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Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1a edição: 2017
Coordenação editorial e copidesque:
Ronald Polito
Revisão:
Marco Antonio Corrêa e Sandro Gomes dos Santos
Capa:
Estúdio 513
Imagem a capa:
Cpdoc/arquivo Gustavo Capanema
Desenvolvimento de ebook:
Loope - design e publicações digitais | www.loope.com.br

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Arquivos em movimento [recurso eletrônico]: Seminário Internacional de Documentário de Arquivo /


Coordenação Adelina Novaes e Cruz...[et al.]. – Rio de Janeiro : FGV Editora, 2017.

Dados eletrônicos.
Trabalhos apresentados no seminário organizado pelo Núcleo de Audiovisual e Documentário do
CPDOC, realizado em novembro de 2016.
Em colaboração com Arbel Griner, Patrícia Machado, Thais Blank.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-1989-7

1. Cinema – Montagem. 2. Arquivos audiovisuais. 3. Documentário (Cinema). 4. Processamento


de imagens. I. Cruz, Adelina Maria Alves Novaes e. II. Griner, Arbel. III. França, Patrícia Machado
Goulart. IV. Blank, Thais. V. Fundação Getulio Vargas. VI. Escola de Ciências Sociais da Fundação
Getulio Vargas.
CDD – 791.43
Sumário

Capa
Folha de rosto
Créditos

Introdução
Adelina Novaes e Cruz, Arbel Griner, Patrícia Machado, Thais Blank

1 | Os poderes da imagem: as fotos de perpetradores no genocídio cambojano


e sua migração para o cinema, os museus e a corte penal
Vicente Sánchez-Biosca

2 | Cinema de arquivo, história e exposições universais: Land of liberty (1939


), de Cecil B. DeMille
Eduardo Morettin

3 | O desvio das imagens: documentário e montagem de arquivos no cinema d


e Gianikian e Lucchi
Luís Felipe Flores

4 | O inverno da desesperança
Mariarosaria Fabris

5 | Anticolonialismos e reapropriação das imagens fílmicas de uma emboscad


a (1969-2014)
Alexsandro de Sousa e Silva

6 | Anistia 79: A restauração das imagens da história pelo cinema


Anita Leandro
7 | Reapropriação como reconfiguração de arquivos: o método poético do fou
nd footage e um estudo de caso no YouTube
Carlos Adriano Jeronimo de Rosa
Claudio Marcondes de Castro Filho

8 | The uprising: a desterritorialização das imagens-acontecimentos


Kênia Freitas

9 | Para a mamãe, com amor: arquivo e memória nas cartas filmadas de A fam
ily affair (2016)
Patricia Rebello da Silva

