermelho conheceu
Ideia — o nome verdadeiro era Idalino —, um sujeito bem apessoado, de
carro importado, que frequentava o Recanto sempre acompanhado de
amigos mal-encarados. Numa noite, Ideia chamou Vermelho num canto e
fez a proposta: passar drogas na casa. Vermelho não era inocente, sabia que
havia, no puteiro, uma negociação tímida de drogas, especialmente de
cocaína: sempre tinha alguém passando um saquinho ou uma ampola, o
chamado “papel”, para outro por debaixo das mesas. Na medida do
possível, e desde que não fosse descarado, ele deixava, já que noiados de
cocaína consomem muita bebida e isso era bom para a casa — o lucro com
bebidas era maior do que o lucro com programas. Outros traficantes já
tinham feito propostas a Vermelho, se oferecendo para passar as drogas
com exclusividade no local, com comissão gorda para os proprietários. Sara
nunca quis e Vermelho sempre considerava o risco de voltar para a cadeia,
coisa que, definitivamente, ele não queria. Mas Ideia fez uma proposta que
pareceu mais interessante e mais lucrativa: ele deixaria certa quantidade
de flaconetes de cocaína com Vermelho e, na semana seguinte, passaria
para repor e receber o pagamento. Cada flaconete podia ser vendido a
trinta ou quarenta reais ali, mas ele cobraria, de Vermelho, apenas dez reais
de cada unidade.
— Cada pino — era como Ideia chamava o flaconete — custa cinco reais
para mim. Nas ruas eles são vendidos por vinte, aqui ele pode chegar a
quarenta. O sujeito está na zona, ele paga quarenta para dar umas
cafungadas e ficar mais macho. A gente sabe que esse sujeito vai beber
mais, mas não vai trepar. Eu tenho 100 por cento de lucro, você cobra
quanto quer e só paga o que vender. Que tal?
Vermelho fez as contas e achou interessante.
— Se você quiser comprar de mim, dá pra fazer ainda mais barato.
Por aquele preço, Vermelho sabia que devia ser uma droga chutada, uma
merda de pó. Mas que se foda, pensou.
Em sua mente privilegiada, Vermelho sacou que, se fosse passar drogas
ali era bom que o local estivesse mais bonito e ajeitado, para receber gente
com um pouco mais de dinheiro — pobre noiado é uma merda. Também
viu adiante e considerou que podiam dispensar umas duas ou três
meninas: já que o chapado de pó não trepa, dava para reduzir um pouco o
custo. Mas não sabia quanto podia vender, qual seria seu público
consumidor da droga. Teria que fazer um teste. Achava que valia a pena: o
que podia dar mais lucro que isso? Era um lucro de 400 por cento!
“Talvez só religião seja mais lucrativa”, considerou.
Só faltava convencer Sara. Primeiro a aceitar a reforma, depois o tráfico.

— Pai, dê uma olhada aqui, fizemos um layout da nossa fachada e


também alguns modelos para os outros templos, padronizamos tudo, acho
que assim vai ficar muito melhor, mais chamativo e moderno.
O velho Fraga foi se aproximando, ressabiado, sabendo que ia encontrar
algo que ia desgostar.
Não deu outra: Fraguinha, no layout, havia pintado os templos de...
vermelho! Todos, totalmente vermelhos. A placa frontal em cada templo,
que o cara da agência insistia em chamar de testeira, mostrava uma foto
sóbria do casal de pastores, no canto superior direito, sorridentes e
abraçados; do lado esquerdo, uma foto maior, de Fraguinha — com o
mesmo terno bege, mas com uma gravata florida e a Bíblia em uma das
mãos. Entre as duas fotos estava escrito: “Grande Igreja da Santidade
Triangular” e, abaixo, “A Igreja que mais cresce no Brasil”. E em letras
pequenas: “Venha conhecer e livre-se de todos os seus problemas”.
— Meu filho... Você pintou tudo de vermelho!
— ...
— Vermelho é a cor do diabo!
Fraguinha riu e achou que fazia uns quarenta anos que não dava uma
gargalhada.
— Ora, papai, não me venha com essas superstições! Podemos fazer mil
relações com o vermelho das fachadas, podemos dizer que o sangue de
Cristo cobre nossas paredes, unge nossas intenções, podemos citar
Coríntios, 12, ou Salmos, 27.
O pai conhecia as citações, falava sobre o poder do sangue de Deus, o
maior dos remédios, etc...
— As pessoas vão se afastar.
— Pai, como se as pessoas parassem de comer no McDonald’s por ser
pintado de vermelho. Todas as igrejas evangélicas usam o branco e o azul,
paz e tranquilidade, calma e justiça. Nós vamos pintar os templos de
vermelho, buscar uma vibração que vai mexer com a imaginação das
pessoas. Cada vez que um fiel entrar num templo vai achar que está envolto
no próprio sangue de Jesus, será uma tacada de mestre!
O carinha da agência, presente ali, regozijava atrás dos óculos de aro de
tartaruga.
— Sara, vamos pintar a casa, esse é o primeiro passo.
— Você não vai vir com aquela conversa de novo, né?
— ...
— Eu já disse que não, não quero o meu puteiro pintado de vermelho.
— O nosso puteiro!
— O nosso puteiro, pintado de vermelho — corrigiu. —Eu tenho trauma,
querido. A casa lá de Brasília, onde começamos nessa merda de vida, era
toda vermelha, era uma coisa horrível, horrível!
Sara ameaçou chorar.
— É cor de puteiro, oras! E mais, é uma cor que causa tesão, que instiga o
sujeito, que dá vida ao lugar.
Eles brigaram feio e Vermelho nem conseguiu falar sobre a ideia das
drogas. Foram dormir.

O céu estava bem azul, sem nuvens. O clima, quieto. Nem as folhas das
árvores balançavam. O sol estava quente, embora não fosse ainda sete da
manhã. Ninguém passava por ali, ninguém viu quando Vermelho abriu a
porta e saiu de dentro da casa, segurando um balde cheio.
Debaixo do outro braço, ele tinha uma brocha larga e nova. Olhou para os
lados, como se procurasse alguém, sentiu o ar fresco entrar em seus
pulmões e caminhou até a frente da casa principal. Estava agora bem diante
daquele amarelo esmaecido, que lhe causava enjoo. Olhou com cuidado. A
cor pálida, toda craquelada, era realmente horrível. Era uma casa sem vida,
sem cor, desbotada. O ânimo dele estava assim também.
Há muito tempo que ele queria isso, pintar a casa de vermelho, a sua cor,
o seu nome. Não era um pedido complicado, não havia nenhum sacrifício.
Sara não queria, gostava do amarelo, tinha trauma de casas pintadas de
vermelho. Mas ele ia pintar.
Colocou o balde no chão, enfiou a brocha, ergueu pelo cabo o máximo
que pôde. E começou a cobrir o amarelo com aquele vermelho escuro,
brilhante. A cor aderia totalmente à parede, que parecia sedenta. E ele ia
pintando, obstinado, enquanto a parede sugava.
Fazia já uns vinte minutos que ele estava ali, quando as meninas
começaram a acordar. Os pássaros cantavam, o sol batia forte e ele sabia
que o dia começava cedo no Recanto Drinks.
Não ligou para o barulho das primeiras janelas batendo, os primeiros
olhares curiosos de dentro da casa. Ouviu também um tilintar de xícaras e
seguiu firme em seu propósito. Pintava a casa de vermelho: era isso mesmo
o que ele estava fazendo.
Uma das garotas saiu. Viu-o coberto de respingos, olhou para a parede
vermelha e percebeu as moscas. Muitas. Cobrindo a parte pintada. Fitou
Vermelho e seus olhos vidrados. O olfato foi provocado em seguida, um
cheio podre. Ela entrou correndo em casa, segurando o vômito e o grito.
Quase toda a fachada estava vermelha e as moscas se amontoavam,
vindas de todos os lados. Ele estava respingado; o vermelho misturado ao
ruivo dos cabelos e da barba por fazer. Estalou a língua e sentiu um gosto
ruim na boca, gosto de bílis, metálico. Os carros da polícia chegaram, junto
com algumas pessoas das redondezas.
Os policiais foram se aproximando, cuidadosos, com as armas em punho.
Ele permanecia imóvel, parado em frente à sua última grande obra,
olhando para aquela parede frontal completamente vermelha, com pontos
e pontos móveis negrinhos, as moscas que dançavam.
Vermelho estava ali, inerte, quase sem piscar, contemplando seu
maravilhoso trabalho.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou o policial, apontando para
o peito de Vermelho.
— ...
— O senhor mora nessa casa? O que é isso aí na parede?
— ...
— Que cheiro insuportável! Oh, meu Deus! — exclamou, checando o
balde, inerte ao lado de Vermelho. — Isso é... É sangue!
— É sim — respondeu o homem. — É da Sara.

— Eu vou casar sim, mãe.


— Achei um médico, é de Campinas, ele cuida de tudo em um dia e só
pede um dia para descanso depois da cirurgia. Não é barato, mas tenho
uma ideia.
— Ótimo.
— Eu vou dizer ao seu pai que preciso de um tempo com você, que
vamos fazer uma viagem no feriado, vamos ficar três ou quatro dias fora,
ele não vai se incomodar.
— Beleza!
Carol abraçou a mãe.
— Acho que você está fazendo a coisa certa, vai ver no futuro.
— Eu sei.
— Vou pedir uma grana alta pro seu pai, ele vai estrilar um pouco, mas
sei como agradá-lo.
As duas riram.

Geraldo Assis estava mais agitado que de costume naquela manhã.


Quando havia deixado o hospital, não parecia tão debilitado. As pernas se
mexiam muito pouco, mas ele tinha sensibilidade nelas. Tinha dificuldade
em falar, mas conseguia articular com clareza, com algum esforço. Os
médicos tinham dito que ele podia se recuperar, mas com o passar dos anos
o jornalista entrou em uma espiral de depressão pela sua condição física:
não conseguia se ver em uma cadeira de rodas, quase sem conseguir
movimentar também os braços, sem poder trabalhar. A depressão se
agravou quando teve uma notícia que tirou dele a vontade de viver.
A rotina de Assis era a mesma: Elizabete, a enfermeira, conhecida por
Betão, acordava-o por volta das oito da manhã e ministrava os primeiros
remédios; dava-lhe um banho, disfarçando para não perceber a ereção
matinal; tomava o café da manhã conversando amenidades com ele, lia um
pouco do jornal, colocava-o no sol ou diante da TV.
Naquele dia, ele via o canal local. A jornalista fazia uma entrevista com
um renomado fisioterapeuta da região, um sujeito baixinho e de fala ligeira,
chamado Euclides Manso. A enfermeira foi cuidar de outras coisas,
preparar o almoço. Quando Betão se aproximou para saber se estava tudo
bem, Assis mostrou-se agitado, querendo dizer algo. Mas a excitação era
maior do que sua capacidade de falar.
— Euclides.
E apontava, de maneira atrapalhada, para a TV. Demorou muito tempo e
só depois de muita conversa é que ela entendeu que ele queria que ela
ligasse para o Beto, o dono do jornal, e que deveria contatar o tal
fisioterapeuta, o doutor Euclides, que aparecia na TV.
— Ah, o cara da TV? Você acredita que ele pode dar um jeito em você?
Assis balançou a cabeça com toda a força que tinha. Os relaxantes
musculares dificultavam ainda mais sua coordenação motora e a fala. O
repórter achava que a medicina tinha, enfim, avançado o suficiente para
fazê-lo melhorar, sair daquela maldita cadeira de rodas.
Vermelho acordou tão perturbado com o pesadelo em que pintava a casa
com o sangue de Sara que foi checar o quarto da sócia. Ela estava lá, claro, e
acordou com a entrada dele no aposento.
— Oi, querido. O que houve?
— Nada, tive um sonho ruim.
— Alguma coisa a ver comigo?
— Não, não — mentiu.
— Vem cá, deita um pouco aqui.
Ele deitou de costas para ela. Sara afagou-lhe os cabelos.
— Você está estranho, querido. Tá tudo bem?
— É, acho que sim.
— Você anda tão sozinho, só trabalhando...
— ...
— Eu também estou tão só, tão triste.
— ...
— É estranho passar dos quarenta anos sem filhos, sem marido, sem
nenhum... nenhum...
Na verdade, Sara já estava batendo nos cinquenta anos.
— ...
— Nenhum horizonte.
— Acho que as coisas podem melhorar, aí teremos mais dinheiro.
— Mas acho que não é coisa de dinheiro. Quer dizer... Se eu tivesse mais
dinheiro será que podia comprar amor e afeto? Ou juventude e
tranquilidade aqui...
— ...
— Aqui, dentro do coração?
— Talvez nenhum dinheiro compre esse tipo de coisa.
— Pois é.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, Vermelho queria começar a
conversa sobre as drogas, mas ela iria rechaçar, ainda mais depois dessa
conversa sobre “dinheiro não traz felicidade”.
— Vermelho, comecei muito cedo nessa vida, encarei muito homem de
frente.
— Sei.
— Na verdade, nem só de frente.
Vermelho riu um pouco.
— Mas toda noite eu venho pra cá com você, as meninas me perguntam...
— ...
— Você sabe como elas são... Elas acham que a gente transa todo dia, já
que eu não estou mais com idade e corpo pra pegar cliente.
— Ei, teve aquele cara, aquele negão, você deu trabalho pro rapaz.
— Ah, sim, foi uma delícia. Foi em novembro do ano passado, tem um
ano já.
— ...
— Sabia que, depois dele, eu nunca mais transei?
Vermelho sabia. Só não sabia que fazia tanto tempo assim.
— Ei, Vermelho... Me come?
— Ahn?
— Vai, vamos fazer como da primeira vez, eu te chupo e subo em cima de
você.
— Sara...
— Querido, eu sei. Eu sei que você gosta de homem, que você é um puto
dum comedor de rabo peludo. Você acha que eu não sei que você andou
comendo o Genésio?
Genésio era o cara que vinha aparar a grama, um quarentão de um metro
e noventa, mais peludo que o Tony Ramos. Vermelho chupou e comeu o
cara umas quatro ou cinco vezes, até o dia em que ele quis cobrar de
Vermelho, aí o patrão pulou fora.
— Pelo menos seu negócio não é dar, então aproveita que minha
perseguida tá bem peluda, faz de conta que é um cu de macho e me
arrebenta.
— Ah, Sara, que conversa...
— Ah, querido...
Ela baixou o short de Vermelho, encontrou o pau murcho e com muitos
pelos vermelhinhos e o abocanhou. Ele tinha certeza de que a coisa não ia
funcionar.
E não estava funcionado, claro.
Mas, então, ele pensou que Sara estava realmente carente e precisava de
sexo e talvez pudesse dar isso a ela — em troca de algumas coisas, claro. A
primeira era a reforma do lugar. A segunda, a liberação para que ele
pudesse passar drogas ali. Sim, achou que podia comer Sara para ter mais
legitimidade sobre ela, como fazem alguns casais.
Cerrou os olhos e o pau começou a crescer. Comeu Sara na frente e atrás,
para júbilo da velha puta.
Embora tudo já estivesse combinado, a decisão já tomada, Carol queria
estar com Fraguinha em um momento mais, digamos, íntimo, para
confirmar a necessidade de chegar virgem ao casamento. Por alguns dias,
depois da conversa com os pastores, ela esperou um telefonema de
Fraguinha, mas, como ele não ligou, resolveu telefonar. Na verdade, foi a
mãe quem a incentivou.
Foi difícil conseguir o número de Fraguinha. Ela ligou várias vezes na
igreja, deixou recado, falou com várias pessoas. Até que conseguiu
conversar com alguém que se identificou como secretário particular de
Fraguinha.
— Pois não, Vermelho.
— Ahn... quem é?
— É Vermelho, secretário do pastor Fraguinha, pois não?
— Ér... Meu nome é Carol, eu estive aí no domingo, falei com o pastor
Fraga e com a pastora Alaíde. Eu queria falar com o Fraguinha, por favor,
diga que é a Carol... A Carol do... casamento.
— Ele não está, mas darei o recado.
— Obrigada.
Bastaram alguns minutos e o telefone tocou — era o Fraguinha.
— Oi, Carol, desculpe não ter ligado antes, estou cheio de trabalho por
aqui.
— Tudo bem, é que...
— Meus pais me contaram que a conversa foi boa. Acho que devemos nos
encontrar, não?
— Então...
— Que tal amanhã? Vamos jantar? Posso passar para te apanhar? Que tal
sete da noite?
— Acho que...
— Então está certo, amanhã, sete horas, eu passo aí.
— Deixa eu te dar o endereço...
— Eu sei onde você mora, Carol. Fique tranquila.
— Mas como...
— Às sete em ponto estarei aí.
Estremeceu. Como é que ele podia saber onde ela morava?
No escritório, ao desligar o telefone, Fraguinha encontrou os olhos
faiscantes de Vermelho.
— Quem é essa Carol, Fra?
Fraguinha foi até a porta e a fechou com chave, como fazia sempre que ia
conversar sigilosamente com Vermelho.
— É uma menina. Vou me casar com ela.
Vermelho ficou, bem, vermelho. Eram ciúmes.
— Preciso dar um neto para meus pais. Recebi um ultimato, não posso
mais esperar.
— ...
— Essa Carol é uma menina boba, mas é jovem, saudável e de boa
família. Meus pais gostaram dela.
Vermelho levantou-se da cadeira, andou um pouco em círculos e se
aproximou de Fraguinha. Fechou os olhos e aspirou o cheiro do homem.
Fraguinha levou a mão até os cabelos rubros do outro, cabelos tão
incrivelmente vermelhos que podíamos pensar que tingiriam a mão de
quem os tocasse.
Beijaram-se.
— Vou programar o casamento para daqui uns meses. Dou um jeito de
engravidá-la, inseminação, alguma coisa assim... Quando o bebê nascer,
damos um jeito na garota, pagamos uma viagem pra ela, sei lá... Em dois ou
três anos estaremos no controle, Vermelho. Só eu e você.
— Fraguinha... eu te amo!

O doutor Júlio estava deitado na cama, lendo um volume grosso, uma


nova publicação especial da Nature falando sobre técnicas inovadoras de
colonoscopia. Virgínia emergiu do closet vestindo uma roupa estranha, na
qual ele não reparou, inicialmente, por estar envolvido com a leitura. Era
uma fantasia sexual, uma roupa de médica que ela comprara no sex shop.
Não tinha nada de especial, na verdade: era um conjunto de lingerie branca
com uma tiarinha mequetrefe, igualmente branca, com uma cruz vermelha,
e, pendurado no pescoço, um estetoscópio de plástico bem fajuto.
— Ooooi, doutor, quer uma ajudinha aí?
Ele levantou os olhos e gelou por dentro: Virgínia estava num daqueles
dias em que queria foder e, oras, ele não estava mais a fim.
Era estranho: quando conheceu Virgínia, naquele fatídico dia do exame
das hemorroidas, era recém-casado e tinha um apetite sexual voraz. Já fazia
quase vinte anos. Quando Virgínia deitou na maca, de bruços, e ele viu que
ela estava excitada, a seiva a correr -lhe pelas coxas, apalpou-lhe o sexo
com gosto. Quando ela abriu as pernas e pediu “Mete aí”, balançando
safadamente a bunda, Júlio se apaixonou. Arriou as calças, o pau pulsante
dentro da cueca. Mirou para o buraquinho escuro e, sem preservativo ou
lubrificante, meteu — nunca mais seria o mesmo. Ficou obcecado, pelo
buraco e por ela. Só pensava em Virgínia e no buraco. Pediu a separação e
assediou a garota até que ela aceitou se casar. Durante um ano, comeu
quase diariamente aquele cuzinho apertado enquanto ela gemia e dizia que
o amava. Numa das poucas metidas no orifício certo, engravidou-a. Depois,
perdeu o interesse. Por ela e pelos buracos.
O sexo, após a gravidez de Virgínia, acontecia sempre do mesmo jeito: ela
virava a bunda para ele, quando ambos iam dormir, esfregava um pouco, o
pau ficava duro, ele abaixava a calça do pijama dela, mirava o pau para
dentro da boceta, cadenciava o entra-e-sai e gozava em menos de um
minuto. O cu, ele comeu meia dúzia de vezes nos quinze anos seguintes,
sempre quando chegavam de uma festa, alterados pelo álcool. Júlio perdera
o interesse pelo cu, não era mais novidade, era como um patinete ou um
walkie-talkie, esse tipo de coisa que a gente quer ter e depois que consegue
não dá mais valor, nunca mais usa. Ele sabia que o cu estava lá e era dele e
que o podia comer quando quisesse, mas não comia; havia um certo
conforto em saber que não precisava fazer aquilo naquele dia, que podia
deixar para amanhã.
A boceta, bem... A boceta de Virgínia não tinha nenhum atrativo, era
como qualquer boceta, aquela coisa molhadinha e complacente: não via
motivos para comê-la. Além do mais, Virgínia desenvolvera uma
barriguinha flácida e a bunda caíra nos últimos anos, dando-lhe um aspecto
de velha tarada e pernóstica, dessas que só querem gozar com o pau de
alguém. Júlio não queria ser o pau que dava prazer a uma suplicante boceta
rodeada de gordura e celulite por todos os lados.
Assim, ia dormir antes dela ou muito depois, na tentativa de escapar de
uma trepada. Naquele dia, achou que a mulher fosse assistir ao filme que ia
passar na TV a cabo, era um filme histórico, desses que ela adorava. Júlio foi
ler no quarto. Depois, aquela surpresa.
Uma vez, quando Virgínia decidira trocar de carro, já tinha feito uma
dessas. Ela havia comprado um vibrador plug duplo, um estranho
equipamento destinado a aumentar o prazer da mulher, e achou que isso
excitaria o marido. O doutor Júlio ajudou-a a conectar o aparelho. E ela
ficou alguns bons minutos sofrendo de orgasmos múltiplos enquanto
chupava sofregamente o marido. Foi uma experiência inusitada, pensou o
doutor Júlio, já que a surpresa dela estava intrinsecamente relacionada ao
prazer que apenas ela sentia. Logo depois, o aparelho quebrou em
circunstâncias nunca reveladas.
Agora, numa quinta-feira, onze e meia da noite, ali estava Virgínia,
naqueles trajes ridículos, achando que podia excitar o marido.
— Ô, meu bem... Que que é isso?
— Sou sua médica, amorzinho. Sua proctologista.
Virgínia deu uma piscadela sacana.
— Ora, bem, vamos dormir! Amanhã tenho que estar cedo no
consultório.
— Ah, benzinho... Não seja estraga-prazer. Deixa a doutora Vi te
examinar um pouquinho.
Ela se jogou na cama, perdendo a tiarinha pelo caminho. O doutor Júlio
fez cara de enfastiado.
— Vou tirar sua roupa e dar uma boa examinada em você, como fez
comigo naquele primeiro dia.
Ele estatelou os olhos.

