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1a edição: 2017
Coordenação editorial e copidesque:
Ronald Polito
Revisão:
Marco Antonio Corrêa e Sandro Gomes dos Santos
Capa:
Estúdio 513
Imagem a capa:
Cpdoc/arquivo Gustavo Capanema
Desenvolvimento de ebook:
Loope - design e publicações digitais | www.loope.com.br
Dados eletrônicos.
Trabalhos apresentados no seminário organizado pelo Núcleo de Audiovisual e Documentário do
CPDOC, realizado em novembro de 2016.
Em colaboração com Arbel Griner, Patrícia Machado, Thais Blank.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-1989-7
Capa
Folha de rosto
Créditos
Introdução
Adelina Novaes e Cruz, Arbel Griner, Patrícia Machado, Thais Blank
4 | O inverno da desesperança
Mariarosaria Fabris
9 | Para a mamãe, com amor: arquivo e memória nas cartas filmadas de A fam
ily affair (2016)
Patricia Rebello da Silva
Sobre os autores
Introdução
Referências
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Tese (doutorado em comunicação e cultura) — Universidade Federal do Rio
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2011.
1
Os poderes da imagem: as fotos de
perpetradores no genocídio cambojano e
sua migração para o cinema, os museus e
a corte penal1
Vicente Sánchez-Biosca
Imagens performativas
Em 2014, um vídeo difundido na internet abalava o mundo. Nele, James
Foley, jornalista estadunidense sequestrado desde 2012 pelo grupo Estado
Islâmico (Isis-Daesh) na Síria, estava ajoelhado e sua roupa laranja
destacava-se do pano de fundo que parecia ser as dunas do deserto. À direita
e de pé, uma imponente e aterrorizante figura vestida de preto contrastava
com o quadro anterior e com as cores vívidas (o céu azul, a terra marrom e a
roupa alaranjada do jornalista). Diante da câmera, em inglês britânico,
ameaçou e, depois de acusar o governo estadunidense, essa terrível figura,
cujo rosto não se podia ver, brandiu uma descomunal faca que decapitou o
jornalista. Assistir a essa cena dolorosa provoca angústia e desconforto, pois
o espectador já conhece o final. Além disso, atesta que a tortura selvagem à
vítima, que não só se limita à decapitação, é precedida de humilhação, ambas
acompanhadas por uma câmera cúmplice que não falha.
Dessa imagem pode-se destacar a seguinte questão: qual a função que a
câmera, tão próxima desse sacrilégio contra a vida e a dignidade humana,
exerce nesse lugar? Por que o pulso de quem a segurava não vacilou em
nenhum momento? Como era possível que o autor tivesse tempo para
escolher um “estilo” filmando por meio de um ligeiro desvio da frente, como
se evitasse enfrentar o que considerava um ato legítimo de execução? O
sangue-frio não só define essa misteriosa encarnação da morte que brande a
lâmina impassível, mas incumbe ao olho mecânico impassível diante dos
fatos a tarefa de transmitir a mensagem ameaçadora ao Ocidente. Uma
câmera cúmplice, pois não há especificador suficiente para defini-la. A
filmagem é parte indissociável da violência do ato. Sem esse olhar de ódio, o
ato não teria valor. Sem a câmera, não há sentido. Com ela a mensagem é
mais que eficiente. Então, qual função tem esse olhar? Enquanto esse teatro
surreal foi planejado para mostrar a frieza implacável desse crime metódico,
causa surpresa a primitividade e a crueldade da arma escolhida para a
decapitação da vítima. Há uma profanação nesses atos, mas a ação não deixa
incólume o olho que os registra, indissociável da prática desse ato.
São imagens de perpetradores, utilizando a definição de Marianne Hirsch
referindo-se às fotos tiradas pelos membros das forças alemãs Wehrmacht de
seus aliados Waffen-SS enquanto cometiam atos criminosos, principalmente
na frente Oriental durante a invasão da então URSS em junho de 1941 e nas
matanças ou limpezas de retaguarda; imagens tiradas pelos algozes ou seus
cúmplices como parte da máquina de destruição. Também denominamos
imagens dos perpetradores fotos, filmes, vídeos ou outros suportes tirados
por quem os pratica (ou compartilha o exercício de) violência às vítimas;
violência em que a produção visual se torna inseparável da física ou da
psicológica. É como se a câmera se presentificasse na faca, na arma de fogo
ou na humilhação e no sacrifício (Hirsch, 2012:136).
Contudo, o particular desse gênero iconográfico é seu destinatário
modesto e restrito, pois as imagens parecem estar destinadas ao consumo
privado dos próprios perpetradores ou de quem compartilha a mesma
ideologia e/ou sentimentos dos praticantes (estejam próximos fisicamente ou
sejam pertencentes à mesma geração). No entanto, esses círculos de
proximidade e identificação são instáveis, suas fronteiras são imprecisas e,
por acaso, a derrota ou a vitória de seus autores pode chegar em mãos
imprevistas. Isso é o contrário do que ocorre com os vídeos do Daesh.
Diferentemente das fotos das execuções pelas Waffen-SS na frente Oriental
durante a Segunda Guerra Mundial ou das fotos humilhantes dos presos
iraquianos em Abu Ghraib tiradas pelos membros da polícia militar norte-
americana, os vídeos do Daesh possuem uma originalidade radical no
orgulho obsceno em difundi-los pelas redes sociais em escala mundial. A
inovação deles consiste nessa difusão aberta e sem repressão dos atos
violentos para o mundo ou, precisamente, a ampliação sem limites ao
consumidor.
O vídeo de Foley cumpre outra função comum a outras imagens de
perpetradores: o anúncio de uma morte iminente (impending death),
conforme Barbie Zelizer (2010) define em seu livro, ao traçar uma genealogia
e presença no fotojornalismo contemporâneo. Esse gênero de fotografia
apressa a fronteira do tempo ao forçar seu espectador a projetar o futuro, que
já ocorreu, no presente representado na foto, nesse interior onde o futuro é
ainda visto como algo iminente, ou seja, inexorável, mas ainda não ocorrido.
Ao observar essas imagens (pois o ato de ver só ocorre quando é conhecido o
desenlace fatal), o que fazemos é devorar signos premonitórios do inexorável.
São imagens em que o consumo se precipita no cíclico e entra em um círculo
fatal conforme refere Sigmund Freud ao definir a pulsão da morte no ser
humano, a compulsão à repetição, em Além do princípio do prazer.
Pode-se dizer que a duplicidade de sentido destacada coloca à prova o que
foi considerado noema da fotografia por muitos teóricos clássicos da área,
como: seu paradoxo temporal, uma estrutura de futuro anterior. A começar
por Walter Benjamin (2004:26), que em 1931 destacava esse dispositivo, essa
“pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade
chamuscou a imagem”; seguido por Philippe Dubois (1983), que destaca a
partir da semiótica o caráter indicial da fotografia; por Charles Sanders
Pierce, que assinala sua condição de ato icônico (acte iconique); por Susan
Sontag, que identifica o ato de tirar uma foto com “to participate in another
person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability” para associá-la a um
memento mori que se torna uma epifania negativa quando as fotografias
representam a dor alheia (Sontag, 1981:11); last but not least, Roland Barthes
(1980:138), que destaca que a foto é uma “émanation du réel passé”. Não é
preciso citar mais nomes: a marca do real nunca é tão dramática quanto na
foto. No entanto, é preciso sair do essencialismo para ampliar essa condição a
outros suportes apesar de suas diferenças não serem irrelevantes. No caso em
questão, o ato violento implica a imagem; e esta se transforma em ato em si
mesmo; de certo modo, a imagem, menos letal que o ato que a imortaliza e
em sua efemeridade, se transforma em um verdadeiro documento, em um ato
mais infame.
Em outras palavras, a foto reproduz o real de sua produção (os formatos
escolhidos, a exposição designada, a distância, o objeto e sua textura...), e o
resultado registra os modelos determinados historicamente para essa
finalidade. Se ao mesmo tempo o ato fotográfico é um recorte ou seleção do
real e uma projeção (sempre contraditória, parcial e imperfeita) do ato sobre a
foto resultante, ele deveria nos levar a um detalhado estudo sobre as
condições históricas exatas em que é produzida, questionamentos sobre o
momento, condições externas, circunstâncias concretas...; por sua vez, as
análises feitas pelos teóricos da fotografia não levam em consideração esse
esforço historizador. Em vez disso, os autores citados anteriormente parecem
servir de exemplo para evitar a reconstrução dessa realidade em que a foto é
um recorte (no espaço e no tempo). Dessa forma, como afirmou John Tagg,
costuma-se considerar a foto uma emanação mágica em comparação com um
produto histórico e cultural, inclusive é reconhecida como “essência” a marca
do real. “The photograph is not a magical ‘emanation’ but a material product
of a material apparatus set to work in specific contexts, by specific forces, for
more or less defined purposes. It requires, therefore, not an alchemy, but a
history” (Tagg, 1988:3). A partir do cânone de Barthes, Tagg o critica ao
definir “What Barthes sees as photographs ‘evidential force’ is bound up
with new discursive and institutional forms, subject to but also exercising
real effects on power, and developing in a complex historial process that is
all but obliterated by the idea of a continuous ‘documentary tradition’ […]”
(Tagg, 1988:7-8). E no registro da imagem corporal nas formas de
organização do poder durante o século XIX, Allan Sekula fornece
importantes contribuições que se relacionam diretamente com nosso objeto:
os mug shots que a polícia francesa praticou nas colônias (Sekula, 1986:3-
64).
Não se trata de contestar as contribuições desses teóricos clássicos, mas
de estabelecer um diálogo entre as contribuições dessa fenomenologia e cada
situação histórica singular, saindo do círculo fotográfico para compreender
outros sistemas visuais como o cinema ou o vídeo, sem por isso negar as
particularidades expressivas de cada um. O fascínio que essas imagens de
morte imanente exercem, que vão desde a ferida mortal até a pornografia, é
propício para uma circulação compulsiva. Descobertas, são difundidas sem
limites, possivelmente porque sua retórica temporal as impede de envelhecer,
nos prende nesse eterno retorno que melhor descreve o paradoxo do futuro
anterior. Se os destinatários originais foram os próprios perpetradores ou
apoiadores, expostas além desse círculo, exercem um poder avassalador que
chega, por força ou nível, a outras estratégias pensadas para explorar seu
impacto: contrapropaganda, denúncia, questionamentos, análise...
No entanto, essa vertiginosa apropriação não está isenta de riscos. Um
deles expõe o espectador a uma dura prova: a restrição de olhar pelos olhos
de um perpetrador, condição que se arrasta velis nolis até mesmo quando se
trata de reapropriações, citações, críticas ou détournements do material
original. Essa condição marca um perigo, formal e ético, uma possível
identificação com o posicionamento físico relacionado com o observado que
pode acarretar o mesmo ponto de vista moral sobre os fatos registrados.2
[...] senti que alguém retirava a venda dos meus olhos. No início, via um borrão, mas
logo a visão ficou nítida. Na minha frente tinha uma cadeira e em cima dela uma
câmera fotográfica.
Referências
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2
Cinema de arquivo, história e exposições
universais: Land of liberty (1939), de Cecil
B. DeMille
Eduardo Morettin
Nosso objeto também pode ser inserido nesse grupo, pois Land of liberty
(1939), de Cecil B. DeMille, é uma verdadeira enciclopédia cinematográfica
da produção norte-americana dos anos 1930, compilação de seus momentos
mais significativos, representando verdadeiro monumento cinematográfico
erigido em prol da indústria hollywoodiana e, portanto, de sua cultura
midiática.12
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3
O desvio das imagens: documentário e
montagem de arquivos no cinema de
Gianikian e Lucchi
Um plano escuro deixa entrever, ao fundo, uma faixa de luz que contorna o
umbral de um túnel. A câmera se move com lentidão rumo à claridade que
cresce na trajetória curva. Logo identificamos os trilhos no chão e
compreendemos que a câmera se encontra na dianteira de uma locomotiva
que atravessa paisagens alpinas. Durante 10 minutos, vemos uma longa
viagem ferroviária composta por imagens de trens em movimento, em
ambientes variados, marcados pela ausência de figuras humanas (estas
chegam mais tarde, com a violência da caça ao urso). A montagem sugere
uma sucessão espaçotemporal entre os trechos, de uma mesma viagem
possível por território imaginário, não obstante as mudanças de cor e
gradação dos fotogramas.
A descrição é da sequência inicial de Do polo ao Equador (1987), obra
dos cineastas italianos Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi. O filme é
um ponto fulcral para o amadurecimento da dupla no trabalho com imagens
de arquivo, cuja origem remonta pelo menos a 1981, com a realização de
Karagoez catalogo 9,5. O deslocamento do trem, da escuridão à claridade,
constitui um plano emblemático para se pensar a atitude dos artistas, que
operariam no olhar um movimento semelhante, entre a obscuridade e a
luminescência. Uma pedagogia do olhar, capaz de lançar luzes sobre aspectos
da história por meio da elaboração de visibilidades outras e da reconstrução
fílmica de documentos imagéticos específicos.