10 | Boas moças: a desconstrução do olhar masculino por meio da retomada d


o filme doméstico
Beatriz Rodovalho

11 | Não entender: arquivos, documentos e criação no encontro com o Diário


de David Perlov
Ilana Feldman

Sobre os autores
Introdução

Adelina Novaes e Cruz


Arbel Griner
Patrícia Machado
Thais Blank*

Em novembro de 2016, o Núcleo de Audiovisual e Documentário do CPDOC


organizou o Seminário Internacional de Documentário de Arquivo —
Arquivos em Movimento.1 O encontro promoveu o debate e a reflexão em
torno dos distintos modos de incorporação de imagens preexistentes no
campo da produção audiovisual de caráter documental. Os filmes e as
práticas analisados pelas 13 intervenções que compuseram o seminário fazem
parte de um mesmo território de produção genericamente denominado “filme
de arquivo” — obras que possuem como princípio básico a reutilização de
imagens preconcebidas. Como vimos nas comunicações dos palestrantes,
contudo, esse é um vasto território constituído de intenções, formatos,
estéticas e estilos variados.
A prática de reciclagem de imagens cinematográficas começou a ser
exercida sistematicamente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18), em
cinejornais que visavam reconstituir visualmente as linhas de batalha. Com o
prolongamento do conflito, os cinegrafistas que trabalhavam na seção
cinematográfica dos exércitos começaram a utilizar a justaposição de planos
filmados em diferentes circunstâncias com o objetivo de organizar uma
narrativa coerente e ilustrar os movimentos da guerra. Planos tomados em
diferentes batalhas eram montados como se fizessem parte de uma mesma
situação.
Nos anos 1920, na então União Soviética, a prática da reciclagem foi
complexificada pela cineasta Esther Choub. Em 1927, por ocasião do 10o
aniversário da Revolução de Outubro, Choub realizou La chute des Romanov,
filme composto por dezenas de cinejornais e imagens domésticas da corte de
Nicolau II. Na obra de Choub, as simples justaposições de planos, marca dos
filmes de reciclagem da Primeira Guerra dão lugar à reflexão e à
interpretação do passado filmado a partir da montagem. Não se trata mais de
uma compilação, mas de articulações, associações e contraposições que
visam fazer emergir das imagens uma nova compreensão da realidade. É esse
o gesto que está na origem do uso contemporâneo do arquivo que marca o
trabalho de cineastas como Alain Resnais, Chris Marker, Agnés Varda,
Harun Farocki, Péter Forgács, entre outros.
Os filmes de arquivo, ou filmes de montagem, despertaram interesse da
crítica ainda nos anos 1930. A expressão film de montage foi empregada pela
primeira vez no livro Histoire du cinéma, escrito por Maurice Berdèche e
Robert Brasillach e editado em 1935. Na obra, os autores fazem uma análise
da reapropriação de imagens da Primeira Guerra pelos filmes de atualidade
criticando duramente os procedimentos de montagem, sonorização e
comentário utilizados nesses cinejornais, definidos pelos autores como
“indignos e de uma extraordinária indecência” (Véray, 2011). Por outro lado,
Berdèche e Brasillach tecem elogios ao filme de Dziga Vertov Les trois
chants sur Lénine (1934), que, para os críticos, constituía em sua força
sugestiva e na sua composição o modelo do film de montage. É apenas nos
anos 1990 que essa modalidade de cinema passa a ser estudada de forma mais
sistemática e aprofundada. Em 1993, o teórico norte-americano Willian Wees
publicou o livro seminal Recycled images — the art and politics of found
footage films, onde propõe pela primeira vez uma categorização dos filmes de
arquivo realizados no âmbito do cinema documental e de vanguarda.
Nas últimas quatro décadas, o debate sobre o tema da reciclagem das
imagens tem ganhado novos contornos. Diante da profusão de produções
audiovisuais que se ancoram na reutilização e ressignificação de imagens
produzidas em circunstâncias distintas (gravações de câmera de segurança,
filmes amadores e familiares, industriais e publicitários, antigos programas de
TV, cinejornais etc.), alguns autores afirmam a necessidade de recuperarmos
o contexto de produção dessas imagens migrantes. Para esses pesquisadores,
trata-se, sobretudo, de historicizar o registro e o olhar do tempo da tomada e
da retomada das imagens. Nesse sentido, podemos destacar os trabalhos dos
historiadores franceses Laurent Véray e Sylvie Lindeperg, e do teórico
espanhol Vicente Sánchez-Biosca, convidado a proferir a palestra de abertura
do Seminário Arquivos em Movimento.
Dentro do mesmo campo de pesquisa, mas adotando uma perspectiva
diferente, temos os autores interessados em historicizar a própria prática da
reciclagem e em desvendar as diferentes poéticas e estéticas que compõem
esse território. Um exemplo é o trabalho da pesquisadora Christa Blümlinger,
que em 2013 lançou, na França, o livro Cinéma de seconde main: esthétique
du remploi dans l’art du film et des nouveaux médias, uma cartografia das
diferentes estratégias de reemprego e dos processos significantes que
constituem as imagens recicladas dentro do filme. Apontando para o mesmo
sentido, temos a obra do professor espanhol Antonio Weinrichter. Publicado
em 2009, o livro Metraje encontrado. La apropiación en el cine documental
y experimental propõe uma discussão conceitual em torno dos diferentes usos
do arquivo e da terminologia usada para definir essa prática.
No Brasil, o tema da retomada das imagens tem despertado mais interesse
nas últimas duas décadas, quando assistimos à produção de um número maior
de obras audiovisuais e festivais direcionados ao cinema de arquivo. São
poucas ainda, no entanto, as publicações que se dedicam exclusivamente a
esse objeto de estudo. Foi reconhecendo essa falta que tomamos a decisão de
realizar uma publicação que derivasse do encontro promovido em novembro
na FGV. Os textos encontrados neste e-book são resultado das reflexões
compartilhadas no Seminário Arquivos em Movimento. As apresentações e
os debates foram moderados pelos professores convidados Eduardo Morettin
(ECA/USP), Mônica Almeida Kornis (FGV/CPDOC)2 e Vicente Sánchez-
Biosca (Universidade de Valência). O encontro contou com intervenções de
convidados brasileiros e estrangeiros, abrindo espaço sobretudo para
apresentações de doutorandos e doutores que priorizam o arquivo audiovisual
como fonte de pesquisa. Além das comunicações, o Seminário promoveu, por
meio do Cineclube FGV, uma sessão do documentário Um casamento
(2016), de Mônica Simões. A exibição foi seguida de debate com a diretora,
que em seu mais recente filme retoma imagens do arquivo familiar para
resgatar a trajetória da mãe e problematizar o lugar do casamento na
sociedade brasileira.
O professor Vicente Sánchez-Biosca foi convidado a proferir a
conferência de abertura do Seminário. É dele também o primeiro trabalho
deste e-book. Sánchez-Biosca tem realizado um importante e reconhecido
trabalho nos últimos anos sobre a migração e a retomada de imagens de
arquivo de cunho histórico — desde registros das duas grandes guerras
mundiais quanto os que restam de conflitos locais, como a Guerra Civil
Espanhola e o genocídio do Camboja. A metodologia que desenvolveu dirige
um olhar cuidadoso para a origem das imagens fotográficas e
cinematográficas encontradas em diversos acervos e retomadas em diferentes
filmes. É a partir dessa perspectiva, que leva em consideração a genealogia da
imagem, que, em “Poderes da imagem. As fotos de perpetradores do
genocídio cambojano e sua migração para o cinema, os museus e a corte
penal”, Biosca vai analisar as marcas impregnadas no material produzido por
carrascos, por aqueles que imprimem sofrimento a quem é colocado de modo
forçado diante da câmera. No artigo, o primeiro publicado pelo autor em
língua portuguesa, Sánchez-Biosca mostra as transformações de sentido da
fotografia de uma vítima do genocídio no Cambodja em migrações no espaço
e no tempo, além de analisar os usos que o cineasta Rithy Panh faz dessa
imagem em dois de seus filmes.
Outro convidado para contribuir com o e-book foi o professor Eduardo
Morettin, da Universidade de São Paulo, que desenvolve um longo e
importante trabalho de pesquisa no campo que articula a história ao cinema.
Além de participar como moderador e articulador do debate de uma das três
mesas do Seminário, Morettin propôs no texto “Cinema de arquivo, história e
exposições universais: Land of liberty (1939), de Cecil B. DeMille” uma
reflexão sobre o uso de filmes de ficção para a elaboração de discursos do
passado e a junção desse tipo de registro com o de caráter documental. Desse
modo, o pesquisador examina as estratégias discursivas empregadas por
filmes que recorrem ao material de arquivo como estratégia de autenticação
do discurso fílmico. Como o cinema se apropria do discurso da modernidade
e, ao mesmo tempo, é usado como arma de combate em um contexto político
fortemente polarizado ideologicamente, como era o caso da década de 1930?
Outros nove textos de pesquisadores que participaram do Seminário