Assis chegou ao consultório do doutor Euclides com Betão, a enfermeira,


conduzindo a cadeira de rodas. De um lado estava Beto, o dono do maior
jornal da cidade; de outro estava o secretário municipal de Saúde,
convidado de Beto; à frente, meia dúzia de repórteres fotográficos e
câmeras de TV que registravam a chegada de um dos mais importantes
jornalistas da cidade à super clínica de primeiro mundo recém-montada. O
próprio doutor Euclides veio recepcioná-los.
— Bom dia. Quero dizer que estudei exaustivamente o caso do senhor
Geraldo Assis e permito-me dizer que este homem — apontou
dramaticamente para a cadeira de rodas — terá uma visível melhora em
suas condições em cerca de dez meses, podendo voltar ao trabalho.
Todos ali aplaudiram. Era uma grande notícia para a cidade, o
desentocamento de Geraldo Assis. Muita gente achava que o paladino da
imprensa tivesse morrido ou desistido do bem e da justiça.
Geraldo Assis pediu, com um menear contido de cabeça, para falar.
— Eu vou voltar. Eu mereço voltar.
Todos aplaudiram e deram sorrisinhos nervosos e se serviram, enfim,
dos salgadinhos frios.
Virgínia teve uma noite quente com o marido, explorou regiões novas no
corpo dele. Júlio não desgostou, mas ponderou e, muito objetivamente, viu
que estava um tanto velho para tudo aquilo; os hormônios não estavam
mais lá. Na manhã seguinte, logo cedo, acordou a esposa para uma
conversa.
— Vi, eu gosto muito de você, muito. Mas sou médico, sou muito mais
velho que você e queria te falar uma coisa...
— ...
— Acho que você está no auge, está vibrante e cheia de ideias e energia.
Posso sentir seus hormônios e, de certa forma, seu tédio...
Virgínia ouvia sem saber qual seria o rumo daquela conversa, mas a
palavra “tédio” bateu fundo nela, era uma palavra que usava bastante com
seu analista; sentia-se entediada durante boa parte do seu tempo, sentada
na ampla sala de estar, tardes e tardes, folheando revistas de fofocas de
celebridades ou vendo programas bobos de TV, ou dirigindo pelas ruas da
cidade meio sem rumo, sentando-se em cafés para bebericar, com o olhar
perdido no horizonte, sem qualquer gosto por coisa alguma, sem planos ou
projetos, sem paixão ou ação, sem preocupações. Via-se envelhecendo e
murchando. E pegava-se pensando no marido, que tinha uma profissão, ia
para o trabalho todas as manhãs, tinha almoços com amigos em
restaurantes, tinha os encontros da maçonaria, ia a congressos... Júlio, pelo
menos, ocupava-se, relacionava-se com pessoas, tinha uma vida.
— Então, queria dizer a você que te amo e que não quero me separar ou
deixar nossa vida tranquila, mas que você está liberada para viver um
pouco, para gastar um pouco de dinheiro... Enfim, para fazer o que quiser. E
que não estou mais a fim daquela coisa que fizemos ontem à noite.
— Mas...
— Sim, foi bom, foi legal, foi gostoso. Mas não quero mais.
— Não quer mais transar comigo?
— Como disse, eu te amo, quero passar todos os dias da minha vida com
você, mas não sinto mais, como direi... disposição para a coisa, entende?
— Não. Não entendo.
— Posso te explicar cientificamente. Meu nível de hormônios e
testosterona baixaram, é algo que acontece, é comum. Muitos homens
nessa faixa de idade procuram reposições ou tomam estimulantes e até
pílulas como o Viagra para conseguirem transar. São homens que querem
continuar transando, que querem continuar tendo a vida sexual que tinham
em seu auge sexual. É uma coisa antinatural e eu não quero isso.
— Mas...
— Calma. Vou chegar ao ponto. Sei que você precisa disso, de sexo, você é
uma mulher fogosa e, logo, sua estrutura hormonal também vai mudar. Mas
nas mulheres o processo acontece diferentemente e a proximidade da
menopausa faz com que a testosterona suba e as mulheres fiquem ainda
mais sedentas, ainda mais necessitadas de sexo.
— ...
— Veja que há um impasse nisso, acontece com todos, mas queria dizer
algo para você com muita calma e clareza...
— ...
— Você deve se relacionar e sair mais e, assim, pode conhecer outras
pessoas. Homens. E pode se relacionar com eles.
— Oi?
— É. Quero deixar você tranquila quanto a isso. Quero que você faça o
que quiser, não precisa me dar satisfação de nada, não precisa prestar
conta de seus gastos, não precisa se preocupar com horários... Quero deixar
você bem à vontade para viver algumas aventuras, para viver esse seu...
tesão.
— Mas...
— Não quero me separar e, é claro, também não quero saber dos
detalhes dessas suas aventuras. Gostaria que, se acontecerem, você fosse o
mais discreta possível, nós temos uma família, eu tenho uma reputação, não
quero ser apontado na rua, esse tipo de coisa.
A primeira reação íntima de Virgínia foi de ódio e desapontamento. Não
era o que ela queria, não era o que esperava da vida, do relacionamento, da
sua ideia de família. Mas a palavra tédio, dentro do quadro de liberdade
sem cobranças ou satisfações, confundia-a. Nos primeiros anos, Júlio era
ciumento, possessivo, controlava os gastos, estudava a fatura do cartão de
crédito e, agora, ele a liberava não só para os gastos que quisesse, mas
também sexualmente. Era estranho mas, na sequência de sentimentos que
se agitavam dentro dela, ficou até feliz. Quase sorriu.
— Vá se divertir e ser feliz. Estou aqui para conversarmos, para dividir
minha vida com você, quero viajar para o Japão no ano que vem, vamos
juntos, vai ser interessante. Que tal?
Ela o abraçou, Júlio sentou-se à mesa para tomar o café, ela foi até a caixa
de correspondência apanhar o jornal.
Assim que entrou em sua sala, Vermelho apanhou o jornal que estava
sobre a mesa, como fazia todas as manhãs, puxou a cadeira e a dona
Antônia, secretária da igreja, veio lhe trazer uma xícara de café. Ele estava
com a cabeça nas alturas, pensando em Sara, na reforma da casa, no lance
das drogas, no casamento de Fraguinha, na paixão que vinha sentindo pelo
pastor, na estranheza da sua vida até ali. Não conseguiu conter o grito que
lhe pulou da boca assim que viu a capa do jornal.
— Putaquepariu!
— Tudo bem, seu Vermelho? Algum problema?
— Ah, dona Antônia, desculpa. Não foi nada. Desculpa pelo palavrão.
A manchete era “Geraldo Assis inicia tratamento de recupe-ração”. O
olho era: “Quinze anos depois do atentado que quase o matou, repórter
policial é voluntário em tratamento fisioterápico inovador”. A matéria,
inteira na capa, relembrava os “Três dias de sangue na cidade” e exibia três
fotos: na maior, acima, Geraldo Assis na cadeira de rodas, magro e feio, com
Beto e Euclides, um de cada lado, exibindo sorrisos; no corpo da matéria,
havia uma foto menor, com Assis dentro de seu carro, no dia em que fora
vítima do tiro na cabeça, o sangue negro absorvido pelo encosto de cabeça,
o olho deslocado pelo disparo — uma foto horrível, mas sensacional para a
capa de um jornal marrom; no canto inferior direito da capa, havia ainda
uma foto de Assis no início de carreira no jornal, jovem, altivo, até bonito.
Vermelho ficou olhando as fotos durante bons minutos, as vísceras se
remexendo por dentro. Sentiu uma pressão nos intestinos, achou que fosse
cagar nas calças. Depois, seu peito se apertou e ele recordou, fazendo força
para não lembrar, do fatídico dia do estupro e da curra, daquele garoto
metendo em seu rabo enquanto dois policiais o seguravam. Vermelho não
odiava os policiais, não tinha grandes ressentimentos dos presidiários,
daqueles que o exploraram na cadeia, das obrigações sexuais que teve que
cumprir por lá; não sentia ódio de ninguém, sentia apenas uma tristeza
pelas coisas terem acontecido daquele jeito. Sua vida podia ter sido muito,
muito diferente se não fosse aquela menina, aquela bebedeira
inconsequente, aquela ocorrência lamentável. Mas tinha ódio de Assis, sim,
era um ódio grande e perturbador e ele sabia por quê: o jovem repórter
podia, naquele dia, ter se negado a currá-lo. Os policiais tinham sido
mandados, cumpriam, dentro do raciocínio de Vermelho, uma obrigação —
mas Assis não, o repórter fez aquilo por maldade, por curtição, por tesão, e
era isso que Vermelho não aceitava.
“Filho da puta”, pensou, enquanto ainda olhava e falava para as fotos.
“Você é tão ruim, tão mau, que nem um tiro na cabeça deu fim em você, não
é, seu canalha? Espero que se recupere logo, pois tem algo que eu ainda
quero comemorar: a sua morte!”
Fraguinha entrou na sala e viu Vermelho, o cenho franzido, olhando para
o jornal.
— Aconteceu alguma coisa?
Vermelho levantou os olhos, atirou o jornal para longe e balançou a
cabeça negativamente.

— Filho da puta!
— Quê? — perguntou um atônito doutor Júlio.
— Filho duma puta!
E Virgínia apontou a capa do jornal para o marido.
— Ah, é o Geraldo Assis! O que ele está aprontando dessa vez? Ele não
está paralítico ou algo assim?
Virgínia começou a ler a matéria rapidamente e foi informando o marido
sobre o que estava acontecendo. Júlio disse:
— Ele vai se tratar com o Euclides? Eu o conheço, é um cara bem sério.
Está trazendo para o Brasil uma tecnologia revolucionária de recuperação
muscular. O Geraldo tomou um tiro na cabeça e ficou sem movimentos, né?
— É.
— A área que foi afetada deve ser justamente a área que comanda os
movimentos musculares. Só que agora descobriram que o cérebro pode
realocar esse tipo de informação para outra área...
Virgínia prestava atenção, o marido era bom em explicar essas coisas da
medicina.
— Para estimular o cérebro, devem ser feitos exercícios contínuos e
intensos, coisa que as pessoas afetadas não conseguem. Esse é um princípio
da fisioterapia, na verdade: se você estimular o movimento diariamente, de
forma continuada, o cérebro vai reaprendendo a comandar esse
movimento e os músculos, é claro, vão ficando tonificados.
— ...
— Em alguns casos, e acho que deve ser o que acontece com Assis, o
passar dos anos sem estímulos faz com que os músculos fiquem atrofiados.
Aí entram os equipamentos revolucionários. Eles funcionam como uma
academia de ginástica eletrônica.
— ...
— Em outras palavras, o método revolucionário consiste em colocar o
paciente num equipamento de altíssima tecnologia e esse equipamento fica,
durante horas e horas, movimentando o corpo do paciente, movimentando
todos os seus músculos. Essa movimentação engana o cérebro, faz com que
ele acredite que o corpo voltou a se mexer, voltou a funcionar, e, assim,
volta a comandar os músculos.
— Interessante.
— Tem dado resultado, mas ainda está aquém do esperado...
— ...
— Acho que o equipamento que o Euclides trouxe da Suíça é o primeiro
no Brasil.
— ...
— E acho que o seu amigo vai ser a primeira cobaia do Euclides.
— Tomara que dê certo. Quem conheceu e trabalhou com o Assis sabe
como ele deve estar deprimido por estar assim, paralisado, morto naquela
cadeira.
— Esse tratamento exige muito do paciente, física e emocionalmente. São
horas e horas diárias de dolorosa movimentação muscular, além de doses
maciças de remédios contra a dor. Existem relatos de pacientes que
desistiram, preferiram continuar em cadeiras de rodas a se submeter a
essas dores.
— Acho que o Geraldo vai vencer essa.
— Vá fazer uma visita a ele.
— É, eu vou.

Quando Geraldo Assis tomou o tiro e ficou internado, muitas coisas


foram reveladas sobre sua pessoa. Correu a notícia de que ele não era tão
isento assim em suas coberturas. O caso mais polêmico, que veio à tona,
dava conta de um assalto no centro da cidade há mais de vinte anos.
Num final de tarde de grande movimentação na região central da cidade,
cinco homens armados, em dois carros, invadiram uma agência e levaram
sete malotes, que somavam cerca de quatro milhões de reais. Fugiram em
dois carros e foram perseguidos por quatro viaturas da polícia e uma do
jornal, conduzida por Assis. No entroncamento entre duas rodovias, houve
troca de tiros. A história oficial dava conta de que quatro bandidos foram
mortos e um malote recuperado. O quinto bandido havia fugido, a pé, por
entre uma plantação de cana-de-açúcar, carregando, inacreditavelmente,
seis malotes cheios de dinheiro. E nunca mais foi visto.
Os policiais e Assis afirmaram que um terceiro carro fazia parte do
esquema, esperando o marginal no meio da plantação, proporcionando
uma fuga cinematográfica. O seguro do banco não investigou e arcou com o
prejuízo. A população parabenizou o desempenho da polícia, que tirou de
circulação pelo menos quatro marginais de uma quadrilha que, segundo a
matéria do renomado jornalista, já havia cometido crimes semelhantes.
Mas a verdade era que dez pessoas — nove policiais e o jornalista —
tinham saído da ocorrência com cerca de trezentos mil reais cada uma.
Ninguém sabia, ao certo, se existia mesmo o quinto elemento do assalto.
Quem bateu com a língua nos dentes foi um dos policiais que vivia sob o
terror dos outros e de Assis, que o pressionavam constantemente para que
ele não bancasse o alcaguete. Tantos anos depois, com Assis inválido, dois
daqueles policiais mortos e dois aposentados, o policial bunda-mole
decidira falar: não aguentava a culpa de ter participado do fuzilamento dos
bandidos e do embolso de parte do dinheiro.
Foi o jornal concorrente que levantou a história e estampou na primeira
página. A matéria continha o relato de alguém que não queria se identificar,
dizendo que ouvira, de pessoas da família do jornalista, que o caso era real,
que ele tinha botado a mão numa dinheirama naquele assalto. Não havia
prova de nada, mas a matéria teve eco na sociedade. Estava alterada a fama
de repórter íntegro que Assis projetava perante a opinião pública até então
— embora ele ainda tivesse fãs e o nome inscrito na história da cidade
quase como uma lenda.
Assis, àquela altura, estava fora do jogo e não pôde se defender. Talvez
não quisesse se defender, já que a história do assalto e dos malotes era a
mais pura verdade.
Desde sua primeira grande cobertura, Assis tomara gosto pelo que se
chama de “usurpação do marginal”. Ou “usurpação do suspeito”, como
acontecia, mas isso não importava. Bastava ser um garoto jovem e com
corpo bonito e ele, Assis, ficava com tesão e acabava arrumando uma
maneira de vilipendiar, maltratar ou abusar do sujeito. Os anos de trabalho
na rádio, com a dramatização da violência, fizeram dele um odiador do
malfeitor. Assis queria canibalizar o mal, enfiar o pau no cu do estuprador,
dar porradas no agressor. Era, para ele, uma maneira de fazer justiça. E
também lhe dava imenso prazer.
Sua agressividade foi crescendo quando ele foi para o jornal impresso, já
consagrado como repórter policial e com muitos amigos nos meios. Só
achou que ia parar com essa tara pelo bandido quando conheceu Tiago
Zanco, um empresário que se travestia na calada da noite, por quem se
apaixonou. Mas Tiago morreu e ele levou o tiro, na sequência.
Como havia tido uma namorada desde os dezessete anos, com quem se
casou aos dezenove, a Clara, Assis permaneceu um homem fiel aos olhos da
elite social. Teve uma filha com Clara, a Camila. Quando o caso dos malotes
aconteceu, a filha tinha dez anos. Colocar trezentos mil reais no bolso
significou, para ele, a independência de sua família.
Na noite do assalto ao banco, com um malote cheio de dinheiro no porta-
malas do carro, ele chamou Clara para uma conversa. Camila já estava
dormindo, Assis abriu um bom vinho, serviu duas taças e avisou,
inicialmente, que aquela não seria uma conversa romântica. Tinha o dom
da palavra, o Assis. Não era de rodeios mas, se quisesse, podia ser o mestre.
Nesse dia, foi direto e explicou:
— Meu amor, estamos juntos há muitos anos. Você deve ter percebido
que eu não a procuro sexualmente. É porque minha sexualidade está em
outro lugar. Não, não há outra mulher, eu não te engano. Você foi e será
sempre minha única mulher. Mas minha sexualidade está no meu trabalho,
nas minhas matérias jornalísticas, nos homens que eu ajudo a prender.
Para a sexualidade convencional eu posso mesmo ser um homossexual, já
que me satisfaz ver aqueles garotos presos. Não quero mais te enganar com
esse casamento de aparências. O que você me diz?
A pergunta não devia ser respondida — e não foi. Na sequência, Assis
disse que ia passar uma grande quantia de dinheiro à Clara como forma de
compensar todos os anos que haviam passado juntos. Mas, em
contrapartida, gostaria que Clara continuasse com ele.
— O dinheiro procura retribuir os últimos dez anos. Espero poder, daqui
a mais dez anos, te compensar novamente.
Ela deveria continuar com ele. Pelas aparências, pela Camila, pelos
trezentos mil reais que ele colocava em sua mão. Dinheiro que ia ajudar a
família dela, sua mãe idosa com Alzheimer, e Camila que, em breve, iria
para a faculdade.
Clara aceitou, contente. Mais tarde, após a história dos “Três dias de
sangue na cidade”, e com o marido inválido e a sua mãe já morta, ela
decidiu cair fora de vez — levando, é claro, o que havia sobrado dos
trezentos mil.
Clara e a filha foram para uma cidade de Minas Gerais, onde Camila
passara no vestibular. Estavam aliviadas por terem se mudado. Assis criara
muitos inimigos na região e ambas precisavam ter cautela redobrada ao
andar pelas ruas, especialmente à noite. Na nova cidade podiam recomeçar,
podiam existir sem medo.
Numa tarde cinzenta, depois de ter tomado seus últimos remédios do
dia, Assis recebeu a visita de Clara, apoiada pelo irmão dela, o Rogério, em
prantos. Camila havia sido morta a tiros, num acidente de trânsito. Ela
havia discutido com um homem, que sacou uma arma e disparou direto em
sua face. Foi instantâneo.
O homem havia sido preso e já tinha passagem pela polícia. Era da
mesma cidade da família de Clara, no interior do estado de São Paulo.
Assis não conseguiu derramar lágrimas naquele dia, já que estava
dopado pelos remédios. O assassino podia até ser alguém que ele havia
prejudicado ou denunciado em alguma matéria. Ou em alguma instância,
além de qualquer matéria. No dia seguinte à notícia da morte da filha,
chamou Betão e pediu uma dose extra de relaxantes musculares, era bom
que morresse, não havia motivos paraviver. Betão fingiu que lhe dera a
dose extra e ele atravessou a tarde chorando sem parar e sem morrer.
Algumas semanas depois, mais conformado com a ideia da filha morta,
Assis imaginou tudo o que faria se botasse as mãos no assassino. Ele
sonhou com as mais inimagináveis torturas. E aquela sensação fez seu
corpo vibrar, fez seu sangue correr mais rápido: pela primeira vez ele quis
realmente deixar aquela cadeira de rodas. Logo depois, ele viu o programa
de TV com o doutor Euclides.

Carol se arrumou bonita e um tanto safada, com lingerie preta, um


vestido na altura dos joelhos. Não queria parecer uma crente feia, nem uma
putinha, queria ficar no meio-termo. Às sete em ponto, Fraguinha chegou.
Virgínia foi até o portão e convidou-o a entrar.
O doutor Júlio estava na sala, esperando. Virgínia já tinha, claro, contado
as intenções do homem em relação à filha. Júlio estranhou um pouco,
considerou a diferença de idade, mas achou até bom, melhor do que se
enroscar com algum demente da idade dela, algum fã de rap, algum negro
com cabelo rastafári, credo! Aceitou também por achar que conhecia bem a
filha e que aquilo não ia dar em nada: garotas adolescentes sempre se
interessam por homens mais velhos em algum momento, a psicologia
explicava: era uma projeção do pai.
— É um prazer recebê-lo aqui, pastor Fraguinha.
— O prazer é meu, doutor. Primeiramente, queria pedir a você e a sua
esposa um voto de total confiança. A Carol, comigo, estará totalmente
protegida de qualquer mal.
A garota apareceu na porta, cumprimentou Fraguinha com um menear
de cabeça e postou-se ao lado da mãe. Parecia alguma espécie de encontro,
entre pretendentes, no século XVIII.
— Confiamos em você, Fraguinha. E também em Carol. Sabemos que suas
intenções são as melhores e que não vai fazer mal a nossa filha querida.
Ambos, Júlio e Fraguinha, eram vaidosos mestres da retórica. Virgínia era
só satisfação.
Os pais acompanharam a garota até o Audi preto do pastor — e eles
saíram. Em poucos minutos, estavam na rodovia, em direção a um
restaurante chique e famoso onde Fraguinha tinha reservado uma mesa. Na
viagem de carro, não falaram nada durante cerca de vinte minutos. Até que
ele começou.
— Carol, eu sei que não sou um homem atraente.
Ela até que achava o contrário.
— Sei também que meninas da sua idade querem agitação e aventura e
eu não estou mais nessa fase.
Nunca estivera. Fraguinha jamais havia frequentado qualquer festa ou
boate, jamais tinha conhecido qualquer tipo de aventura juvenil.
— O que eu estou te propondo, com esse casamento é, de certa forma,
uma espécie de libertação.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Casamos em alguns meses, temos um filho e, depois, você terá a
liberdade de viajar, conhecer os lugares que quiser, com quem quiser,
estudar, trabalhar com o que quiser, ser plenamente feliz.
Era o que ele queria de verdade, estava sendo honesto. Com aquela
conversa, esperava a total submissão dela nos próximos meses.
— Você tem sonhos, Carol? Quais são os seus sonhos?
— ...
— Pode falar comigo, Carol. Eu não mordo.
Ela riu, um pouco por nervosismo.
— Eu termino o colegial neste ano. Depois queria fazer faculdade de
jornalismo. Ou talvez veterinária.
— ...
— Mas posso esperar dois ou três anos.
— Que bom.
Chegaram ao restaurante, foram conduzidos até a mesa, ele fez o pedido
sem olhar no cardápio: pediu cação ao molho de leite de coco e água
mineral para os dois, não consultou Carol em nenhum momento.
— Você sabe por que Jesus gostava de peixe, Carol?
— ...
— Peixe era a comida preferida de Jesus. É também um símbolo para os
cristãos. Você sabe por quê?
— Não. Nunca pensei nisso.
— De todos os animais, o peixe é o único que só vai adiante, nunca para
trás. Você já viu algum peixe nadando... de ré?
Ela riu, era uma imagem engraçada e interessante.
— Ser cristão significa, antes de mais nada, ir adiante em nossa vida,
mesmo com todos os dissabores, todas as dificuldades e problemas.
— ...
— A psicanálise diz que a água representa o nosso inconsciente. O peixe
é como a lógica dentro de nossa cabeça: ele nada para a frente.
— Interessante.
Ela tentava acompanhar, ele a induzia a aceitar o casamento sem
questionar. Estava usando o recurso da metáfora, tão usado em igrejas para
confundir os ouvintes. Se o pastor cria uma imagem forte, que vai grudar na
cabeça do ouvinte, pouco importa se o que ele vai dizer tem alguma lógica
ou fundamento. Fraguinha plantara a ideia do peixe na cabeça dela, Carol
devia ir adiante com o que já estava decidido.
O restante da conversa foi conduzido por ele, a garota se limitou a comer
pouco e a lhe dar um beijo no rosto, na despedida. O casamento ficou
marcado para dali a seis meses, em maio. Afinal, maio é o mês das noivas,
ele garantiu. E explicou o significado disso também.

Naquela tarde, Virgínia ligou para o Beto no jornal.


— Fala, minha repórter preferida!
— Oi, Beto. E aí? Como é que está o nosso amigo?
— Continua todo fodido, né? Ele começa o tratamento amanhã.
— Eu vi a matéria. Será que posso ir até a clínica para dar um oi a ele, dar
uma força?
— Sim, seria legal. Eu também vou, podemos nos encontrar lá, ele vai
gostar.
— Ótimo. Que horas?
— Que tal duas e meia? A clínica fica ali na rua da Santa Casa.
— Nos encontramos lá.
— Beijo.
Ela fuçou dentro da bolsa e achou o pedaço de papel onde tinha anotado
o telefone do doutor Alcântara Peixoto, da clínica onde ia levar a filha para
a operação do hímen.
— Oi, meu nome é Virgínia, eu estou tentando marcar uma cirurgia para
o dia catorze.
— Falei com o doutor, mas ele vai viajar por causa do feriado, disse que
não vai operar no dia catorze, infelizmente.
— Mas...
Estava tudo planejado: o hotel, bem próximo à clínica, já estava
reservado, ela já dissera ao marido que ia passear uns dias com a filha; se a
operação não acontecesse no dia planejado tudo iria por água abaixo.
— Será que eu consigo falar com o doutor?
— Só se você marcar uma consulta.
— Tem consulta para quando?
— Só para a outra semana.
Não haveria tempo de convencê-lo a operar a filha.
— Ele está aí hoje? Se eu der um pulo aí e esperar será que ele não fala
comigo entre uma consulta e outra, um papo de alguns minutos?
— Olha, a senhora pode arriscar, mas...
— Ótimo, em uma hora estarei aí.
— Não sei se...
Virgínia desligou, apanhou a bolsa e saiu. Ela ia fazer o que fosse
necessário para convencer o médico a operar a filha na véspera do feriado.
E sabia que ia conseguir.

— Como é que foi lá com a sua noivinha?


Era Vermelho, querendo detalhes do jantar romântico de Fraguinha com
Carol.
— A menina é uma boba, está tudo certo com ela. Depois do casamento
eu converso com ela, dou uma desculpa qualquer, digo que sou impotente e
infértil, que vamos fazer uma inseminação em segredo, algo assim. Aí ela
engravida. Dou um neto para os velhos e assumo a Igreja. Aí o futuro será
nosso.
— Parece um bom plano, vamos ver se vai funcionar.
Vermelho falou sem emoção, sem olhar para Fraguinha. O pastor se
aproximou dele, que estava sentado em sua cadeira, e passou a mão
longamente na cabeleira vermelha do amigo. Como sempre fazia, apertou a
cabeça dele contra seu peito; Vermelho levou a mão pela coxa de
Fraguinha, subiu até a bunda, sentiu o saco dentro da cueca, apertou um
pouco, um calafrio de tesão subiu pelo esfíncter de Fraguinha, que
estremeceu.
— Vermelho, acho que a gente precisa dar uma bela trepada.
— Vamos sair agora, vamos para um motel qualquer.
— Que se foda tudo o que temos que fazer. Vamos!
E saíram os dois pelos fundos da igreja, quase de mãos dadas.

Em menos de quarenta minutos Virgínia entrava na clínica do doutor


Alcântara.
— O doutor está?
— Sim, mas tem mais três pessoas para consulta.
— Eu espero. Você pode dizer que eu estou aqui por causa da operação
no dia catorze? Meu nome é Virgínia.
— Eu digo. E vou informar que a senhora é que insistiu, que eu já tinha
falado que ele não vai operar na véspera do feriado.
— Tá, eu digo para ele que você não tem culpa. Fique tranquila.
Virgínia sentou-se na sala de espera e pegou uma revista velha para
folhear.