Do polo ao equador deriva do material homônimo filmado por Luca
Comerio (1878-1940) no final dos anos 1920, sendo marcado, de saída, por
forte caráter metarreflexivo. Comerio foi “um artista futurista, próximo de
D’Annunzio, mas também o cineasta do rei da Itália. Ele fabricava
atualidades para o rei e desejava muito cair na graça do regime fascista”
(Gianikian e Lucchi, 2015:18). Desde o fim do século XIX, esse cinegrafista
percorreu e filmou lugares exóticos com sua câmera Lumière, dos Alpes ao
Polo Sul, passando pela África e pela Índia. Mais tarde, continuou sua obra
publicitária com o registro de acontecimentos ligados a ideologias
progressistas e/ou militares, como a Primeira Guerra Mundial e as invasões
colonizadoras.
O filme de Gianikian e Lucchi realiza uma deambulação visual pela
violência do mundo inscrita nesses documentos (e territórios) imagéticos.
Contudo, a natureza dos materiais convocados implica uma dupla questão.
Por um lado, o estado precário dos arquivos, deteriorados ou fadados ao
desaparecimento, demanda uma estratégia meticulosa de recuperação. Por
outro lado, a carga ideológica das imagens, marcadas pelo ponto de vista
fascista, não permite que sejam restauradas e exibidas simplesmente. Uma
reelaboração crítica se faz necessária, a fim de oferecer novas possibilidades
de visão para os sujeitos e as situações registradas.
Existe um pressuposto ético na reapropriação estética de semelhantes
imagens. “Não podemos dar a ver esses filmes sem precaução, pois ou eles
não seriam vistos [...] ou seriam mal compreendidos, e nós poderíamos ser
tomados como nostálgicos do fascismo e das colônias”, explicam os cineastas
(Gianikian e Lucchi, 2015:18). Cabe a eles, portanto, desconstruir os
discursos da dominação e da injustiça incutidos nos olhares agenciados pelo
regime de Mussolini. Os arquivos devem ser desviados do propósito original,
propagandístico, para possibilitar uma espécie de sobrevida ou segunda vida
aos corpos e destinos filmados.
Intervenções no visível
O processo de composição das coleções acontece, inevitavelmente, na
ferramenta de manipulação das imagens conhecida como câmera analítica.
Dado que os materiais de base se encontram, frequentemente, impróprios
para o manuseio convencional, os cineastas só podem visualizá-los e
selecioná-los com essa máquina de edição pessoal, capaz de amplificar as
possibilidades de apreensão dos elementos menores devido ao ritmo manual
de um fotograma por vez. Eles dizem:
Era preciso analisar fotograma a fotograma para expor aquilo que estava oculto, para
descobrir a ideologia fundamental. É somente com o desenrolar fotograma a fotograma
do material que se pode intervir em uma imagem e encontrar, nela, detalhes
importantes. [Gianikian e Lucchi, 2015:15]
Tentar dar uma identidade aos esquecidos anônimos dos quais não são mencionados
sequer os nomes, nem o local onde foram feridos, nem a menor indicação de suas
vidas. A identidade aparece por meio dos gestos, dos olhares, das expressões, dos
detalhes, dos objetos que fogem no curso do tempo cinematográfico constante.
Expressões mudas de raiva ou de embaraço quanto ao fato de serem obrigados a posar
diante de uma câmera pretensamente “científica e médica”. Impossibilidade de
esconder as marcas da guerra sobre o próprio corpo. E mesmo forçados de colocá-las
em evidência. [Gianikian e Lucchi, 2015:122]
Em seu filme Interface (1995), por exemplo, Farocki dizia: “Até hoje, apenas as palavras,
ou às vezes a música, comentaram as imagens. Aqui, as imagens comentam as imagens”.
Como pergunta Jacques Derrida (2001): “É possível que o antônimo de ‘esquecimento’ não
seja ‘rememoração’, mas sim ‘justiça?’”.
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4
O inverno da desesperança
Mariarosaria Fabris
A meu pai,
que me contava de Biagio, súdito austríaco
e cidadão italiano, que não foi à guerra para
não atirar em seus irmãos.
Quanto durou aquela salva de tiros, eu não sei dizer. Não poderia dizê-lo nem então.
Durante uma ação perde-se a consciência do tempo. A gente acredita estar às dez da
manhã e está às cinco da tarde. [...] Por quanto mantivemos nossa posição, eu não
lembro. No combate, perde-se a noção do tempo, sempre. [Lussu, 2000:43, 72]
Faz mais de um ano que estou na guerra, um pouco em cada frente e até agora não
estive cara a cara com um único austríaco. E, no entanto, matamo-nos reciprocamente,
todos os dias. Matar-se sem conhecer-se, sem nem ao menos ver-se! É horrível!
[comentário de um tenente-coronel piemontês]
Eu nunca tinha visto um espetáculo igual. Agora estavam lá, os austríacos: próximos,
quase em contato, tranquilos, como transeuntes na calçada de uma cidade. Tive uma
sensação esquisita. [...] Uma vida desconhecida mostrava-se de improviso a nossos
olhos. Aquelas trincheiras, que nós também tínhamos atacado tantas vezes em vão,
diante de sua resistência tão feroz, haviam acabado por parecer-nos inanimadas, como
coisas lúgubres, não habitadas por seres viventes, refúgio de fantasmas misteriosos e
terríveis. Agora se mostravam a nós em sua vida verdadeira. O inimigo, o inimigo, os
austríacos, os austríacos!... Eis o inimigo e eis os austríacos. Homens e soldados como
nós, de uniforme como nós, que agora se mexiam, falavam e tomavam café,
exatamente como estavam fazendo, atrás de nós, naquela mesma hora, os nossos
mesmos companheiros. Coisa esquisita.
Quem não esteve na guerra, nas condições nas quais nós estivemos, não pode ter ideia
desse gozo. Até uma única hora em segurança, naquelas condições, era muito. Poder
dizer, ao alvorecer, uma hora antes do ataque: “pronto, vou dormir ainda meia hora,
posso dormir ainda meia hora, depois vou acordar e fumar um cigarro, esquentar uma
xícara de café, tomá-lo aos golinhos, fumar outro cigarro”, já parecia o prazeiroso
programa de uma vida inteira. [Lussu, 2000:119]
No filme de Olmi, o capitão prefere renunciar a seu grau para não ter que
dar uma ordem que considera criminosa e impor mais um sacrifício “estúpido
e cruel” (De Roberto, 2015:36), mas antes exige que as baixas sejam
registradas pelo nomes e não apenas pelos números;7 e o jovem tenente, que
assume temporariamente seu posto, versado em ciências humanas e filosofia,
extravasa sua angústia numa carta familiar:
o acaso ou talvez o destino reservou-me viver dentro de uma guerra que eu imaginava
mas não conhecia. Estou num posto avançado na alta montanha. Ao redor, apenas neve
e silêncio. A trincheira dos austríacos está tão perto que me parece ouvir sua
respiração. Estou aqui há pouco mais de uma hora e parece que, de chofre, me tornei
um velho, a tal ponto que meus estudos e até meus ideais perderam seu significado,
como minha juventude.
Mãe amadíssima, há jovens como eu que morrem a cada dia e, mesmo os que
regressarão a seus lares, levarão dentro de si a morte que conheceram. E esse
pensamento jamais os abandonará. Eles se sentirão como sobreviventes condenados a
viver duas vezes. O mais difícil será perdoar. Se um homem não sabe perdoar, que
espécie de homem é?
Era a frase irônica, o bordão mordaz com o qual os humildes soldados de infantaria,
que se consumiam nos fossos das trincheiras, que suportavam toda a fadiga, que
enfrentavam todos os perigos, que sofriam todas as torturas, exprimiam a mágoa e o
desdém pelas nobres intenções ostentadas pelos que se subtraíam ao serviço militar,
pelos heróis acomodados em suas poltronas, pelos especuladores que lucravam com o
grande infortúnio. [Roberto, 2015:36]
continuamos a cultivar essa culpa, que é a de não ter dado uma resposta a esses mortos.
Fazemos as celebrações, bandeiras, fanfarras, mas eles querem saber “por que
morremos?”, “que vantagem isso trouxe à humanidade?”. Sabe por que permanecemos
em silêncio? Porque nos envergonhamos um pouco.
A sugestão feita aos jovens era a de mostrar, dentre todos os sentimentos, o mais nobre,
o amor pátrio. Aqueles rapazes acreditaram nisso. Milhares e milhares de homens
inutilmente sacrificados por essa arrogância dos poderosos, que, então, se encontravam
nas altas aristocracias dominantes. Acredito que, se formos examinar, na história da
humanidade, os grandes acontecimentos trágicos dos conflitos têm como pressuposto
sempre o mesmo motivo: o poder para poucos, a riqueza para poucos. Espero que este
filme mostre exatamente isso: para além da dor, não digo um caminho, mas um indício
para sairmos dessa vergonhosa armadilha da traição em relação aos mais fracos.
[Cattani, 2014]
Esse tipo de visor, embora comum, parece ter sido retirado das páginas de Lussu
(2000:117): “Os soldados tinham colocado uma abocadura escudada, encontrada nas ruínas
de Asiago. Era uma placa de aço pesada, com um furo para poder observar, que se podia
abrir e fechar com um obturador também de aço”.
Uma vez terminadas as filmagens, as trincheiras foram doadas à prefeitura de Asiago para
serem exploradas como atração turística. A contradição entre os propósitos do filme e a
exploração comercial do cenário não deixa de chamar a atenção. É a esgarçadura da
transmissão de acontecimentos marcantes às novas gerações, só assimiláveis se
transformados em espetáculo. “O tempo dos lugares é esse momento preciso onde
desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória, para só
viver sob o olhar de uma história reconstituída”, como diria Pierre Nora (1993:12).
A espera pelo combate também era exasperante, como registra Gianni Biondillo
(2016:334): “Os bombardeios da artilharia pesada contra as trincheiras austríacas haviam
começado, copiosos, já na noite anterior. Bastava isso para a tropa entender que estava
programado um ataque com arma branca, sem precisar esperar pelas ordens oficiais. Em
seguida, quando chegou de Monfalcone um abundante fornecimento de provisões, não
houve mais dúvidas. Os mais jovens comeram o chocolate com os olhos marejados de
lágrimas. Os veteranos atordoaram-se com conhaque”. Lussu (2000:113) também relata o
grande uso de bebidas alcoólicas nas trincheiras: “— Beber e viver. Conhaque. Dormir e
viver e conhaque. Ficar à sombra e viver. E mais conhaque. E não pensar em nada. Porque,
se tivéssemos que pensar em algo, deveríamos matar uns aos outros e acabar com isso de
uma vez por todas”.
É um pouco diferente do que afirma Olmi ao dizer que “sempre existirá guerra porque
estamos em guerra com nós mesmos e não temos a coragem de chegar a uma
autoconsciência”, e ao apontar outro tipo de adversário: “Os inimigos não são os das
trincheiras em frente. São os que mandaram você para a trincheira atingir outros que são
como você” (Cattani, 2014).
Em artigo publicado em 1932, Mário de Andrade (2010:49), ao resenhar Guerra, flagelo de
Deus (Westfront 1918: Vier von der Infanterie, 1930), de Georg W. Pabst, considera fora
de tom uma sequência sobre a perda da razão num conflito armado: “Assim, quando aquele
tenente enlouquece no campo de batalha e faz continências gritando ‘Às ordens’ pra uma
invisível Sua Majestade, a cena choca demais. É um verso de ouro falso e a gente se lembra
que está no cinema”. Isso, no entanto, correspondia à realidade, como se pode constatar em
Lussu (2000:106-107): “Oficiais e soldados caíam com os braços esticados e, na queda, os
fuzis eram projetados para frente, longe. Parecia o avanço de um batalhão de mortos. O
capitão Bravini não parava de gritar: — Saboia! [...] Chegamos às trincheiras. O capitão
Bravini também caiu, atingido, e eu o vi, com os braços abertos, desabar numa moita.
Pensei que estivesse morto. Mas, logo depois, ouvi seu grito ‘Saboia!’, repetido, em
intervalos, com voz fraca”.
Lussu (2000:68) também registra essa atenção dada a animais, ao descrever as alegres
brincadeiras de dois esquilos.
Numa entrevista, o diretor lembra que, diante da comoção e das lágrimas do pai ao falar da
guerra, já se perguntava, quando criança: “Pode existir uma guerra que mata os homens,
mas não os sentimentos?” (Falzoni, 2014).
Segundo Olmi, “o que é realmente trágico não é apenas que Deus não responde a esses
coitadinhos, mas que Deus está ausente, não existe” (Mollica, 2014). Meu pai, que
combateu durante a Segunda Guerra Mundial, sempre (se) perguntou de que lado Deus
ficava num campo de batalha.