foram selecionados para compor este e-book. A partir de metodologias
diversas, os autores mostram modos estéticos e históricos de
reapropriação/ressignificação das imagens de arquivo e apontam para um
instigante campo de pesquisa que tem como objeto registros produzidos a
partir de múltiplos intuitos, desejos e necessidades. São imagens de variadas
materialidades, temporalidades e que circulam em diferentes mídias. Imagens
históricas, políticas, poéticas e/ou pessoais.
Em “O desvio das imagens: documentário e montagem de arquivos no
cinema de Gianikian e Lucchi”, Luís Felipe Flores segue a linha de pesquisa
voltada para fragmentos de filmes que terão seus sentidos originários
revertidos na montagem. Dessa vez, desviar a imagem é um ato político na
medida em que se propõe como um modo de combater o fascismo, ameaça
do passado que atua como fantasma no presente. Na trilogia da Primeira
Guerra, filmes de propaganda deteriorados são recuperados por Yervant
Gianikian e Angela Ricci Lucchi. De que modo os cineastas italianos
confrontam violências históricas por meio da montagem de arquivos?
Registros cinematográficos da Grande Guerra também estão presentes no
filme Os campos voltarão (Torneranno i prati, 2014), de Ermanno Olmi,
analisado por Mariarosaria Fabris no texto “O inverno da desesperança”. Na
reconstituição de uma noite no inverno europeu de 1971, o diretor volta-se
mais para as emoções dos protagonistas do que para as batalhas. No entanto,
insere esses registros documentais no final do filme. O capítulo vai mostrar
como esse gesto foi motivado pelo intuito de criticar a guerra e reforçar a
brutalidade gerada no enfrentamento entre os homens.
A partir dos anos 1960, câmeras mais leves e acessíveis alcançam novos
espaços geográficos e permitem a produção de imagens que serão usadas para
elaborar memórias de conflitos nacionais e coloniais. Em “Anticolonialismos
e reapropriação das imagens fílmicas de uma emboscada (1969-2014)”,
Alexsandro de Sousa e Silva investiga o itinerário do material filmado na
Guiné Portuguesa por jornalistas franceses em 1969, quando soldados
portugueses foram alvo de uma emboscada organizada por guerrilheiros do
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGCV).
No texto, vemos que essas imagens foram retomadas nos documentários As
duas faces da guerra (Diana Andringa, Flora Gomes, 2007) e Concerning
violence (Göran Olsson, 2014) com o intuito de elaborar memórias da
experiência traumática do colonialismo no continente africano.
Das questões em torno do colonialismo na África, seguimos para uma
importante reflexão sobre a elaboração de memórias da ditadura militar
brasileira. Em “Anistia 79. A restauração das imagens da história pelo
cinema”, Anita Leandro expõe a arqueologia de um filme guardado por 37
anos e localizado recentemente na França. Trata-se do material filmado por
um exilado, que documenta a reunião dos comitês de anistia do Brasil e da
Europa em junho de 1979 em Roma. O evento foi realizado para pensar uma
estratégia conjunta de intervenção no processo de abertura política, então
fortemente controlado pelo regime ditatorial. São imagens raras, únicas, de
exilados brasileiros. Com o tempo, as bobinas de som haviam se perdido das
imagens. A pesquisadora começou a realizar um trabalho de mixagem e de
escuta dos testemunhos daqueles que aparecem no filme. No artigo, são
apresentados os primeiros resultados de uma investigação em torno dessas
imagens cujo objetivo é a montagem do material encontrado.
Se, por um lado, o cinema que retoma imagens de arquivo recupera
registros raros, por outro, também ressignifica aqueles de fácil circulação,
como os disponíveis em plataformas como o YouTube. Carlos Adriano
Jeronimo de Rosa e Claudio Marcondes de Castro Filho, no capítulo
“Reapropriação como reconfiguração de arquivos: o método poético do found
footage e um estudo de caso no YouTube”, realizam um recuo histórico para
descrever um campo de prática e pesquisa que, desde o chamado early
cinema, demonstra modos de apropriação de arquivos cinematográficos,
também chamados found footage. A partir de um filme realizado com
materiais extraídos do YouTube, Sem título # 3: E para que poetas em tempo
de pobreza?, os autores levantam a hipótese de que o found footage pode ser
também um método poético de crítica, organização e tratamento da
informação audiovisual.
Além de poéticos, materiais encontrados no YouTube podem ter usos
políticos. É o que sugere a pesquisadora Kênia Freitas em “The uprising: a
desterritorialização das imagens-acontecimentos”. No documentário The
uprising (Reino Unido/Bélgica, 2013), o diretor Peter Snowdon usa
gravações das Revoluções Árabes postadas no YouTube e combina as muitas
tomadas subjetivas de manifestantes da Tunísia, do Egito, do Bahrain, entre
outros países, para construir a narrativa de uma revolução pan-árabe. No
filme, não há a contextualização das revoltas, mas sim, a partir da montagem,
a imaginação de uma revolução que só existirá na tela. De que modo o
resíduo do material de arquivo colabora para a ressonância dos
acontecimentos no filme?
Os usos afetivos, subjetivos, psicológicos ou políticos de imagens de
outra natureza, imagens familiares e pessoais, são temas de três capítulos que
integram a coletânea. A pesquisadora Patricia Rebello da Silva aponta, em
“Para a mamãe, com amor: arquivo e memória nas cartas filmadas de A
family affair” (2016), que o gesto compulsivo de colecionar imagens da vida
íntima pode ser o sintoma de uma infância de rupturas. O desejo de memória
seria o motivador da criação e coleção de uma profusão de imagens de uma
família. O documentário permite a reflexão sobre o gesto de retomada das
imagens empreendido por seu diretor a partir do uso de videocartas trocadas
entre ele e outras mulheres da família.
Se em filmes familiares o controle do registro foi sempre marcado por um
olhar masculino, a pesquisadora Beatriz Rodovalho propõe um recorte ao
selecionar para a análise filmes que reclamam um olhar feminino possível,
uma (re)visão feminina sobre uma sociedade patriarcal e suas marcas
invisíveis e cicatrizes expostas sobre os corpos e as imagens dos corpos de
mulheres. No texto “Boas moças: a desconstrução do olhar masculino por
meio da retomada do filme doméstico”, a autora interroga a possibilidade da
desconstrução e de subversão do olhar masculino, paterno e patriarcal que
estrutura o filme doméstico. A partir de filmes de cineastas e artistas que
recuperam imagens de família tradicionais, o artigo analisa como a
remontagem de filmes amadores pode desmontar a lógica de gênero que
orienta o cinema doméstico e o olhar que enquadra as mulheres no interior da
instituição familiar.
Por fim, em “Não entender: arquivos, documentos e criação no encontro
com o Diário de David Perlov”, Ilana Feldman propõe uma “indagação
metodológica” sobre o trabalho com imagens de arquivo que fazem a
passagem do pessoal para o político. Problematizando o encontro entre a
pesquisa acerca de um arquivo com os próprios arquivos pessoais da
pesquisadora, produz-se um encontro que ultrapassa e transforma a relação
entre sujeito e objeto. O capítulo visa refletir sobre os diferentes materiais e
documentos que constituem a obra autobiográfica de David Perlov, que
ressignifica, por meio da montagem e da temporalidade da narração, a própria
noção de arquivo. Aqui, a investigação em torno das relações entre o privado
e o político no cinema de Perlov problematiza o testemunho da pesquisadora,
entrelaçando vida e escritura, documento e reapropriação. Nessa trajetória de
seleção, organização, análise e montagem de materiais tão heterogêneos, uma
importante questão é colocada: podem as vidas do pesquisador e de sua
pesquisa se emaranhar?
Os trabalhos apresentados neste e-book compõem um panorama plural e
heterogêneo no âmbito dos objetos escolhidos e das metodologias
empregadas nas pesquisas. No entanto, as questões levantadas pelos diversos
autores partem de um pano de fundo comum: a imagem e sua duração no
tempo e no espaço. Não é por acaso que o seminário tenha se realizado dentro
do CPDOC da FGV, instituição detentora do mais importante acervo de
arquivos pessoais de homens públicos do país. Como parte dessa instituição,
o Núcleo de Audiovisual e Documentário está comprometido com o debate
em torno da preservação, da circulação e da reutilização das imagens de
arquivo. Por meio do Seminário e desta publicação, desejamos contribuir
para ampliar e fomentar esse campo de estudos.
Coordenadoras do Seminário Internacional de Documentário de Arquivo — Arquivos em
Movimento.
Financiado pela Fundação Getulio Vargas, o seminário aconteceu dentro do âmbito do
Projeto de Ampliação do Núcleo de Audiovisual e Documentário do CPDOC. Desde 2006,
o Núcleo desenvolve atividades com alunos e pesquisadores da Escola de Ciências Sociais
da FGV, possibilitando a realização de diferentes projetos centrados no uso da linguagem
audiovisual.
Mônica Almeida Kornis atuou também como consultora do Seminário.

