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INTRODUÇÃO
fio condutor que atravessa as suas páginas.2 E, dentro do tema sobre a violência em
geral, a violência entre irmãos sobressai como o tipo de violência mais predominante
em todo o livro, funcionando como um eixo central para a sua compreensão. Trata-se
de um Leitmotiv que percorre todo o seu corpus textual. Aliás, como bem observou
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Membro da ABIB. Doutorando em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São
Paulo (USP). Mestre em Teologia, com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário Teológico Servo de
Cristo (STSC). Atualmente, é docente na área bíblico-teológica no Seminário Teológico Evangélico do Betel
Brasileiro (STEBB) e também no Instituto Betel de Ensino Superior (IBES). Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8784759515071968. Email: augustovailatti@ig.com.br.
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O tema está presente na vida dos seguintes personagens genesianos: Caim e Abel (Gn 4.1-26), Lameque (Gn
4.23), a geração do dilúvio (Gn 6.11-13), Cão e Noé (Gn 9.22), os pastores de Abrão e os pastores de Ló (Gn
13.7-12), vários reis (Gn 14.1-12), Abrão e os seus 318 homens (Gn 14.13-16), Sara e Hagar (Gn 16.1-6; 21.9-
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14), os habitantes de Sodoma (Gn 19.1-11), Ló e as suas duas filhas virgens (Gn 19.8), Esaú e Jacó (25.21-26;
27.41-45), Raquel e Léia (Gn 29.31-30.24), Diná, Simeão e Levi (Gn 34) e José e os seus irmãos (Gn 37-50).
humanidade, é tratado com crescente complexidade desde o início do Gênesis até o
fim”.3 E Girard completa esse pensamento ao afirmar que “no Antigo Testamento e
nos mitos gregos os irmãos são quase sempre irmãos inimigos”.4 E esta inimizade
definição que propomos ao assunto, optamos por definir “violência” neste artigo como
todo o tipo de ato ou comportamento, físico ou moral, que de uma forma ou de outra
sociedade.
A narrativa sobre o fratricídio cometido por Caim contra o seu irmão Abel é
uma das mais conhecidas de toda a Bíblia. Certo dia, Caim, o irmão primogênito que
era lavrador da terra, resolve deliberadamente matar o seu irmão caçula, Abel, que era
pastor de ovelhas. Ao que tudo indica, o sentimento de inveja foi a força motriz que
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FOKKELMAN, J. P. Gênesis. In: ALTER, Robert & KERMODE, Frank. (orgs.). Guia Literário da Bíblia. São
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lhe havia oferecido e, ao mesmo tempo, aceitara o “sacrifício animal” ofertado por seu
praticada por Caim. Caim assassina o seu irmão sem qualquer motivo que o justifique
em seu ato.
Neste momento, alguém pode estar se perguntando: “Mas por que Deus não
fez nada para impedir que Caim assassinasse a Abel?”. 5 A resposta a esta importante
questão é bastante simples: todos os homens nascem livres. Aliás, como bem declarou
Moshe Grylak, “é o livre-arbítrio que nos outorga o título supremo de seres humanos.
o intuito de liberar-nos das responsabilidades”.6 Uma vez que somos seres moralmente
livres, isto é, dotados de capacidade para praticarmos tanto o bem quanto o mal, logo,
somos responsáveis pelos nossos próprios atos e não um segundo agente. Isto é
exemplificado na fala divina dirigida a Caim: “na porta jaz o pecado, e fazer-te pecar é
o seu desejo, mas tu podes dominá-lo”. (Gn 4.7).7 Se Caim “podia dominar” os seus
impulsos para o mal, isto quer dizer que ele foi o único e verdadeiro responsável pelas
ações que cometeu. Dessa forma, colocar Deus no banco dos réus como o “mentor
intelectual” e, portanto, como o culpado pela violência que nós mesmos praticamos
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Esta questão é trabalhada de várias formas por Saramago que, em seu livro, retrata Deus como o verdadeiro
culpado pela morte de Abel. (Cf. SARAMAGO, José. Caim. São Paulo, Companhia das Letras, 2009).
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GRYLAK, Moshe. Reflexões Sobre a Torá. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 1998, p.9.