São versos de Tu ca nun chiagne, de Ernesto De Curtis e Libero Bovio, lançada em 1915,
um pouco antes da entrada da Itália na guerra, que exaltam a beleza de outra montanha, o
Vesúvio. A segunda canção entoada no filme, Fenesta ca lucive, é tradicional e nos
créditos finais resulta de autoria de Vincenzo Bellini, quando, na verdade, se trata apenas
de uma atribuição. Como assinala Biondillo (2016:274), outro grande sucesso da época nas
trincheiras foi ‘O surdato ‘nnamurato, também escrita em 1915, de autoria de Aniello
Califano e Enrico Cannio, que falava das saudades que um combatente tinha de sua amada.
Lussu (2000:125) também registra a presença de um napolitano cantor.
Federico De Roberto (2015:108), também, no conto “L’ultimo voto”, descreve esses
sepultamentos debaixo da camada de neve: “Sob aquele sudário jaziam ainda tantos
cadáveres — narrava-se —, todos os que não havia sido possível recolher em virtude da
retirada repentina. De vez em quando, aliás, o capitão Tancredi, comandante interino do
novo Batalhão, recebia uma carta da Brigada ou da Divisão, solicitando-lhe a recuperação
do corpo de um dos caídos no último combate; [...] qualquer busca era impossível, naquele
momento: voltariam a falar disso na primavera”.
Durante a Grande Guerra, era comum cavar galerias subterrâneas na rocha para criar
grandes poços que chegassem até as linhas inimigas. Esses poços eram carregados de
explosivos com os quais fazer voar pelos ares as trincheiras. Lussu (2000:156) também se
refere a uma engenhoca instalada pelos austríacos, que deveria iluminar o lado italiano na
noite de Natal: “Nós achávamos que a mina havia sido cavada na rocha, debaixo de nossas
trincheiras, na extremidade direita do setor. Nossos aparelhos tinham captado o barulho da
perfuratriz, desde outubro, e os comandos estavam constantemente preocupados”.
Sentimento presente também em Jean Cocteau, que registrou sua participação no exército
francês, por ele denominado “A fábrica de fazer mortos” (Caizergues, 2000:14), em
retratos, desenhos, no romance Thomas l’imposteur (1923) e no poema “Discours du grand
sommeil”, que integrou o volume Poésie 1916-1923 (1925). Segundo Pierre Caizergues
(2000:14), o poeta acusa a guerra em suas fotos: “Elas a mostram em sua trágica verdade, a
dos feridos e dos moribundos, a do sofrimento de todos os combatentes, quer se trate de
soldados franceses e aliados, quer de inimigos. E é menos o heroísmo dos guerreiros a ser
sublinhado do que a tristeza e a dor das vítimas dos dois lados”.
Mais do que estar vinculada ao texto de Pierre Nora, aqui o emprego da expressão “lugar
de memória” está ligado à análise de Germano Celant (2016:5, 6) sobre Roxys (1961),
assemblage do norte-americano Edward Kienholz. Para o crítico de arte italiano, ao recriar
um bordel, Kienholz resgata um “lugar de memória”, fazendo emergir das lembranças de
sua juventude um local considerado socialmente execrável. Dessa forma, pela recriação,
em vez de ser relegado ao esquecimento, o local “torna-se o veículo linguístico com o qual
o artista atrai e cativa a sensibilidade do público, colocando-o diante de seu recalque e de
sua memória, de modo que não seja apenas a imagem, mas também o inconsciente, a
vencer”.
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5
Anticolonialismos e reapropriação das
imagens fílmicas de uma emboscada
(1969-2014)
cuja cabeça degolada constitui a máscara mítica do horror [...] Horror é um deverbal do
latim horreo (phrisso, grego) que remete para a reação física do horror sobre o corpo,
particularmente o eriçar-se dos pelos e dos cabelos perante um fato repugnante, que
petrifica (e aliás há também uma pseudoetmologia que remete para o latim frigus, o
congelamento), que não deixa via de fuga, mas pelo contrário se bloqueia, numa
paralisia insondável e mais insuportável do que a própria consciência da morte.
[Vecchi, 2010:166]
Conclusão
Acreditamos que a produção da reportagem Guerra na Guiné e as
reapropriações da sequência da emboscada permitem-nos compreender as
tensões das respectivas épocas (1969, 2007, 2014) de modo a pensar nos
dilemas que envolvem a experiência traumática da guerra anticolonial. Desse
modo, pensamos que o termo “reciclagem” das imagens (Lindeperg,
2007:69) seria inapropriado para se referir à circulação ou à “migração”
(Sánchez-Biosca, 2012) e aos “usos políticos do passado” (Hartog e Revel,
2001) dos registros de arquivo, pois cada apropriação traz novos sentidos à
luz dos dilemas do respectivo contexto histórico. Se no final da década de
1960 vemos a exposição da fragilidade do imperialismo português na África
e o implícito questionamento à sua legitimidade a partir dos próprios
soldados, essas constatações são o ponto de partida dos documentários
realizados décadas depois com a reiteração de imagens como a do corpo
exposto de António Capela. Os imaginários imperiais são colocados em
xeque pelas três formas fílmicas do embate. Se a presença de soldados negros
é algo aparentemente normal na reportagem, as obras fílmicas posteriores
darão diferentes respostas ao tema: por um lado, As duas faces da guerra
também não problematiza a presença negra entre os portugueses nas imagens
da emboscada, mas discute, em outro momento da narrativa, os traumas
gerados por essa cooptação. Corcerning violence, por sua vez, opta por
excluir as imagens dos soldados negros e evitar a análise necessária dessa
complexa relação entre colonizado e colonizador.
As traduções no texto foram realizadas pelo autor, que optou por manter o original de
Concerning violence (“A respeito da violência”, segundo fontes na rede virtual) e nomes de
instituições.
De acordo com as informações disponibilizadas na página do Institut National de
l’Audiovisuel (INA), consta como produtor das reportagens o ORTF, e vemos
mencionados os nomes de Isidro Romero (realizador), Jose Dias e François Ede
(jornalistas), Marc Boussard (operador de som) e Jean Loius Normand e Pierre Dupouey
(operador de som) como responsáveis pela matéria sobre os exilados portugueses, e de Jean
Baronnet (realizador), Jean François Chauvel (jornalista), Roger Mathurin (operador de
som) e Jean Louis Normand (operador de imagem) nas reportagens sobre as colônias
africanas. Disponível em: <www.ina.fr/emissions/point-contrepoint/>. Acesso em: 9 nov.
2016.
O vídeo está disponível na rede virtual em: <www.ina.fr/video/CAF89037680>. Acesso em
27 jan. 2017. O INA esclareceu-nos por e-mail que não está habilitado a autorizar ou não a
publicação das imagens que seguem no texto, esclarecendo-nos a legislação pertinente ao
direito de propriedade intelectual (Code de la proprieté intellectuelle, Article L 122-5) que
autoriza a reprodução de imagens “sob reserva de que sejam indicados claramente o nome
do autor e a fonte” (alínea 3).
Os capítulos do documentário são: 1. Descolonização, com o MPLA [Movimento Popular
de Libertação de Angola] em Angola, 1974; 2. Indiferença, entrevista com Tonderai
Makoni, PhD, Rodésia/Zimbábue, conduzido em Estocolmo, 1970; 3. Rodésia; 4. Um
mundo dividido em dois; 5. Lamco, Libéria, 1966; uma greve surgiu em uma parte da
Companhia de Mineração Sueco-Americana Lamco [Liberian-American-Swedish Mining
Company] em Nimba. Uma equipe de televisão sueca fez-se presente; 6. Essa pobreza de
espírito; 7. O Fiat G.91, com a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] em
Moçambique, 1972; 8. Derrota, a Guerra de Independência de Guiné-Bissau; 9. Matérias-
primas (raw materials).
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6
Anistia 79: A restauração das imagens da
história pelo cinema1
Anita Leandro
A conferência de Roma
A Conferência Internacional pela Anistia aconteceu entre 28 de junho e 1o de
julho de 1979, nas dependências do parlamento italiano e na sede da Liga
Internacional para os Direitos e Libertação dos Povos. Essa fundação, que
deu apoio importante ao evento, foi criada por Lelio Basso, senador socialista
italiano e relator no Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra — o
Tribunal Russel, criado por iniciativa dos filósofos Bertrand Russel e Jean-
Paul Sartre para julgar os crimes dos Estados Unidos na guerra do Vietnã
(Greco, 2003:187). Inspirado nesse tribunal e mediante solicitação de
exilados brasileiros no Chile, Lélio Basso criaria, em 1971, o Tribunal Russel
II, voltado para os crimes de tortura e morte perpetrados pelo Estado militar
no Brasil e em outras ditaduras da América Latina (Rollemberg, 1999:233).
A Conferência Internacional pela Anistia, organizada por Lélio Basso poucos
meses antes de sua morte, teve o apoio da prefeitura de Roma e da
administração da região de Lazio. O evento recebeu 300 participantes, dos
quais 100 exilados (Greco, 2003:204).2 O encontro, cuja abertura acontecera
um dia depois da apresentação ao congresso brasileiro do projeto de anistia
restritiva do regime militar, tinha por objetivo mobilizar as forças de esquerda
e todos os comitês de anistia existentes no Brasil e no exterior, com vistas ao
fortalecimento da luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita.
Havia, na época, 30 comitês de anistia criados no exterior a partir de
1975, dirigidos por brasileiros e personalidades locais de diversos países da
Europa, África e América Latina. Calcula-se um total de 10 mil exilados e
130 banidos brasileiros espalhados pelos diversos continentes nessa época
(Greco, 2003:191). O regime considerava “banidos” apenas os 130 presos
políticos que, ao serem trocados por diplomatas sequestrados pela guerrilha,
assinaram uma declaração obrigatória de aceite de saída da prisão e de
banimento do país. Quanto aos exilados, que não eram reconhecidos
enquanto tais pelo regime, constituíam um contingente bem maior de
pessoas, incluindo, além das diferentes gerações de resistentes que fugiram
do Brasil, várias crianças nascidas no exterior, apátridas e sem
documentação. O Brasil, única ditadura da América Latina a negar passaporte
aos exilados, admitia existir, fora do país, apenas os banidos e recusava-se a
anistiar quem tivesse participado de ações armadas (Greco, 2003:78, 182).
Mais do que restritiva, a anistia inicialmente proposta pelo regime era
considerada, na verdade, uma farsa, uma vez que não reconhecia os exilados.
Contra a decisão do regime, os comitês de anistia no Brasil e no exterior,
apoiados por parlamentares de esquerda, movimentos sociais e organizações
sindicais, reivindicavam uma “anistia ampla, geral e irrestrita”. Os exilados
brasileiros de diversas tendências políticas, previamente reunidos em torno da
campanha contra a tortura e pela obtenção de documentos, encontraram na
campanha pela anistia um centro de convergência das esquerdas no exílio. A
representatividade de diferentes tendências políticas de esquerda na
Conferência de Roma vai refletir essa convergência.
Embora os militares recusassem a anistia ampla, Heloisa Greco considera
que o contexto histórico de 1978-79 favoreceu a luta dos CBAs. As denúncias
de tortura no Brasil haviam ganhado maior visibilidade, graças à divulgação
de listas com os nomes de centenas de torturadores e à descrição dos métodos
de interrogatório por eles utilizados. A extrema-direita respondera a essas
listas com atentados a bomba e ameaças de morte e os fatos repercutiram na
imprensa nacional e internacional. Uma carta de protesto contra os crimes da
ditadura, exigindo anistia geral e irrestrita, é enviada ao governo brasileiro,
com 5 mil assinaturas de personalidades internacionais do meio científico e
cultural, como os prêmios Nobel Francis Jacob e Alfred Kestle, além dos
cineastas Jean-Luc Godard e Alain Resnais, dos filósofos Jean-Paul Sartre e
Simone de Beauvoir e dos escritores Gabriel García Marquez e Julio Cortázar
(Greco, 2003:199). Outro documento com assinaturas de mil intelectuais
importantes, entre os quais Paul Ricoeur, Michel de Certeau, Lelio Basso,
Paul Veyne e o prêmio Nobel André Wollf, é encaminhado à embaixada do
Brasil na França, tendo à frente Alfred Kestler e Etienne Bloch, presidente do
Comité France-Brésil, criado em solidariedade aos exilados brasileiros
refugiados no território francês. “A repressão à missão de alto nível à porta da
embaixada brasileira acaba potencializando a repercussão, na mídia, da
pressão política dos intelectuais europeus” (Greco, 2003:201-202). Heloísa
Greco evoca ainda três acontecimentos graves no período, amplamente
divulgados no exterior, que teriam contribuído para o desgaste do regime
perante a opinião pública: o assassinato do padre Burnier pela polícia,
enquanto visitava uma cadeia em Ribeirão Bonito, no Mato Grosso do Sul; a
tortura a dom Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu; e o massacre da Lapa,
quando a polícia invadiu um local de reunião clandestina do PCdoB,
assassinando, friamente, pessoas desarmadas. Heloisa Greco vê na
Conferência de Roma, como em várias outras ações que a precederam e a
tornaram possível, um “momento privilegiado e bem aproveitado de desgaste
da ditadura militar brasileira”, bem como de “fortalecimento da luta pela
anistia e potencialização de sua visibilidade” (Greco, 2003:204). A realização
do III Encontro Nacional pela Anistia, no Rio de Janeiro, há poucos dias da
conferência de Roma, havia exposto a contradição do regime, capaz de
propor a anistia com a manutenção da Lei de Segurança Nacional, do aparato
repressivo, da censura à imprensa e da restrição à mobilização dos
trabalhadores (Greco, 2003:211).