Referências
BLANK, Thais. Da tomada à retomada: origem e migração do cinema
doméstico brasileiro. Tese (doutorado em comunicação e cultura) —
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
BLÜMLINGER, Christa. Le cinéma de seconde main: esthétique du remploi
dans l’art du film et des nouveaux médias. Paris: Klincksieck, 2013.
LINDEPERG, Sylvie. Nuit et Brouillar: un film dans l’histoire. Paris: Odile
Jacob, 2007.
MACHADO, Patrícia. Imagens que restam: a tomada, a busca dos arquivos,
o documentário e a elaboração de memórias da ditadura militar brasileira.
Tese (doutorado em comunicação e cultura) — Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
VÉREY, Laurent. Les images d’archives face à l’histoire. Paris: Scérén,
2011.
1
Os poderes da imagem: as fotos de
perpetradores no genocídio cambojano e
sua migração para o cinema, os museus e
a corte penal1

Vicente Sánchez-Biosca

Gémir, pleurer, prier est également lâche.


Fais énergiquement ta longue et lourde tâche.
Dans la voie où le Sort a voulu t’appeler.
Puis, après, comme moi, souffre et meurs sans parler.
(Alfred de Vigny, La mort du loup, poema recitado pelo ex-torturador
Kaing Guek Eav, o Duch, como sua divisa estoica na vida)