Aquela seria a última semana de aula para Carol, ela já tinha fechado as
notas: era uma putinha safada, mas ia bem nas aulas, tinha uma excelente
memória fotográfica. No intervalo daquela tarde ela conversava com
Julinha e Reginaldo enquanto comiam salgadinhos de saquinho.
— Esses religiosos acham que crentes não trepam.
— Ahn?
— É incrível, estive pensando nisso depois do jantar com o meu... ér...
noivo.
— Ha ha ha ha ha.
— Essas pessoas religiosas não sabem que os adolescentes estão cheios
de hormônios e com uma vontade alucinada e natural de foder?
— Ha ha ha ha ha.
— É sério. Bastaria que eles pensassem: quem fez os adolescentes desse
jeito? Quem fez a gente com essas porras de hormônios, com pintos que
ficam naturalmente duros e bucetas que ficam naturalmente molhadas?
Não foi Deus? E por que Deus fez a gente assim? É pra que a gente tivesse
essa vontade louca de foder e aprendesse a controlar isso ou é pra que a
gente simplesmente... fodesse?
— Ha ha ha ha ha.
— Não era bem mais fácil se o tal Fraguinha chegasse e dissesse: ei,
gostei de você, vamos foder pra saber se temos química?
— Ha ha ha ha ha ha.
— Mas não: ficou num puta papo chato sobre a dieta de Jesus, eu tava
com um sono do caralho. A gente podia ter bebido umas cervejas e trepado
numa jacuzzi, num motel caro, mas está bem claro que foder, pra ele, é só
depois do casamento. Caralho, punheta ele deve bater, né? Senão a porra do
cérebro dele deve estar cheio de esperma.
— Ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha.
— Tenho a impressão de que se eu enfiar a língua na boca dele vai sair
porra pelos ouvidos. É sério!
— Para, Carol! Para! Pelo amor de Deus! Não aguento mais rir!
Julinha e Reginaldo cuspiam salgadinhos, de tanto que riam. A Carol era
mesmo uma palhaça.
— Estou fazendo piada para não enlouquecer. Imaginem que vou selar a
bucetinha daqui a uns dias e depois terei que ficar uns bons meses na seca,
sem pica.
— Ora, Carol, ainda tem dois buraquinhos.
— É, foi assim que a Sandy se manteve virgem durante todo aquele
tempo, só pagando boquete e dando o cuzinho.
— Ha ha ha ha ha.
— Vou dizer a vocês, que são meus melhores amigos e que fazem parte
desse seleto grupo de pessoas com quem trepo oca-sionalmente...
Deu um piscadinha para cada um dos dois.
— Eu até acho legal dar o cu, mas tenho muito mais tesão em chupar.
— Como é que é? — quis saber a Julinha.
— Pois é. Às vezes tenho mais prazer em chupar do que levar na
bucetinha. É sério.
— Ué.
— Estranho, né? Busquei isso na Internet uma vez e achei um filme, foi
um dos primeiros filmes pornôs já feitos, chama-se “Garganta profunda” e é
a história de uma garota que tem um clitóris na garganta. Aí ela tem que
achar caras com paus enormes para chupar e poder gozar.
— Caralho!
— Pois é, parece ser um filme interessante, vou tentar baixar.
— Será que isso é possível? Ter um clitóris na garganta?
— Não sei, mas às vezes acho que é assim comigo. A garota que fez o
filme, eu li num site, tinha sido engolidora de espadas num circo.
— Ha ha ha ha ha.
— Ah, Carol, porra, num inventa!
— Pô, tou falando sério!
— Ha ha ha ha ha.
— Se pelo menos meu noivo quisesse uma chupadinha...
Foram comprar uns refrigerantes para fazer um festival de arrotos.

Voltando do motel com Fraguinha, Vermelho iniciou o assunto do tráfico


de drogas.
— Esse cara, o Ideia, quer passar os pinos de cocaína a dez reais pra mim,
se eu comprar à vista dá pra ser ainda mais barato.
— ...
— Fiz as contas e, de maneira realista, acho que dá para faturar uns três
mil reais a mais por mês com esse negócio.
Fraguinha dirigia e pensava. Ficou uns bons minutos em silêncio.
— Três mil reais representa muito para você, não?
— Sim.
— Três mil reais é quanto arrecadamos no culto das quatro da tarde em
um dia fraco, em menos de duas horas. Três mil não é nada.
Ele estaria desdenhando do negócio?
— Quantos, como vocês chamam, pinos?, temos que vender para faturar
três milhões de reais?
A mente matemática de Vermelho trabalhou rapidamente e ele
respondeu:
— Teríamos que vender uns noventa e cinco mil pinos de cocaína para
faturar três milhões de reais.
Quanto custaria comprar esses noventa e cinco mil pinos?
— Creio que um pouco mais de meio milhão de reais.
— Me parece um bom negócio. Investir meio milhão para faturar três
milhões. Taí um número interessante.
— Mas aí a coisa começa a ficar muito grande... Como vamos vender,
digamos, cem mil pinos de cocaína? É possível que a polícia fique sabendo
disso e a gente acabe na cadeia.
— Ha ha ha ha. Vermelho, querido, ricos não vão pra cadeia, que ideia é
essa?
— ...
— Você... Você já cheirou esse negócio?
— Sim.
— E como é o efeito?
— Olha, é realmente sensacional. Essa droga dá energia, vitalidade,
aumenta a percepção, é incrível. Você devia experimentar.
— Eu quero experimentar, arrume um pouco para mim.
— OK.
— Agora... Se essa droga tem esse efeito tão interessante, por que dizem
que é tão nociva?
— O problema da cocaína é o dia seguinte. Bate uma depressão braba e
uma vontade de querer cheirar de novo; o troço é mesmo viciante.
— Interessante. Algo que fideliza o usuário naturalmente.
— ...
— Um negócio bem parecido com a fé, no final das contas.
— Pode ser.
— Estou tendo umas ideias aqui, Vermelho. Assim que chegarmos na
igreja eu vou te dar seis mil reais. Três mil são pela tarde maravilhosa que
passamos juntos...
— Mas...
— Quieto. Os outros três mil são para você investir nesse negócio das
drogas, para iniciar o contato com o tal Ideia, é esse o nome dele?
— É, é Idalino, mas...
— Que seja. E quero que me arrume um pouco da droga, quero ver que
efeito ela terá em mim.

Já havia passado tempo suficiente para que Virgínia deduzisse que o


doutor Alcântara iria atendê-la apenas no fim das consultas já que mais e
mais gente chegava e ele não a chamava. Sempre que Virgínia olhava para a
atendente, a garota virava o rosto, comunicando, posturalmente, que ela
tinha feito a parte dela, tinha dado o recado, e agora era com o patrão.
Depois de uma hora e meia de espera, Virgínia relaxou e achou mesmo que
talvez fosse melhor ser atendida no final, depois de todo mundo. Talvez o
doutor até dispensasse a atendente enjoada. Quem sabe?
Foi até o banheiro, retocou a maquiagem e voltou a ler as revistas velhas.
Já estava tudo pronto para mais uma noite no Recanto Drinks, os
funcionários arrumavam as coisas, as meninas estavam a postos, Vermelho
chamou Sara para a conversa sobre as drogas.
— Já disse que não quero me meter nisso, querido, não insista.
Ele estava calmo, argumentando com paciência.
— Vamos fazer assim: eu pego um pouco e só ofereço pra clientes
assíduos e confiáveis. Não vou oferecer droga pra qualquer um, não sou um
maluco, não quero foder com nosso negócio.
— O problema, querido, é que o cara que é nosso cliente vai comprar a
droga e depois vai falar para um amigo e esse amigo vai vir e vai querer e
vai contar para outro amigo, que vai vir e pedir, “ei, me vê um pouco de
coca aí!”, e, daqui a pouco, muita gente vai vir aqui comprar drogas e vai
acabar caindo no ouvido da polícia, que vai vir aqui e querer ainda mais
dinheiro da gente e aí nós vamos ter que vender ainda mais drogas para
pagar a porra da polícia. Sabemos como funciona.
Ela tinha razão, ele sabia. Qualquer coisa, legal ou ilegal, que desse um
bom lucro custava sempre um pedágio para alguém na polícia ou na
prefeitura. Às vezes, pedágios nos dois lugares, como era o caso do negócio
deles, prostituição. Até a Igreja, ele estava vendo agora, tinha que soltar
uma grana para fiscais, para gente que podia encontrar pelo em ovo, como
se diz.
— Nosso negócio está fraco, Sara. O dinheiro mal dá para as contas.
Duzentos ou trezentos reais a mais por noite representa uma graninha
legal no final do mês.
— Vamos pensar em algo que não seja ilegal.
— Meu bem, o nosso negócio é ilegal. Só vamos acrescentar mais
ilegalidade a ele. Só isso.
— Você quer, eu não quero. Como vamos fazer?
Vermelho não tinha contado sobre Fraguinha nem sobre os seis mil reais
que o patrão havia lhe dado de presente. Ele guardou bem o dinheiro,
estava pensando sobre o que ia fazer com aquilo. Teve uma ideia para
propor a Sara, era uma ideia que lhe batera naquele momento, ele não tinha
muita certeza sobre ela, mas não queria perder mais tempo. Arriscou.
— Sara, desde que nos conhecemos, você reclama dessa vida, diz que
veio pra cá pra tentar uma profissão, pra tentar algo mais tranquilo, mas
como não sabia fazer nada, voltou a fazer o que sabe melhor...
— ...
— Em um mês muito bom sobra sempre pra você cerca de dois mil e
quinhentos ou três mil reais, certo?
— É pouco, mas estou guardando, sei que daqui a pouco fico velha e não
terei aposentadoria.
— Certo, já falamos sobre isso, você é sensata e honesta.
— ...
— Você quer sair dessa vida?
— Quê?
— Pensei em uma proposta: você deixa isso aqui na minha mão e vai
descansar, vai passear, muda para o centro da cidade...
— Você não quer roubar o meu negócio de mim, né, Vermelho?
— Não, querida, não. Só quero ganhar um pouco mais e te dar sossego e
despreocupação.
— ...
— Que tal se eu pagar o aluguel de uma casinha bacana para você no
centro da cidade e ainda te dar, todo mês, sem que você precise trabalhar
aqui, seus três mil reais?
Era uma proposta ousada. Sara trabalhava muito, durante todo o dia era
ela quem arrumava e limpava tudo, cuidava das meninas, pagava as contas;
era um trabalho que ele não sabia como ia fazer para se virar, ainda mais
agora, com o emprego na igreja durante o dia.
— Você está mesmo querendo vender drogas aqui, hein, Vermelho?
— ...
— E está tão a fim disso que quer me ver longe, nem quer mais a minha
companhia.
Sara estava triste, ele se aproximou, abraçou-a. Vermelho tinha por ela
um sentimento de gratidão profunda, não queria ficar longe dela de
verdade, fora apenas uma ideia momentânea que teve e que pulou de sua
boca.
— Eu queria experimentar vender um pouco disso aqui, queria sim. As
condições que o Ideia deu são boas, dá para ganhar um dinheirinho bom. E
queria que você estivesse comigo nessa. Mas sei também que, se der merda,
você pode se foder — e isso me preocupa. Não quero que você se dê mal
por minha causa.
— ...
— Desculpa, estou cansado, esse negócio de dormir apenas três ou
quatro horas por noite está me deixando meio louco.
— Olha... Se não fosse você ter me ajudado com esse puteiro talvez eu
estivesse na merda, na sarjeta. Foi você quem botou isso de pé, trouxe o
Recanto pra cá, pra esse lugar lindo que eu amo tanto...
— ...
— Eu falava que queria ser alguém, que queria um emprego e morar na
cidade, mas hoje, vendo essa casa, tudo isso que construímos com o suor do
nosso rosto, tenho orgulho.
— ...
— Acho que preciso confiar em você, acho que você pode fazer uma
experiência com esse negócio, vamos ver o que dá.
Vermelho sorriu e beijou-a no rosto, um beijo de obrigado.
— E a reforminha? Posso pintar a casa também?

Já passava das sete da noite quando a atendente foi informar Virgínia que
ela podia entrar, que o doutor ia recebê-la. Pelo jeito, a moça ia embora
mesmo, iam ficar apenas os dois na clínica.
Assim que Virgínia entrou pela porta, o médico se colocou em pé e abriu
um sorriso. Era um coroa magro e alto, calvo e com olhos grandes, verde-
escuros. Tinha um jeito meio diabólico, foi o que Virgínia pensou. Parecia o
Jack Nicholson.
— Ora, mas a senhora é mesmo persistente.
— Doutor, faz mais de quatro horas que eu estou aqui. E espero não
tomar o seu tempo tanto quanto esperei.
— Desculpa, é que as consultas estavam encavaladas, já havia um atraso
e eu não podia encaixar a senhora. Ia atrasar ainda mais o atendimento.
— Virgínia.
— Desculpe?
— Pode me chamar pelo nome, “senhora” é um pouco pesado para mim.
— Ah, sim. Parece que a senhora quer insistir na operação de
reconstrução de hímen da sua filha para a véspera do feriado, mas eu não
vou atender.
Virgínia levou o braço por sobre a mesa e apanhou um porta-retrato. A
foto mostrava quatro pessoas, o doutor, uma mulher e um casal de crianças
— Sua família?
— Sim.
Virgínia botou reparo na mulher, uma coroa de cinquenta e tantos,
bastante enrugada e acima do peso. O doutor Alcântara devia dar um duro
para comer a gorducha.
— Linda família. Você tem uma filha...
— Angélica.
— Pois bem. Doutor, minha filha vai se casar, conforme eu te disse.
Imagine que a sua filha fosse casar com um homem perfeito, um homem de
boa família, rico e que ela amasse pro-fundamente...
Bem, Carol não amava o cara, mas Virgínia tinha que ser convincente
com o médico.
— Imagine que esse homem perfeito colocasse apenas uma condição
para o casamento: que ela fosse virgem.
— Conheço esse tipo de situação.
— Sim, o senhor deve conhecer. Minha filha é quase virgem, teve uma
breve relação com um moleque da escola, uma coisa inconsequente.
— Sim, dona Virgínia, eu entendo e acho que posso operar com sucesso
sua filha, mas não vai ser na véspera do feriado.
— O senhor vai viajar?
— Não, minha mulher vai fazer um almoço especial nesse dia, convidou
uns amigos.
— Quanto tempo demora essa cirurgia?
— Cerca de uma hora.
— E você não pode operar minha filha às nove da manhã e depois ir para
a porra do seu almoço?
Ela havia sido incisiva e usado um palavrão, coisa que raramente fazia.
— Acho que a senhora está nervosa.
O doutor Alcântara levantou-se, como que para indicar que Virgínia
devesse ir embora. Ela também levantou. Aproximou-se dele.
— É Virgínia.
— Perdão...
— Você me chamou de senhora de novo e meu nome é Virgínia. Não me
chame de senhora, eu sou jovem e não um bagulho, como a sua mulher.
E então puxou o homem pelo jaleco e enfiou a língua na boca dele.

Enquanto o mundo rodava, Carol passava os dias pensando em como ia


se virar sem dar para ninguém. Aquele era realmente um problema.
Bastava colocar a letra L na página do Google, em seu laptop, para
aparecer como sugestão de pesquisa o nome de Linda Lovelace, a atriz de
“Garganta profunda”. Carol pensava no clitóris na garganta: ela bem podia
ter isso mesmo, né? Bem podia ser algo real e não a premissa de um filme
pornô velho e ruim.
Pegava-se fantasiando com Fraguinha, o calor que ela ia dar nele durante
a lua de mel. Teria que fazer tudo muito lentamente, até para que ele não
descobrisse que ela não era virgem porra nenhuma. Ia matar o cara de
tesão. “Imagina se for mesmo verdade que ele nunca transou, nunca viu
uma periquita. Coitado!”
E ia para debaixo do lençol, tocar mais uma siririca, aproveitar a
bocetinha arrombada.

Naquele fim de tarde, Fraguinha e Vermelho sobraram no escritório.


Vermelho afastou as coisas que estavam sobre a mesa e despejou o pó
branco sobre o tampo de vidro.
— Fraguinha: cocaína. Cocaína: Fraguinha.
Mal sabia Vermelho que ele apresentava dois amigos inseparáveis.
Depois da segunda cafungada, Fraguinha teve uma cólica intestinal e teve
que correr para o banheiro. Ao voltar, Vermelho explicou que essa
caganeira pós-cheirada era normal, especialmente nas primeiras vezes que
o sujeito cheira.
— Interessante — respondeu Fraguinha, visivelmente aliviado depois da
evacuação furiosa.
Cafungou o que restava sobre a mesa, levantou e balançou a cabeça.
— Eu me sinto ótimo. Mesmo. Me sinto muito bem.
— Você tem um ritmo de vida muito exigente, acho que a cocaína pode te
ajudar...
— ...
— Muitos empresários, homens de negócios, essa gente que corre
demais, usam cocaína.
— Interessante.
— Você precisa observar sua reação amanhã, se vai dar o chamado
“bode” ou se você vai ficar bem.
— Tá.
— Hoje a noite vai ser corrida no Recanto, preciso ir.
— Acabou?
— Acabou.
— Mas só aquilo? É o suficiente?
— Você cheirou muita cocaína, vai ficar acordado até umas três ou
quatro da manhã.
Na verdade, Fraguinha não dormiu. Ficou na Internet, pesquisando mais
sobre a droga. Leu sobre Freud e sobre todos os usuários famosos, leu
artigos científicos, leu estudos sobre as aplicações terapêuticas da droga,
leu manifestos pela liberação da cocaína, leu tudo. Depois, acabou caindo
no “Men and Boys”, claro.
O sol nascia e ele ainda estava acordado e sem bode ou cansaço algum.
Talvez, pensou, tivesse achado um elixir mágico. Uma droga nunca
encontrou um usuário tão perfeito quanto ele.

Mãe e filha já tinham combinado tudo, esperavam a chegada do pai,


santinhas, sentadas no sofá, folheando revistas de moda. O doutor Júlio
chegou. Conversaram sobre a viagem das duas, embora Virgínia já tivesse
adiantado para o marido.
— Tudo bem, só não gastem muito nessa viagem — pediu Júlio, um
pouco em tom de brincadeira, e foi para o quarto, para ler o livro novo do
Dan Brown.
Mãe e filha se abraçaram, e Carol pediu um dinheiro para fazer uma
saideira com os amigos. A mãe liberou.
E lá se foi a Carol, ligar para os amigos e reservar um quarto grande no
melhor motel da cidade.

As reformas na igreja e no puteiro começaram. Fraguinha e Vermelho


abriram uma conta num depósito de materiais de construção e estavam,
ambos, bastante animados com a vida. Fraguinha pegava-se sorrindo, coisa
que não costumava fazer. Estava cheirando muita cocaína, mas aquilo
parecia-lhe apenas um energético que o afastava um pouco do cansaço e do
desânimo. Vermelho estava pegando os papelotes com Ideia e repassando,
mas de maneira suave, apenas para clientes que conhecia. Um dia,
Fraguinha teve uma ideia durante um culto. Pensou o que aqueles crentes
todos, cheios de problemas, sentiriam com cocaína. Era uma plateia de
potenciais consumidores da droga, e ele podia ser o fornecedor. Depois de
pensar um pouco, ao encontrar Vermelho, contou:
— Vou misturar cocaína em água e oferecer para os fiéis. Como um elixir
mágico, algo trazido de Israel; esses imbecis adoram coisas trazidas de
Israel. Vou vender água com cocaína para eles.
Vermelho tentou argumentar, mas sabia como era difíciltirar qualquer
ideia da cabeça de Fraguinha.

Carol queria mais homens que meninas em sua festinha privé, então
chamou apenas a Julinha e a Isadora. Aí, ligou para o Reginaldo e para o
Marquinhos e pediu para que cada um convidasse dois amigos legais, que
estivessem a fim de foder e não fossem sair por aí dando com a língua nos
dentes.
Todos, é claro, concordaram. Marcaram para a noite de quarta, no Motel
Aurora, suíte 500, nove da noite. Às oito, Carol e Reginaldo chegaram para
dar um conferida no lugar, ajeitar as coisas, pedir mais toalhas. Como
terminaram tudo antes das oito e meia aproveitaram e deram uma
trepadinha em pé: Carol só subiu a minissaia, Reginaldo só abriu o zíper.
— Filho da puta sortudo esse pastor: vai ter a melhor buceta da cidade só
pra ele.
— Ei, Regi, acho que ele não vai dar conta não, acho que vamos ter que
manter nossos encontrinhos.
Riram.

Naquela noite quente de terça-feira, Fraguinha interrompeu o culto dos


pais para oferecer a água santa de Israel. Era uma água especial, devia ser
ingerida apenas por pessoas de muita fé e que estavam muito desanimadas
fisicamente ou com dores insuportáveis. Custava cem reais o litro, que
devia ser ingerido ao longo de um dia, entre as dez da manhã e as quatro da
tarde apenas. Fraguinha havia dissolvido um grama de cocaína em cada
litro. Os vinte litros do primeiro dia esgotaram-se em poucos minutos.
O pai, o velho Fraga, foi pego de surpresa com a interpelação do filho,
sem aviso. O que era aquela água?
— Essa água, querido pai, é o futuro. E o futuro é nosso.
— ...
— Não há nada na água, só um pouco de bicarbonato. É como o nosso
pão consagrado ou o azeite milagroso que vendemos aqui. Sabemos que o
que importa é a fé das pessoas, certo?
— Mas meu filho...
— Vamos ver como vão se comportar esses vinte fiéis que compraram a
água. Se eles se sentirem melhor, continuamos vendendo. Isso vai nos
ajudar com a reforma.
O pastor aquiesceu. Sabia que não podia mais tirar o futuro da Igreja das
mãos do filho.

Geraldo Assis estava empapado em suor, completamente preso ao


aparelho, na clínica, quando o doutor Euclides chegou.
— E aí, campeão? Fiquei sabendo que os progressos estão sendo rápidos.
— Doutor... Eu estou me sentindo mesmo muito bem.
— Fico muito feliz. Eu já vi gente pior que você se dando muito bem
neste tratamento. Na Europa...
— Não sei o que seria de mim sem a sua ajuda.
— Sim, eu sei o que isso pode representar para alguém como você, Assis.
O tal equipamento movia, de maneira cadenciada, os membros de Assis.
Parecia uma geringonça de tortura sofisticada.
— Você parece muito bem, Assis. Se quiser, podemos aumentar o ritmo.
Apesar do pouco tempo em que Assis estava em tratamento, parecia ter
mais vigor: estava corado, os músculos retesados, com um ânimo novo. A
fisioterapia envolvia verdadeiras bombas de vitaminas e proteínas, além de
analgésicos potentes, remédios de última geração, alguns em fase de
experimentação ainda e proibidos no Brasil. Ver Assis naquele troço era
estranho e provocava espanto até em seres menos sensíveis como Betão. E,
apesar de todos os medicamentos, era visível que ele sentia muita dor.
— Pode aumentar o ritmo. Eu aguento. Depois de todos esses anos
entrevado, com a dor da anulação completa, da morte em vida, essa dor
física não me incomoda: é quase um alento.
— Betão vai acompanhar essa sessão mais intensa, vai ver sua reação.
Não queremos que você se desgaste.
— Eu estou revivendo, doutor. Liga isso no máximo!

Foi Virgínia quem ligou para Fraguinha.


— Oi... seu... ér... Fraguinha...
— Quem fala?
— É a Virgínia, a mãe da Carol.
— Que Carol?
— Ér... A Carol... A sua noiva.
Um calafrio percorreu Fraguinha. Ele estava com uns dois gramas de
coca na cabeça.
— Oi, dona Virgínia. Desculpe, estou envolvido com as reformas, com
muito trabalho aqui. O que a senhora deseja? Tudo bem com a Carol?
— Sim, sim, tudo bem. Desculpe ligar, o senhor disse que ligaria para a
Carol, já faz tempo que vocês não se veem.
Fraguinha tinha quase se esquecido da menina. Sua mente fervilhava, ele
estava feliz com as coisas, com a cocaína, com Vermelho, com a liderança da
Igreja. Será que ele ainda precisava mesmo se casar?
— Dona Virgínia, quando a Carol pode me ver? Tenho que lhe pedir
desculpas.
— Na verdade, estou ligando para dizer que vamos viajar amanhã, eu e
ela, vamos passar uns dias na capital.
— ...
— Então estou só avisando, caso o senhor quisesse falar com ela. Não
estaremos na cidade neste final de semana.
— Ah, sem problemas, dona Virgínia. Espero que façam uma ótima
viagem e, na volta, me contatem.
— Sim, sim...
— Precisamos acertar as coisas do...
— ...
— Do casamento, né?
Um embrulho no estômago de Fraguinha.
— É, vai ser daqui a cinco meses, precisamos resolver os detalhes, a
Carol está numa ansiedade!
— ...
— Bom, vou deixar o senhor trabalhar, nos falamos na semana que vem,
então.
— OK, dona Virgínia, mande um...
— ...
— Um grande abraço para a Carol.