Três semanas depois da Conferência Internacional de Roma, em 22 de
julho de 1979, os presos políticos do Presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro,
iniciam uma greve de fome de 32 dias pela anistia ampla, geral e irrestrita.
Com apoio de artistas, intelectuais, sindicalistas e personalidades políticas e
eclesiásticas, o movimento ganha vários outros presídios (Amorim Viana e
Cipriano, 1992). A lei de anistia é, finalmente, promulgada em 28 de agosto
de 1979, com restrições que colocam em suspensão o que Heloísa Greco
considera os três eixos centrais e fundantes dessa luta: o retorno de todos os
exilados, a libertação de todos os presos políticos e o esclarecimento sobre os
mortos e desaparecidos, “com seus corolários, a punição dos torturadores, o
fim da legislação de exceção e o desmantelamento do aparato repressivo”
(Greco, 2003:215). Na aurora da lei da anistia, a repressão, paradoxalmente,
recrudescia contra operários em greve, assassinados em Minas e em São
Paulo. Havia risco em voltar para o Brasil e as CBAs recomendavam um
retorno coordenado, se possível coletivo, organizando recepções nos
aeroportos e rodoviárias, de forma a tornar pública a volta dos exilados e
clandestinos e garantir minimamente sua integridade física (Greco,
2003:216). Uma avaliação bastante clara desse contexto histórico emerge,
como vamos ver, do material filmado em Roma em 1979.
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.
Trata-se da mais longa sequência de todo o material filmado, com
aproximadamente 40 minutos de falas, algumas delas carregadas de emoção,
como a do ex-deputado federal do PCB Gregório Bezerra, sobre o terrorismo
de Estado, do qual ele foi uma das primeiras vítimas, logo após o golpe de
1964:6
4
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.
Eu tenho que contrariar a opinião de muita gente da esquerda que diz que a luta pela
liberdade é coisa da burguesia. Não é não. É de operário. A burguesia nunca defendeu
a liberdade, sempre foi contra. No Brasil, nunca houve liberdade. Porque a liberdade dá
às classes exploradas a possibilidade de se organiza e lutar contra a exploração. Então,
todas as aberturas que estamos vendo no Brasil são mínimas. [Frati, apud Lopes dos
Santos, 1979]
[...] a ditadura procura controlar o processo de mudança, sem querer transformar a sua
essência, numa tentativa de perpetuar a sua dominação. [...] o comportamento indeciso
do partido oposicionista legal permitido, no seu conjunto, não conseguindo articular
uma alternativa firme e combativa diante do projeto governamental, é um empecilho
real à nossa ação. [Greco, 1979]8
Mesmo que nosso projeto alternativo em favor de uma anistia ampla geral e irrestrita
seja derrotado dentro do MDB ou fora dele, no parlamento como um todo, nós vamos
insistir em denunciar a anistia parcial, bem como todo um complexo de medidas em
favor dessa democracia restritiva. [...] A questão da anistia está intimamente ligada à
luta geral do povo brasileiro para recuperar as chamadas liberdades democráticas e
avançar, a fim de que o povo possa, efetivamente, ele sim, dar um passo avante,
restabelecendo um estado de direito democrático. [Kahir apud Santos, 1979]
Esse projeto pretende excluir da vida política nacional aqueles que, num determinado
momento, fizeram uso do direito legítimo à resistência armada contra o regime
ditatorial que suprimiu todas as liberdades e se manteve durante 15 anos graças à
tortura, ao assassinato e à violência policial. [...] O regime instalado em 1964 sob o
pretexto de liquidar a inflação e a corrupção convive com ambas em grau escandaloso.
[Pezzutti apud Santos, 1979]
Além desses três grandes eixos das filmagens (os discursos dos
delegados; a entrevista com os parlamentares e os exilados; e a conversa entre
os sindicalistas), o material bruto contém ainda dois brevíssimos trechos de
entrevistas com Modesto da Silveira, falecido em 2016, e Edson Kahir, além
de diversos planos de cobertura: controle dos participantes na entrada da sede
do parlamento; reencontro emocionado de ex-combatentes, advogados e
militantes; ouvintes no plenário; aplausos; chegada de Denise Crispim e
Eduarda Crispim Leite, respectivamente, esposa e filha de Eduardo Leite, o
Bacuri, da ALN;9 uma conversa entre Nancy Mangabeira Unger, trocada pelo
embaixador suíço, Heloisa Greco, ativista dos direitos humanos, e Murilo
Pezzuti, trocado pelo embaixador alemão.10
A montagem do material
A retomada desse material, tantos anos depois, deve, hoje, levar em conta não
somente o contexto histórico da produção dessas imagens, mas também sua
própria história, a raridade desses planos e dos discursos neles contidos.
Numa época em que se filmava em película, um suporte oneroso, enquanto a
maioria dos exilados vivia em condições precárias, perseguidos pela polícia e
sem dinheiro para a sobrevivência, a produção independente e amadora nesse
meio era, é claro, quase inexistente. Os filmes realizados por Luiz Alberto
Sanz no exílio chileno e sueco são, nesse sentido, uma exceção da regra entre
os exilados brasileiros. E seus documentários só foram possíveis graças à
cooperativa Film Centrum, da Suécia, que apoiava produções de cineastas de
países em situação de conflito (Leandro, 2015). É igualmente raro o registro
de imagens de exilados brasileiros nos arquivos das televisões europeias —
onde as notícias sobre o Brasil, com raras exceções, eram pautadas por
interesses bem mais econômicos do que humanitários: só falaram dos
exilados nos momentos dos sequestros de embaixadores. Mesmo na França,
considerada, no entanto, uma terra de acolhida, com o maior contingente de
refugiados e instituições de apoio, os exilados brasileiros praticamente não
apareceram na televisão durante os 21 anos de duração da ditadura militar.
Nos acervos do Institut National de l’Audiovisuel (INA), entre os cerca de 14
mil títulos de materiais audiovisuais relacionados com o Brasil difundidos
entre 1964 e 1981 pela televisão francesa, apenas quatro reportagens trazem
entrevistas com exilados brasileiros. Somadas, elas não ultrapassam sete
minutos e meio, no âmbito de uma vastíssima programação sobre o Brasil
cujos temas predominantes são o carnaval, o futebol e a Floresta Amazônica.
Os únicos brasileiros com aparições mais frequentes na televisão francesa
durante a ditadura foram dom Helder Câmara (seis aparições no período,
entre reportagens e programas de auditório), Carlos Lacerda (três
reportagens) e, é claro, os generais presidentes, durante suas visitas oficiais à
França (duas reportagens sobre Costa e Silva, sete sobre Ernesto Geisel e
quatro sobre Figueiredo), além do ministro do interior de Castelo Branco e do
ministro das relações exteriores de Geisel, cargos importantes nas
colaborações políticas e econômicas do governo francês com a ditadura.11
Toda essa carência de arquivos audiovisuais sobre os exilados brasileiros
confere um valor suplementar aos registros da conferência de Roma.
Hamilton Lopes dos Santos viu o material mixado pela primeira vez em
junho de 2016, quando fui filmá-lo nos Pirineus. Ele quis ver as imagens ao
lado de um velho amigo, também presente na conferência de Roma, Dirceu
Greco Monteiro, com quem chegara em Paris em 1973, fugindo do golpe no
Chile. Eles foram, então, filmados juntos, diante das imagens, enquanto as
descobriam, emocionados. A mediação das lembranças e da fala desses
homens pelas imagens feitas por um deles em Roma permitiu o
estabelecimento de um rico diálogo entre o passado e o presente. Hamilton e
Dirceu não foram entrevistados. Em vez de se organizar como respostas a
perguntas, a fala dos dois amigos provém de um face a face com o material
filmado. Uma relação de reciprocidade se estabelece entre a fala e os
arquivos. As imagens desencadeiam a fala (ou a colocam em suspensão,
conforme o caso), da mesma forma que a fala atualiza as imagens, tornando-
as acessíveis em sua materialidade documental. Os arquivos são mudos e
órfãos, diz Paul Ricœur, e “dependem dos cuidados de quem tem a
competência para questioná-los e, assim, defendê-los, socorrê-los, dar-lhes
assistência” (Ricœur, 2000:213). O repasse desse cuidado e dessa
competência à testemunha da história muda seu estatuto: de entrevistada, ela
torna-se uma narradora singular dos acontecimentos, capaz de contá-los na
primeira pessoa, de um ponto de vista interno e a partir de um lugar
privilegiado, o espaço das filmagens, onde acontece o entrecruzamento de
suas lembranças com a carga mnêmica das próprias imagens. O encontro de
Hamilton e Dirceu com as imagens da conferência de Roma abriu esse
material a novas interpretações. Longe de dizer a palavra final sobre o evento,
suas falas evidenciam, ao contrário, as lacunas da história. Quem são aquelas
pessoas reunidas em Roma? Do que estão falando? O que aconteceu com elas
depois do retorno ao Brasil? O diálogo com as imagens do passado convida,
assim, a ampliar o debate, convocando outras testemunhas e outros
documentos relacionados com o acontecimento filmado.
Algumas lacunas puderam, por exemplo, ser imediatamente detectadas na
digitalização e sincronização do material, como a falta de alguns sons e de
algumas imagens. Mas, além disso, um outro tipo de lacuna, bem mais
profundo e irremediável, aparece nesses registros: no intervalo de tempo
decorrido entre as filmagens em Roma e o atual projeto de montagem do
material, a maioria das pessoas presentes nas imagens já havia morrido.
Numa das mais belas cenas filmadas pela equipe de Hamilton, rodada do lado
de fora do parlamento romano, sob o sol de verão do Sul da Itália, Murilo
Pezzuti, Nancy Mangabeira Unger e Heloísa Greco conversam, sorridentes,
no meio da rua (figura 5). O plano dura poucos segundos e a conversa é
captada pela câmera num rápido movimento circular em torno deles. Embora
muito breve, a cena, filmada no estilo do cinema direto, desperta a
curiosidade do espectador. Quem são esses três jovens, surpreendidos num
momento de aparente intimidade? Sobre o que eles estão falando? Tantos
anos depois, a cena permanece, ainda hoje, envolvida em mistério, pois o
som da conversa, infelizmente, não foi gravado. Como nenhum dos três foi
entrevistado ou pronunciou discurso no plenário, o único registro de fala
desses jovens durante todo o evento está contido nessa conversa inaudível.
Depois de voltar do exílio, Murilo suicidou-se em 1990 e desse pequeno
grupo restam, hoje, Nancy e Heloísa. Talvez, diante das imagens, elas
possam rememorar esse encontro.
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.
Pesquisa pós-doutoral financiada pela Capes, desenvolvida por Anita Leandro (PPG-
Com/UFRJ) junto à Université Paris-Sorbonne entre 2015 e 2016, com supervisão do
historiador Jean-Pierre Bertin-Maghit. Os primeiros resultados desta investigação foram
apresentados no Seminário Internacional de Documentário de Arquivo — Arquivos em
Movimento na Escola de Ciências Sociais da FGV/CPDOC, Rio de Janeiro, de 24 a 25 de
novembro de 2016.
Para um relato mais detalhado sobre a Conferência de Roma, remetemos à tese de
doutorado da historiadora Heloísa Greco, Dimensões fundacionais da luta pela anistia,
defendida em 2003, junto ao Departamento de História da UFMG, sob orientação de
Lucília de Almeida Neves. Ver, em particular, o capítulo 6, intitulado “A frente externa: a
luta pela anistia em solo estrangeiro” (p. 141-185). Heloísa Greco é uma das 300
participantes do evento, juntamente com sua mãe, Helena Greco, uma das líderes do
movimento pela anistia no Brasil.
Hamilton Santos foi filmado pela autora desse texto em junho de 2016, na França.
Hoje, esses três resistentes estão mortos. Arruda morreria logo após essas filmagens, em
novembro de 1979, poucos dias depois de retornar ao Brasil, com a anistia.
Travassos morreu num acidente de automóvel no Rio de Janeiro, em 1982.
Preso em 2 de abril de 1964, um dia depois do golpe, Gregório Bezerra foi espancado,
queimado, esfolado e arrastado pelas ruas do bairro Casa Forte, em Recife, amarrado ao
pescoço por três cordas atadas a um Jeep, enquanto a polícia incitava a população ao
linchamento. O espetáculo macabro contra esse homem de 64 anos de idade, na época, foi
comandado pelo coronel do Exército Darcy Villocq Vianna, da Companhia de
Motomecanização da 7a Região Militar de Recife (Comissão da Verdade, 2014: v. II, p. 69,
113).