Imagens performativas
Em 2014, um vídeo difundido na internet abalava o mundo. Nele, James
Foley, jornalista estadunidense sequestrado desde 2012 pelo grupo Estado
Islâmico (Isis-Daesh) na Síria, estava ajoelhado e sua roupa laranja
destacava-se do pano de fundo que parecia ser as dunas do deserto. À direita
e de pé, uma imponente e aterrorizante figura vestida de preto contrastava
com o quadro anterior e com as cores vívidas (o céu azul, a terra marrom e a
roupa alaranjada do jornalista). Diante da câmera, em inglês britânico,
ameaçou e, depois de acusar o governo estadunidense, essa terrível figura,
cujo rosto não se podia ver, brandiu uma descomunal faca que decapitou o
jornalista. Assistir a essa cena dolorosa provoca angústia e desconforto, pois
o espectador já conhece o final. Além disso, atesta que a tortura selvagem à
vítima, que não só se limita à decapitação, é precedida de humilhação, ambas
acompanhadas por uma câmera cúmplice que não falha.
Dessa imagem pode-se destacar a seguinte questão: qual a função que a
câmera, tão próxima desse sacrilégio contra a vida e a dignidade humana,
exerce nesse lugar? Por que o pulso de quem a segurava não vacilou em
nenhum momento? Como era possível que o autor tivesse tempo para
escolher um “estilo” filmando por meio de um ligeiro desvio da frente, como
se evitasse enfrentar o que considerava um ato legítimo de execução? O
sangue-frio não só define essa misteriosa encarnação da morte que brande a
lâmina impassível, mas incumbe ao olho mecânico impassível diante dos
fatos a tarefa de transmitir a mensagem ameaçadora ao Ocidente. Uma
câmera cúmplice, pois não há especificador suficiente para defini-la. A
filmagem é parte indissociável da violência do ato. Sem esse olhar de ódio, o
ato não teria valor. Sem a câmera, não há sentido. Com ela a mensagem é
mais que eficiente. Então, qual função tem esse olhar? Enquanto esse teatro
surreal foi planejado para mostrar a frieza implacável desse crime metódico,
causa surpresa a primitividade e a crueldade da arma escolhida para a
decapitação da vítima. Há uma profanação nesses atos, mas a ação não deixa
incólume o olho que os registra, indissociável da prática desse ato.
São imagens de perpetradores, utilizando a definição de Marianne Hirsch
referindo-se às fotos tiradas pelos membros das forças alemãs Wehrmacht de
seus aliados Waffen-SS enquanto cometiam atos criminosos, principalmente
na frente Oriental durante a invasão da então URSS em junho de 1941 e nas
matanças ou limpezas de retaguarda; imagens tiradas pelos algozes ou seus
cúmplices como parte da máquina de destruição. Também denominamos
imagens dos perpetradores fotos, filmes, vídeos ou outros suportes tirados
por quem os pratica (ou compartilha o exercício de) violência às vítimas;
violência em que a produção visual se torna inseparável da física ou da
psicológica. É como se a câmera se presentificasse na faca, na arma de fogo
ou na humilhação e no sacrifício (Hirsch, 2012:136).
Contudo, o particular desse gênero iconográfico é seu destinatário
modesto e restrito, pois as imagens parecem estar destinadas ao consumo
privado dos próprios perpetradores ou de quem compartilha a mesma
ideologia e/ou sentimentos dos praticantes (estejam próximos fisicamente ou
sejam pertencentes à mesma geração). No entanto, esses círculos de
proximidade e identificação são instáveis, suas fronteiras são imprecisas e,
por acaso, a derrota ou a vitória de seus autores pode chegar em mãos
imprevistas. Isso é o contrário do que ocorre com os vídeos do Daesh.
Diferentemente das fotos das execuções pelas Waffen-SS na frente Oriental
durante a Segunda Guerra Mundial ou das fotos humilhantes dos presos
iraquianos em Abu Ghraib tiradas pelos membros da polícia militar norte-
americana, os vídeos do Daesh possuem uma originalidade radical no
orgulho obsceno em difundi-los pelas redes sociais em escala mundial. A
inovação deles consiste nessa difusão aberta e sem repressão dos atos
violentos para o mundo ou, precisamente, a ampliação sem limites ao
consumidor.
O vídeo de Foley cumpre outra função comum a outras imagens de
perpetradores: o anúncio de uma morte iminente (impending death),
conforme Barbie Zelizer (2010) define em seu livro, ao traçar uma genealogia
e presença no fotojornalismo contemporâneo. Esse gênero de fotografia
apressa a fronteira do tempo ao forçar seu espectador a projetar o futuro, que
já ocorreu, no presente representado na foto, nesse interior onde o futuro é
ainda visto como algo iminente, ou seja, inexorável, mas ainda não ocorrido.
Ao observar essas imagens (pois o ato de ver só ocorre quando é conhecido o
desenlace fatal), o que fazemos é devorar signos premonitórios do inexorável.
São imagens em que o consumo se precipita no cíclico e entra em um círculo
fatal conforme refere Sigmund Freud ao definir a pulsão da morte no ser
humano, a compulsão à repetição, em Além do princípio do prazer.
Pode-se dizer que a duplicidade de sentido destacada coloca à prova o que
foi considerado noema da fotografia por muitos teóricos clássicos da área,
como: seu paradoxo temporal, uma estrutura de futuro anterior. A começar
por Walter Benjamin (2004:26), que em 1931 destacava esse dispositivo, essa
“pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade
chamuscou a imagem”; seguido por Philippe Dubois (1983), que destaca a
partir da semiótica o caráter indicial da fotografia; por Charles Sanders
Pierce, que assinala sua condição de ato icônico (acte iconique); por Susan
Sontag, que identifica o ato de tirar uma foto com “to participate in another
person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability” para associá-la a um
memento mori que se torna uma epifania negativa quando as fotografias
representam a dor alheia (Sontag, 1981:11); last but not least, Roland Barthes
(1980:138), que destaca que a foto é uma “émanation du réel passé”. Não é
preciso citar mais nomes: a marca do real nunca é tão dramática quanto na
foto. No entanto, é preciso sair do essencialismo para ampliar essa condição a
outros suportes apesar de suas diferenças não serem irrelevantes. No caso em
questão, o ato violento implica a imagem; e esta se transforma em ato em si
mesmo; de certo modo, a imagem, menos letal que o ato que a imortaliza e
em sua efemeridade, se transforma em um verdadeiro documento, em um ato
mais infame.
Em outras palavras, a foto reproduz o real de sua produção (os formatos
escolhidos, a exposição designada, a distância, o objeto e sua textura...), e o
resultado registra os modelos determinados historicamente para essa
finalidade. Se ao mesmo tempo o ato fotográfico é um recorte ou seleção do
real e uma projeção (sempre contraditória, parcial e imperfeita) do ato sobre a
foto resultante, ele deveria nos levar a um detalhado estudo sobre as
condições históricas exatas em que é produzida, questionamentos sobre o
momento, condições externas, circunstâncias concretas...; por sua vez, as
análises feitas pelos teóricos da fotografia não levam em consideração esse
esforço historizador. Em vez disso, os autores citados anteriormente parecem
servir de exemplo para evitar a reconstrução dessa realidade em que a foto é
um recorte (no espaço e no tempo). Dessa forma, como afirmou John Tagg,
costuma-se considerar a foto uma emanação mágica em comparação com um
produto histórico e cultural, inclusive é reconhecida como “essência” a marca
do real. “The photograph is not a magical ‘emanation’ but a material product
of a material apparatus set to work in specific contexts, by specific forces, for
more or less defined purposes. It requires, therefore, not an alchemy, but a
history” (Tagg, 1988:3). A partir do cânone de Barthes, Tagg o critica ao
definir “What Barthes sees as photographs ‘evidential force’ is bound up
with new discursive and institutional forms, subject to but also exercising
real effects on power, and developing in a complex historial process that is
all but obliterated by the idea of a continuous ‘documentary tradition’ […]”
(Tagg, 1988:7-8). E no registro da imagem corporal nas formas de
organização do poder durante o século XIX, Allan Sekula fornece
importantes contribuições que se relacionam diretamente com nosso objeto:
os mug shots que a polícia francesa praticou nas colônias (Sekula, 1986:3-
64).
Não se trata de contestar as contribuições desses teóricos clássicos, mas
de estabelecer um diálogo entre as contribuições dessa fenomenologia e cada
situação histórica singular, saindo do círculo fotográfico para compreender
outros sistemas visuais como o cinema ou o vídeo, sem por isso negar as
particularidades expressivas de cada um. O fascínio que essas imagens de
morte imanente exercem, que vão desde a ferida mortal até a pornografia, é
propício para uma circulação compulsiva. Descobertas, são difundidas sem
limites, possivelmente porque sua retórica temporal as impede de envelhecer,
nos prende nesse eterno retorno que melhor descreve o paradoxo do futuro
anterior. Se os destinatários originais foram os próprios perpetradores ou
apoiadores, expostas além desse círculo, exercem um poder avassalador que
chega, por força ou nível, a outras estratégias pensadas para explorar seu
impacto: contrapropaganda, denúncia, questionamentos, análise...
No entanto, essa vertiginosa apropriação não está isenta de riscos. Um
deles expõe o espectador a uma dura prova: a restrição de olhar pelos olhos
de um perpetrador, condição que se arrasta velis nolis até mesmo quando se
trata de reapropriações, citações, críticas ou détournements do material
original. Essa condição marca um perigo, formal e ético, uma possível
identificação com o posicionamento físico relacionado com o observado que
pode acarretar o mesmo ponto de vista moral sobre os fatos registrados.2