Os primeiros a chegar à festinha da Carol foram as meninas, a Isadora e a


Julinha. Depois chegaram Carlinhos e seu amigo, o Fepo. Foi assim que
Carlinhos apresentou o sujeito para todos; era um cara grande, tatuado.
Carol deu uma boa examinada nele e abriu um sorriso.
Os dois meninos foram para a área da piscina, apanharam uma garrafa
de uísque e um balde com gelo e ficaram conversando. Carol falava com as
amigas, na cama, enquanto passava um filme pornô.
Depois chegou o amigo de Reginaldo. Era um moreno alto e forte, que
Reginaldo apresentou como Juca Pau — para a diversão geral. Estavam
todos bebendo e ofereceram bebida a Juca, que recusou.
— Se bebo, não trepo.
Carol estava quase começando os trabalhos com Fepo quando os
energéticos, que alguém pedira, chegaram juntamente com um saco cheio
de camisinhas.
— Isso aqui tá parecendo um velório! Cadê a música? Cadê a alegria?
E a Isadora proclamou:
— Todo mundo pelado!
Começaram a tirar as roupas quando a Julinha perguntou para Juca:
— Pau é seu sobrenome de verdade?
— Não, é apelido dos amigos de colégio. Deram o apelido num dia,
quando baixaram minhas calças em pleno recreio.
— ...
— E todo mundo ficou impressionado com o tamanho do meu pau.
Isadora sentiu um gelo bom.
Carol estourou um champanhe e todos ficaram na expectativa de ver se o
apelido de Juca fazia jus.
— Não quero melindrar ninguém, OK? — explicou Juca.
Ele tirou a camisa e depois a calça. E todos viram que o apelido se
justificava perfeitamente.

Na sexta, bem cedinho, Carol e a mãe carregaram a Hilux e partiram em


direção à clínica do doutor Alcântara. Chegaram às oito e meia da manhã e,
não eram dez horas ainda, a operação já tinha sido concluída. Sonolenta da
anestesia, Carol foi colocada no carro e a mãe dirigiu para o hotel. Levou a
filha para o quarto com a ajuda de uma cadeira de rodas e de um segurança
grandão e bonito.
Os quatro dias seguintes elas passaram ali mesmo, quase sem sair, vendo
coisas na TV e comendo porcarias.
A sessenta quilômetros dali, as reformas do puteiro e da igreja estavam
sendo concluídas. Fraguinha vendia a água com cocaína, aumentando
consideravelmente seus lucros. Vermelho vendia os papelotes no Recanto
faturando, num dia, o que levava uma semana para ganhar só com as putas.
Geraldo Assis mantinha seu tratamento diário na velocidade máxima e já
estava mexendo braços e dedos das mãos quase perfeitamente. As pernas
não estavam bem, mas mostravam-se tonificadas, com músculos firmes.
Era uma questão de tempo, acreditava o doutor Euclides — que já pensava
em marcar uma entrevista coletiva de imprensa para expor os progressos
de Assis.
O Natal estava chegando, as lojas estavam enfeitadas, fazia um calor dos
diabos e uma nova fase na vida de todos se anunciava.
Terceira parte: Uniões
É compreensível que uma operação como aquela mexa com a cabeça de
uma mulher e com Carol não foi diferente. Ela voltou para casa confiante
que iria se resguardar para o futuro marido. Pensou brevemente que
Fraguinha pudesse ser um excelente companheiro e um ótimo amante;
talvez ela pudesse mesmo passar toda sua vida sexual única e
exclusivamente com ele. Limpou seu computador das pornografias, mudou
seu comportamento com os amigos na escola naquela última semana de
aula — depois não atendeu as ligações dos colegas, chegou até a rezar
pedindo forças a Deus para se manter pura para Fraguinha.
Passados dez dias do retorno, Virgínia ligou para Fraguinha e marcou um
jantar.

Vermelho havia organizado um encontro entre Fraguinha e Ideia.


— Eu queria que a cocaína chegasse até os meus templos embalada, com
um rótulo que nós vamos criar.
— ...
— Algo como “sal medicinal santo de Israel”. Aí vamos estabelecer como
isso será diluído na água.
— É uma operação perigosa, seu Fraguinha.
— Eu sei, senhor Ideia. Mas estamos vendendo essa água como... água. O
dinheiro está entrando, as pessoas estão se sentindo melhor e eu tenho boa
parte da polícia em minhas mãos; acredito que nada vá dar errado.
Vermelho havia feito um planejamento logístico; carros especiais
adesivados com o logotipo da Igreja iam levar a cocaína, um responsável
direto e de confiança iria receber a droga nas unidades e fazer o batismo
das águas. Era um plano lindo e bem estruturado. Fraguinha ia comprar
tudo à vista, uma parte das drogas ficaria para Vermelho vender no
Recanto.
— O Natal está aí, as igrejas lotam, vamos vender mais de uma tonelada
de cocaína dentro dessas garrafas. Em janeiro decidimos se continuamos.
— Eu fiz as contas minuciosamente — contou Vermelho. — Se tudo
correr bem teremos mais de cinco milhões de reais de lucro líquido nessa
operação.
— ...
— O senhor Ideia irá colocar mais de meio milhão de reais no bolso.
— Está feito!

Na coletiva de imprensa, o doutor Euclides apresentou o “novo” Geraldo


Assis para uma plateia de jornalistas, curiosos e médicos. O evento foi na
sede do Conselho Regional de Medicina. Num PowerPoint, o doutor
Euclides apresentou fotos do atentado a Assis e de como ele estava
debilitado antes do tratamento, na cadeira de rodas; cronogramas das
regiões afetadas no cérebro do jornalista e dos equipamentos utilizados na
fisioterapia e, no final, imagens atuais comparando o Assis de antes com o
de agora, como fazem naqueles comerciais de remédios para emagrecer. O
grand finale foi quando Assis entrou, na cadeira de rodas, levado por Betão
e, com o apoio dela, ficou em pé por alguns instantes — enquanto os flashes
estouravam e o público aplaudia.

Conforme o combinado, quando voltaram para casa, depois da operação,


Virgínia ligou para Fraguinha.
— Estamos de volta, a viagem foi ótima, Carol está pronta.
— Pronta?
— Pronta para casar, ué.
Virgínia imaginou que pudesse ter dado um fora, mas a viagem tinha
representado um descanso, um preparo, e o termo “pron-ta” não queria
dizer “consertada”, mas sim “preparada”.
— Olha, dona Virgínia, estou cuidando de tudo para o casamento. Mas
estou num momento de muito trabalho, no final de ano temos mais cultos,
mais atendimentos, isso aqui vira um inferno.
Reparou que tinha utilizado uma palavra inapropriada e a conversa
seguia parecendo uma sucessão de erros.
— Desculpe pela palavra, estou meio atrapalhado.
Ela riu.
— Comprei um presente de Natal para a Carol.
Era mentira.
— E queria entregar pessoalmente, vamos marcar algo.
— Que tal na próxima sexta-feira? Que tal aqui em casa?
— Sexta-feira às oito. Aí em sua casa. Está marcado.
— Assis, estou contente por você.
— E eu tenho que te agradecer, Beto.
Os dois amigos conversavam amigavelmente como há muito tempo não
faziam. Desde os “Três dias de inferno na cidade” eles conversaram poucas
vezes, sempre brevemente. Havia ficado uma rusga, uma mágoa: Beto tinha
ligação com Monique Kurtz, a femme fatale que iniciara o ciclo de mortes na
cidade, então ele, colateralmente, tinha uma parcela de responsabilidade —
até mesmo do tiro em Assis.
— Quero voltar a trabalhar. Me dá uma chance. Você sabe que me deve
isso.
— Geraldo, a cidade está calma. Não temos nada acontecendo por aqui,
vamos devagar.
— Está tudo assim porque ninguém investiga mais nada. Estão fazendo
um jornalismo medíocre por aqui.
— Os meios policiais estão tranquilos, acredite. Esse novo prefeito deu
um jeito nas coisas.
— Ora, Beto, ele colocou todo mundo nos bolsos. O seu jornal recebeu
duzentos mil reais para não levantar a lebre do contrato dos ônibus. O novo
secretário da Segurança é amigo pessoal do maior traficante da região.
Aquele vereador, o Paulinho, é do esquema de adulteração de combustíveis.
A cidade está afundando na lama.
— E você quer voltar das cinzas colocando ordem na casa? Ora, por
favor! Acha que eu vou deixar você falar dos ônibus, do novo secretário, do
vereador?
— Me deixe voltar, me deixe encontrar um bom assunto. Vamos fazer
como no passado.
— Eu entendo sua angústia, Assis. E sua ansiedade. Mas são outros
tempos.
— ...
— Parece que a teia está fechada, amarrada, estruturada. A sociedade
está toda corrompida, mas ninguém quer que essa corrupção desapareça: é
uma corrupção que faz bem a todos.
Se Assis pudesse se levantar e sair, sairia. Mas nem Betão estava por ali,
eram só os dois, na sala do doutor Euclides, batendo esse papo de amigos
de décadas.
— Vamos fazer assim, Beto: se eu tiver um caso que lhe interesse, você
me apoia e me dá carta branca. Que tal?
— Comece com um caso policial, vamos ver se há algo com o qual você
possa se envolver.
— Essa cidade só se afundou em sua própria merda nesses quinze anos.
— Não é a cidade, Assis. Não é a cidade: é o ser humano que está se
enfiando, cada vez mais, num buraco sem fim.

Era sexta-feira, dia primeiro de dezembro e tudo estava impecavelmente


pronto para o jantar na casa de Virgínia e Júlio. Pontual, Fraguinha chegou
às oito. Levou, para Carol, um faiscante colar de diamantes, um presente
impressionante.
O jantar foi ameno, de pouca conversa, a maior parte girando em torno
dos trabalhos da Igreja, das reformas, da ampliação, sobre como o final de
ano é agitado.
— Nós iniciamos uma longa vigília na nossa congregação no dia vinte e
vamos até a virada do ano. É o que chamamos de “Grande Reunião da Fé
pelo Próximo Ano”, ou GRFPA.
— ...
— Vamos distribuir uma água especial, com um sal ungido de Israel, que
vai renovar o ânimo de todos para o próximo ano. Será algo maravilhoso,
uma verdadeira unção para os crentes em Jesus.
— ...
— Infelizmente, não vamos conseguir nos ver neste final de ano, Carol.
— ...
— Por isso já trouxe seu presente. Espero que tenha gostado.
Carol havia gostado, sim, mas Virgínia tinha amado.
— Senhor Fraguinha, amamos o presente. Espero que tudo fique bem em
seus eventos de final de ano.
— Sim, vai dar tudo certo.
— Mas queria falar com o senhor sobre o... o casamento.
— Ah, sim, claro. O casamento está marcado para o sábado, dia cinco de
maio. Viajamos para Paris no domingo, voltamos na sexta, dia onze. Pensei
em morarmos inicialmente na casa de meus pais, temos quatro suítes
desocupadas e, assim, Carol não tem que se preocupar com as coisas
domésticas: temos muitos empregados.
— ...
— Que acham?
Estavam todos estupefatos com a programação já fechada, apenas
comunicada pelo pastor. Júlio não vinha se sentindo muito bem nos últimos
dias, com muito trabalho no consultório, um cansaço extremo e dores no
abdômen, que diagnosticou como gases; não estava se alimentando bem.
Ficou meio confuso com a explicação de Fraguinha, quis argumentar, mas
tudo pareceu tão perfeito e fechado que deixou quieto.
— Vamos fazer uma grande festa de casamento, convidar os fiéis. Se
vocês concordarem, é claro.
— Mas... vai ficar uma festa muito cara — considerou o doutor Júlio.
— Arcaremos com todos os custos. Estamos imaginando uma festa para
umas quatro mil pessoas.
Virgínia tomava um gole de refrigerante e quase engasgou.
— Vocês podem passar a relação de pessoas que querem convidar e nós
cuidaremos do convite, do envio, de tudo.
— ...
— E, ah, não vamos pedir presentes para ninguém. Está em Ezequiel, 18:
não devemos pedir nada por ocasião das bodas. E já temos tudo o que
precisamos e queremos.
— ...
— O jantar estava delicioso, dona Virgínia. Foi um prazer, doutor Júlio. E
foi um prazer lhe ver, Carol. Nos encontramos em janeiro novamente, com
certeza.
E Fraguinha saiu, uma hora e meia depois de ter chegado, sem dar
chance de falar a quase ninguém.

Vermelho e Fraguinha estavam nus, em pé, diante um do outro, ao lado


da cama redonda no luxuoso motel Havaí. Havia espelhos por todos os
lados, refletindo a imagem dos dois, de paus em riste, um encarando o
outro. Fraguinha levou a mão e segurou firme no pau do parceiro.
— O que está lhe afligindo, meu amor?
Meio dramático, Vermelho virou o rosto.
— Me diz. Você não está bem.
Vermelho pegou também no pau do parceiro.
— Agora não vamos falar sobre isso...
— ...
— Agora vamos foder.
Carol foi comprar roupas novas, queria mudar seu guarda-roupa para a
vida nova. As lojas estavam cheias por causa do Natal. Ela escolheu uma
butique afastada do centro da cidade e botou reparo no atendente: era um
sujeito loiro, grande e forte, chamado Quirino, segundo o crachá.
Depois de algumas idas ao provador, trocando uma coisa ou outra,
pedindo para que ele reservasse essa ou aquela peça, fantasiou. Imaginou-
se fodendo com o sujeito, ali mesmo, no provador. Que provação.
Pensou na despedida de solteira, quando meteu incansavelmente com
Juca Pau, sujeito macho e de responsabilidade acima de qualquer prova.
Um pau lindo, grande, com a cabeça roxa, exacerbada. A buceta pulava na
calcinha, como se fosse fugir, como se fosse descolar do corpo, sair pela
loja, ganhar a calçada portuguesa.
Fechou os olhos. Pensou em masturbar-se. Foi quando Quirino
perguntou se podia abrir a cortina: tinha um vestido que talvez pudesse
interessar a ela. Carol abriu, em lingerie, e puxou o homem para dentro.
Ficou de joelhos, abriu a braguilha de Quirino e enfiou o membro do rapaz
na boca, sugando rápido. Ele ficou duro em segundos e esguichava na boca
da moça em minutos. Carol gozou como nunca tinha gozado antes, nem
com Juca Pau. Sentia-se a própria Linda Lovelace.

Naquele dezembro, Sara Kubitcheka fez algo que vinha adiando há


tempos: procurou o Fórum e inscreveu-se num programa de adoção.
Queria uma criança. Era sua grande frustração não conseguir engravidar e,
agora, com o dinheiro que vinha ganhando com o negócio e com as drogas,
decidiu que podia finalmente adotar uma criança. E queria ser a melhor
mãe do mundo, a mãe exemplar. Tinha muito amor para dar, muita
compreensão e afeto. E um futuro lindo para seu filhinho.

As festas de final de ano correram radiantes para todos, em especial para


cerca de sessenta mil fiéis da Grande Igreja da Santidade Triangular, que
passaram as festividades com a cabeça cheia de cocaína.
Quarta parte: Um caso para Geraldo Assis
Em janeiro, Fraguinha entrou em contato com Virgínia para dizer que
estava saindo de viagem durante um mês — iria visitar templos da Grande
Igreja da Santidade Triangular em todo Brasil. Ia somente com seu
secretário e, assim que voltasse, entraria novamente em contato. Não
perguntou sobre Carol. Virgínia estranhou, mas considerou que tudo se
acertaria depois do casamento.
Num domingo, ela convidou a filha para uma visita à igreja; não
participavam de um culto desde a reforma. Carol concordou: estava
precisando rezar. Ela vinha chupando qualquer pessoa, bastava que alguém
lhe apresentasse um pau. Um dia dormiu na casa da Julinha e chuparam-se
tanto que aventaram a possibilidade de marcar um dia mensalmente na
agenda só para fazerem isso.
Num sonho, uma noite, Carol visualizou um pau que entrava pela sua
boca, devagar, e a empalava, saindo pela buceta. Foi assustador, mas ela
pensou, no sonho, que esse pau incomensurável atingia-lhe os dois clitóris:
o real e o da garganta. E quando acordou, suada, meio febril, imaginou que
esse pau sem fim pudesse ser o pênis de Deus. Ficou um pouco
envergonhada, pensou em rezar, mas conjecturou que, se o pau de Deus
fosse assim, Ele devia se orgulhar e ela não tinha que rezar por ter sonhado
com isso. “Não é Deus quem comanda tudo? Se ele permitiu que eu
sonhasse com isso foi porque quis. E se era mesmo o pau Dele, então talvez
Ele quisesse me co-mer”, justificou-se, as mãos unidas.
Estava atrapalhada, a Carol. Estava confusa. Estava com hormônios a sair
pelos dedos, por debaixo das unhas. E estava com a buceta costurada. A
costura, para ela, não era um impedimento para que algo não entrasse por
ali, mas um impedimento para que algo não pudesse sair. Sua angústia,
suas dúvidas, suas frustrações, sua ansiedade, seu medo.
Foi ao culto com a mãe. Fraguinha não estava, elas sabiam. Rezaram
muito, mas sem convicção. E Virgínia comprou duas garrafas da tal água
com o sal santo ungido de Israel. Tomaram nos dois dias seguintes e —
impressionante! — sentiram-se muito, muito melhor.

Os quase dois meses de viagem de Fraguinha e Vermelho foram


maravilhosos para ambos. Foi uma verdadeira lua de mel. E serviram
também para outras coisas.
Sara teve que assumir a distribuição de drogas no Recanto Drinks,
quebrando suas próprias regras. Mas se saiu muito bem. O negócio cresceu,
novas meninas chegaram, o puteiro atingiu a reputação de um dos
melhores da região.
Fraguinha e Vermelho passaram muito tempo dentro do carro e em
quartos de hotel, revelando, um para o outro, segredos e detalhes de suas
vidas, concretizando uma verdadeira vida de casal, baseada na
cumplicidade, no desejo e no respeito.
E o esquema da coca na água revelou-se um negócio maravilhosamente
lucrativo, já eram três meses de distribuição nos carros especiais
cumprindo a logística perfeita de Vermelho.
Nesse período, o pastor Fraga caiu doente e chegou a dizer que sua hora
havia chegado. Mas era só uma pneumonia, que foi tratada por especialistas
caros. O pai de Fraguinha ficou bom bebendo a água com sal ungido. Logo, a
pastora Alaíde também estaria usando a água milagrosa; mais um
indicativo do poder maravilhoso de seu filho, afinal, ele mesmo tinha
descoberto esse sal bendito que tanta energia e disposição trazia às
pessoas.
Foi a empregada de Assis, a dona Claudete, que ia às terças e quintas à
chácara, limpar e cozinhar para o famoso jornalista, quem primeiro falou
sobre o milagre da água benta. Ela faltava com certa constância,
reclamando de dor nas costas: a dor havia sumido depois que ela começara
a usar a água santa da Igreja Triangular. Na altura, Assis não deu atenção,
sabia como essas coisas da fé funcionavam.
Assis e Betão estavam envolvidos com as sessões do doutor Euclides,
vendo que a ciência ajuda muito mais as pessoas do que qualquer religião
ou crença estúpidas.
Em um dia de tédio, Virgínia fez uma nova visita a Assis, na clínica de
Euclides. Contou sobre o casamento da filha com Fraguinha, falou sobre a
última visita ao culto, sobre como a igreja ficara bonita depois da reforma.
E contou também sobre a água, esse líquido poderoso que dava energia às
pessoas. Assis estava conectado ao equipamento, suando muito, mas
conseguiu dizer:
— Achei que esse Fraguinha fosse uma bicha louca. E essa história de
água benta com poderes me parece uma enganação.
— ...
— Tem algo errado aí, Virgínia. Meu faro de jornalista está me dizendo.
Mãe e filha estavam estranhamente próximas, mais do que nunca.
Pegavam-se conversando por horas ou assistiam a dois ou três filmes
seguidos, na TV a cabo. Virgínia fazia pipoca e elas comiam e bebiam
refrigerantes e faziam competição de arrotos. Uma tarde se sentaram para
fazer a lista de convidados para o casamento.
— Você vai chamar seus amigos, né? O Reginaldo, a Julinha...
— Ah, mãe... Acho que não vou, não.
— ...
— Acho que esse casamento vai me afastar de todos os meus amigos.
— ...
— Na verdade, já me afastou.
Carol era muito popular no colégio, conhecia quase todo mundo, mas
tinha poucos amigos próximos e verdadeiros, não mais do que meia dúzia.
Ela podia chamá-los, explicar para eles a situação do casamento — eles já
sabiam da história, mas não todos os detalhes, nem que Carol ia para Paris
e que tinha que dar um filho para o pastor em um ano e que o filho ia ser
homem e o salvador da Humanidade; a cabeça da menina fervia!
— Tenho que escolher entre ser quem eu realmente sou: a Carol alegre,
divertida, que adora farra e que quer ir para a faculdade, fazer intercâmbio,
conhecer outros países...
— ...
— Ou a mulher do pastor, vivendo numa casa com empregados, indo a
cultos chatos, cuidando de um filho que já vai nascer com essa missão de...
salvar a Humanidade!
— Filha, eu acho que essa história de salvador da Humanidade, essa
coisa que eles dizem, é só uma maluquice da cabeça deles.
— Sim, uma maluquice. São todos uns malucos. E eu vou viver com eles?
— ...
— Você vai deixar isso acontecer, mãe?
Virgínia achou que fosse chorar. Mas em dois anos a menina podia se
separar e nunca mais iria se preocupar com dinheiro, podia fazer o que
quisesse: estava bem claro para Virgínia que aquilo, casar, era o melhor a se
fazer.
— Você quer desistir agora, filha?
— Não. Só quero que tudo acabe rápido.
— Vai acabar. Acho que podia ser bom chamar seus amigos para a festa.
— Não, mãe. Não quero que eles me vejam fazendo isso.
— ...
— Chame alguns parentes, coloque a vovó na lista, e chame alguns dos
seus amigos.
— Tá bom, filha.
E o primeiro nome que Virgínia escreveu na folha de papel foi o de
Geraldo Assis.

Durante os meses de viagem, Vermelho contou a Fraguinha sobre


Geraldo Assis. Fraguinha conhecia muito pouco sobre o jornalista, disse que
o parceiro devia ter superado isso, que a vingança é uma tolice. Ele mesmo
podia ter perseguido e acabado com cada um dos alunos ou dos pastores
que tanto o maltrataram no internato.
— O que não te mata, te fortalece. É assim que tem que ser.
Mas Vermelho sentia uma ligação estranhamente profunda com Assis.

Estava um calor dos infernos, era época de Carnaval, Assis estava ligado
nos aparelhos, na clínica do doutor Euclides, inchando cada vez mais,
quando Betão informou:
— Assis, tem uma pessoa aí que quer falar com você. Disse que é uma
amiga sua.
— Quem é?
— O nome dele, dela, é Janice.
Assis quase pulou dos equipamentos. Achava que Janice já tivesse
morrido, quase não se lembrava mais dela.
Janice era um dos travecos do Reduto da Marta, um prostíbulo de
travestis que ficava na região central da cidade. Foi no Reduto que Assis
conheceu Tiago Zanco, morto num acidente de carro quedetonou os “Três
dias de inferno na cidade”. Janice e Marta tinham ajudado Assis naquele
período; Marta acabou matando o homem que atirou em Assis, um
assassino conhecido por Anísio do Lírio; Janice ajudou-o no período mais
crítico, quando ficou internado entre a vida e a morte. Mas, depois, sumiu e
ele nunca mais tinha ouvido falar dela.
E lá estava Janice, sentada no sofá de couro, na recepção da clínica. Feia,
desmantelada, um arremedo de ser humano.
— Janice!
Assis exclamou de saudade real, de emoção verdadeira. Janice começou a
chorar, levantando-se e indo ao encontro do amigo na cadeira de rodas.
Abraçaram-se.
— Betão, arrume um local pra nós dois. Preciso conversar com minha
amiga aqui.

Virgínia estava tensa com tudo o que vinha acontecendo, com todas as
emoções. O intestino estava preso, isso sempre acontecia quando o estresse
batia.
Botou um som alto no carro e ficou dirigindo pelas ruas da cidade, sem
rumo, tentando não pensar em nada, fugindo do tédio. Até que pensou:
— Preciso de uma trepada.
Mas não tinha com quem trepar. Isso era um problema. Pensou em
procurar o ex-personal trainer, mas não queria reviver um caso antigo.
Quem poderia lhe ajudar com isso?
Lembrou de um massagista, um cara que havia sido indicado por uma
amiga uma vez.
— Pode não dar em trepada, mas ao menos uma massagem pode me
ajudar.
Ligou para a amiga.

— Janice, por onde você andou?