Esse líder camponês foi vítima de torturas inenarráveis, cujo requinte de crueldade
motivou, inclusive, um pronunciamento do papa Paulo VI, em 1970. Ver o testemunho de
Manuel Conceição Santos à Comissão Nacional da Verdade (2014:414).
Gravado sem som, como explicado anteriormente, o discurso de Helena Greco é aqui
restituído graças a um documento textual arquivado pelo Instituto Helena Greco de Direitos
Humanos e Cidadania (Greco, 1979). Com exceção do discurso da ativista mineira,
transcrito a partir do texto arquivado, as demais falas provenientes da Conferência de
Roma, citadas neste texto, são transcrições do material sonoro bruto registrado pelo
operador de som da equipe de Hamilton Santos.
Bacuri foi assassinado pela equipe do delegado Fleury, depois de 109 dias de tortura
ininterrupta, praticada por diferentes órgãos de repressão, entre eles o Centro de
Informações da Marinha e o DOI-Codi do I Exército (Comissão da Verdade, 2014: v. I, p.
112 e 449). Parte de sua história é contada no filme Repare bem (Maria de Medeiros,
2012).
Juntamente com Angelo Pezzuti da Silva, seu irmão, os companheiros Maurício Paiva,
Afonso Celso e Paulo Bretas e mais cinco outros presos, Murilo Pinto da Silva serviu de
cobaia numa aula de tortura para mais de 100 sargentos, na 1a Companhia de Polícia do
Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro, ministrada em 8 de outubro de 1969 por um
oficial da PE, o tenente Ailton Joaquim, chefe da seção de informações da 1a Companhia
(Comissão da Verdade, 2014: v. I, p. 351). Murilo Pezzuti suicidou-se em 1990, no Brasil.
Além de trocas econômicas com o Brasil — como a exportação de aviões e de tecnologia
nuclear firmada antes do golpe e mantida pelos militares — a França colaborou também
com o regime ditatorial no campo político. Documentos diplomáticos de difusão restrita,
consultados nos Archives Nationales, no âmbito da presente pesquisa, mostram, por
exemplo, a conivência de autoridades francesas com a entrada clandestina de policiais
brasileiros no país, entre outros tipos de colaboração. É conhecida a atuação, no Brasil, do
general francês Paul Aussaresses, um dos mentores da tortura na guerra da Argélia. Depois
de ter dado treinamento em técnicas de contrainsurreição ao exército norte-americano e a
militares brasileiros nos Estados Unidos, esse comerciante de armas da Thompson treinou
o exército brasileiro no Centro de Instrução de Guerra na Selva, de 1973 a 1975 (Duarte-
Plon, 2014). Nomeado adido militar francês no Brasil no auge da repressão, ele manteve
relações estreitas com membros do Esquadrão da Morte, como o delegado Sérgio Fleury e
o general Figueiredo, chefe do SNI, na época.
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ROLLEMBERG, Denise. Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro; São
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7
Reapropriação como reconfiguração de
arquivos: o método poético do found
footage e um estudo de caso no YouTube
Não se deve dizer que o passado esclarece o presente ou que o presente esclarece o
passado. Uma imagem, ao contrário, é aquilo em que o Outrora encontra o Agora num
relâmpago, para formar uma constelação. Em outras palavras, a imagem é a dialética
em suspensão. [Benjamin, 2006:504].
Meta-história
Em 1971, Frampton (1931984) realizou dois trabalhos seminais: o ensaio
“For a metahistory of film: commonplace notes and hypotheses”, publicado
na revista Artforum, e o filme (nostalgia). Curiosamente, o texto não
menciona o gênero found footage. Axiomaticamente, o filme parte do arquivo
de fotos do cineasta. Então seria possível equacionar os dois trabalhos para o
projeto de uma meta-história do found footage.
A meta-história é um artifício ético-estético que permitiria ao artista
continuar compondo seus trabalhos como justificativa de seu projeto pessoal
e da pertinência de seu meio artístico. A partir de uma linhagem à la Ezra
Pound e Jorge Luis Borges, elegem-se parâmetros de formação para um
programa poético. As novas obras se articulariam com as obras antigas numa
constelação de invenção, arquivo infinito de imagens e sons destinado a
inseminar consistência ressonante ao processo de produção. Segundo o
cineasta,
[o] meta-historiador do cinema está ocupado com a invenção de uma tradição, isto é,
um conjunto coerente e manejável de monumentos discretos, a fim de inseminar
consistência ressonante no corpo crescente de sua arte.
Tais obras podem não existir, e então é seu dever fazê-las. Ou elas podem já existir, em
algum lugar fora do perímetro intencional da arte [...]. E então ele deve refazê-las.
[Frampton, 2009:136]
Proposta por Frampton por meio da investigação e da recontextualização
de textos históricos, a constituição desta tradição viva é facilitada tanto pelo
trabalho do artista quanto do arquivista, condensados na figura do meta-
historiador. Noël Carroll nos lembra que a meta-história de Frampton é, em
primeiro lugar, e antes de tudo, crucial pelo fato de ser artisticamente
geradora. Carroll sugere que Frampton desenvolveu a noção de meta-história
para reconciliar produtivamente duas abordagens opostas e centrais da teoria
do cinema e da crítica de arte dos anos 1960, 1970 e 1980: “a abordagem
essencialista e a abordagem histórica” (Carroll, 1986-1987:200).
Frampton faz uma teleologia ao revés, e faz do artista um meta-
historiador:
[...] pois a conceituação teórica de Frampton foi planejada para sustentar sua
sobrevivência como cineasta — não no sentido de subsistência material, mas como
forma de manter a continuação de seu trabalho criativo. [Carroll, 1986-1987:204]
#3
É de Friedrich Hölderlin (1770-1843) o verso que dá título a Sem título #
3: “e para que poetas em tempo de pobreza?” está no poema Pão e vinho,
iniciado em 1800 e completado ao longo da vida do autor, com publicação
póstuma.
A colheita dos elementos visuais e sonoros e a consequente reelaboração
destes sugerem um método de fazer filmes e um método de pensar a história
do cinema: o afortunado encontro das constelações de referências. Como a
meta-história para Holis Frampton, o found footage seria um conceito-chave
para se continuar fazendo filmes de modo consciente, consistente e
responsável pela história do cinema.
[...] em nossa atual era de redes sociais sem fio, a ênfase não está sobre novas formas
radicais de mediação, mas sobre a conectividade, a ubiquidade, a mobilidade e a
afetividade sem cesuras. O YouTube fornece talvez o exemplo paradigmático desta
nova formação dos meios, já que sua popularidade é menos um resultado de
proporcionar aos usuários novas e melhores formas de mídias do que de tornar
disponíveis mais eventos de mediação, mais facilmente compartilhados e distribuídos
por e-mail, mensagens de texto, redes sociais, blogs ou sites de notícias. O YouTube é
também parte e parcela da proliferação de câmeras de foto e vídeo como recursos-
padrão de telefones celulares e da multiplicação e mobilização de redes sociais [...].
[Grusin, 2009:65]
Considerações finais
Em um dos depoimentos de Sem título # 3: E para que poetas em tempo de
pobreza?, é proferido o enunciado mallarmaico: “escolher um objeto e extrair
dele um estado de alma por uma série de decifrações”. Fazemos essa alusão
sob a hipótese de que tal assertiva pode ser uma espécie de manifesto para
um método poético que busca compreender um motivo de estudo por meio do
processo de pesquisa analítica.
A partir de dois modelos de conceituação teórica — o da meta-história de
Frampton e o da história do cinema das origens — e de um modo de
produção cinematográfica — o do filme found footage —, entendemos que a
reapropriação de arquivo implica um método mais amplo e interdisciplinar,
indistinto a um procedimento ou a um gênero delimitados, não restrito a uma
categoria excludente de conceituação.
Em outro depoimento, Pasolini comenta uma expressão da poesia
provençal, ab joy — “o rouxinol canta ab joy, por júbilo”; no sentido de
“êxtase poético, de arrebatamento poético”. Ele então afirma que, como
poeta, escreve ab joy: “para além de todas minhas determinações e definições
culturais, o signo que domina toda minha produção é esta espécie de
nostalgia da vida; esse senso de exclusão, que, contudo, não diminui mas
aumenta o amor pela vida”.
Sem título # 3: E para que poetas em tempo de pobreza? começa com a
voz de Ezra Pound, sobre a tela preta,10 lendo um fragmento do Canto 81 (em
tradução de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari): “O que amas
de verdade permanece, o resto é escória / O que amas de verdade não te será
arrancado / O que amas de verdade é tua herança verdadeira” (Campos,
1983:202).
O fazer por júbilo, a nostalgia da vida, o arrebatamento poético, a
permanência do que se ama, o verdadeiro amor como herança verdadeira: são
elementos que poderiam definir uma forma de trabalhar a reapropriação de
arquivo. Como método poético para os estudos do cinema, o found footage
contemplaria a realização de filmes e a crítica histórica, abordaria a mediação
e a organização da informação audiovisual, em visada metaoperacional, como
um metamétodo, quase como uma alegoria mesma do processo de
investigação. Mas, sobretudo, o found footage versaria — como uma crítica
em versos, ao reverso — sobre uma reconfiguração da própria noção de
arquivo, e, por extensão (sob alguma nostalgia benjaminiana?), uma
reconfiguração da vida como promessa de história.
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8
The uprising: a desterritorialização das
imagens-acontecimentos
Kênia Freitas
Agora são 10:30. Amanhã não é a revolução. Não é o dia em que iremos mudar tudo.
Amanhã é só o começo do fim. Amanhã, se marcamos nossa posição de forma pacífica
e unificada, apesar do que quer que as forças de segurança façam, nós teremos dado o
primeiro passo na estrada para a mudança. Nos últimos dias, eu recebi muitos
telefonemas de pessoas de todas as etapas da vida. É tão bonito que todos nós nos
importemos uns com os outros. Todos falam comigo como se eu fosse de suas famílias!
Eu sinto que todos vocês se importam comigo. Essa é a coisa mais bonita que eu já
senti na minha vida. Eu os verei amanhã. Eu estarei esperando por vocês às 2PM, em
ponto. Esse país nos pertence — a você e a mim. Amanhã, eu estarei esperando por
vocês, pessoal. Amanhã é nossa esperança, nosso sonho, nosso primeiro passo. Eu
estarei esperando por vocês.5
Enquanto ouvimos essa narração, o filme mostra imagens de
manifestantes se preparando para protestar, eles estão com os rostos cobertos
correndo com paus e pedras na mão. A narração se encerra e a multidão
continua sua luta tomando as ruas. Chegamos assim finalmente, no “Hoje”.
Voltamos a ver brevemente o tornado do início do filme, enquanto ouvimos
as vozes ressonantes da multidão nas ruas.
Essa breve descrição tenta contemplar a maneira como o filme roteiriza
seu material. Mas, obviamente, muito da protuberância das imagens se perde
nesse resumo. A montagem do filme é como um grande fluxo de imagens-
acontecimentos, um transe de imagens emergenciais de origens e
ressonâncias diversas. Essas imagens-acontecimentos são todas feitas em
meio aos protestos ou seus desdobramentos diretos, sendo dessa forma muitas
vezes tremidas e com uma resolução ruim.
Assim, em muitos momentos, essas imagens-acontecimentos do filme são
mais uma presença corporal de quem filma do que imagens figurativas ou
explicativas. Snowdon, de certa forma, consegue levar adiante a proposição
pasoliniana (Pasolini, 1980) de compor um filme a partir de planos-
sequências variados de um mesmo acontecimento — se pensarmos os
eventos insurgentes como um objeto fílmico único. E a montagem do diretor
opera justamente o ordenamento desse material, a transformação do filme em
cinema.
E é justamente esse um dos desafios de The uprising: como singularidades
isoladas, seus vídeos são um material ressonante e potente; mas, ao compô-
los em uma narrativa única, essa ressonância não nos afeta da mesma forma
no corpo fílmico resultante. Podemos pensar essa questão sob o aspecto do
ponto de vista do filme e da identificação do espectador. The uprising
constrói sua narrativa a partir de diversas imagens de manifestantes
anônimos. Esses vídeos, em geral, feitos de forma amadora com a câmera na
mão, carregam a presença dos manifestantes que os produzem — tanto pelo
ponto de vista subjetivo e a narração em primeira pessoa quanto pelas marcas
corporais dos realizadores que perpassam nas imagens: a respiração pesada e
o tremor das imagens, em momentos de deslocamento, ou mesmo as sombras
dos corpos refletidas para dentro do plano. Mas, se em cada vídeo
individualmente esse produtor amador das imagens funciona como um ponto
de identificação, o mesmo não acontece com o resultado final do filme. Ao
colocar de forma sucessiva todas essas perspectivas, as narrações com vozes
variadas, os tons e afecções diversos, o filme dilui esse produtor de imagens
em uma multiplicidade de olhares — assim como o ponto de apoio narrativo
do espectador. Não há uma identificação convencional possível com um
sujeito ou personagem.