Foto roubada, imagem nômade


A partir das considerações anteriores, este texto se propõe a analisar as
reapropriações de uma fotografia de perpetradores produzida em um contexto
totalitário em que a posse da imagem do detido significa não só a destruição
da pessoa como a eliminação das marcas de sua destruição. A cena é de um
centro de tortura e prisão conhecido como S-21 durante o governo Khmer
Vermelho (de abril de 1975 a janeiro de 1979) no Camboja. A imagem
escolhida mostra uma prisioneira, chamada Hout Bophana, e o mug shot em
questão é parte do arquivo existente com cerca de 6 mil imagens conservadas
e mantidas pela polícia de repressão do Kampuchea Democrática para
perseguir traidores.3 Esse centro de tortura e prisão foi criado para deter os
partidos transformados em inimigos, os traidores ou os delatados por outros
presos. Portanto, era um centro especializado em desmascarar o inimigo
interno, aquele que em muitos casos estava no poder antes do Kampuchea
Democrática. Na ausência de tribunais de justiça e na presença de um clima
asfixiante de isolamento e paranoia de traição, qualquer detenção desse tipo
era uma sentença de morte. Para que fosse efetivada, o(a) prisioneiro(a) era
submetido a uma complexa série de castigos, como torturas, insultos, fome,
trabalho forçado etc., condições desumanas que acabavam com a pessoa;
devia confessar sob a forma de biografia criminal autocrítica e ser delatado
pelas supostas redes de espionagem. Quando a sentença estava decretada,
prosseguia-se a execução, kamtech ou komtech, geralmente nos chamados
killing fields de Choeung Ek, situados a cerca de 15 quilômetros ao sul da
capital Phnom Penh; uma eliminação que, na linguagem do Khmer
Vermelho, deveria acontecer não somente com a morte do corpo, mas com o
desaparecimento absoluto da memória.4
Nesse contexto, o registro da foto constituía o disparador de uma
usurpação da memória pessoal que o detido acabaria entregando à
Organização (Angkar), atrás do qual corpo e memória poderiam desaparecer.
Circulados desde 1979, muitos dos mug shots vêm passando pelas mãos de
arquivistas, defensores dos direitos humanos, galeristas e curadores em
museus, dramaturgos, advogados, procuradores, perpetradores, acusados,
documentaristas e um vasto público que se tornou porta-voz de todos os
anteriores. Ainda quando todos esses mug shots juntos, expostos em painéis
em museus, alcancem um efeito surpreendente, somente poucos foram
elevados à categoria de ícones representativos.5 Possivelmente o mais
conhecido é o retrato de Cham Kim Srun.
3
A expressão de um rosto doloroso e resignado dessa mulher nos choca ao
contemplar o bebê que traz no colo, qual moderna e conscientemente
antecipada pietà, já que a criança também será sacrificada. No prédio B desse
museu há um mug shot em tamanho grande com essa foto que acompanha a
exposição, dentro de um armário com uma urna de cristal e uma cadeira que
servia para tomar as medidas cranianas dos prisioneiros. Depois de uma série
de aparições, um livro dedicado à memória traumática do país, Cambodia’s
hidden scars. Trauma and psychology in the wake of the Khmer Rouge (Van
Schaak, Reicherter e Chhang, 2011), estabelece um contraste com as
surpreendentes aparições da foto. Os capítulos, fundamentados em estudos
psicológicos, apresentam fotos recentes, metalinguísticas, em que crianças
escondem o rosto com fotos dessa mulher. Recusam-se a aparecer diante de
um dispositivo fotográfico? Identificam-se com ela? Um quadro-resumo no
final do volume desvenda o mistério: são os descendentes de Chan Kim Srun
e os gestos de seus netos e filhas formam marcas de apropriação de um ícone
utilizado como transmissão do trauma (evidentemente na família, mas
também no corpo social). Além dessa imagem, escolhemos outra, a de Hout
Bophana.
Dado que a análise desse processo é um tema bastante explorado pela
historiografia, faremos uma breve exposição da produção da imagem dos
perpetradores no S-21, sua marca na sequência dos fatos que determina o
sentido, sua função documentária e sua transformação arquivística, para
concluir sucintamente com sua circulação massiva. Por último, analisaremos
duas apropriações em filmes dessa jovem que foi chamada de Anna Frank
cambojana: Bophana, uma tragédia cambojana (1996) e Duch, o mestre das
forjas do inferno (2009), ambos com direção de Rithy Panh. Nesses filmes
concretizam-se duas estratégias histórica e metodologicamente diferentes: no
primeiro, tenta redimir um ser humano e uma biografia por meio de uma
imagem com base nos relatos de familiares, algozes e objetos materiais. No
segundo, o objetivo é registrá-la no discurso do perpetrador, o então chefe do
centro S-21 que ordenou sua tortura e execução, na véspera de se apresentar
nas Extraordinary Chambers in the Courts of Cambodia (ECCC). Esses dois
momentos (1996 e 2009) apresentam uma importante distância temporal
como registro do discurso histórico e da memória: a denúncia do extermínio
quando este estava encoberto no contexto geopolítico internacional, e a
confrontação do algoz em plena hegemonia da justiça de transição e na
tentativa de se reconciliar nacionalmente. Hout Bophana é uma imagem
nômade, utilizando o termo com que Frédéric Rousseau (2009:12) se referiu
à famosa foto do garoto do gueto da Varsóvia incluída no Informe Stroop,
isto é, uma imagem que circula, que muda de sentido, simplifica, torna-se
dúctil e resiste parcialmente a cada novo registro.