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7
GORODOVITS, David & FRIDLIN, Jairo. (trads.). Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda,
2006.
livremente, é tão absurdo quanto culpar postumamente Henry Ford por algum acidente
sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” (Gn 4.10) também merece ser
considerada. O texto hebraico diz: qol demê ’ahîka tso‘aqîm ’elay min-ha’adamâ, isto
é, “a voz dos sangues do teu irmão grita a mim desde a terra”. Aqui, a palavra hebraica
vários ferimentos produzidos no corpo de Abel.8 Seja como for, é digno de nota que
palavra em toda a narrativa, a sua morte não ocorre sem testemunhas. O seu sangue
ser evitada. Quando isto não ocorre, é porque não fizemos bom uso de nossa liberdade
para impedi-la.
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ZAJAC, Motel (trad.). Bereshit com Rashi Traduzido. São Paulo, Trejger Editores, 1993, p.18.
2. A VIOLÊNCIA ENTRE ESAÚ E JACÓ
Além da trágica história entre Caim e Abel, outra história, porém, menos
trágica, também se descortina em Gênesis entre outros dois irmãos, Esaú e Jacó.
Contudo, o pano de fundo deste novo conflito entre irmãos, desta vez não
envolve ofertas trazidas perante Deus, mas sim o fato de Jacó, o irmão caçula, ter
“roubado” de Esaú, seu irmão mais velho, a primogenitura e a conseqüente bênção que
Entretanto, esse conflito entre irmãos que tinha tudo para terminar com um
final bastante trágico – pois começou com mentiras, enganos, trapaças e muito ódio –
reencontro ocorre. Jacó sai ao encontro de Esaú e se inclina sete vezes em terra diante
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A prática da venda da primogenitura também pode ser encontrada entre outros povos do Antigo Oriente Médio.
Para um exemplo dessa prática em outras culturas, veja: KIDNER, Derek. Gênesis, Introdução e Comentário.
São Paulo, Vida Nova / Mundo Cristão, 1991, p.141.
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Segundo Chouraqui, o ato de se inclinar em terra sete vezes também aparece nas cartas de Amarna e
representa rendição total. (Cf. CHOURAQUI, André. No Princípio. Rio de Janeiro, Imago, 1995, p.348).
Esse final feliz só foi possível graças à colaboração solidária dos dois
irmãos. Quanto a Esaú, parece que o tempo encarregou-se de ensiná-lo sobre a difícil
tarefa de perdoar, que é o ato de “reconhecer que alguém tem uma dívida com você e
Esaú e Jacó só foi possível porque Esaú quis perdoar o seu irmão. Assim, percebemos
violência e da não-violência. Isto implica dizer, e nunca é demais repetir, que nós
mesmos somos os principais responsáveis pela prática da não-violência, pois cada ser
Gênesis, a relação entre Raquel e Léia é a menos tensa. Porém, isto não significa que
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AGUIAR, Marcelo. Em Busca da Bênção Perdida: princípios bíblicos para a restauração da vida espiritual.
São Paulo, Editora Vida, 2003, p.168.
essa relação esteja isenta de traços de violência, como veremos a seguir. Em resumo, a
história das duas irmãs é a seguinte: Raquel era estéril e Léia, sua irmã, não. Ambas
eram casadas com Jacó, dentro do conhecido regime marital oriental do concubinato.
Como Raquel não podia ter filhos e Léia já havia tido vários, isso provocou a inveja de
Raquel (Gn 30.1) e desencadeou uma desenfreada competição entre as duas irmãs que
chegaram, inclusive, a utilizar as suas escravas como esposas em seu lugar para ver
qual delas daria mais filhos a Jacó (Gn 30.1-24).12 Além disso, o forte amor de Jacó
por Raquel em comparação com Léia (Gn 29.18,30), fez com que esta também
invejasse Raquel, a ponto de lhe dizer: “não é bastante que me tenhas tomado o
durante a sua competição com a irmã: “com lutas de Deus tenho lutado com minha
irmã” (Gn 30.8). Aqui, na expressão naftulê ’elohîm niftaltî, “com lutas de Deus tenho
lutado”, aparecem duas palavras derivadas do verbo hebraico patal, “torcer, enrodilhar
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Chouraqui lembra que a esterilidade feminina, caso fosse prolongada, poderia provocar o repúdio da esposa
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por parte do marido. Isso explica porque Raquel e Léia empregam suas escravas para substituí-las como esposas
a fim de proporcionar a edificação da família. (Cf. CHOURAQUI, André. No Princípio, p.307).