Em uma entrevista6 sobre o filme, Peter Snowdon comenta a questão da
ausência de personagens na frente da câmera como ponto de identificação
para o espectador. Segundo o diretor, o efeito é proposital e é uma das
características do seu cinema. E apesar de provocar o que Snowdon vai
chamar de “experiência desestabilizadora para o espectador”, para o
realizador essa desestabilização pode ser uma consequência positiva,
principalmente da perspectiva política (Snowdon, 2014). Ainda assim,
acreditamos que essa desestabilização torna a narrativa do filme menos
fluida. E mais do que o conjunto das imagens, a relação de ressonância torna-
se mais forte em relação aos vídeos como singularidades. Mais do que pela
história que costura as imagens de arquivo, a força do filme reside no valor
de documento do seu material.
Portanto, podemos dizer que The uprising é um filme de montagem
carregado de resíduo do seu material de arquivo. Resíduo é o termo que Jean-
Claude Bernardet vai usar para falar de quando o contexto original da
imagem utilizada em um filme de arquivo sobrepõe o novo texto que este está
querendo criar (Bernardet, 2004:77-78). A ressonância das imagens originais
é um resíduo que permanece de forma intensa no filme de Snowdon.
E foi justamente a ressonância desse material que motivou a existência do
filme, em primeiro lugar. Para Snowdon, o projeto começou a ser pensado a
partir da sua própria experiência de assistir às imagens da Revolução do
Egito, via internet, quase imediatamente ao desenrolar dos eventos, como o
diretor relata: “Fiquei impressionado com a energia bruta e a emoção que
esses vídeos transmitiam. Em vez de ser alienado pela distância entre nós, eu
me senti atingido pela mesma onda de energia que estava tomando o país e os
princípios do seu povo” (Snowdon, 2015).7
A partir de sua experiência de mergulho nos vídeos-acontecimentos
postados no YouTube de vários países durante as Revoluções Árabes,
Snowdon pôde notar não só a afecção que estes provocavam nele, mas
também como eram ressonantes entre si. É esse efeito que ele descreve ao
falar dos vídeos: “Eu vi como eles frequentemente se ecoavam, como se
fossem parte de uma conversa em andamento, na qual símbolos, slogans e as
suas imagens se tornam os vetores pelos quais a energia coletiva circulava e
se fortalecia” (Snowdon, 2015). A experiência do diretor ao assistir aos
vídeos postados pela multidão na internet durante as manifestações foi a de
acompanhar a ressonância delas pelas imagens, como cada vídeo, ao mesmo
tempo que denunciava uma repressão policial, mostrava um protesto ou fazia
uma convocação para os próximos, criava uma afecção entre os
manifestantes, estando estes no mesmo país ou em regiões distantes.
O processo de produção do filme começou por organizar as imagens
como uma antologia: procurando em vídeos diferentes os gestos e as ações
que ressoavam de outras imagens. O objetivo seria mostrar em países
diversos como as revoluções seguiam desenvolvimentos similares e
ressonantes entre si: as convocações para os protestos, as marchas da
multidão, os confrontos com a polícia etc. Mas, segundo o diretor,
narrativamente, a repetição dos acontecimentos em países distintos, apesar de
demonstrar a circulação da energia coletiva na região, não funcionava na
montagem do filme. Mais do que a sobreposição dos mesmos gestos, o
diretor partiu para um processo de linearização de uma história que trataria
não mais daquelas insurgências em suas singularidades, e sim de uma
insurreição que só existiria no filme, tomando emprestadas as imagens das
revoluções reais. Acreditamos que o que esse procedimento termina por fazer
é um processo de desterritorialização dessas imagens.
Dessa forma, partindo das imagens-acontecimentos e emergenciais das
revoluções, o filme vai usar um efeito de quase ficcionalização, criando sua
própria revolução por vir. Essa revolução do filme não segue os limites
territoriais dos países de origem das imagens, a cronologia dos eventos de
suas insurgências e os contextos políticos de cada local. Assim, uma
convocação de protesto na Tunísia pode ser seguida pela multidão nas ruas
no Egito ou a repressão violenta no Iêmen pode ser contada no dia seguinte
pela experiência semelhante de um manifestante na Síria.
Por causa dessa desterritorialização das imagens, o filme afasta-se de um
sentido meramente documental dos acontecimentos. Snowdon vai defender
que o “processo do documentário também pode ser usado para deslocar e
romper a realidade, ou ao menos nossas ideias convencionais sobre a
realidade” (Snowdon, 2014). O diretor acredita que conseguiu tornar visível a
partir da sua edição do material do YouTube uma conversa entre as diversas
imagens, sem com isso eliminar o caráter emocional e de imediatismo dos
vídeos originais (Snowdon, 2014).
Nesse sentido, o resíduo ressonante, mais do que um efeito colateral
indesejável da montagem, é um elemento fundamental para a potência do
filme.
Considerações finais
Acreditamos que os eventos insurgentes nos países árabes foram, dentro
desse ciclo de protestos que eclodiram entre 2011-14, os mais politicamente
atravessados por uma potência ressonante de ruptura, sobretudo no Egito e na
Tunísia. Nesses países, a tomada das ruas pela multidão foi capaz de derrubar
os regimes vigentes e traçar novos desdobramentos políticos. Em outros
países, em que os regimes foram apenas parcialmente derrubados ou nos
quais os conflitos evoluíram para uma situação de guerra civil, a potência da
multidão foi também de grande intensidade. E assim temos, em relação a
essas revoluções, a produção de imagens-acontecimentos marcadas por uma
forte ressonância — se comparada a outros eventos.
Nesse sentido, defendemos que mais do que um filme sobre as
Revoluções Árabes, The uprising é um filme sobre as imagens emergenciais
dessas insurgências que circularam na internet e foram ressonantes tanto para
os envolvidos diretamente nos acontecimentos quanto para quem os vivia
como espectador. A partir do filme, essas imagens-acontecimentos passaram
a possuir mais um canal de circulação e atualizaram suas potências de
afetarem os espectadores.
Da mesma forma, ao fixar seu ponto final como um presente (o hoje) da
revolução que não veremos nas imagens, ou seja, um presente que permanece
irrealizável, a revolução imaginária do filme torna-se uma espécie de
acontecimento puro. Essa pan-revolução árabe das imagens é um eterno devir
fílmico. Trata-se, assim, de um filme que não se situa no passado histórico,
mas na projeção de um futuro da revolução a partir de suas próprias imagens
ressonantes. Mais do que uma temporalidade do evento insurgente encerrado,
The uprising nos propõe uma temporalidade kairós do acontecimento — que
devemos agarrar pelos cabelos para acompanhar seu transcorrer permanente.
Tradução livre.
Neste texto, evitaremos o uso dessa denominação. Porque, embora recorrente nos países
ocidentais, a expressão não foi adotada de forma hegemônica pelos países árabes onde os
protestos aconteceram. Vamos assim preferir o uso dos termos: “Revolução Árabe” ou
“Insurgência Árabe”, de uso mais corrente entre os manifestantes e ativistas que
participaram da insurreição.
Tradução livre.
O programa está disponível online para ser visto gratuitamente no endereço:
<www.aljazeera.com/programmes/aljazeeraworld/2011/10/2011101974451215541.html>.
Acesso em: 21 jan. 2016.
Transcrição do filme. Tradução livre.
Tradução livre.
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9
Para a mamãe, com amor: arquivo e
memória nas cartas filmadas de A family
affair (2016)
Introdução
Sob cada folha, abrem-se os lábios de uma ferida para deixar entrever a possibilidade
abissal de uma outra profundidade prometida à escavação arqueológica.
Jacques Derrida
O cartão-postal, para mim, era a imagem, a única imagem possível depois do mapa
geográfico. Eu sempre enviei para todo mundo, segundo meus amores, minhas amizades e
minhas fidelidades.
Serge Daney
Certa vez, repassei algumas observações agradáveis que havia escutado sobre seu filho
John, e Hemingway escreveu de volta [dizendo] que amava muito o filho, e então
seguiu dizendo que, ao longo da vida, ele também havia amado três continentes, vários
aviões e barcos, os oceanos, suas irmãs, suas mulheres, vida e morte, manhã, meio-dia,
tarde e noite, honra, cama, boxe, natação, baseball, tiro, pesca, leitura, escrita e todos
os bons filmes. [Ross, 1961:25]
Os arquivos Fassaert
Talvez as melhores histórias sejam aquelas forjadas a partir dos acasos e
inusitados, das sombras e fantasmas que sobrevivem, apenas esperando serem
descobertos em caixas empilhadas, álbuns de fotografias ou rolos de filme.
Aqui, essa história começa com um par de pés inchados. Os pés pertencem à
mãe do diretor do documentário. Aqui, eles bailam alegres sustentando o
peso de uma mãe recém-nascida, do bebê e de toda felicidade que cabe nesse
imaginário dos começos que insistem em se repetir ao longo da vida.
Existem muitas maneiras de mostrar a imagem de uma jovem que se
transforma em mãe, bem como as transformações implícitas no processo. O
pai do diretor, autor do registro, optou por uma imagem dos pés inchados:
bem mais que uma figura idealizada da maternidade como um ponto de
virada na vida da esposa, os traços da metamorfose do corpo, no tempo
próprio dos procedimentos de transformação e adaptação.
Em A imagem-tempo (1995), Gilles Deleuze nos diz de uma experiência
da imagem-lembrança, uma condição capaz de oferecer sentido
completamente novo às imagens, e que amadurece com o cinema-moderno.
Idealizada como uma virtualidade que “tira proveito da separação [da
montagem na narrativa clássica], a supõe, já que se insere nela, mas é de
outra natureza, [...] o que ‘se acrescenta à matéria, e não mais o que a
distende’” (Deleuze, 2005:63), a imagem-lembrança oferece, enfim, “[...] um
peso de passado sem o qual elas continuariam a ser convencionais” (Deleuze,
2005:66). É justamente esse gesto de montagem, evocando os filmes de
família a título de imagens-lembranças, aquilo que ativa o arquivo nos
diferentes sentidos explorados pelo documentário: como tática (Pimentel,
2014), monumento (Périot-Bled, 2014), documento (Aasman, 1995),
desordem (Farge, 2009), testemunha (Niney, 2002) e montagem (Didi-
Huberman, 2009).
Feitos sem a pretensão de ser testemunhas, nem comprometidas com uma
história a ser contada, os filmes amadores são, em sua grande maioria,
desprovidos de estrutura dramática e montagem. Ato de exteriorização da
memória, escreve Catherine Blangonnet, “o filme amador em seu uso privado
tem por função reacender a lembrança, permitir reconstruir junto a história da
família” (Blangonnet, 1997:24-25). Filmar tudo. Filmar sempre. Como se,
depois de uma vida de abandonos e lacunas, uma infância sem memórias,
Rob Fassaert, levado aos três anos por Marianne para uma “casa de crianças”,
10 se esforçasse em se tornar dono de uma história, de criar matéria para um
passado. O menino reservado que, outrora, mostrava incômodo em ocupar o
lugar de filho na fotografia, cresce e transforma a câmera numa ocupação na
vida da família. Seria preciso preservar o máximo de detalhes da própria vida,
uma forma de se tornar dono de uma história. Qualquer história. Aquela que
for possível.
Como uma maldição que atravessa gerações, as crianças da família
Fassaert parecem condenadas a uma infância de abandonos e lacunas,
rupturas e vazios. Talvez por isso, quando crescem, se tornam colecionadoras
compulsivas de imagens da vida íntima, num esforço de capturar os
acontecimentos, se apropriar de uma história. Se Rob, o pai, encarna o
personagem do “catador de imagens”,11 cabe a nós, espectadores, nos
perguntar a forma de nos colocar diante dessas imagens. Como indaga Bill
Nichols (2011) a respeito do trabalho de Péter Forgács, diretor notável pelo
uso de imagens de arquivo, os filmes de família utilizados pelo diretor de A
family affair, passados de pai para filho, são feitos por “pessoas que não
sabem o que será do futuro, mas que oferecem suas imagens para aqueles que
sabem o que aconteceu no passado” (Nichols, 2011:x). Igualmente, continua
Nichols, ansiamos ver no que eles viam evidências da história que eles ainda
iriam encontrar, “também ansiamos ver o mundo da maneira como eles o
viam, com serenidade e inocência cega a seu próprio futuro” (Nichols, 2011).