O ato fotográfico e a cena primitiva


O mug shot de Bophana é uma peça retirada desse arquivo compacto,
organizado, minuciosamente construído, inscrito e dirigido com documentos
complementares que a fazem falar sem cansar: uma fotografia frontal e de
perfil, com base nos parâmetros que a polícia colonial da Indochina herdou
do método idealizado por Alphonse Bertillon em 1879 e no sistema de
medida distintivo (AAVV, 2011). Essa imagem também é parte do acervo
sob custódia do Museu Tuol Sleng desde sua abertura em julho de 1980;
atualmente está exposta em uma das três salas desse museu em diferentes
tamanhos. Na primeira sala aparece em um painel, perdida, não sendo fácil
identificá-la à primeira vista; na segunda pode ser vista um pouco em um
tamanho maior, seguindo a ordem da visita; e na terceira aparece em um
quadro explicativo com as mudanças ocorridas no sistema de numeração e
registro das vítimas pela administração do centro entre 1975 e 1978. Não
podemos garantir que essa disposição não tenha mudado ao longo dos anos.
No entanto, em nenhuma dessas salas — apesar de enriquecedora história
internacional — está identificado o mug shot. Nesse contexto nos
perguntamos qual era o sistema de sua captura para obter respostas sobre seu
significado.
4
Os instantâneos de prisioneiros são tema de uma extensa bibliografia que
vai desde Ben Kiernan (1996) a David Chandler (1999), passando por Nic
Dunlop (2006:148) e Peter Maguire (2005). Citamos o relato de experiência
de um dos sobreviventes para nos situar no tempo em que era produzido e
entender a sensação criada:

[...] senti que alguém retirava a venda dos meus olhos. No início, via um borrão, mas
logo a visão ficou nítida. Na minha frente tinha uma cadeira e em cima dela uma
câmera fotográfica.

“Senta nessa cadeira”, ordenou o guarda apontando com o dedo.


Os outros prisioneiros algemados comigo me acompanhavam, mas permaneceram
sentados no chão enquanto me fotografavam. O guarda tirou um primeiro instantâneo
frontal, depois outro de perfil. Outro guarda mediu minha cabeça e em seguida me
deram um registro de identificação. Depois, fotografaram cada um que estava
algemado comigo. Quando acabaram, nos colocaram de novo a venda. [Nath, 2008:72-
73]

O relevante, em todo caso, é que esse momento era a primeira e


protocolar fase de um vertiginoso precipício que levava inexoravelmente à
execução, cujas fases eram o registro, o confinamento em celas (comuns ou
individuais, dependendo da importância do preso), frequentes interrogatórios,
a redação de uma confissão que satisfizesse o Angkar, que estabelecia
diferentes tipos de tortura, assinava e aniquilava os prisioneiros. Na verdade,
essas imagens não registravam um suspeito, e sim criavam um culpado,
denominado por Nic Dunlop (2006:148) como “a trial by camera”. Dessa
forma eram fotografias performativas, que transformavam a realidade ao
marcar um antes e um depois, e combinadas com uma eficaz obtenção das
informações (verdadeiras ou falsas), geravam um ciclo com novas detenções
em um regime que se retroalimentava e que fazia do S-21 uma máquina
quase inefável que criava inimigos sendo arquivados pelo mesmo
procedimento. Dessa maneira, a eliminação dos inimigos do passado (os
imperialistas e capitalistas) passou aos do presente (o chamado “novo povo”,
composto por cidadãos educados, urbanos e burgueses) para concluir,
segundo a lógica implacável da revolução permanente maoísta, com os
inimigos do futuro (os conspiradores e espiões dentro do partido) (Locard,
2013).
No entanto, algo mínimo escapa desse poder onímodo, porque a foto que
registra o inimigo contém uma centelha aleatória, a materialização de um
fugaz encontro entre a máquina de repressão Khmer Vermelho e um sujeito
que, surpreso com a prisão, ignorando as consequências e cegado pela luz
deslumbrante cujo impacto recebe ao retornar à escuridão, abre os olhos e se
fixa como culpado no preciso momento em que devolve o olhar, senão ao
funcionário que a capta pelo instantâneo, ao menos ao mecanismo que o
devora. A fotografia resultante contém, enquanto instant décisif, a marca
dessa coalisão de olhares, em que fica evidente o poder desigual de cada
autor. Por isso a leitura dessa imagem revela muitos dados: o cenário onde foi
tirada, o sistema de numeração, as roupas, as evidências de uma tortura
anterior, as formas de acorrentar os presos, os bebês e suas mães... Pode-se
dizer que esses elementos internos combinam-se com os externos: a
modalidade da foto, sua anexação ao arquivo, seus recortes etc., como
revelam os estudos de Michelle Caswell (2014) e Michelle Hamers (2011).
Em suma, esse arquivo de morte entra na categoria da imagem do
perpetrador, pois a foto obtida é inseparável da máquina de aniquilação e tem
a função de estabelecer e desencadear um processo de destruição. Com uma
sobriedade documentária e ao contribuir para fixar uma imagem de inimigo,
esse arquivo, como aponta David Chandler (1996:106), possivelmente teria o
propósito inconsciente de escrever a gloriosa história do partido, isto é, a
soma de suas vitórias diante do inimigo.
Corpos ausentes, a foto é o documento-marca mais próximo da realidade
e da dor ou, se preferir, a única porta aberta nesse calvário que, apesar de
ocultar a atrocidade (a primeira cena é inacessível), deixa o sujeito suspenso
por alguns momentos antes de precipitar-lhe o golpe mortal. Assim é o mug
shot de Bophana. O que fez dele um ícone e dela, a mulher Bophana, uma
heroína trágica? O que permitiu que Rithy Panh narrasse a biografia de
Bophana por imagens como um relato de redenção quando o destino dela foi
tão diferente?