— Por aí, Assis. A vida está tão difícil!
— Para todos, né, Janice?
Pelas contas de Assis, Janice não devia ter mais que trinta e cinco anos.
Mas parecia ter mais de cinquenta. Os cabelos estavam ralos, o rosto estava
deformado, ele reparou que alguma aplicação de enchimento não havia
dado certo. Janice estava com um vestido florido, velho, e dava para
perceber as manchas nos braços e também no colo; os peitos falsos
pareciam caídos para os lados.
Era uma menina linda quando ele a conheceu.
— Você está doente, Janice?
— Não que eu saiba. Quer dizer, fiz os exames e não estou com aquela
doença.
Os travestis nunca diziam o nome da doença. Assis ficou um pouco mais
aliviado.
— Mas não estou bem, estou morando aqui e ali, de favor, não tenho
dinheiro, estou sem comer direito há dias.
— ...
— Mas não vim até aqui para reclamar: vim para te ver. E para ficar feliz
de saber que você está melhorando.
— Ah, Janice!
Ambos choravam.
— Você devia ter me procurado antes.
— Eu não queria te ver... Não queria te ver todo fodido, entende? —
Janice, nós somos amigos. Você ajudou tanto o Tiago, me ajudou tanto no
hospital...
— Mas as coisas não deram certo em nossas vidas, né, Assis?
— Tenho que concordar. Você tem notícias da Marta?
— Ela sumiu. Parece que ficou presa por um tempo, depois
simplesmente desapareceu. Dizem que mudou de cidade, de estado, não
sei.
— Um dia ainda encontro a Marta e vou agradecer-lhe pelo que fez.
— Marta sabe da sua gratidão, falei com ela sobre isso um dia.
— Que bom.
— ...
— Janice, quero que pegue suas coisas e se mude para minha casa.
— Quê?
— É. Já não tenho família, minha filha morreu, meus poucos amigos que
me sustentam só fazem isso com medo de eu dar com a língua nos dentes.
Quero voltar à ativa, preciso de alguém que me ajude. E Betão, essa santa
enfermeira, já não está dando conta do recado sozinha.
A enfermeira dava conta sim, ainda mais agora, que o patrão estava
melhor. Mas entendeu que Assis mentia para convencer o traveco a se
juntar a eles. “Ah, que bom”, pensou Betão, que assistia à conversa,
comovida. “Agora temos um viado numa cadeira de rodas, uma enfermeira
sapata e uma secretária traveca. Não falta mais nada!”
— Fique comigo. Minha casa será sua casa.
Janice abraçou o amigo em soluços.

— O que a senhora está sentindo?


— Por favor, não me chame de senhora. O que estou sentindo é
justamente isso: o peso dos anos.
Virgínia investigava o massagista, perscrutava com os olhos cada detalhe
do sujeito, avaliando se valia a pena dar para ele, se podia ser interessante
investir nisso. O nome dele era Jonas e Vi se lembrou de uma passagem
bíblica, o que atrapalhou um pouco a conexão. Superada a lembrança, que
ligava o sujeito a uma baleia, considerou que esses terapeutas alternativos
têm, geralmente, uma vida ativa e saudável: a alimentação é boa, não
bebem ou cometem excessos, meditam, praticam exercícios.
“Dá pra imaginar um corpo bonito debaixo desse jaleco”, pensou.
E lembrou que sentia atração por homens em jalecos.
— Meu nome é Virgínia.
— Muito bem, vamos à massagem. A senhora...
— ...
— Quer dizer, você prefere ficar completamente vestida, trouxe alguma
roupa especial...
— Eu prefiro...
— ...
— Se você não se importar...
— ...
— Eu prefiro ficar nua.

Assis recebeu, na chácara, o convite para o casamento de Carol e


Fraguinha. Janice estava por ali e parecia bem melhor, estava mais corada,
alegre, preparava feijão branco para o almoço. Cozinhava bem, a Janice.
— Então a filha da Virgínia vai mesmo se casar com o filho do pastor...
Janice levantou as sobrancelhas.
— Quê?
— A filha de uma amiga querida vai se casar com o Fraguinha, filho do
pastor Fraga.
— Aquele viado agressivo e cheirador?
Foi a vez de Assis se espantar.
— Você o conhece?
— Felizmente, não. Às vezes ele passa com seu carrão pela área, mas
todas as meninas fogem. Há histórias terríveis sobre ele, embora eu ache
que a maioria seja invenção. Parece que ele pegou uma menina uma vez,
um travesti jovenzinho, e cobriu de porrada. E todo mundo diz que agora
ele está cheirando.
— Como sabem disso?
— As fofocas correm, meu bem. Você sabe disso.
E piscou para Assis.
— Ele está andando agora com o dono de um puteiro lá do Laranjal, um
amigo do Ideia. Então você já sabe...
— O Ideia? Esse não era amigo do doutor Lobo, o delegado que era
amante da Monique Kurtz, o “Ideia das drogas”?
— Isso. Hoje ele é um dos maiores traficantes da região.
— É, então o Fraguinha pode estar metido com isso também.
— Sim, deve estar. Esse dono do puteiro está passando drogas lá, o
puteiro cresceu bastante nos últimos meses, parece que é coisa pesada.
— ...
— Talvez você conheça o sujeito. É um ruivo. Ninguém sabe o nome dele,
mas todos o conhecem por Vermelho.
— André Cardoso.
— Ahn?
— É esse o nome dele.
— Você o conhece?
— Conheci, em uma ocasião. Não sabia que ele ainda estava nessa de
puteiro, que ainda estava por aí... Ainda mais ligado ao Fraguinha.
— Pois é...
— Tá tudo muito, muito estranho.
— ...
— Nós vamos nesse casamento. Nós três.

Fazia muito tempo que Carol não via o noivo e estava quase se
esquecendo da fisionomia dele. Um fim de tarde de março, quando folheava
revistas com a mãe, na sala de casa, o telefone tocou e era Fraguinha.
— Desculpe pela ausência.
— Tudo bem.
— Depois tudo vai se ajeitar. Você quer sair, jantar, conversar?
Carol nem fazia tanta questão. Mas dizer isso, naquele momento, podia
soar como desinteresse puro.
— Podíamos nos encontrar uma hora dessas, se você quiser.
— O que você quer fazer?
Ela queria sair. Pensou que queria conhecê-lo de verdade. Queria saber o
que ele pensava sobre a vida, sobre a porra da profecia do pai. Queria saber
se ele já tinha ouvido Black Keys. Queria convidá -lo para assistir ao último
filme do Tarantino. Queria saber onde eles iriam em Paris; no Louvre? Na
Torre Eiffel? Ele conhecia a história da Torre Eiffel? Ele já tinha ido a Paris?
Carol queria convidá-lo para nadar, ela tinha uma piscina linda em casa e
ninguém usava a porra da piscina há anos — “que tal você botar uma
sunga, espalhar um pouco de bronzeador e vir até aqui para ficarmos
bebendo caipirinha na beira da piscina, contando piadas sujas?”. Ela queria
beijá-lo, saber o gosto da sua boca. “Você já beijou alguém? Prefere com
língua?” Ela queria saber o que ele estava lendo, se gostava de literatura
brasileira, se tinha lido algum conto do Marcelo Mirisola. “Porra, Fraguinha,
a gente precisa pirar de vez em quando!” Ela queria saber se ele já tinha
bebido, se gostava de vodca com gelo, de dirigir rápido pelas estradas com
as luzes do carro apagadas. Ela queria comer um sonho de padaria com ele,
lambuzar os dedos com o creme, “é impossível comer sonho de padaria
sem lambuzar os dedos”. Carol estava parada há tanto tempo, naquela
cápsula caseira... Ela queria tanta coisa!
— Quero ir ao shopping. Vamos?
Fraguinha não se lembrava da última vez em que tinha pisado em um
shopping. Era uma coisa horrível para ele: aquelas pessoas só pensando em
consumir, olhando vitrines, tendo sonhos bobos de consumo. Um shopping
era um inferno para ele.
— Vamos, adoro shoppings.
— Quando?
— Te pego na quinta. Seis da tarde. Tá bom?
— Tá bom.

— Nunca ganhamos tanto dinheiro.


— É verdade, Sara. Espero que você esteja feliz.
Ela estava. Dinheiro fora artigo raro durante toda sua vida.
Sara nem conseguia acreditar que tinha quase vinte mil guardados no
seu lugar secreto, um fundo falso do taco, debaixo da cama.
Sim, Vermelho também estava feliz. Mas a razão de sua felicidade eram
os quase quinhentos mil reais em sua conta, numa agência bancária em
uma cidade vizinha. Boa parte dos lucros da coca na água da Igreja estava
lá.
— Vamos continuar com isso até quando, Vermelho querido?
Era difícil pensar em parar. Chega um momento em que a volta é quase
impossível.
— Vamos com isso até o final do ano. Aí vendemos o Recanto e paramos
com tudo. Que tal?
Ele sabia que só ganhava um tempo para ver como as coisas iam ficar. O
casamento de Fraguinha estava chegando, a menina ia engravidar, de um
jeito ou de outro. O que ele queria mesmo, de verdade, era cair no mundo
com seu grande amor, viajar com ele, amá-lo como nunca tinha conseguido
amar alguém.
— Não sei se vou conseguir me aposentar, mas é uma ideia interessante
parar com tudo daqui a um tempo e poder...
— ...
— E poder ser mãe.
— Quê?
— Eu me inscrevi para o programa de adoção, querido. Quero ter um
filho e espero juntar dinheiro para conseguir cuidar de uma criança. Dar a
ela tudo o que eu não tive.
Era uma ideia alentadora, Vermelho quase chorou. Mas considerou.
— Acha que vão dar uma criança para uma puta velha cuidar?
As palavras calaram fundo em Sara. Ela não era assim tão velha. E não
era puta mais, há muito não fazia um programa.
— Podemos fazer isso juntos, Vermelho. Você pode ser o pai desta
criança.
Era algo que nunca passara pela cabeça dele: ser pai. Mas gostou: cogitou
que talvez isso pudesse acontecer em sua relação com Fraguinha. Ia ser
lindo ter uma criança para cuidar junto com seu grande amor. Cogitou
novamente, em seus pensamentos: quem daria uma criança para um ex-
presidiário dono de puteiro e para um pastor cocainômano cuidar? E, meu
Deus, Fraguinha ia casar e ter um filho: que maluquice era aquela que ele
estava pensando?
Aprontaram as coisas para mais uma quinta-feira agitada no Recanto
Drinks. Seria uma noite de muito sexo, drogas e música brega.

Geraldo Assis fazia os exercícios no equipamento importado,


movimentando-se todo, braços, pernas, tronco, suando em bicas. Era
estranho vê-lo ali, e Janice estava com os olhos estatelados — chorou de
novo. Assis sabia de seu progresso: chegara com aquela sensação horrível
de não poder coordenar os movimentos, de quase não sentir os músculos
do próprio corpo. O tratamento, naquela máquina incrível, era muito
doloroso no início — e depois ficou ainda pior. Mas agora era quase
gostoso, revitalizante; sentia-se como um rapaz que começa na musculação,
que tem aquelas dores horríveis dos primeiros dias e que pensa em
abandonar o treinamento — mas depois, com a ajuda dos complementos e
das bombas alimentares, vê o progresso nos músculos e no bem-estar, e se
apaixona pela sua aparência.
O doutor Euclides explicou que, pelas análises musculares, em breve
Assis poderia estar andando com suas próprias pernas, entrando em outro
estágio da fisioterapia, com intensos exercícios de impacto.
— Você parece uma porra de um super-herói, aí nessa máquina — disse
Janice.
Para ela, ele sempre tinha sido uma porra de um super-herói.

Carol se arrumou para Fraguinha, que passou no horário combinado


para a ida ao shopping. Sem beijo de olá ou entusiasmo de saudade, ela
entrou no carro. E foram para lá.
Carol não tinha verificado a programação dos cinemas, mas guardava a
esperança de que ele talvez pudesse se interessar em assistir a algum filme.
Assim que chegaram, ela convidou:
— Vamos ver o que está passando?
Foram. Estava em cartaz, em duas salas, um episódio da saga Crepúsculo.
— Não podemos ver isso, é um filme de propaganda dos mórmons —
explicou o pastor.
— Quê?
— A briga dos protestantes nos Estados Unidos por fiéis está cada vez
mais acirrada. Os mórmons vinham perdendo adeptos há anos, por causa
de seus preceitos arcaicos e pouco populares. Eles defendem, por exemplo,
a virgindade do casal até o casamento. E estava difícil convencer a
juventude a acreditar nessas premissas. Então, contrataram essa escritora
para escrever uma série de livros que seriam adaptados para o cinema para
convencer os jovens que essas ideias não são tão ruins...
— ...
— Não li os livros ou vi os filmes, mas o fato do personagem principal ser
um vampiro está ligado à ideia de que o sangue é sagrado: não é uma coisa
que se compartilha. E o vampiro e a menina são virgens, escolhem-se pela
pureza que outros não têm. É uma ideia romântica que funciona num nível
psicológico com os jovens.
Carol estava interessada na história, mas ficava se perguntando que
adolescente ia deixar de trepar por causa de um filme ruim com vampiros e
lobisomens.
— Nos Estados Unidos, aconteceram campanhas para adesão de jovens à
seita mórmon, depois das sessões. Ela cresceu muito depois desses livros e
filmes.
— Bem, tem outros filmes. Que tal esse?
Era um filme novo do Homem-Aranha.
— Hmmm, acho que não. Um filme onde o personagem principal é todo
vermelho e faz um sinal demoníaco quando lança sua teia...
Carol olhou espantada para ele. Era melhor que não vissem filme algum
ou ele iria ficar fazendo conjecturas e ilações relacionadas à religião ou ao
diabo.
Foram embora sem ir ao cinema, comeram apenas um lanche no
McDonald’s. Mas, ao menos, ela se sentia um pouco mais próxima de
Fraguinha.

O telefone tocou e Virgínia atendeu.


— Oi, Assis, que boa surpresa!
— Oi, Virgínia. Estou ligando para perguntar se o casamento está de pé.
— Oh, sim, claro. Você vai?
— Sim, sim, vou. Mas...
— ...
— Tem certeza que vai deixar sua filha se casar com esse sujeito?
Era uma pergunta estranha: Assis não gostou de fazê-la, Virgínia não
gostou de ouvi-la.
— Assis...
— Desculpe, Virgínia... Mas ela o ama?
“E quem é que se casa por amor nesta porra de mundo?”
— Acho que eles têm muito em comum, Assis. Você sabe de algo que eu
não sei?
Ele sabia, mas era tudo no campo da fofoca e da especulação. E, como
bom repórter, não podia afirmar qualquer coisa que fosse se não tivesse
uma comprovação real.
— Ouvi dizer algumas coisas... Ora, Virgínia, nós sabemos que esse
pessoal da religião não é grande coisa, não é flor que se cheire.
— Podemos dar uma chance a eles, Assis? As pessoas mudam. As pessoas
evoluem.
— ...
— Só olhamos para o mundo e vemos dor e desgraça e temos que achar
que tudo é assim, que todas as pessoas são maldosas e odiosas. Será que
esse tempo todo trabalhando com a escória fez de você um total descrente?
Esse tempo todo na cadeira de rodas fez com que você perdesse a sua... fé?
Ele não tinha qualquer fé no ser humano, mas não queria discutir ou
brigar com a amiga.
— Eu estou de fora, Virgínia. Só não queria que sua filha sofresse.
— O que é sofrer? Ela vai se casar com um sujeito rico e não vai precisar
fazer uma merda de curso de Jornalismo, não vai ter que trabalhar numa
merda de jornal e não vai levar um tiro na cabeça por causa de uma
matéria.
Virgínia tinha ido longe, pegado pesado.
— Desculpe pela ligação, querida. Espero que a esqueça. Nos vemos no
casamento.

As ligações de Fraguinha para Carol ficaram mais frequentes. Não


conversavam muita coisa, geralmente era só ele quem contava detalhes
insignificantes do trabalho na Igreja. Falavam um pouco sobre os
preparativos do casamento, ela contava sobre um filme que tinha visto ou
sobre algo que tinha lido, mas o interesse dele era zero. Viram-se
brevemente um dia, um domingo, na casa dela, quando Carol e a mãe
prepararam um churrasco em família para comemorar o aniversário de
ambas. As duas faziam aniversário em abril, Fraguinha passou para
cumprimentá-las, deu um anel de brilhante para Carol e uma bolsa Louis
Vuitton para Virgínia, que adorou os presentes.
Carol era, agora, maior de idade. Naquele dia do churrasco, sozinha em
seu quarto, pegou-se nua, olhando no espelho, seu corpo bonito, rijo, os
peitos empinados, a bunda lisa. Era uma máquina linda, um objeto perfeito.
Colocou o anel de brilhante e desfilou um pouco assim, pelada, apenas com
o anel. Achou que podia ser feliz.
Conforme o corpo de Assis ia se tornando mais forte e rígido, com mais
movimentos, sua mente ficava mais ágil. Aquela névoa provocada pelos
remédios, relaxantes e antidepressivos tinha se dissipado: o raciocínio fluía
agilmente, ele lembrava de tudo, de todos, dos nomes de todas as pessoas
que tinham ficado nas brumas de sua própria história, há mais de quinze
anos. As conexões neurais se restabeleciam e ele meditava sobre aquele seu
momento, sobre o casamento da filha de Virgínia, sobre André Cardoso, o
Vermelho.
Quinta parte: O casamento e a lua de mel
Carol foi preparada durante todo o dia do casamento por uma equipe
grande. Por volta das sete da noite, uma limusine branca estacionou em
frente à sua casa e ela entrou, acompanhada por duas produtoras de moda,
que ajudaram com o vestido bordado com cristais Swarovsky.
Assim que chegaram perto da igreja, ela teve um calafrio: as ruas
estavam interditadas, policiais faziam a triagem de carros e ônibus que
podiam entrar e estacionar por ali. Carol contou vinte e três ônibus.
Pessoas espalhavam-se pelas calçadas, pelas ruas. Dava para ver que a
igreja estava lotada.
Fraguinha havia mesmo convidado todos os fiéis: não era um simples
casamento, era um evento grandioso. Podia ser um sacrifício em alguma
tribo antiga, no qual a virgem seria morta na presença de todos para aliviar
algum Deus raivoso.
A limusine parou na porta da igreja, as produtoras fizeram algumas
ligações com seus iPhones. Depois de uns bons minutos, decidiram que ela
devia descer. A porta do carro se abriu e ela apareceu, calando todos que
falavam por ali, ansiosos de expectativa.
Carol estava linda mesmo. Deslumbrante.
Uma música começou alta, o doutor Júlio apareceu, beijou-lhe a testa e
deu-lhe o braço. Ela entrou no templo e pôde ver Fraguinha, lá no altar,
diante dos pais. Sentiu uma pequena vertigem, respirou fundo e seguiu
adiante.
Carol não viu, mas do lado direito do altar, uma figura grande, de
cabeleira vasta e ruiva, assistia a tudo com raiva. E na lateral esquerda,
perdido no meio da multidão, um sujeito igualmente grande, numa cadeira
de rodas, acompanhado de duas pessoas estranhas, igualmente grandes e
fortes, assistia a tudo, observando cada detalhe.
Vermelho não tinha visto Assis ainda. Além dos convidados, que
impediam sua visão, ele só tinha olhos para Fraguinha. Olhava atentamente
o seu grande amor, pensando que aquilo tinha que acabar logo, que o
futuro seria deles, lindamente deles, e aquela putinha não podia estragar
isso.
Assis viu Vermelho. Reconheceu-o por causa dos cabelos que se
destacavam na multidão. Assis leu o rosto e os pensamentos de Vermelho,
que parecia incomodado com aquele casamento.
Lembrou-se da curra, de como tinha gostado de comer aquele rabo
vermelho. Tesão como aquele ele só tivera com Tiago Zanco, seu grande
amor. “A vida é estranha”, pensou.
Olhou para os lados, procurando pessoas. Viu várias autoridades: o
prefeito e sua esposa feia, vereadores, o comandante da Polícia Militar, o
chefe da Polícia Civil, o secretário de Segurança. Era gente graúda para
aquele casamento. Ele conhecia as relações espúrias da igreja com as
autoridades, com a polícia. Mas achou estranho que todos estivessem ali;
seu faro dizia que algo estava realmente errado. Depois, observou a
quantidade de colunistas sociais que fazia fotos.
Janice curvou-se para falar no ouvido de Assis:
— Viu quem está lá na frente? Parece ser o Idalino. O Ideia.
— O traficante. Que ousado ele estar aqui, no meio de tanta polícia.
— Seja lá qual for o esquema, acho que está todo mundo engraxado.
Significava dizer que todo mundo sabia sobre o esquema ilegal que
acontecia ali, embora Assis e Janice não soubessem qual seria exatamente
esse esquema.
Assim que Fraguinha e Carol chegaram ao altar, a música parou e todos
se sentaram. Foi aí que Vermelho viu Assis.
Sentiu as pernas bambearem, seu intestino revirou. Pensou em ir até
Assis e acabar com o jornalista; tirá-lo da cadeira de rodas e bater sua
cabeça no chão de mármore até pintar todo branco de vermelho-escuro.
“O que ele faz aqui? Será que tem alguma ligação com a família da moça?
Ou será que suspeita de algo relacionado ao sal ungido?”
Esgueirou-se para os escritórios da igreja por uma porta lateral, a cabeça
fervilhando, o sangue pulsando.
Iniciaram-se as oblações. Primeiro falou a pastora Alaíde, um lenga-lenga
sobre a fé, os desígnios de Deus e a importância da fidelidade da mulher.
Depois o pastor Fraga contou sobre sua visão do salvador da Humanidade e
abençoou os noivos. Não durou muito, foram menos de quarenta minutos.
Fraguinha beijou Carol na testa, o pastor Fraga informou que os ônibus iam
levar a todos até uma chácara para a festa do casamento. E a turba saiu
exultante, à procura de lugares nos ônibus alugados pela Igreja.
Carol voltou para a limusine, Fraguinha foi para seu próprio carro com
Vermelho.
— Geraldo Assis está aí.
— Esqueça esse sujeito.
Enquanto as pessoas saíam, várias das autoridades repararam em Assis,
que havia se posicionado estrategicamente, com Betão e Janice, na porta
principal da igreja. Alguns foram cumprimentar o jornalista, outros
desviavam, virando os rostos.
O prefeito foi um dos que foi falar com ele.
— Tenho acompanhado sua recuperação, Assis.
— E eu tenho acompanhado sua administração, prefeito.
— Estamos fazendo uma revolução na cidade, meu caro. Está tudo ótimo.
— ...
— E você veio prestigiar esse casamento lindo?
— Sou amigo da família da noiva.
— O doutor Júlio é um dos mais importantes valores da nossa sociedade.
— A maçonaria ainda é muito forte por aqui, não?
— Maçons, evangélicos, esses nomes não importam. Somos todos seres
humanos preocupados com outros seres humanos.
— E preocupados consigo próprios, acima de tudo.
— Você precisa ser menos negativo, Assis.
— Tome um tiro na cabeça e você vai saber sobre ser negativo.
— A vida corre diferente para as pessoas.
— Mas corre mais diferente para umas que para outras.
— Bem, boa noite, Assis.
— Boa noite, senhor prefeito.

A chácara era enorme, com mesas e cadeiras que se espalhavam por


gramados, quiosques e num amplo saguão sem paredes, onde uma banda
tocava músicas gospel. Assim que Vermelho parou o carro, Fraguinha
notou que ele não estava bem.
— Acho melhor você ir embora. Vá ajudar a Sara com as coisas, ficar aqui
vai te fazer mal.
Beijaram-se.
— Em uma semana estarei de volta, refaremos nossos planos.
Cuide da distribuição do sal ungido nesses dias. Se precisar de algum
dinheiro urgente pode usar aquele que está em sua conta.
Vermelho assentiu, Fraguinha desceu do carro e ele tocou para o Recanto
Drinks, contrariado, sanguíneo.