Cezar Migliorin (2013), em artigo que comenta a linguagem epistolar no
audiovisual:
[...] os filmes-carta, talvez, forcem um lugar complexo para o espectador. Entre ser e
não o destinatário, entre poder e não poder compartilhar aquele gesto subjetivo. Nesse
sentido, trata-se de filmes que transitam em uma tênue linha entre o público e o
privado, entre o individual e o coletivo. E nessa linha se instala o potencial político
dessas obras, uma vez que operam no desejo do sujeito se dirigir subjetivamente ao
outro e, ao fazer isso com os meios do cinema tornam o gesto pessoal imediatamente
público. [Migliorin, 2013:11]
A videocarta, tanto como objeto estético como de uso prático, se inscreve na longa
tradição do cartão-postal: uma fotografia retangular, na parte de trás da qual o
expedidor inscreve um texto pessoal mas não confidencial aos cuidados de um
destinatário nominalmente designado. É a partir desse modelo simples, que se
desenvolveu rapidamente desde a invenção da fotografia um uso social particular da
correspondência, reunindo sobre um mesmo suporte uma imagem e um texto.
[Moreaus, 1997:27]
Conclusão
A artista visual mineira Fernanda Meireles (2013) chama os filmes-carta de
mapas ilustrados. Nele, segue a autora, tudo se move, um caleidoscópio que
já não cabe na palma da mão:
O perfil foi escrito para a revista de ensaios americana The New Yorker, e publicado em 13
de maio de 1950. Ver bibliografia.
O documentário conquistou o prêmio de melhor filme na competição internacional da
edição de 2016 do festival de documentários É Tudo Verdade. Anteriormente, o filme
também já havia sido escolhido para abertura da edição de 2015 do International
Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA). Detalhes sobre a carreira do documentário
no site:
<www.tomfassaert.com/#/A%20FAMILY%20AFFAIR/Screenings,%20Awards%20&%20Press/>.
Acesso em: 29 jan. 2017. Até o momento da finalização deste texto, o filme pode ser
assistido no canal provedor de produções audiovisuais via streaming Netflix/Brasil.
A fala de abertura do seminário, com o título Cuando las imágenes faltan. Estrategias
documentales para representar el genocídio camboyano, foi ministrada pelo professor da
Universidade de Valencia, Vicente Sánchez-Biosca. Nela, o autor retoma interessantes
questionamentos (como o de filme-acontecimento, ver bibliografia) sobre a relação da
imagem com a história. Porque, no caso do presente documentário, a avó sempre foi a
figura ausente durante a infância do diretor, aquela que desaparece sem deixar paradeiro,
isso teria um efeito mais mortal na relação com o neto do que se efetivamente ela tivesse
falecido.
Disponível em: <http://blog.afi.com/the-afi-docs-interview-a-family-affair-director-tom-fas
saert/>. Acesso em: 30 out. 2016. Todas as citações do diretor foram colhidas na entrevista
concedida a esse mesmo blog.
“Uma vez que eu acreditava que o problema era essencialmente entre meu pai e minha avó,
eu achei que podia contar a história a partir dessa perspectiva de observação.” Ver nota 3.
Em “Uma nota sobre o bloco mágico”, Sigmund Freud concebe a atividade do inconsciente
como um aparelho de memória que funcionaria analogamente ao brinquedo infantil bloco
mágico. Neste, a pressão de uma folha de celuloide sobre uma prancha de resina permite à
criança “escrever” sobre uma superfície sem necessariamente deixar traços sobre ela;
deixa, contudo, as marcas dessa escrita impressas no bloco, logo abaixo. Aqui trata-se de
uma breve explicação apenas para contextualizar a relação entre consciente e inconsciente
desenvolvida pelo médico.
“Quando criança, me sentia como um observador, um forasteiro de minha própria vida —
especialmente durante os momentos em que era confrontado com grandes mudanças que eu
não entendia bem […]. Através desses acontecimentos, desenvolvi uma curiosidade geral
por coisas que não estão em ordem, ou apenas caóticas, assim como um profundo desejo de
compreender as complexidades da vida, e não apenas a minha.” Ver nota 3.
Cumpre lembrar que não se trata aqui de nomear (ainda mais) um tipo de montagem. A
relação da memória e do tempo da montagem apontada retoma os processos que se
fortaleceram no período do cinema moderno, e exemplarmente já descritos e comentados
por Deleuze em A imagem-tempo. Trata-se tão somente, neste caso, de fazer pensar os
específicos do movimento no caso deste filme.
“[...] também queria colocar um ponto final no silêncio sufocante na minha própria família.
Tudo isso me impulsionou para olhar por trás dos mitos e lendas persistentes que eu ouvia
sobre minha avó, Marianne, a quem eu mal conhecia.” Ver nota 3.
Aos três anos de idade, Rob e o irmão Renée foram levados por Marianne para um abrigo
para menores. Essa foi a primeira das muitas desaparições que a avó de Tom Fassaert
performaria ao longo de seus quase 100 anos de existência.
A figura do catador à qual o texto se refere é a notável personagem encarnada e narrada
pela cineasta belga Agnés Varda no documentário “Os catadores e a catadora” (Les
glaneurs et la glaneuse), 2000.
Sobre esse tema, recomendo vivamente a agradável compilação organizada pelo Foster
Huntington, The burning house (2012). Em breve resumo, a partir da pergunta “Se sua casa
estivesse pegando fogo, o que você levaria com você?”, inicialmente lançada em um blog,
depois formalizada em projeto e endereçada a diferentes pessoas, artistas ou não,
Huntington reúne uma coleção inusitada do que talvez seriam “potenciais narrativas de
urgência”.
Nesse sentido, talvez seja interessante pensar o lugar dessa produção que emerge entre o
cinema experimental dos anos 1970 e os documentários performáticos, enviesados por um
caráter mais reflexivo, que começam a surgir no começo dos anos 1990. Livros como
“Blurred Boundaries: questions of meaning in contemporary culture”, de Bill Nichols
(University of Indiana Press, 1994) e Home movies and other necessary fictions, de
Michelle Citron (University of Minnesota Press, 1999), podem iluminar alguns aspectos
importantes do período.
“Parece que nos limitamos a registrar os momentos dos quais temos orgulho, e desligar a
câmera quando acreditamos que fomos malsucedidos, ou quando a realidade é muito
dolorosa para ser capturada. Eu queria preencher os vazios entre os momentos icônicos de
felicidade da família.” Ver nota 3.
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10
Boas moças: a desconstrução do olhar
masculino por meio da retomada do filme
doméstico1
Beatriz Rodovalho
Eu poso para a câmera com minhas caretas e acenos, ou é para meu pai que eu sorrio?
Essa imagem representa como eu quero ser vista ou como meu pai escolheu me ver? A
minha atração é pelo meu pai em particular, ou pelo poder do Pai, expresso através da
capacidade do meu pai em conduzir essa caminhada? Tornando-me, adulta, uma
cineasta, torno-me o Pai e ascendo a uma espécie de poder? […] O ano em que esta
imagem foi filmada foi difícil para mim […]. Em 1956, com oito anos, eu queria
desesperadamente morrer. [Citron, 1999:6]
’
Como escreve Maura Bergonzoni, ela se encontrava entre o sistema
opressivo dos anos 1950 e o movimento de liberação feminista dos anos
1970. Marazzi pergunta-se: se Liseli tivesse conhecido o movimento
feminista desse período, será que algo poderia ter mudado? (Marazzi,
2006:82) De todo modo, sua mãe sofria de um problema que não deveria ter
sido tratado apenas com fármacos em hospitais psiquiátricos.
Conclusão
O filme de remontagem que se apropria de filmes domésticos cria um novo
campo de possíveis que desestabiliza, desloca, rompe e subverte o olhar
patriarcal que determina o olhar familiar e o olhar masculino. Ele pode
também perturbar e desconstruir a performance de gênero. Nos filmes
citados, têm-se mulheres que produzem outras visões de mulheres.
É importante notar, porém, que essas visões se encontram inseridas em
dois contextos distintos da história do cinema: do cinema de remontagem
especificamente, e do movimento feminista. Os filmes de Citron e de
Friedrich emergem do contexto político e cultural da vanguarda
cinematográfica norte-americana e da chamada segunda onda feminista dos
anos 1970 — tema, aliás, de outro filme de remontagem de Marazzi,
Vogliamo anche le rose (2007). Nesse momento histórico, tem-se a
emergência do cinema e do vídeo militante produzido por coletivos
feministas, a exemplo do trabalho de Carole Roussopoulos na França. Além
disso, as ideias de Laura Mulvey, por exemplo, publicadas em 1975 no texto-
manifesto Visual pleasure and narrative cinema, pavimentam teoricamente a
produção cinematográfica feminista. Visando a experiência íntima e coletiva,
os filmes de Friedrich e de Citron convocam um sujeito feminino composto,
como afirmamos, um eu, que, como mostram suas formas enunciatórias,
desdobra-se em um nós.10 Nós, mulheres. Ainda: nós, filhas, nós, cineastas,
nós, lésbicas. Eles questionam o que é ser mulher em seu tempo. Como se
torna mulher? Como se constrói um olhar feminino e feminista? Eles também
conjugam em sua estrutura diferentes formas documentais e ficcionais, além
de imagens de inúmeras origens para compor seu imaginário feminino.
Os filmes de Marazzi e de Lutz, por sua vez, parecem dialogar com um
movimento de individualização e de singularização das experiências, tanto no
cinema quanto na pauta feminista contemporânea. Desde os anos 1990,
multiplicam-se as diversas formas do “cinema do eu” (Lebow, 2012:5, 6),
notadamente os filmes em primeira pessoa que remontam (unicamente)
imagens de arquivos familiares. Seus filmes realizam uma arqueologia da
imagem doméstica que estrutura uma experiência íntima do mundo — uma
escavação da memória familiar que traça um movimento interior. Contudo,
mesmo sem chamar por um nós feminino, Un’ora sola ti vorrei e The Marina
experiment, assim como Daughter Rite et Sink or swim, atingem a partilha do
sensível, criando dissenso (Rancière, 2010) e construindo laços entre
mulheres por onde eles são mostrados.
De qualquer modo, nesses quatro filmes, a reterritorialização das imagens
de família convoca um território novo. Figurado pela água no filme de
Friedrich, pela comunidade de mulheres no filme de Citron, pelo salto
redentor de Liseli no filme de Marazzi e pela morte simbólica do pai no filme
de Lutz, esse novo território aponta para uma utopia, no sentido atribuído por
Gilles Deleuze e Félix Guattari, de mulheres livres. Instaura-se, igualmente, o
território de um cinema de remontagem feminista.
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11
Não entender: arquivos, documentos e
criação no encontro com o Diário de
David Perlov
Ilana Feldman
Janeiro de 2015
Essa aventura começa em janeiro de 2015, quando, em função de minha
pesquisa de pós-doutorado sobre os diários cinematográficos de David
Perlov, passo um mês na cidade de Tel Aviv, em Israel. Vou com a família,
meus pais e minha irmã, e alugamos um apartamento: Siderot Nahshon (ou
rua Nahshon), número 8, ao norte da cidade. Ao contrário da imagem da rua
disponível no Google Maps, numa tarde que parece fresca e ensolarada,
somos recebidos por uma tempestade de chuva, vento e areia. O apartamento
alugado, num primeiro momento, é uma decepção, claro, mas o pior é não
podermos sair.
Eu me machuco, quase perco uma unha, ao tentar abrir e fechar uma
janela, o que faz o mau humor explodir. Já minha mãe maldiz o despreparo
de suas roupas para a situação: ela não tem um casaco adequado. Meu pai,
sempre bem-disposto, checa as instalações da casa tentando fazer o
aquecedor funcionar, enquanto minha irmã consegue, do absurdo, fazer
graça. Na primeira noite, somos acordados com muita água e areia no quarto,
que, não se sabe como, entrou pela janela. O romance de Jean Echenoz que
lia na ocasião, construção tragicômica sobre a guerra de trincheiras de 1914,
boia na poça ao lado da cama. A trincheira parece ser aqui.
No confinamento do apartamento, entre discussões de família e conversas
banais, acompanhamos pela televisão as imagens dos últimos
acontecimentos. Mas não falamos hebraico. Perplexos, diante de imagens da
tempestade branca que paralisa o país, ficamos sabendo de um atentado em
Paris contra o Charlie Hebdo, por onde acabamos de passar a caminho de
Israel. Mas não entendemos. Tudo, naquela situação, se torna opaco: da tela
da televisão à paisagem da janela que nada revela.
Novembro de 2015
Em novembro de 2015, quase um ano após a viagem e 10 dias depois dos
atentados da sexta-feira 13, novamente em Paris, faço uma conferência acerca
da pesquisa em curso. Interessa-me pensar, por meio do cinema, de que modo
o âmbito privado e pessoal é atravessado pelo público e pelo político.
Interessa-me pensar, por meio do singular gesto autobiográfico, de que modo
a alteridade pode ser figurada. Para isso, mostro uma sequência do Diário
1973-1983 (1985), de David Perlov, realizado em Israel, através de suas
janelas.2
Mas, há um problema — e antes de começar a conferência é preciso
enunciá-lo. Tendo herdado um nome próprio tipicamente israelense e um
sobrenome tipicamente judeu, sei que corro o risco de ter minha fala reduzida
ou vista sob certa desconfiança. No entanto, se um nome é algo que se
recebe, que se herda, é também algo que se inventa e de que se apropria. Um
nome é uma palavra que se carrega, como uma coisa, como uma pedra, no
decorrer dos exílios e deslocamentos.