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Para saber mais sobre o relacionamento conturbado entre Raquel e Léia a partir da relação “esterilidade versus
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fecundidade”, veja: CHWARTS, Suzana. Uma Visão da Esterilidade na Bíblia Hebraica. São Paulo, Associação
Editorial Humanitas, 2004, pp.123-142.
(enroscar)” que é um termo que faz alusão metaforicamente a “uma luta onde os
apenas de forma figurada, contudo, ela evoca a imagem de duas pessoas que estão
Raquel faz referência ao embate violento travado entre ela e Léia no âmbito da
competição para ver quem conseguiria gerar mais filhos para Jacó.
Embora essa rivalidade entre as irmãs não tenha atingido proporções mais
graves, todavia, o desejo que uma irmã tinha de sobrepujar a outra e vice-versa, vendo
a sua rival, portanto, em situação abjeta, mostra, ainda que sutilmente, o “espírito
violento” que regia o relacionamento entre ambas. Este ambiente de mútua opressão,
(Gn 37.20).
de violência entre irmãos, isto é, a dramática narrativa sobre José e os seus irmãos.
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Idem, Ibidem, p.309. O acréscimo entre parênteses é meu. Para outras observações sobre o verbo patal, veja
também: BROWN, Francis et al. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Oxford, Clarendon Press,
1951, p.836.
Nesta narrativa, a violência que será praticada contra José pelos seus irmãos
possui pelo menos três causas principais: a) a difamação dos irmãos feita por José (Gn
37.2); b) a predileção de Jacó, o pai, por José (Gn 37.3,4); e c) os sonhos de José (Gn
tiraram de José a sua túnica colorida que ele ganhara do pai, lançaram-no numa cova
sem água, se assentaram para comer pão como se nada de errado tivesse acontecido e,
por fim, o venderam por vinte moedas de prata, como se ele fosse um escravo, a um
grupo de viajantes ismaelitas que, por sua vez, o levaram até o Egito (Gn 37.23-28).
Não há nada pior que possa acontecer a um homem do que ter a sua
dignidade humana atingida, o seu direito de ir e vir cerceado e a sua liberdade tolhida,
pois, como bem escreveu Jolivet, “esta liberdade é um direito fundamental do homem,
que, sendo racional e dotado de livre-arbítrio, deve poder agir com toda a
Neste caso, notamos que a violência feita contra José poderia ter sido
evitada, se os seus irmãos quisessem. Apesar disso, Deus reverteu toda a violência
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JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia, p.403.
CONCLUSÃO
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KRUG, Etienne G. (ed.). World Report on Violence and Health. Geneva, World Health Organization, 2002,
p.3.
Terceira, a violência entre irmãos, tal como retratada no Gênesis, começa
com toda a sua vitalidade na narrativa sobre Caim e Abel (Gn 4), mas vai aos poucos
perdendo terreno quando entra em cena a história de José e seus irmãos (Gn 37-50).
Isto significa que é possível reduzir os índices de violência em nossa sociedade. Para
isso, não podemos transferir as nossas responsabilidades para Deus ou para qualquer
pessoa ou instituição. Não podemos terceirizar nossas ações e responsabilidades. Elas
são apenas nossas e de mais ninguém.
E a quarta e última conclusão é a seguinte: todo ser humano merece ser
tratado com dignidade, respeito e solidariedade. Quando agimos assim, o amor triunfa
sobre a violência! Aliás, creio que não há melhor maneira de encerrar o nosso texto do
que citando o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
promulgada em 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e são iguais em
dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com
os outros em espírito de fraternidade”.17 Que este espírito fraternal esteja presente em
nossa vida hoje, amanhã e sempre!
BIBLIOGRAFIA
17
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Página
978-1-909144-44-6].