Carol quase não conseguia ver o que estava acontecendo por causa da
quantidade de flashes fotográficos que espocavam em sua direção. Ela
demorou cerca de quarenta minutos entre sair da limusine e chegar à mesa
em que estavam seus pais. Eles levantaram-se para beijá-la.
— Que festa monstruosa! — exclamou Carol, assustada com o som, com
as pessoas que apanhavam, ávidas, os salgadinhos.
— É o estilo de vida deles, querida.
“Que estilo!”, pensou.
Passaram-se mais uns quarenta minutos até que Fraguinha chegasse à
mesa. Todos se levantaram, mas ele não cumprimentou ninguém,
sentando-se abruptamente.
— Estou terrivelmente cansado.
— ...
— Amanhã apanhamos o avião logo cedo, um táxi irá nos levar ao
aeroporto. Está tudo certo, passo com o táxi às oito da manhã em sua casa,
OK?
— Hmmmm, OK.
— Vou cumprimentar algumas pessoas e daqui a pouco volto. Temos que
fazer umas fotos e vamos cortar o bolo. Aí podemos ir embora.
Levantou-se, quase sem olhar para Virgínia ou o doutor Júlio, que
comentou baixinho para a esposa:
— Eu disse que esse sujeito é estranho.
— ...
O doutor Júlio olhou profundamente para a filha. Ela já era uma mulher e
era linda. Não seria realmente um erro aquele casamento? O pensamento
surgiu tardiamente, ele sabia.
— Filha, se você quiser desistir de tudo agora mesmo eu te apoio, OK?
Virgínia se zangou, Carol sentiu uma ponta de felicidade. Mas como
desistir de tudo àquela altura? Depois de ter abandonado os amigos, de ter
feito a cirurgia, dos pastores terem gasto aquela fortuna com o casamento?
Os pensamentos corriam quando Assis se aproximou, conduzido por
suas assistentes. Virgínia levantou-se para abraçá-lo, apresentou-o à filha.
— Esse é um grande amigo da mamãe, o jornalista Geraldo Assis.
— Olá. Parabéns, Carol. Essas são minhas ajudantes, Betão e Janice.
— É um prazer vê-lo bem, Assis. O doutor Euclides parece estar tratando
muito bem de você.
— Sim, doutor Júlio. O Euclides foi um milagre em minha vida.
— ...
— Vim até aqui apenas para um oi e para felicitar a família...
Os olhos observadores de Assis notaram que Carol não estava tão feliz
quanto deveria.
— E desejar que esse seja um casamento repleto de amor e realizações.
Certo, Carol?
Ela levantou os olhos e Assis olhou direto para eles. Carol estava triste e
amarga, os olhos a denunciavam. A sensação que Assis teve foi que ela
tinha morrido ali, naquela noite. E pensou em sua própria filha.
Era estranho estar numa festa de casamento e pensar que não esteve no
sepultamento da filha. Sua filha Camila, tão linda, levada pela mãe para
longe do pai. E essa menina, a Carol, sendo levada para longe de sua vida,
corrompida por uma ideia de riqueza material. Aquilo tudo não estava
certo. Pensou em dizer algo, talvez usar sua retórica infalível para
desmontar aquela farsa ali mesmo. Ia contar sobre Vermelho e Ideia e
sobre todas aquelas autoridades que estavam na igreja e sobre como os
esquemas de corrupção funcionavam; ia falar sobre o sacrifício que ela
estava fazendo, de se dar, jovem e perfeita, a um homossexual enrustido e
violento, em troca de dinheiro; ia perguntar aos pais o que eles achavam da
prostituição, se havia diferença entre a filha, essa bela criança, e aquele
travesti sem opção que fica nas esquinas do centro da cidade pagando
boquetes por cinco reais. E depois ia apontar para Janice, ia dizer que ela
era uma fodida que havia sido obrigada a vender o corpo, mas Carol não,
Carol não precisava fazer aquilo. O discurso estava armado em sua mente e
iria custar-lhe a amizade de Virgínia, ele sabia. Mas preferia perder uma
amizade e salvar uma vida. Respirou fundo e ia abrir a boca quando
Fraguinha chegou.
— Quanta honra! O senhor deve ser o jornalista Geraldo Assis.
E esticou a mão para um cumprimento.
— Senhor Fraguinha, eu dependo de um esforço enorme para
movimentar meus braços e acho que não posso e não quero me esforçar
tanto neste momento. Desculpe.
— Ora, senhor Geraldo, não se preocupe. Entendo que deva ser
difícilviver com essas limitações.
— Todas as pessoas têm limitações e certamente é difícil conviver com
elas.
— Espero que o senhor esteja gostando da festa.
— A festa está boa, com muita gente humilde e honesta por todos os
lados. Mas algumas pessoas aqui e ali acabam tornando o ambiente
insuportável, então, estou indo embora.
— Não se pode agradar a todos.
— Certamente, senhor Fraguinha. Mas quando se tem muita informação,
muito conhecimento sobre como os relacionamentos se estabelecem nesta
cidade fica quase impossível alguém se sentir confortável tendo ao redor
tanta gente hipócrita e corrupta.
Virgínia ficou em pé para interceder, Fraguinha fez um sinal com a mão.
— Fique à vontade, senhor Geraldo. Conheço gente que não está aqui por
pensar o mesmo sobre o senhor.
Ambos sabiam que ele falava de Vermelho.
— Afinal, quem nunca se corrompeu ou corrompeu o outro nesta vida?
Mais uma vez, um discurso se armou no cérebro do jornalista, mas
Fraguinha foi mais rápido apanhando Carol e saindo para a sessão de fotos;
Virgínia e o doutor Júlio foram juntos. Assis ficou ali, com as ajudantes,
puto.
— Vamos embora para casa.

O casal e seus pais fizeram centenas de poses para as fotos. Carol cortou
o bolo. Antes da meia-noite estavam todos em suas casas. Mas a festa
continuou até de manhã, com os convidados se empanturrando de
salgadinhos e refrigerantes, com a banda tocando música gospel ruim.
Alguns casais fugiam para áreas mais escuras da chácara para uma
trepadinha rápida ou um boquete.

Na manhã seguinte, o táxi buzinou, Carol saiu de casa com as malas,


Fraguinha, no banco de trás, nem desceu do carro para ajudá-la ou
cumprimentar os sogros. Ele estava com uma roupa social, camisa e paletó
pretos, óculos escuros, parecia prestes a velar algum defunto. Carol vestia
um jeans velho, uma camiseta branca e tênis: sabia que viagens longas
pedem roupas confortáveis.
Ela se despediu dos pais, que estranharam o fato de Fraguinha sequer
descer do carro. Quando Carol entrou no táxi foi direto para um beijo nos
lábios do marido, mas ele se desviou, oferecendo a face.
A verdade era que ele não tinha dormido, estava entupido de cocaína.
Não conseguia sequer falar direito. Ela achou que fosse cansaço e deixou-o
quieto, não se falaram durante todo o trajeto até o aeroporto. Fraguinha foi
olhando para a paisagem através da janela, tendo pensamentos loucos de
sexo e sangue com Vermelho.
No aeroporto, quem visse os dois podia achar que o pai ranzinza estava
levando a filha sapeca para uma viagem cultural a Paris.
Durante o voo, na chegada a Paris, ao apanharem um táxi para o hotel, na
chegada ao hotel, na subida para o quarto, durante as vinte horas que
tinham passado juntos, quase não trocaram palavras. Carol tentava se
maravilhar com tudo, com o avião, com as comidas e bebidas, com os filmes
que passaram durante o voo, com o sobrevoo em Paris, com as pessoas
falando outros idiomas, com o Charles de Gaulle, com os táxis parisienses,
com a rota até o hotel e, uau, com o Grand Hotel Palace, na rua Vendôme.
Era um edifício antigo, mas reformado, grande, luxuoso. E eles ficaram na
cobertura nupcial, um quarto enorme, com dois andares e uma varanda
ampla de onde podiam ver a Torre Eiffel.
Assim que chegaram ao quarto, Fraguinha foi ao banheiro e Carol foi
ligar para a mãe.
— Mãe, chegamos, aqui é tudo lindo.
— Ah, filha, que bom. Fico muito feliz que esteja tudo bem aí.
Como foi a viagem?
— Foi ótima!
Carol exultava, mas colocou a mão ao redor do bocal do telefone para
sussurrar:
— Meu marido tá meio estranho, quase não fala, mas acho que é a
pressão do casamento.
— É sim. Imagine a apreensão dele, daqui a pouco ele vai ter uma mulher
pela primeira vez, né?
— Eu entendo. Vou tentar ajudá-lo. Vamos ver.
— Um beijo, filha. Te amo.
— Eu também, mãe.
— ...
— E obrigado.

— Beto, preciso falar com você.


— Está tudo bem?
— Você pode dar um pulo aqui?
Assis não era o tipo de sujeito que chamava alguém para uma conversa
se não tivesse realmente algo para conversar. Não era de papo furado,
alguém que joga cartas num sábado a noite.
— Daqui a duas ou três horas estarei aí.
Janice cortava as unhas do pé de Assis.
— Essa é uma emoção verdadeira, Janice: sentir que as unhas do pé
existem.
— Ha ha ha.
— Durante anos, quase não senti as pernas ou o pé, Betão cortava
minhas unhas e eu ficava olhando inconformado por não sentir aquilo. E
agora estou sentindo. Isso é muito bom.
— Não damos valor às pequenas coisas.
O sol batia em parte de suas pernas e braços e ele também sentia.
Agradeceu calado, por isso, mas não a algum Deus ou santo: agradecia à
ciência.

Fraguinha havia levado cerca de cinco gramas de cocaína dentro da bolsa


de perfumes para que os cães não farejassem. No banheiro, ele repunha a
droga em seu organismo. Cagou, tomou um banho, colocou a mesma roupa
e saiu do banheiro com um sorriso forçado nos lábios:
— Carol, vamos passear! Estamos em Paris.
Ela sorriu, alegre de verdade. Que se foda se o casamento fosse dar certo
ou não, ela iria aproveitar.
Logo estavam andando pelas ruelas, de mãos dadas, respirando o ar
parisiense. Viram vitrines, andaram sem rumo. Até que passaram diante de
um café, as mesinhas pela calçada, e Fraguinha sugeriu:
— Quer beber algo?
“Esse cara não bebe nada de álcool. Será que vamos ter que tomar um
café?”
— O que você sugere?
— Que tal um champanhe?
A ideia que Fraguinha teve foi de embebedar Carol, ganhando tempo
para pensar sobre como iria tratar a questão do sexo. Ele estava na dúvida
entre falar a verdade e gastar uma boa grana com o silêncio dela ou tentar
transar e, se não conseguisse, botar a responsabilidade desse fracasso no
psicológico, na culpa incutida pelos pais, em algum trauma físico, qualquer
coisa assim. Fraguinha estava angustiado, o pó saindo pelos olhos.
— Demais! Vamos beber champanhe francês.
O que Fraguinha não sabia era que Carol bebia desde os quinze anos,
estava bem-acostumada com aquilo, e que seriam necessárias algumas
garrafas para derrubar a menina.
Daquele café, passaram a outro e a outro. Em cada um, Fraguinha tomou
uma ou duas taças de champanhe, e a bebida ia compensando o
desequilíbrio causado pela coca; Carol derrubava uma taça após a outra,
falando sem parar, apontando coisas, mostrando que tinha lido sobre Paris,
que conhecia a história da cidade.
A partir de um ponto, quando a bebida começou a bater, inventou
histórias e separava as sílabas das palavras finais de cada frase, como
sempre fazia.
— Meu, essa cidade aqui é de-mais! Não vejo a hora de subir na Torre
Eiffel, já i-ma-gi-nou?
— ...
— Sabia que a Torre Eiffel foi um presente dos alemães para a cidade?
Isso sim é que é pre-sen-te!
O sol já começava a baixar e decidiram voltar ao hotel, mas descobriram
que estavam perdidos, tinham ido longe demais, não saberiam voltar a pé.
Chamaram um táxi. Dentro do táxi, Carol tentou a primeira investida no
marido.
— Carol, contenha-se, estamos num táxi.
Assim que chegaram ao hotel, por fim, Carol já bem bêbada, foi logo
tirando a roupa. Ele ficou assustado; ela o agarrava, beijava, tentava enfiar
a língua na boca dele.
— Carol, calma, eu preciso de um tempo!
— Vamos, Fraguinha, aqui está sua virgem de dezoito a-ni-nhos!
— Calma... Deixa eu pedir outro champanhe.
Foi ao telefone, fez o pedido e esgueirou-se para o banheiro, trancando a
porta. Carol bateu.
— Abre a porta senão eu vou soprar e soprar e derrubar sua ca-si-nha!
Dentro do banheiro, Fraguinha em pânico.

No começo da noite de domingo, o doutor Júlio passou mal. Virgínia


chamou uma ambulância. Ele teve uma parada cardíaca e foi internado com
urgência para providências. Ela passou a noite no hospital.

— Beto, o que está acontecendo na Igreja Triangular?


— Olha, Assis, não sei direito. Mas o que quer que seja é grande e eu não
quero entrar nessa história.
— Você nem sabe o que é e não quer entrar na história? O que aconteceu
com você, Beto?
— Eu tenho um jornal impresso, Assis. Sabe o que é isso? É como ter uma
charrete. Antigamente muita gente tinha charrete, andavam para lá e para
cá com seus cavalos. Mas chegaram os carros e ninguém mais tem charrete,
ninguém mais anda a cavalo. Os jornais impressos estão morrendo, em
cinco ou dez anos ninguém mais vai ter ou ler jornais impressos. Estou
velho demais para ir para a Internet; meu cavalo vai morrer e eu não vou
mais me locomover.
— ...
— Até lá quero dar para o povo o que ele quer: boas histórias com um
baixo custo, fazer meu pé de meia, publicar os releases das assessorias de
imprensa, não exigir muito do meu cavalinho para que ele não morra antes
do previsto. Entende?
— Isso é triste.
— Isso é a realidade. Há dez anos, quando estávamos no auge, podíamos
investigar tudo: éramos o quarto poder. Hoje não somos nada. O que quer
que esteja acontecendo na Igreja Triangular envolve boa parte da polícia e
marginais com os quais não quero me meter.
— ...
— No escândalo da Sol Veículos quase tive que fechar o jornal. Não quero
apuro parecido com aquilo, nunca mais.
— Você estava metido naquilo, esse foi o problema.
— Sim, eu sei, já te pedi milhões de desculpas. Mas não estou metido com
mais nada hoje, tento fazer tudo da maneira mais simples, tento ficar na
minha.
— E se essa matéria der um fôlego novo para o jornal?
— Não vejo possibilidade. Aliás, vejo o contrário: a Igreja cresce muito,
muitos fiéis são assinantes e falar mal da Igreja deles é ruim para mim. A
cobertura do casamento do pastor Fraguinha foi um sucesso!
— E você acha que os fiéis não estariam interessados em ler que o pastor
Fraguinha está metido em alguma coisa ilícita?
— Eles não iam acreditar, o Fraguinha é uma espécie de Jesus Cristo para
eles.
— Vamos fazer um teste? Tive uma ideia.
— ...
— Na edição de terça, coloque uma pequena nota na sua coluna. Algo
assim: “O repórter policial Geraldo Assis prepara a sua volta para o
jornalismo. Ele investiga esquemas ilícitos dentro de uma denominação
religiosa.” Só isso. Vamos ver o que vai acontecer, se vão te procurar, se vai
haver alguma repercussão, alguma correria.
— Não gosto desse tipo de isca, não quero mexer com isso, havendo
correria ou não.
— Estou pedindo um favor simples, não sei o que vai dar, não quero que
você se comprometa...
— ...
— Mas acho que você me deve isso, não é Beto?
Beto sentia-se um pouco responsável pelos três dias de inferno na
cidade, pelo tiro que Assis havia tomado; aquele pedido não era algo
extraordinário. Era nada, na verdade.
— Tá bom.
— Depois voltamos a nos falar.

Fraguinha só saiu do banheiro depois de muito tempo de silêncio do


outro lado da porta. Carol estava desmaiada na cama, nua, com champanhe
a lhe escolher pela boca.

Na segunda, pela manhã, Vermelho teve pensamentos estranhos. Pensou


que podia botar a mão naquele dinheiro todo que estava em sua conta e
fugir, mudar de nome, viver tranquilamente em qualquer lugar do país ou
até no exterior. Era dinheiro sujo e não tinham como denunciá-lo, como
botar a polícia atrás dele. Fraguinha podia ficar muito bravo e ir ele mesmo
em sua busca mas, se isso acontecesse, haveria um confronto. E o que podia
acontecer? Talvez ele, Vermelho, pudesse dizer a Fraguinha que tudo tinha
sido culpa do casamento, do rumo que as coisas tomaram. E foda-se.
Vermelho podia fugir e deixar aquela porra de cidade, deixar a Sara,
deixar a merda da igreja. Ele não era mais um jovem, quinhentos mil reais
seria o suficiente para o resto de sua vida.
Mas tinha Ideia e seus capangas. A gangue estava ganhando muito
dinheiro também e Vermelho era uma engrenagem importante no
processo, na logística, na intermediação da droga. Se Vermelho sumisse,
toda operação iria pelo ralo e Ideia podia não gostar; podia mesmo ir atrás
dele.
Vermelho estava num caminho sem volta.

Fraguinha acordou antes que Carol, tomou um banho e colocou uma


roupa mais esportiva. Tomou café da manhã sozinho e voltou para o quarto
por volta das onze da manhã. Ela dormia pesado, ele ligou a TV e assistiu
um pouco do noticiário. Pensou em ligar para Vermelho, mas não seria uma
conversa legal para se ter perto de Carol, ainda que ela estivesse dormindo.
Já passava das duas da tarde quando ela acordou e emergiu de debaixo
dos lençóis, correndo em direção ao banheiro para vomitar.
Estava nua, agachada sobre o vaso, botando as tripas para fora. Apesar
de linda, com a bunda para o alto, a imagem enojou Fraguinha.
— Você não devia beber tanto assim.
Ele chamou o serviço de quarto, pediu um suco de laranja, um sanduíche
de queijo e um café. Ela tomou um banho, vestiu apenas lingerie e sentou na
ampla mesa que ficava no centro do quarto para tentar comer.
— Temos uma visita à Torre Eiffel hoje. Não era o que você queria?
A cabeça doía e ela estava envergonhada por ter vomitado. Não se
lembrava da noite anterior. Talvez tivessem transado, não estava em
condições de afirmar o contrário.
— Vamos. Eu só preciso de um remédio para a dor de cabeça...
Ele foi apanhar enquanto Carol comia o sanduíche. Depois, ela
considerou que, se tivessem transado, ela estaria suja de sangue, afinal, era
virgem novamente.

Na noite de segunda-feira, Virgínia teve um boletim positivo do quadro


do doutor Júlio: ele estava bem e ia melhorar, mas ficaria internado mais
uns dias, talvez uma semana. Decidiu ligar para a filha, saber se estava tudo
bem, mas não ia contar sobre o pai, não queria alarmá-la.
— Oi, filha, como estão as coisas aí?
— Tudo bem, mãe. Hoje fomos ver a Torre Eiffel.
— Que bom!
— É linda, adorei.
— ...
E segredou:
— Mas a torre do meu marido eu ainda não vi não.
As noites de segunda-feira eram de reunião com a equipe de Ideia para a
distribuição da cocaína pelas igrejas. Eles haviam comprado seis novas vans
que já estavam devidamente adesivadas com o nome da Igreja e a
informação: “Transporte do sal ungido de Is-rael”. Cada van levava cerca de
duzentos quilos de cocaína e cem quilos de sal comum. O sal ficava na parte
traseira mais próxima à porta da van: caso a polícia rodoviária quisesse
checar, ia provar do sal comum. Caso algum policial mais esperto quisesse
fiscalizar o volume da parte dianteira, os motoristas, que eram todos do
esquema de Ideia, deviam assumir a culpa pelo transporte, dizer que a
igreja não tinha nada a ver com aquilo e tentar subornar os policiais com
até cinquenta mil reais: eles tinham esse valor em um compartimento
secreto que ficava abaixo do banco do motorista. Se não desse certo, eles
deviam acatar a prisão e ligar para um advogado que já estava ciente do
esquema. Mesmo se fossem presos e condenados, os familiares dos
motoristas receberiam um pagamento substancial pela lealdade. Era um
negócio de risco para todos e todos sabiam.
— É um negócio como qualquer outro — explicou Ideia. — É como
trabalhar num banco: um dia chega uma auditoria e você não arruma
emprego nem como porteiro de motel. É como transportar dinheiro num
carro-forte: um dia um bando de malacos mete bala, te mata e leva toda a
grana. É como ser jogador de futebol: um dia uma loira gostosa dá pra você
e acaba com seu dinheiro. Tudo tem seu risco, tudo pode te levar pro
buraco. Aqui nós pagamos bem, mas tem que ser macho e segurar o rojão
até o fim. Uma parte da polícia tá no nosso bolso, mas tem sempre aquele
que quer ser o Elliot Ness do momento, um desses polícias que viu muito
filme na televisão quando era pequeno. Se você encontrar um desses é bom
dizer: “perdi, Eliott, me prenda”. Depois a gente te solta, mata o Elliot,
compra o juiz e tudo fica normal de novo.

Na noite de segunda-feira, no hotel, Carol tentou de novo.


— E aí, Fraguinha? Vamos?
— Vou pedir um champanhe.
— Pode pedir, estou bem de novo. Mas sua tática de me embebedar não
vai funcionar.
Ele pediu, apanharam o balde com gelo e as duas taças e foram para a
varanda. Carol ligou o som, tocava “La Mort d’Orion”, de Gérard Manset. O
clima era romântico, mas Fraguinha estava perdido, confuso, amedrontado,
louco, com vontade de gritar. Ele não tinha cheirado cocaína nas últimas
horas, já tinha acabado com os cinco gramas. Ele estava fissurado por mais,
uma vontade louca de se entupir de pó. Olhou para Carol, tentou ver
Vermelho nela, mas não conseguiu. Não podia fazer sexo com ela. Não seria
capaz. Devia dizer isso? Será que ela não tinha um preço?
— Carol...
Ela se aproximou dele, abraçou-o, cheirou-o. Ele sentia repulsa, uma
repulsa inteira, verdadeira.
— Diga, meu amor. O que você quer? A Carolzinha faz o que você quiser!
Ele desvencilhou-se dela com cuidado, com a desculpa de encher a taça
de champanhe — que já estava cheia.
Carol estava em chamas, os mamilos espetados, uma vontade louca de
chupar um pau, qualquer pau serviria. Uma vontade alucinante de trepar,
de arrebentar aquela costura em sua boceta, abrir-se novamente, espalhar-
se.
Fraguinha tomou todo o conteúdo da taça, serviu-se de mais uma. Carol
fez o mesmo e voltou a se aproximar dele, tentando desabotoar a camisa.
Fraguinha a impediu com cuidado.
Se houvesse alguém olhando pela janela do prédio vizinho e pudesse
ouvir a música, a cena poderia parecer um balé mal ensaiado. Naquela
varanda ampla, com pisos de madeira e meia-luz, aquele casal bonito,
aproximando-se e afastando-se, sugeria um ritual de acasalamento
estranho, não o assédio que Carol praticava.
Carol foi até a mureta, tinha que ficar na ponta dos pés para conseguir
ver a Torre Eiffel. Era linda. Ela estava em Paris. Bebendo champanhe. Era
noite. Seu marido, ali ao lado. Voltou-se para Fraguinha, decidida:
— Vamos, meu pastor. Me conduza pelo vale do prazer.
— Carol...
Foram ao encontro um do outro, Carol provocando, Fraguinha sem saber
o que dizer, com a mente atrapalhada pelo álcool e pela abstinência da
droga.
— Penetre em meu reino úmido de amor.
— ...
— Me encha com seu líquido sagrado!
— Carol... Eu não quero.
Como ele podia dizer aquilo? Que homem diz isso a uma mulher como
ela, linda, perfeita, que está implorando por sexo e amor?
Estavam bem perto um do outro.
— Ora... seu... seu... bosta.
Ele ficou em silêncio, olhando para a face transfigurada da garota.
— Você acha que pode não querer? Acha que pode não querer, sem
sequer tentar? Qual é o seu problema, seu... merda?
Carol agarrou, com agressividade, o pau murcho, por sobre a calça.
— É esse seu pau mole e pequeno que te dá tanto medo?
Ele teve vontade de esmurrá-la, chegou a cerrar os punhos. Deu as costas
para a garota e foi encher a taça mais uma vez. Não estava habituado a
beber, mas esperava que o torpor do álcool o ajudasse. Aproveitou para
aumentar o som das caixas, já que Carol estava falando bem alto e os
hóspedes podiam ouvir.
— Você é uma porra dum viado, não é, Fraguinha?
Ela estava quase bêbada. E bastante brava.
— Olha aqui, marido. Olha para esses peitos: já viu peitos mais bonitos?
E começou a se despir. Fraguinha acompanhava tudo, prestes a contar,
definitivamente, que o casamento tinha sido um engano, mas que ia
recompensá-la por tudo, pedindo que ela ficasse de bico calado. Ia
implorar. Esse seria o preço por ter envolvido a garota naquilo: ia se
humilhar perante uma mulher.
— Olha aqui, seu viado — Carol estava só de calcinha —, você já viu um
corpo como esse? É um corpo em chamas...
A música alta, que tocava, era uma dessas baladas francesas cheias de
sussurros de sexo e ela começou a dançar e, de novo, se aproximou dele.
Fraguinha bebia e tremia, seu queixo abanava como se ele fosse sofrer uma
convulsão, um derrame.
Carol estava se esfregando nele, o cheiro de sexo alcançando as narinas
do pastor, ele enojado.
— Estou em chamas, goza na minha cara!
Ele deu um passo para trás. Ela estava de cócoras, se ele não se
desvencilhasse era possível que ela tentasse arrancar o pau dele de dentro
da calça. Era a hora. Ele tinha que falar.
— Carol... eu não vou... fazer... sexo com você.
As palavras quase não saíam, o queixo tremia demais.
Carol estava cansada, confusa, aquela operação já tinha sido demais para
ela, o casamento, estar ali com aquele idiota metido, que porra de merda de
vida ela tinha deixado a mãe escolher para ela. “Caralho!”
— Você é uma puta, uma vagabundinha de merda, você não é virgem, eu
sei, está de olho no meu dinheiro... Sua vagabunda!
Um frisson de ódio percorreu o corpo de Fraguinha. Ele odiava mesmo as
mulheres. Odiava a própria mãe, que acreditara naquela baboseira do seu
pai; que deixou pesar sobre o filho aquele fardo ridículo de “Salvador da
Humanidade”; que permitiu que ele fosse internado naquele colégio
monstruoso, que contribuiu para que ele perdesse a inocência, que
crescesse sem o amor maternal, o mais verdadeiro amor. Fraguinha nunca
se sentira amado — e aquela vadia nua, no chão da varanda daquele
apartamento, achou que pudesse enganá-lo jurando amor? Ele queria
acabar com aquilo. Queria matá-la!
— Vá se vestir, sua meretriz. Nós vamos embora amanhã, vou entregar
você de volta para aquela sua família de merda...
— Vá se foder, seu viado estúpido. Eu vou dizer para todo mundo que
você é um viado de merda, não foi capaz de me comer.
Ele jogou a taça de champanhe no chão e foi para cima dela, determinado
a estrangulá-la. Ela correu, com medo, muito medo. O que aquele cara era
capaz de fazer?
No canto da varanda estava um vaso grande com um arbusto. Carol subiu
e, ato contínuo, sentou-se na mureta.
— Se você chegar mais perto eu me jogo daqui!
Ela achou que a ameaça pudesse fazê-lo recuar, afinal ele era um pastor,
antes de mais nada.
Mas ele avançou.
Carol não sabia mesmo nada sobre Fraguinha.
Bastou o medo de vê-lo se aproximando para que perdesse o equilíbrio e
despencasse da mureta. Morreu estatelada na calçada da rue des Moines,
linda, só de calcinha e virgem.
Sexta parte: A salvação da Humanidade
Na terça-feira, pela manhã, logo cedo, enquanto o jornal era distribuído
com a nota de Beto sobre a investigação de Assis, Virgínia recebeu o
telefonema. O telefonema que ela não queria ter jamais recebido: sua filha
querida estava morta.
Foi um intérprete da polícia francesa quem ligou. A menina havia bebido,
estava dançando na varanda do quarto quando se desequilibrou e caiu de
lá.
Virgínia nunca achou que pudesse sentir tamanha dor, uma sensação tão
profunda de solidão e desamparo. Ela estava sozinha em casa, Júlio
internado, Deus em parte alguma.
Chorou, gritou, jogou-se no chão, pensou em se matar. Sentiu-se culpada,
terrivelmente culpada, sem nada ou ninguém a quem se agarrar.
Apanhou o frasco de calmantes e engoliu alguns, mastigando com força,
querendo quebrar os dentes. Jogou-se no sofá chorando uma dor
inexplicável e inextinguível, soluçando com a alma. Sem perceber, apagou.