O apartamento
Chegamos há pouco e ainda não podemos sair de nosso apartamento-bunker,
a não ser para correr rapidamente a um “am pm” a fim de comprar as
provisões necessárias, como hommus, pão, gefilte fish (umas almôndegas de
peixe em conserva), raiz forte e frutas. Esperamos pela tempestade que virá
limpar a cidade de todo pó, terra e areia que a ventania deixou. Estou ao lado
da janela: a vista para o pátio interno do prédio é tão feia que chega a
comover, e o vento, junto com o barulho do mar, uiva com violência. Agora
uma chuva fina cai, começando a limpar o vidro imundo de terra. Minha mãe
segura nas mãos Judas, último romance de Amós Oz, enquanto minha irmã lê
em voz alta as notícias do jornal Haaretz. Elas tentam compreender.
Anoto em uma caderneta, entre listas de afazeres e informações úteis, que
chegar em Israel é sempre para mim uma experiência de muita angústia,
cegueira e certo esgotamento. Apesar disso, me inscrevo num tour para
Hebron, na Cisjordânia, realizado por uma ONG israelense. Mas, com a
iminência da tempestade que passará por todo o país — o qual se encontra
em estado de alerta oficial —, o tour é cancelado.
Horas mais tarde — ou seriam dias, talvez? —, um primo jornalista nos
escreve perguntado se estamos bem. Eu não entendo. Ele então nos conta do
Charlie Hebdo e de sua inquietação por nós, já que, dois dias antes dos
atentados de 7 de janeiro, viu uma fotografia nossa em Paris, que papai
postou no Facebook com muito sucesso e que recebeu mais de uma centena
de “likes”. Eu digo a ele para não se preocupar. Em Tel Aviv, por enquanto,
só atentados à faca e dilúvios dignos do Velho Testamento.
Diário 1973-1983
Retomo as imagens domésticas, caseiras, do Diário, obra composta por seis
capítulos, com seis horas de duração ao todo, filmada ao logo de 10 anos,
entre 1973 e 1983. Em Diário, Perlov filma o cotidiano de sua família e da
cidade de Tel Aviv através das janelas de seu apartamento; das janelas da
televisão, que trazem para o espaço privado acontecimentos políticos
dramáticos, como a guerra de Yom Kippur em 1973 e a subida da direita ao
poder em 1977; e das janelas dos carros em circulação pelas geografias
afetivas de cidades como São Paulo, Paris e Rio de Janeiro.
“Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar para
mim mesmo e por mim mesmo. O cinema profissional não me interessa
mais”, diz Perlov no primeiro capítulo de seu projeto documental, recusando
a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de
trapaças, truques e mistificações — embora mais adiante admita que, em
diversos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade lhe oferece.
Considerado o precursor do cinema moderno israelense, Perlov, filho de
um mágico itinerante e de uma mãe iletrada, nasce no Rio de Janeiro em
1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte. Aos 10
anos muda-se com o irmão para a casa do avô, no bairro da Vila Mariana, em
São Paulo, abandonando uma infância sofrida, traumática e nada protegida.
Entre os estudos em um colégio estadual e as viagens de bonde, Perlov
dedica-se ao desenho e a pintura (tendo frequentado o ateliê de Lasar Segall),
e engaja-se no movimento juvenil socialista-sionista Dror, onde conhece
Mira. Ela, judia polonesa sobrevivente da Shoah, será a produtora do Diário
1973-1983 e sua companheira por toda a vida.
Vivendo uma espécie de “exílio” forçado em seu próprio apartamento,
após duros embates com as autoridades israelenses de então, que almejavam
um documentário convencional e de propaganda oficial, Perlov relaciona a
escritura de seu diário fílmico a um ato de guerra, assim como de desespero,
conferindo ao gênero uma radicalidade que não existia no cinema israelense
de então. Em Diário é a primeira vez, nessa cinematografia, que a
investigação sobre si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma
questão cinematográfica. É a primeira vez, nessa cinematografia, que a
enunciação na primeira pessoa do singular toma forma, situada na voz
corporificada e ritmada do próprio Perlov. “Estranho aqui, estranho lá,
estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um
estranho lá”, afirma ele citando uma canção de Odetta,3 enquanto observa,
através da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil,
passantes em uma rua quieta de São Paulo.
Entre diversos filmes realizados por Perlov, Diário 1973-1983 (1985)
constitui sua obra mais importante e vigorosa, acrescida dos também
autobiográficos Diários revisitados 1990-1999 (2001) e do ensaio fílmico
Minhas imagens 1952-2002 (2003), seu filme-testamento. Somam-se a essas
obras dois outros filmes que, embora não tratem diretamente da própria vida
do cineasta, inauguram em Israel a questão do testemunho no cinema, bem
como a particularização da enunciação fílmica por meio da inserção da voz
em off do documentarista, em detrimento da enunciação “neutra” própria aos
discursos oficiais e genéricos da grande política. São eles: Biba (1977),
primeiro filme de Perlov narrado por ele mesmo e único a portar um nome
próprio, sobre a dor de uma mulher que perdera o marido na guerra de Yom
Kippur, e Memórias do julgamento de Adolf Eichmann (1979), em que Perlov
entrevista, na própria sala de estar de sua casa, algumas das testemunhas (ou
filhos de testemunhas) do emblemático julgamento4 ocorrido em 1961,
fundindo nesse simples gesto, literalmente, o privado ao político.
A carta
A viagem toma seu curso e a investigação dos filmes e documentos corre em
paralelo a outras investigações, mais pessoais. Além de um casaco de inverno
adequado, minha mãe quer encontrar em Israel a pequena parte da família
que sobreviveu à Segunda Guerra, da qual não temos notícias desde uma
última carta escrita em iídiche, enviada por seu tio, de Israel a Recife, em 23
de outubro de 1974. Mas nós, assim como não falamos hebraico, também não
falamos iídiche. Minha prima que mora em Yafo, a parte mais antiga e
oriental da cidade, tenta nos ajudar. Faz pesquisas na internet e nas listas
telefônicas, mas o endereço não existe. Procuramos nos sistemas de busca
dos museus Yad Vashem, dedicado à Shoah, e Beit Hat-fut-sot, o Museu da
Diáspora. Nada. Se David ou Moshé Feldman — minha mãe já não tem
certeza — são inalcançáveis, que dirá então seus descendentes.
Essa dança em casa é muito repentina. Quantos momentos do passado ela revela?
Quantos carnavais perdidos? Eu pressinto o início de uma longa jornada a caminho de
casa. Minha casa, a casa em Belo Horizonte. Feijão sem arroz. Uma ou duas bananas
por semana. Nada mais.
Pedras
É 2 de março de 2015 e ainda não faz um mês que estamos de volta ao Brasil,
quando Nancy Rosenchan, tradutora do iídiche para o português, escreve a
minha mãe:
Keyla,
Arquivo
Mais de um ano e meio após a viagem de janeiro de 2015, me vejo ainda
diante de documentos de difícil decifração. Naquela ocasião, entre um café e
outro em tardes de inverno, Mira Perlov deixava sob minha confiança e
cuidado os diários — dessa vez escritos — de David. Em três volumes, de
cerca de 300 páginas cada um, ele escreve e, sobretudo, descreve seus dias.
Eu não entendo bem o que devo fazer com esses documentos, abro-os com
certo constrangimento, como se mirasse através de uma janela que não
deveria ser aberta.
Nessas páginas, a depressão é uma constante e, numa quinta-feira em 24
de abril, provavelmente de 1980, Perlov anota, sempre em português:
“Acordo às 10h mas só levanto às 11h e pouco. Um pouco ansioso por ter um
dia sem ter o que fazer. Tomo o café da manhã, tomo as pílulas, me visto e
faço a barba. Estou sozinho em casa”. Em outro momento, conta que está
lendo Angústia, de Graciliano Ramos. Não poderia ser mais apropriado.
Anna
No início do Diário, David Perlov começa sua jornada com a seguinte
epígrafe, à primeira vista, apenas à primeira vista, um pouco enigmática:
“Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não sabiam assinar
colocavam duas cruzes nas suas fotografias: nome e sobrenome”. Num café
em Paris — ou seria numa padaria na Vila Mariana? —, escrevo em um
guardanapo que onde não há nome, não há transmissão. Onde não há nome,
não há túmulo, não há restos, não há vestígios nem cinzas. Onde não há
nome, não pode haver luto.
Filho de uma mãe analfabeta, Perlov conhecia essa cruz como ninguém.
Ao longo de seus diários, filma alguns túmulos e vai por duas vezes ao
cemitério israelita de Belo Horizonte, onde sua mãe, Anna, figura pouco
evocada e envolta em brumas, fora enterrada. Na primeira visita, no sexto
capítulo do Diário, Perlov percebe que o nome de Anna, em sua lápide de
pedra, havia sido grafado errado, “Anna Perlof”, com “f”, em vez de
“Perlov”, com “v”. Tal inscrição do “f”, letra que para Perlov se assemelha ao
signo da cruz, opera no Diário como uma espécie de sombra a acompanhar a
busca de Perlov pela “imagem fatal”10 da mãe, a mãe iletrada que não podia
assinar seu próprio nome. A mãe iletrada que não podia, pela miséria, pela
loucura, se inscrever na ordem simbólica da linguagem.
Já na segunda visita, quase 20 anos depois, no terceiro capítulo dos
Diários revisitados 1990-1999, o nome de Anna é finalmente corrigido a
pedido do filho. No lugar do “f”, Anna recupera o “v” de seu nome, reavendo
também, contra o fluxo do esquecimento e do anonimato, a inscrição de sua
própria identidade. Assim, corrigir o nome da mãe, inscrevê-lo com “v” na
memória dos que vivem,11 já que ela própria não sabia escrever — e, como os
analfabetos, assinava o sinal da cruz no lugar do nome —, será o
compromisso de Perlov ao longo de toda sua obra autobiográfica.
É justamente por Anna habitar o lugar do trauma, do irrepresentável por
excelência, que voltar ao túmulo e fazer o luto constituem o sentido mais
amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos, como se, para
garantir a continuidade da vida, fosse preciso, por meio do luto, abandonar a
origem no momento mesmo em que ela é encontrada. Pois, como bem sabem
os sobreviventes, “onde não existe túmulo, o trabalho de luto nunca termina”
(Klüger, 2005:87). Não é por outra razão, como ressalta Jeanne-Marie
Gagnebin a partir do helenista Jean-Pierre Vernant, que a palavra grega sèma
tem como significação originária a de “túmulo” e, só depois, a de “signo”, já
que o túmulo é signo dos mortos. Túmulo, signo, palavra escrita, imagem:
todos lutam contra o esquecimento (Gagnebin, 2006:112).
Cruzes
Na viagem de janeiro de 2015, junto aos materiais de pesquisa, levo comigo
um exemplar de A câmara clara, belo ensaio autobiográfico de Roland
Barthes. Nesse livro, contemporâneo aos diários de Perlov, Barthes tenta
fazer o luto de sua adorada mãe, inventando para isso outra forma de narrar,
na qual mistura reflexão crítica, imagens, aforismas e narrativa biográfica
para dar conta da dificuldade de sustentar o olhar sobre a fotografia da mãe,
cuja imagem ele não consegue ou pode publicar. “Diante da foto de minha
mãe criança, eu me digo”, escreve Barthes, “ela vai morrer. [...] Que o sujeito
já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe” (Barthes,
1984:142).
Benjamin já assinalou que tudo o que desaparece vira imagem; no
entanto, algumas fotografias — como “a imagem fatal” da mãe de Perlov ou
a imagem da mãe de Barthes aos cinco anos, prenhe de futuro, sobre uma
ponte à frente de um jardim — são verdadeiras câmaras escuras e não podem
ser reproduzidas no interior das obras que, pelo negativo, as contêm.
Portanto, à estética da presença, segundo a qual a fotografia seria um ápice do
real e da inscrição do referente, tanto Perlov como Barthes problematizam os
limites da imagem e trazem à tona suas impossibilidades, propondo uma
estética da ausência, da perda e da desaparição. Uma estética do
“impossível”, no dizer de Alain Badiou (2004) — quem sabe uma “imagem
impossível” no lugar daquela “imagem fatal” de Anna — que possa fazer
frente à impotência do trauma, sustentando a necessidade do luto.
Em Paris, cidade na qual Perlov viveu seis anos antes de emigrar para
Israel em 1958, quando começou a fotografar a partir da rue de L’aqueduc,
ele reencontra, no quinto capítulo do Diário, cruzes por todo lugar:
Sei agora que o luto — por todos aqueles que já pereceram, por tudo
aquilo que desapareceu ou fora extraviado — é o que coloca a vida em
movimento.
Isso, só isso, eu entendo.