Vermelho acordou com alguém buzinando sem parar no portão do


Recanto Drinks. Não apenas ele acordou, mas também Sara e todas as
meninas. Era Ideia, que veio para uma conversa com o jornal nas mãos.
— Veja isso!
Vermelho leu a nota.
— Filho da puta.
— ...
— O que vamos fazer, Ideia?
— Fraguinha não está aqui para nos ajudar. Acho que devemos
interromper o esquema do sal ungido.
— ...
— Não podemos arriscar toda a operação.
— Vamos suspender, em três dias ele chega e nós decidimos.
— Há um problema: já fiz a compra da próxima distribuição e tenho que
pagar o fornecedor.
— ...
— Como não teremos receita nos próximos dias, você tem que nos
adiantar o dinheiro.
— Quanto?
— Quinhentos mil.

Primeiro, Beto recebeu a ligação:


— Oi, Beto. Me diz que o Assis não está querendo incomodar o pastor
Fraga?
— Bom dia, prefeito.
— Me diga que você não vai dar espaço para esse filho da puta desse
aleijado falar mal da Igreja Triangular. Diga isso primeiro e depois te dou
bom dia.
— Olha... Eu não sei o que é, ele só me disse que estava investigando algo.
— Pois eu o encontrei no casamento do Fraguinha e ele não estava com
cara de bons amigos. Aliás, quem são aquelas duas pessoas que andam com
ele? Você as conhece? São duas mulheres horrorosas.
— ...
— Nossa cidade está ótima, tudo anda muito bem, não quero saber de
agitação por aqui, entendeu, Beto?
— ...
— Não encha o meu saco ou eu suspendo aquela segunda parcela de cem
mil que o jornal ia receber para falar bem dos ônibus. Entendeu? Você quer
os cem mil, não?
— Quero.
— Então fale pro seu amigo que a próxima bala na cabeça irá levá-lo
direto para debaixo da terra. E nós todos iremos continuar aqui, eu a
corromper você, os pastores a acalmar a população com sua aguinha benta,
com seus milagres de merda. Entendeu?
— Sim, senhor prefeito.
Depois Beto ligou para Assis.
— Já ligaram.
— Quem?
— O prefeito.
— Interessante.
— Foi o papo da manutenção do statu quo.
— Todos querem isso, a Igreja quer isso, a maçonaria quer isso.
— ...
— Querem que tudo permaneça exatamente como está.
— O problema é que eu também quero isso.
— ...
— Você acha que pode mudar as coisas, Assis?
— Sozinho, não.
— Mas não vou te ajudar.
— Beto, acho que eu vou fazer isso de uma maneira ou de outra.
— ...
— E espero que você esteja do meu lado. Ou estará do lado deles e eu não
terei piedade de você.
Quem recebeu outra ligação naquela manhã foi o doutor Euclides. Era do
secretário de Saúde da cidade, doutor Bozza.
— Oi, Bozza, há quanto tempo.
— Oi, Euclides.
— Como andam as coisas?
— Tudo bem. Quero falar sobre seu paciente, o Geraldo Assis.
— Ah, ele está ótimo. Será um caso de repercussão internacional, está
quase andando!
— Pois é. Quero que o senhor interrompa o tratamento dele.
— Quê?
— É isso mesmo. Esse cidadão é persona non grata por aqui. O prefeito
pediu para que eu te ligasse e pedisse o fim desse tratamento.
O mínimo que esse cidadão merece é ficar o resto dos dias entrevado em
uma cadeira de rodas.
— Ora, vocês acham que têm o direito...
— Euclides... O senhor é um homem da ciência, um homem decente. Não
queremos prejudicá-lo. Interrompa o tratamento e, em uma ocasião mais
apropriada, eu lhe explico o que está havendo.
— Não vou fazer isso. A clínica é minha, tenho reconhecimento mundial.
Você e o prefeito podem tentar o que quiserem!
— Tem certeza, Euclides? Mando uma fiscalização aí agora e fecho essa
sua clínica de merda.
— Tente! E eu chamo a imprensa nacional e internacional e conto sobre
essa tentativa de impedimento da pesquisa científica. Passei pelas maiores
universidades do mundo, posso falar com a direção da OMS sobre isso.
— ...
— Você acha que eu sou como você, Bozza, um vermezinho que fica
debruçado no poder público, pingando gotas estragadas na boca de
crianças?
— ...
— Você acha que pode me ligar e pedir qualquer coisa que seja? Eu sou
um homem da ciência, não um operário da saúde, preocupado com os
horários dos ginecologistas no posto de saúde.
— ...
— Geraldo Assis é meu paciente e estou com ele até o fim.
— Ele quer prejudicar a todos.
— Se ele quer prejudicar alguém, deve ter algum motivo. E a partir de
agora, eu o ajudarei!

Virgínia levantou-se do sofá tentando imaginar que tivera um sonho


ruim. Quando viu que não, chorou mais e mais, chorou por uma hora. E teve
que levantar para atender o telefone. Era a polícia francesa de novo.
— O corpo vai para o Brasil na quinta. Tudo está correndo por conta do
noivo dela, que pede para que a senhora não se preocupe.
“Preocupar? Fraguinha queria que ela não se preocupasse? O que teria
acontecido?”, se perguntava Virgínia. Ligou para o hotel para tentar falar
com Fraguinha e não conseguiu. O que porra tinha acontecido?
Havia tanto a fazer! Tinha que ver o plano funerário, falar com os
parentes, com os amigos... Amigos? Pensou apenas em Assis. E ligou para
ele.

O velório foi um evento ainda maior que o casamento. A cidade parou


para a chegada do cadáver de Carol em um carro do corpo de bombeiros.
As ruas da região central foram interditadas, assim como todo o entorno
do velório. Tinha saído na capa do jornal no dia anterior: “Esposa do pastor
Fraguinha morre ao cair de varanda de hotel em Paris.” Havia uma foto
grande, dos dois no casamento, a versão oficial. A matéria recordava a
história conhecida pelos fiéis de que o filho dos dois seria o Salvador da
Humanidade.
No velório, o caixão lacrado. Estava lá a família de Virgínia — sem o
doutor Júlio —, do lado esquerdo, e a família de Fraguinha do lado direito
— menos o noivo. Ele não estava em condições de participar do velório,
disseram. Estaria sob efeito de calmantes. Mas estava, na verdade, em seu
quarto, com Vermelho, entupindo-se de cocaína.
— O que aconteceu foi uma merda.
— Não foi, Fraguinha. Foi ótimo! Ela se desequilibrou e caiu. Pronto!
Agora temos que tocar a nossa vida.
Fraguinha chorava. Era a primeira vez que chorava assim desde que
tinha doze anos e morreu Clóvis, seu cão buldogue.
— Você chora porque a amava?
— Não, porra. Eu choro porque foi um acidente infeliz e meus pais vão
querer que eu arrume outra garota e vai começar tudo de novo.
— ...
— Eu choro pois podia ter conversado com ela e teríamos resolvido tudo.
— ...
— Mas ela partiu para cima de mim e eu não medi minha força, ela
estava perto do parapeito, escorregou...
— ...
— As coisas não precisavam ter sido assim.
— O que faremos, então?
— Acho que só nos resta uma coisa: fugir. Vamos fazer aquilo que
devíamos ter feito há muito tempo: pegar o dinheiro e cair fora. Que se
fodam meus pais, que se foda tudo.
— ...
— Vamos sacar aqueles quinhentos mil que estão contigo e...
— Fraga...
— Oi?
— Não tenho mais os quinhentos mil.

Betão abria espaço entre os presentes, enquanto Janice conduzia a


cadeira de rodas de Assis. Quando localizou Virgínia, ele pediu para que
Janice parasse, mantendo uma distância respeitosa. Só ia se aproximar se a
amiga desse algum tipo de sinal. Ela estava recebendo os pesares de todos,
visivelmente cansada, incrivelmente feia, com os cabelos desarrumados,
com a face lívida e os óculos escuros tortos. Em um momento, ela virou o
rosto para a direção de Assis, tirou os óculos, apertou o passo na direção
dele. Assis achou que ela fosse agredi-lo, mas Virgínia se atirou nos pés do
amigo, chorando compulsivamente, apoiando a cabeça nos joelhos dele. Era
uma cena dramática, parecia até mesmo forçada, mas era um desespero
real.
— Assis... Minha filha... Minha menina...
— Calma, querida. Calma. Agora não há mais motivo para desespero.
A frase de Assis foi calculadamente cruel. É claro que ele não queria
incutir ou ressaltar a culpa do acontecido a Virgínia, mas talvez fosse bom
que ela pensasse que, bem, talvez aquilo não tivesse sido um acidente.
— Ela estava tão feliz! Estava delirando com Paris. Eu falei com ela pelo
telefone, ela estava esfuziante.
— Vocês se falaram no dia em que ela caiu?
— Sim. Eles tinham ido ver a Torre Eiffel, ela disse que a tarde tinha sido
maravilhosa.
Virgínia olhou em direção ao esquife e, em seguida, voltou a face para os
joelhos de Assis e chorou ainda mais. Janice ficou ao lado dela, passando a
mão nos seus cabelos, compadecida daquela dor.
— Onde está o Fraguinha?
— Disseram que ele está arrasado, não consegue falar com ninguém, está
a base de remédios.
— Sei.
Virgínia levantou a cabeça, olhando fixamente para os olhos de Assis.
— O que você quer dizer?
— Bem, precisaríamos dar uma olhada no local de onde ela caiu. E fazer
uma reconstituição de como ela tropeçou, o que estava calçando nos pés,
como é o piso do local.
— Você acha que pode não ter sido um acidente?
A frase saiu um tom acima, chamando a atenção das pessoas que estavam
por ali.
— Os detalhes são importantes para se afirmar qualquer coisa, mas isso
é certo: esse Fraguinha não é um bom sujeito.
— ...
— O que mais sua filha falou ao telefone? Ela não contou mais nada que
pode ser relevante?
— Bem...
— ...
— Ela disse que eles não tinham... transado ainda.
— Que coisa estranha.
— ...
A frase pulou da boca de Assis:
— Ela tentou transar com ele e ele a jogou pela varanda.
— Assis!
— Virgínia, um homem rico, com a idade dele, que ainda não casou...
— ...
— Só pode não gostar de mulheres. No caso dele, é capaz mesmo que
odeie mulheres.
Assis considerou que aquela conversa não deveria ocorrer ali; deviam
falar sobre isso depois. O pensamento que se instalou em sua cabeça foi que
Fraguinha tendo ou não matado Carol era, de qualquer maneira,
responsável pelo destino da garota. O pensamento se instalou de maneira
tão incisiva que virou, automaticamente, uma obsessão.
— Virgínia, você precisa velar Carol e enterrá-la. Mas não pode deixar
essa história para trás. Amanhã vamos procurar o Fraguinha, vamos falar
com ele, botá-lo contra a parede.
— Obrigada, Assis. Você é um grande amigo.

— Olhe, seu Fraguinha, entendo sua dor, seu desânimo, sua vontade de,
como o senhor disse, “cair fora”. Mas não pode achar que envolve a mim,
meus homens e um dos maiores traficantes do país num esquema
gigantesco de desova de centenas de quilos de cocaína por mês e pode,
como o senhor disse, “cair fora”, na hora que quiser, entende?
— ...
— Já faz quase quatro meses que estamos distribuindo o sal ungido. Eu
me comprometi com o fornecedor, ele preparou todo o esquema, contratou
pessoas, subornou autoridades, tudo para que o senhor tivesse o que
planejamos. Houve um investimento, há uma expectativa de retorno que o
senhor tem que ratificar, senhor Fraguinha.
— O meu... secretário, Vermelho, te deu os quinhentos mil. Estou
precisando desse dinheiro.
— Senhor Fraguinha! O senhor monta um esquema, decide casar e viajar
para a França, deixa as coisas aqui para cuidarmos, aí, seu... secretário
decide parar tudo por três dias por causa de uma notinha no jornal, isso
gera um prejuízo e o senhor não quer pagar?
— Senhor Ideia, eu passei por momentos que fizeram com que eu
repensasse minha vida. E não quero mais fazer parte desse... esquema.
— Ora, senhor Fraguinha, o senhor não faz parte do esquema, o senhor é
o esquema. Sem o senhor o esquema não existe: é o senhor quem tem as
igrejas, quem faz a venda e distribuição da droga, quem recebe o dinheiro e
quem nos repassa. Sem o senhor não tem esquema.
— Então não tem mais esquema.
— Mas é o que eu estou explicando, senhor Fraguinha: o senhor não vai
sair, o esquema não vai parar. Se o senhor insistir nisso é bom que o senhor
repense novamente a sua vida, pois ela vai acabar bem rápido.
Fraguinha gelou. Ele falava com Ideia pelo telefone, sentado em sua
cama, com Vermelho em pé, ao lado.
— Neste momento, eu preciso que o senhor autorize seus homens a
receber a carga do sal ungido, vou descarregar nos fundos da sede da sua
igreja, amanhã, e o senhor carrega duas vans no esquema que combinamos.
Daqui a dez dias quero mais duzentos e cinquenta mil.
— ...
— É bom que seus homens estejam lá para encaminhar as coisas
Fraguinha, ou a polícia vai baixar na sua igreja e encontrar duzentos quilos
de cocaína. E aí sim o tal Geraldo Assis vai ter uma grande matéria.
— Ora, seu... Você acha que pode me chantagear?
— Senhor Fraguinha, entenda: só estou falando assim com o senhor
porque o senhor quis, como disse, “cair fora”, como se fos-se... uma
“franguinha”.
— ...
— Seja homem e cumpra seus compromissos. Sua mulher morreu?
Arrume outra. A vida não é para amadores chorões.
E desligou o telefone com um palavrão.

O doutor Euclides recebeu uma ligação de Geraldo Assis. Os dois


conversaram por cerca de uma hora e meia. Euclides falou sobre como a
polícia francesa não é adepta de reconstituições de possíveis crimes, ainda
mais envolvendo turistas: preferem classificar tudo como acidente.
Falaram sobre os esquemas corruptos na prefeitura, sobre as ligações que
Beto e o próprio Euclides receberam; sobre a igreja, conjecturaram
cenários. E desenharam, juntos, um plano.

Familiares de Virgínia dormiram com ela, fizeram-na comer, deram-lhe


sedativos. A mãe dela, avó de Carol, também estava abaladíssima. O doutor
Júlio vinha apresentando melhoras, mas ainda estava bem inconsciente:
decidiram não contar para ele.
Os pensamentos de Virgínia estavam confusos. Ela imaginava diálogos
desconexos com Fraguinha, conversas que não havia tido com a filha, o
futuro que Carol não viveria.
Naquela noite, Assis chamou Betão e Janice para uma conversa.
— Janice, quero que você vá amanhã bem cedo até a sede da Igreja
Triangular.
— ...
— Quero que fique lá o dia todo, o tempo todo, observando cada detalhe,
tudo o que estiver acontecendo, cada pessoa estranha ou conhecida que
entrar, cada movimento que lhe pareça diferente.
— OK.
— Se reparar em algo, qualquer coisa, me ligue.
— Eu e Betão estaremos na clínica do doutor Euclides. Vou falar com
Virgínia, ela vai tentar marcar uma conversa com Fraguinha, vamos forçar
que essa conversa seja na igreja no período da tarde. Meu plano é ir junto
com Virgínia até esse encontro. Eu, Betão, Virgínia e o doutor Euclides, que
vai nos ajudar.

A sede da Igreja Triangular ficava em uma rua movimentada, na região


central da cidade, e abriu logo cedo. Fiéis apareciam para orar, para serem
atendidos por pastores, para comprar a água com o sal ungido de Israel ou
mesmo para ficarem por ali, conversando uns com os outros. Famílias
recebiam remédios ou alimentos; cestas básicas eram distribuídas. Às dez
da manhã, um pastor fazia uma pequena preleção, benzia as pessoas. Às
quatro da tarde, havia um culto que contava sempre com cerca de uma
centena de fiéis. Depois, tinha o culto das sete e meia da noite, sempre
lotado. Na parte superior da igreja ficava a administração e as salas de
Fraguinha e Vermelho. Naquela manhã, os dois chegaram por volta das
nove. Janice já estava lá, vestindo uma roupa discreta e óculos escuros para
não chamar a atenção. Mas um traveco como ela sempre chama a atenção.
Mesmo assim, Fraguinha e Vermelho não repararam nela quando
chegaram: subiram as escadas correndo e foram direto para a sala. Só
pararam para receber os pêsames do pessoal da administração, que foi
abraçar o pastor e chorar suas condolências.
Ninguém podia impedir Janice de estar ali. Um pastor foi falar com ela.
— Bom dia. A senhora precisa de alguma coisa?
— Olá, pastor. Preciso de um pouco de sombra e paz. Posso ficar por
aqui?
— Sim, claro, essa é a casa dos que sofrem, de todos os que querem
sossego para o coração.
— ...
— A senhora aceita um pouco de água? Quer experimentar um pouco da
água com sal ungido de Israel?
Janice considerou que água com sal ia aumentar a sua sede. O sol estava
forte naquela manhã, ela sentia um pouco de suor debaixo dos braços,
decidiu pela água normal.
— Sem sal: tenho pressão alta.
O pastor foi buscar.

Assis ligou para Virgínia e ela ainda não tinha acordado. Ligou de novo. E
de novo.
— Por favor, acorde Virgínia. Diga que é Geraldo Assis e que tenho que
falar com ela agora.
Acordaram-na.
— Virgínia, sua filha está morta e pode ser que Fraguinha seja culpado.
Então, pare de chorar, tome um banho e um café e me encontre na clínica
do doutor Euclides. Vá sozinha. Diga a todos aí que você está bem e que tem
um compromisso comigo. Algumas coisas devem ser feitas no momento
certo e essa é a coisa para fazermos agora.
A tristeza era grande, mas quando se está sem ação é bom que alguém
comande.
— Estarei lá em uma hora.

Era mais um dia comum na cidade: todos trabalhavam, reclamavam,


procuravam emprego, largavam o emprego, reclamavam, nasciam,
morriam, faziam as necessidades fisiológicas, tomavam banho, tomavam
café, reclamavam do chefe, liam os jornais, ouviam rádio, viam TV e
reclamavam mais um pouco. O sol estava quente e as pessoas suavam,
fediam, procuravam ar-condicionado. Quem trabalhava no ar-condicionado
reclamava do frio. Quem não trabalhava no ar-condicionado reclamava do
calor. Pessoas pagavam suas contas, outras negociavam e outras cagavam
para as contas. Algumas estudavam, outras abandonavam os estudos,
algumas outras reclamavam por não terem tido oportunidade de estudar.
Umas comiam, outras não tinham o que comer. Umas falavam mal de Deus
e outras rezavam.
Quando Virgínia chegou à clínica, Assis tinha acabado de ligar para Beto,
no jornal. Conversaram bastante, Assis tinha um sorriso nos lábios.
— Agora você vai se sentar aqui e ligar pro Fraguinha. E quando falar
com ele, de maneira educada, não vai desligar até ele concordar em te
receber hoje, sem falta, na sede da Igreja.
Assis contou o que tinha planejado com Euclides, sem entrar em
detalhes.

Não havia saída para Fraguinha: ele tinha que continuar com o esquema
de distribuição da droga até juntar mais dinheiro. Havia a reserva de quase
cem milhões na conta do laranja dos pais, mas ele não podia ter acesso
àquilo antes que eles morressem. Fez algumas contas com Vermelho e
chegou à conclusão que a coisa não estava tão ruim: em menos de um ano
iriam faturar o suficiente para abandonar tudo e fugir.
Fraguinha estava incomodado por causa da conversa com Ideia. Não
gostava do tom de coação, mas tinha sido ele o mentor do esquema, estava
obrigado a prosseguir com tudo — e tinha, pela primeira vez, medo.
Vermelho estava confuso: as coisas no Recanto iam muito bem, ele nem
precisava mais da Igreja, não precisava estar naquele turbilhão. Mas era
chegado demais a Fraguinha, estava sexualmente ligado ao pastor, não
podia deixá-lo na mão.
— Do jeito que as coisas andaram até agora, e como podem estar em um
ano, teremos perto de seis milhões, Fraguinha.
Foi quando a secretária bateu à porta para dizer que Virgínia estava ao
telefone.

Ao desligar, Assis ouviu da amiga:


— Marcamos na igreja, para as três da tarde.
— Ótimo. Betão, vá buscar uns sanduíches pra gente, por favor.
O doutor Euclides chegou.
— Dona Virgínia, eu sinto muito por tudo. Cheguei agora há pouco de
uma visita ao seu marido e quero dizer que ele está muito bem: vai sair
desta. Estou muito abalado com o que aconteceu à sua filha.
Virgínia ameaçou chorar, Assis olhou para o doutor Euclides.
— Permita que eu lhe aplique um calmante leve. Você vai descansar um
pouco, tenho uma maca confortável ali. Quando acordar, estará recomposta
para o almoço e para a conversa que terão à tarde.
Euclides aplicou uma injeção em Virgínia e deu uma piscadela para Assis,
informando que estava tudo certo.

Depois do primeiro culto, às onze da manhã, Janice percebeu que estava


com fome e que precisava sair dali para comer qualquer coisa. Outro pastor
chegou-se a ela e ofereceu novamente a tal água com sal.
— É uma cortesia. Se a senhora quiser comprar depois, custa cem reais a
garrafa.
“Como posso recusar uma porra de uma água tão cara?”, pensou.
Imaginou que a tal água podia segurar um pouco mais sua fome, fazendo
com que ganhasse algum tempo.
Tomou um copo. Como estava de estômago vazio, sentiu algumas coisas.
Primeiro um leve formigamento nas gengivas. Depois, um certo
entusiasmo. Na sequência, a fome sumiu. Ela sentiu-se compelida a se
levantar e andar um pouco pela igreja. Começou a tocar uma música gospel
e ela quase dançou.
— Filhos da puta! Estão colocando algo poderoso na água! Será algum
estimulante?
Agitou-se mais um pouco. Traveca da vida, que já tinha experimentado
várias drogas, teve um estalo quando lembrou-se de Ideia no casamento de
Fraguinha.
— Puta que pariu! Estou sentindo o sabor... Estão colocando cocaína na
água!
Ligou para Assis.

— Seus homens estão prontos para receber o sal, franguinha?


Ideia só o chamava assim agora.
— Estou aqui com meus homens para receber a encomenda.
Por um segundo, Fraguinha achou estranho ter dito “meus homens”.
Sentiu-se um mafioso, dono de um exército, com alguma autoridade.
— Tínhamos marcado para as quatro, mas estamos indo já. Temos
outros compromissos.
— Estamos esperando.

Assis achou estranho e pouco provável que a audácia de Fraguinha


tivesse chegado tão longe. Pensou um pouco e considerou que a quadrilha
que estava por trás daquilo pudesse ser mais perigosa do que tinha
imaginado.
Comeram uns sanduíches, ele, Betão e Virgínia, que tinha acordado mais
disposta. Deixou as duas por um momento e foi falar com Euclides.
— Doutor, eu sinto muito ter envolvido o senhor em tudo isso. Acho que
o perigo é maior do que esperávamos.
— Assis, estou achando tudo isso muito emocionante. Ademais, ninguém
me ameaça daquele jeito. Chegou a hora de enfrentar essa gente e colocar
as coisas nos seus devidos lugares.
— ...
— Você precisa de mais alguma coisa?
— Bem...
— ...
— Sabe aquelas armas que o senhor me disse que coleciona?

Janice pediu mais um copo d’água e um dos pastores providenciou.


Quando pediu mais um, ele disse que agora ela devia pagar.
— Ah, me dá mais um. Quem sabe eu não posso pagar de algum outro
jeito?
Ela deu uma piscadinha e o pastor foi buscar.

Havia uma entrada de carros no fundo da igreja, pela rua paralela, com
um portão e uma cancela. Foi por ali que os carros de Ideia e seus homens
entraram, como de costume. No estacionamento, estavam cinco vans, que
deviam ser carregadas com a droga e com as sacas de sal que estavam
empilhadas debaixo de um toldo.
Os homens começaram a fazer o trabalho, mas o sol estava quente, os
sacos estavam pesados e decidiram chamar os pastores que estavam
dentro da igreja para ajudar. Num momento, Janice olhou para os lados e
não viu nenhum pastor. Achou estranho e circulou por ali, procurando-os.
Esgueirou-se por uma porta e viu-se numa área reservada. Passou por
outra porta e chegou a uma saleta que dava acesso ao estacionamento nos
fundos. Viu o pessoal trabalhando debaixo do sol, carregando sacos.
Escondeu-se, observando por alguns minutos. Fraguinha e Vermelho
apareceram por lá, dando instruções, apontando para um carro e outro,
orientando a distribuição do material. Ela voltou para a igreja e ligou para
Assis novamente.
— Estão na função aqui, Assis. É hora de um flagrante.
— Estamos indo!

Um furgão grande estacionou em frente à igreja, nas duas vagas


reservadas a deficientes. Virgínia desceu, acompanhada de Betão, que não
estava de enfermeira: vestia jeans, camiseta e tênis. E carregava uma bolsa
grande, a tiracolo. Entraram na igreja. Procuraram por algum pastor, mas
não encontraram. Fiéis começavam a chegar para o culto das quatro. Lá na
frente, perto do púlpito, estava Janice.
Uma mulher estava descendo as escadas, vinda do andar superior.
Virgínia interpelou-a:
— A senhora trabalha aqui?
— Sim.
— Eu vim para falar com Fraguinha. Ele está me esperando.
— A senhora quer subir?
— Não. Eu quero falar com ele aqui, quero que ele desça.
— Ele está nos fundos, resolvendo umas coisas... Vou falar com ele. Por
favor, espere aqui.
E a mulher saiu para procurar o patrão.

Havia mais de cem pessoas nos bancos da igreja, esperando pelo culto
das quatro. Um pastor apareceu, iniciando a venda de garrafas d’água,
oferecendo copos para quem quisesse. Virgínia e Betão esperavam em pé,
nos fundos, apoiadas nos últimos bancos do salão.
— Fique calma, Virgínia.
Ela tremia um pouco. Sentia-se confusa, sem saber direito no que aquilo
tudo ia dar. Mas confiava em Assis, achava que aquela ação podia resultar
em alguma verdade sobre o que tinha acontecido com Carol. Nada sabia
sobre as suspeitas de cocaína na água, tráfico ou traficantes, pessoas
armadas ou Vermelho. Ela estava ali para confrontar Fraguinha, era isso o
que devia fazer duramente. E tinha o apoio de Betão e Janice — e do doutor
Euclides e de Assis, que estavam no furgão e que podiam entrar a qualquer
momento.
Virgínia viu Fraguinha e um sujeito ruivo surgirem dos fundos da igreja,
caminhando em sua direção. Eles vinham andando devagar, falando coisas
baixinho, olhando fixamente para ela. Aquilo demorou uma eternidade, e
ela compreendeu que aqueles dois tinham alguma coisa entre si, que
Fraguinha pouco estava se importando com a morte de Carol, sepultada na
véspera.
— Oi, dona Virgínia. Eu sinto...
— O senhor sente? Sente muito? Minha filha foi sepultada ontem e o
senhor está aqui resolvendo alguns problemas?
Estavam um diante do outro, assim como Betão e Vermelho.
— Vamos subir para a minha sala para conversarmos?
— Eu não quero subir, quero conversar aqui.
— Teremos um culto daqui a pouco, as pessoas estão chegando...
— Mande as pessoas embora.
— O quê?
— Mande essas pessoas embora. Se querem rezar, que rezem em suas
casas.
— ...
— Você disse a elas que minha filha morreu?
Virgínia falou alto, quase gritando. Algumas pessoas olharam para trás
para verem o que estava acontecendo.
— Dona Virgínia, eu entendo a sua dor...
— Entende? O senhor acha que entende a minha dor? Tudo o que eu e
minha filha fizemos para o senhor e o senhor... Deixa minha filha morrer em
sua lua de mel?
Ela estava falando mais alto e Vermelho se aproximou para apanhá-la
pelo braço, para levá-la para cima. Betão olhou feio e direto para Vermelho,
mostrando uma reação.
Fraguinha pensou em várias coisas, várias possibilidades, em fazer um
drama, uma atuação, chorar pela morte de Carol, ajoelhar-se aos pés de
Virgínia. Mas ele estava tão cansado, tão extenuado, tão terrivelmente
inconformado com os rumos que as coisas haviam tomado, que soube que
não seria convincente. Decidiu partir por outro caminho.
— Dona Virgínia, a senhora está desequilibrada. Creio que não possa
fazer nada pela senhora no momento. Não posso trazer sua filha de volta,
não tenho muito a lhe falar...
— Tem sim. Tem que me falar muita coisa. Tem que me contar como
minha filha morreu.
— Isso eu já disse e todos sabem: ela bebeu e dançou e se desequilibrou
e caiu. Foi um acidente.
— Um acidente? Na segunda noite da lua de mel?
— Sim. Infelizmente.
— E por que... por que, no segundo dia em Paris, vocês ainda não
tinham... transado?
Fraguinha ficou vermelho. Como ela podia saber disso?
— Eu falei com minha filha naquela noite. Carol disse que você não tinha
dormido com ela...
— ...
— O senhor não gosta de mulheres, senhor Fraguinha? Para se livrar da
minha filha, o senhor atirou-a do apartamento em plena lua de mel, seu
canalha?
A frase calou fundo nele. Fraguinha ficou momentaneamente sem ação.
— Dona Virgínia, a senhora está passando dos limites.
— Tire essas pessoas daqui!
Virgínia gritou. Os crentes ouviram, alguns se levantaram, pastores
chegaram.
— Saiam todos daqui. Vão embora. Essa igreja vermelha está marcada
pelo sangue inocente de minha filha!
Ela acenava para as pessoas saírem, Vermelho tentou detê-la, Betão
segurou o braço dele.
— Não quero bater em você — avisou Betão, sério.
Fraguinha achou melhor que as pessoas saíssem: não sabia o que ela ia
dizer, se ia fazer algum tipo de espetáculo ainda mais descontrolado.
— Por favor, caríssimos irmãos: estamos com um problema, peço
encarecidamente que saiam.
As pessoas foram saindo, até que sobraram apenas Fraguinha e
Vermelho, Virgínia e Betão, três pastores que ficaram por ali, apreensivos, e
aquela pessoa estranha, próxima ao altar. Era Janice, com o celular na mão.
— Irmã, peço que saia...
— Ela está comigo — avisou Virgínia.
Vermelho botou reparo e a reconheceu: era a amiga de Assis. E aquela
grandalhona que o segurou pelo braço era... a enfermeira dele!
— Isso é algum tipo de armação de Geraldo Assis? Onde está ele?
Inteligente, Vermelho estremeceu. Nos fundos da igreja havia uma
operação de cocaína, sacos e mais sacos da droga: se a polícia chegasse
seria o fim deles.
— Dona Virgínia, não sei o que podemos resolver aqui...
— Não tenho nada para resolver. Só quero que você me conte o que
houve. Quero a verdade!
Fraguinha deu um sinal e um dos pastores fechou a porta da igreja.
Naquele amplo salão, andando através dos bancos compridos, eles
discutiam. Vermelho decidiu intervir.
— O pastor já disse tudo o que tinha a dizer. Peço que vocês saiam.
Temos mais o que fazer!
Virgínia foi se aproximando de Vermelho enquanto ele fugia através dos
bancos.
— Quem é você? Você é o namorado dele?
— Dona Virgínia! — gritou Fraguinha, descontrolado, aproximando-se.
Betão foi ao seu encontro.
— Toque em mim e eu acabo com você, sua lésbica dos infernos!
Janice apanhou o celular e ligou para Assis. Era o primeiro toque: o sinal
de que o plano estava funcionando. Sorrateiramente, ela saiu novamente
pela porta para espiar o que estava acontecendo nos fundos e viu que a
operação estava acabando, dos quatro homens que faziam o serviço apenas
um carregava os sacos, enquanto outros três conversavam. Voltou para o
salão.
— Me diga o que aconteceu! Me diga por que você não dormiu com
minha filha!
— ...
— Me diga por que você se casou com ela!
— ...
— Ela era... uma menina! Uma doce menina! E você...
Chorar não estava no plano, Assis avisara. Mas ela não conseguiu.
Fraguinha ficou condoído por um segundo e se aproximou. Foi quando
ela partiu para cima dele, como estava no plano. Empurrou-o forte uma,
duas, três vezes.
— Me diga! O. Quê. Você. Fez. Com. A. Minha. Filha?
Fazia já umas dezoito horas que Fraguinha vinha cheirando cocaína. A
droga estava entranhada em seu sangue, em sua mente.
Ele raciocinava de maneira aleatória, imaginando, às vezes, que estava
em um sonho. Mas articulava bem as palavras, tinha aprendido isso nas
dezenas de cursos de oratória para pastor. Agora, ali, em seu templo
vermelho como sangue, com seu grande amor, com a cocaína sendo
manejada no fundo da igreja, imerso em seu próprio domínio, teve um
pensamento claro: ele era o dono e senhor do Universo, um verdadeiro
Deus, o Salvador da Humanidade e nada podia detê-lo. Viu-se como um
monstro imbatível. Podia tomar a decisão que quisesse: era maior que o
mundo.
— Eu não a empurrei, mas devia ter empurrado! Eu devia mesmo ter
empurrado aquela nojentinha! Ela estava se esfregando em mim como uma
puta, era isso o que ela era! Uma puta fedida, com sua maquiagem
carregada, com seu perfume de merda. Ela despencou e morreu. Melhor
assim. E a senhora chega aqui, com essas duas aberrações, achando que
pode fazer alguma coisa? Volte para a sua ignorância, minha senhora!
Os três pastores ficaram estarrecidos com a fala do pastor. Vermelho
levou a mão à testa, esperando pelo pior. Por que dizer aquilo?
Por que torturar assim uma mãe que perdeu a filha? Vermelho achou
que, além da cocaína que ele vinha consumindo, o estresse tinha alterado
sua capacidade de raciocínio. Ter sido forçado a continuar com o esquema
da cocaína, estar nas mãos de Ideia, aquilo tudo minou sua energia. E a
morte de Carol tirou-o definitivamente dos eixos.
— Eu só casei com sua filha... Só casei com ela... porque ela era a mais
boba, a mais desesperada por dinheiro e poder, a mais fútil de todas as
crentinhas.
Virgínia chorava, abalada, esquecendo-se do plano: avançou sobre
Fraguinha. Vermelho foi ao socorro do amante e, em segundos, todos
estavam engalfinhados no chão, entre os bancos. Betão juntou-se ao trio,
assim como Janice. Os pastores correram para apartar, mas os dois,
Vermelho e Fraguinha, já tinham levado as três a nocaute. Não sem
sequelas: estavam com arranhões vertendo sangue nas faces, roupas
rasgadas, cabelos arrancados.
— Caralho! O que vamos fazer agora, Fra?
Fraguinha arfava. A adrenalina tinha subido muito, o coração pulsava em
suas artérias no pescoço.
— Vamos levar as três para cima. Vocês aí, nos ajudem!
Os pastores ficaram receosos. Olharam entre si, duvidando da ordem e
cogitando darem o fora dali. Eles tinham ouvido tudo e não gostavam de
ver aquelas três mulheres ali, estendidas no chão, com dentes saltando
para fora da boca, o sangue escorrendo pela bochecha.
— Eu... Eu estou mandando vocês me ajudarem! Vocês não sabem quem
eu sou? Eu sou a porra do salvador da porra da humanidade!
Fraguinha gritava descontrolado. Lá fora, dentro do furgão, Assis
estranhou a demora delas. Elas já deviam ter saído ou Janice devia ter
ligado novamente para dizer o que estava acontecendo. Avisou para
Euclides:
— Vamos entrar!
Lá dentro do templo, os pastores tremiam e Fraguinha gritava. Foi
quando apareceram os quatro homens de Ideia, que já tinham terminado o
serviço e ouviram os gritos que vinham dali.
— O que está acontecendo?
— Ei, vocês, ajudem! Venham! Ajudem a levar essas mulheres para cima!
— Quê? Não temos nada a ver com isso!
— Essas mulheres...
Fraguinha tentava envolvê-los.
— Essas mulheres descobriram o nosso esquema. Precisamos acabar
com elas!
A frase fez os pastores saírem correndo: um foi direto para os fundos, os
outros dois abriram a porta da frente e ganharam a rua, correndo, sem
olhar para trás.
Foi quando Assis entrou, em sua cadeira de rodas, com doutor Euclides.
Cada um tinha uma arma na mão. Dois dos homens de Ideia também
correram, saíram pelos fundos. Os dois que ficaram também estavam
armados.
— Filho da puta! — exclamou Vermelho, olhando para a cena.
Assis viu as amigas caídas, movimentando-se fragilmente, com sangue
pelas faces e roupas.
— Parados! A polícia está chegando. Ninguém quer mortos aqui, certo?
Fraguinha respirou fundo, estufou o peito. Ele e Vermelho estavam entre
Assis e o doutor e os homens de Ideia.
— Estamos todos mortos! Não faz nenhuma diferença!
Fraguinha estava possuído por duas drogas inflamáveis: cocaína e
adrenalina. Continuou:
— Olhem para essas pessoas aqui no chão. O que elas são? Uma oferece a
filha em troca de algumas moedas, Judas terrível nessa sociedade sem
Deus. As outras duas são apenas perdidas no mundo da devassidão,
desajustadas em seus corpos, seres hediondos produzidos pela libido.
E ia aproximando-se de Assis.
— Olhe para você, senhor Assis: um homem sem corpo, também um
devasso. Alguém que sofreu o peso da mão do Senhor, mas não o aceitou.
Um anjo caído que quer se levantar? É isso o que o senhor é?
Assis também respirou profundamente, apoiou-se nos braços da cadeira
e ficou de pé, sôfrego.
— Eu estou de pé, seu assassino!
— Não, Satã! O seu lugar é o chão, você é a serpente, você rasteja na
escuridão!
Próximo de Assis, Fraguinha saltou sobre ele. O repórter tentou atirar,
mas não havia força suficiente em seus dedos para acionar o gatilho:
caíram os dois no assoalho. Euclides apontou a arma para Fraguinha, mas
ele já havia desarmado Assis e apontava igualmente para Euclides. O
médico colecionava armas e era bom com elas, mas nunca tinha alvejado
um ser humano — salvava vidas, não estava habituado a tirá-las.
Um dos homens de Ideia apanhou o celular e ligou para o patrão, que
mandou que saíssem de lá o mais breve possível. Eles estavam partindo
quando Fraguinha dirigiu-se a eles.
— Não saiam! Eu vou pagar a vocês o que quiserem para acabar com
todos aqui!
Ambos ficaram parados por um momento, olhando-se, sem saber o que
fazer.
Vermelho tremia. Jamais imaginou estar em uma situação como aquela.
Não queria voltar para a cadeia, não queria ver Fraguinha em maus lençóis.
Olhava para Assis, caído no chão, sem conseguir se levantar. Pegou-se
pensando em Sara por um instante, sua vida parecia passar-lhe pela mente,
como um filme.
Fraguinha voltou a falar, impávido, arma na mão, apontando
agressivamente para Euclides.
— Todos aqui já estão mortos, e a morte física de todos nós só irá
apressar o julgamento pelo qual todos iremos passar em breve, quando o
Nosso Senhor Jesus nos receber no outro lado.
As órbitas de seus olhos estavam reviradas, todos pressentiram que um
tiroteio inconsequente estava próximo de ser deflagrado. Foi quando
Euclides falou:
— Ninguém precisa morrer para encontrar Jesus.
A frase desconcertou Fraguinha, que olhou fixamente para o doutor.
Euclides era inteligente e pensou que, se atirasse em Fraguinha, os
homens armados também atirariam. Baixou a arma, mostrando-se dócil.
Entre os bancos, Virgínia, Betão e Janice recuperavam-se,
testemunhando a cena entre gemidos. Assis olhou para elas e percebeu que
o plano tinha dado errado, era quase certo que todos morreriam.
— Vamos acertar nossas contas aqui — disse Assis, fitando Vermelho.
Vermelho encontrou os olhos de Assis. Todo o ódio de mais de trinta e
cinco anos veio à tona — e ele saltou sobre o jornalista. Assim que
Fraguinha virou-se para olhar, Euclides atirou, de maneira estratégica: uma
bala na cabeça do fêmur do pastor; um tiro que provocaria o desequilíbrio
dele e uma dor extrema — e que não iria matá-lo. Assim que disparou, e
Fraguinha gritou, caindo no chão, soltando a arma, os homens de Ideia
passaram a retaliar contra Euclides, que jogou-se entre os bancos.
Vermelho estava ainda sobre Assis e os homens de Ideia não estavam
dispostos a perder a vida por uma causa que não era a deles. Fugiram. O
chefe era Ideia, Fraguinha era apenas um parceiro de negócios.
Vermelho esmurrava Assis. Socava-lhe a face, o peito, o estômago
enquanto sussurrava palavras incompreensíveis.
Virgínia esgueirou-se por entre os bancos até alcançar a arma que estava
com Fraguinha. O pastor estava ali, urrando de dor, com sangue a jorrar
pela perna, ensopando a calça e o chão. Euclides levantou-se e apontou
para Vermelho, dando ordem para que ele deixasse Assis — mas o homem
não o escutava.
Foi quando todos ouviram o grito de “pelo amor de Deus, não” e o
estampido que ressoou por todo o templo. Virgínia acabava de matar
Fraguinha com um tiro no peito.
Vermelho se levantou e foi se aproximando do pastor, Virgínia tremia
com a arma na mão. Ele gritou um “não” que ecoou pela igreja — e avançou
em Virgínia, que estava estática. Ele ia matá-la. Euclides pressionou o
gatilho.
Foi quando a polícia chegou.
Sétima parte: Milagres
Geraldo Assis estava morto. Bastaram alguns poucos socos de Vermelho
em sua face para que a fissura do crânio, resultado do tiro que havia levado
há anos, reabrisse.
Mas o jornalista era mais inteligente e intuitivo do que todos supunham:
deixara tudo pronto para sua morte. Numa noite, quando preparava o
plano, pediu ajuda de Betão para encontrar uma câmera de vídeo antiga,
que ele nem sabia se ainda estava funcionando. Testou e viu que estava.
Pediu que Betão ligasse e que saísse do quarto: gravou um longo
depoimento para Beto, seu eterno patrão e amigo, dando instruções sobre a
matéria que ele deveria escrever, sobre o que devia fazer, caso ele
morresse. Entre outras coisas, Beto devia manter a chácara: Betão e Janice
deviam morar ali e criar um abrigo para prostitutas e travestis
aposentadas. “Essas pessoas não têm para onde ir, não podem ficar
desabrigadas. Ajude minhas amigas a montar essa instituição, peça auxílio
para todas as pessoas que devem favores a você e a mim — você sabe quem
são. Chame de Casa Geraldo Assis.” E escreveu, com dificuldade, uma carta
para Betão e Janice, que foi colocada dentro de um envelope lacrado:
deixava o pouco que tinha para elas e gostaria muito que elas cuidassem da
tal Casa Geraldo Assis.

A handycam de Assis havia sido acoplada dentro da bolsa de Betão. Tudo


o que acontecera na igreja havia sido gravado por essa câmera. As imagens
tiveram repercussão internacional e suscitaram uma ampla discussão
sobre o crescimento de igrejas, sobre os milagres que eram anunciados
nessas igrejas, sobre as fraudes e elementos ilegais que escondiam. O
pastor Fraga foi indiciado, a pastora Alaíde teve uma síncope e foi
internada num sanatório. A Igreja da Santidade Triangular virou alvo de
uma investigação da Receita Federal, que chegou até a conta do laranja,
com mais de cem milhões de reais. A Igreja fechou suas portas. As pessoas
que recebiam cestas básicas reclamaram.

O doutor Júlio deixou o hospital e demorou a acreditar na morte da filha.


Foi mantido com calmantes durante longas semanas até que voltou,
lentamente, às suas atividades. No Dia de Finados, ele e a mulher decidiram
visitar o túmulo de Carol.
Quando chegaram ao cemitério, ficaram impressionados com o número
de pessoas que procuravam pelo local onde a filha tinha sido sepultada.
Abriram caminho entre os visitantes, uma pequena multidão com flores e
bilhetes. Quando chegaram ao túmulo de fato, constataram que muitos
relatavam e agradeciam milagres alcançados pela jovem Carol. Santa Carol,
como diziam. A menina virgem que foi morta por um falso profeta.

No Recanto Drinks, Sara tentava dar conta de tudo sem Vermelho. Ela já
havia chorado tudo o que podia e as contas continuavam chegando, sem
trégua.
A justiça tinha negado seu pedido de adoção e ela se conformava com a
ideia de viver só, agora ainda mais só, sem Vermelho.
Semanas se passaram quando ela recebeu, numa manhã de sábado, a
visita de Ideia. Ele trazia uma sacola.
— Já disse, seu Ideia, que não quero mais vender drogas aqui. Quem
lidava com isso era o Vermelho e agora não quero mais.
— Dona Sara, estou aqui por outro motivo.
— ...
— As pessoas acham que nós, marginais, somos todos pessoas más. Mas
não somos. E não queremos matar ninguém...
— Mas as drogas matam e vocês vendem drogas...
— Sim, mas nós não damos drogas. Nós vendemos. E não obrigamos
ninguém a comprar ou a consumir. Nós mantemos um produto no mercado,
como cerveja ou cigarros. Ou bacon. Quer dizer: muita coisa faz mal, mas as
pessoas compram porque querem.
— ...
— Só queremos a possibilidade de manter o produto no mercado. Como
quem vende cigarros, bebida ou bacon.
— ...
— O plano do seu marido com o pastor era bom, mas fugia um pouco da
nossa, como direi?, da nossa ideologia.
— ...
— É: nós vendemos um produto e esperamos que esse produto satisfaça
as expectativas do nosso consumidor. Não gostamos da ideia de esconder
nosso produto, enganar o consumidor. Não me agrada saber que o
hambúrguer do McDonald’s tenha farinha de minhoca ou que a Coca-Cola
tenha cocaína na fórmula. Isso parece estelionato, pra mim.
— ...
— Assim, não gostei da cocaína na água que Fraguinha criou. Mas estava
dando um lucro alto, não podia perder a mamata. Vive mos num mundo
capitalista. E não tinha riscos pra gente, o que era muito bom.
— Agora acabou, né?
— Mais ou menos. Pessoas que tomaram a água ficaram bem animadas
com o resultado. E muitas delas viraram consumidoras dos nossos
produtos. Estamos até pensando nuns flaconetes especiais, com uma cruz,
sabe? Cocaína Jesus, algo assim.
Ideia riu. Era uma brincadeira, mas não uma má ideia.
— De qualquer maneira, as últimas operações com Fraguinha e a igreja,
comandadas por Vermelho, deram um resultado excepcional. E eu enganei
seu marido...
— Vermelho era meu sócio. E meu amigo.
— Seu sócio e amigo... Na última conversa que tivemos, eu peguei
quinhentos mil reais com ele. Fiz mais de dois milhões com aqueles
quinhentos mil. E vim trazer a comissão dele.
— Quê?
— Dentro desta sacola tem duzentos mil reais. E são seus. Você não era
sócia dele?
Sara não podia acreditar. Aquele dinheiro era o suficiente para ela viver
sua vida. Ela podia vender o Recanto e entrar com um novo pedido na
Justiça: talvez até conseguisse seu filho.
— Nem todos os marginais são pessoas más, há gente leal, dona Sara. E
justa! Eu podia ficar com esse dinheiro, mas não iria me sentir bem... Aqui
está ele: é da senhora. Eu sou uma pessoa má?
Olharam-se nos olhos, Sara não acreditava no que estava ouvindo.
— Você... o senhor... é... um... santo!
— Não, dona Sara. Somos pessoas normais, pessoas como todas
deveriam ser.
— Eu... eu não tenho como agradecer!
— Não precisa. Acenda uma vela para o seu marido. Desculpe, sócio e
amigo.
E Ideia partiu, com a consciência leve, deixando o dinheiro para Sara. No
jukebox do puteiro tocava uma música do Odair José.
FIM

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