Bophana: a espécie humana


O resgate da história de Bophana a partir de uma imagem e de um dossiê
ocorreu na obra da jornalista estadunidense Elizabeth Becker, que trabalhava
para o Washington Post quando descobriu nos arquivos que pesquisava do
Museu Tuol Sleng uma confissão muito singular: as provas incriminadoras
eram cartas de amor. Os responsáveis pelo arquivo também partilharam da
emoção diante do maço de documentos, e a jornalista relatou a história
descoberta em “The romance of Comrade Deth” (Becker, 1986:212-225),
capítulo do seu livro When the war was over. Nele Bophana representa os
valores humanos, familiares e culturais do Camboja dos anos 1970
(desenvolvimento econômico, bem-estar social, respeito pela cultura
ocidental, combinado sem tensões com a tradição budista). Essa jovem
instruída, conhecedora da língua francesa e criada no meio de professores,
viu seu destino ruir no contexto da guerra civil em seu país: os bombardeios
decretados por Nixon e Kissinger, o golpe de Estado do general Lon Nol em
1970 que derrubou o então rei Sihanouk e as consequências de ambos os
acontecimentos no fortalecimento da guerrilha Khmer Vermelho. O drama
pessoal da protagonista e a história do Camboja se entrelaçam de forma
cíclica. A seguir, relataremos brevemente esses avatares de vida, pois sem o
conhecimento deles torna-se difícil compreender sua representatividade e a
ação do cineasta.
Depois que teve seu pai assassinado em uma emboscada, a jovem de 20
anos de idade é forçada a fugir da área mais sanguinária do conflito; na longa
viagem, instala-se em Kampong Thom, onde é violentada pelos soldados do
exército nacional. Em 1971, prestes a dar à luz, volta a Phnom Penh e tenta o
suicídio, mas ela e o filho são salvos pelos médicos e Bophana deixa a
criança aos cuidados de sua irmã mais nova. Em maio de 1974, reencontra
em um pagode seu primo e amigo de infância, Ly Sitha, que se tornou um
monge bonzo, e apesar de um encontro passageiro eles se apaixonam. Em 17
de abril de 1975 Phnom Penh é esvaziada, Bophana volta para Barray
submetida ao regime corporativo, onde sem querer levanta suspeitas pela cor
branca e “arrogância ocidental”. Em setembro desse mesmo ano, Ly Sitha
reaparece transformado em companheiro Deth, homem de confiança de Koy
Thuon, dirigente da zona norte. Sua veste laranja de monge fora substituída
pela roupa preta dos novos governantes e uma pistola. Nessa época a mãe
dele decide unir o casal, e Bophana passa a viver com a família.
Às privações e ameaças anteriores soma-se sua infelicidade amorosa. As
duas famílias necessitam da permissão para se reunir e a fragilidade que essa
jovem mostra diante de seu amado contrasta com sua aparente força exterior.
Nas cartas, Bophana encontra refúgio no mundo imaginário do poema
Reamker, versão khmer de Ramáiana, e se autoatribui a personalidade da
heroína Sita, esposa de Rama, que foi separada do amado pelas forças
demoníacas que alegoricamente apresentam semelhanças com o universo
criado pelo Khmer Vermelho. Um conflito no interior da organização
provoca a derrubada do ministro e protetor de Ly Sitha. Em 19 de setembro
de 1976, Sitha foi preso, levado para Tuol Sleng, torturado e “aniquilado”
oficialmente em 18 de março de 1977 (dia 10, segundo Becker); Bophana foi
capturada em 12 de outubro de 1976, acusada de trabalhar para a CIA, sendo
interrogada por seu ex-professor de literatura (Pahn, 2004:122). Considerada
culpada por corromper a revolução com más artes femininas, foi “eliminada”
no mesmo dia que seu amado, no entanto nenhum deles soube que eles
estavam ali tão próximos nos momentos finais de suas vidas.
Ao saber sobre esse dossiê em que a paranoia da conspiração e a tragédia
pessoal se misturavam tão caprichosamente, Rithy Panh solicitou a permissão
de Becker para produzir o roteiro do filme Bophana: une tragédie
cambodgienne (1996), a primeira produção em língua khmer tendo como
tema um período que ainda era considerado tabu no país (Becker, 2010). Essa
história do Camboja dos anos 1970, iluminada por uma épica ancestral e
ameaçada pela alegoria demoníaca, faz uma denúncia à característica mortal
do novo regime desse período: a educação cosmopolita, a pele clara, os
costumes urbanos e o amor que sente pelo marido etc., sendo difícil acumular
mais vícios burgueses em uma pessoa só.
Para Rithy Panh, esse conjunto de defeitos permite chegar a uma pureza
que tem que ser redimida, porque o ponto central da destruição consiste na
imagem condensadora do ato: o mug shot. Contra este, o cineasta recuperará
outra iconografia de acordo com a vivência interior, só assim será possível
recuperar Bophana post mortem com suas delicadas feições. No entanto, não
se deve esquecer que o ponto de partida do documentário são os documentos
dos perpetradores: as cartas da vítima, das quais se apoderaram; a foto foi
tirada pelos algozes; a confissão, prova da alienação mental induzida, e a
usurpação da memória. Portanto, são quase todos documentos dos
perpetradores que requerem a submissão — violenta e forçada,
provavelmente persuadida ou alcançada pelo medo —, mas sempre
enigmática na história do comunismo, segundo a qual o sujeito deixa sua
individualidade para entregar ao Partido sua memória alienada.
O filme começa com os arquivos de Tuol Sleng, nos quais estão a
confissão da jovem e comentários em fina caligrafia feitos pelo chefe dos
interrogatórios. Além do arquivo, podem ser encontradas cartas de seu
marido e uma folha com fotos mais jovem. Depois de apresentados esses
documentos que foram produzidos pelos executores e classificados pelos
arquivistas do museu, somos transportados para os corredores de Tuol Sleng,
onde M. Toeuth, tio de Bophana, identifica entre centenas de fotos o mug
shot de sua sobrinha e se lembra da última vez em que a viu em 17 de abril de
1975 em uma Phnom Penh ao mesmo tempo exaltada e amedrontada pelos
jovens guerrilheiros. De rosto inexpressivo no painel, roupa preta obrigatória,
destacando-se o número 3 colado nela, essa imagem colonizada pelos
atributos do olhar Khmer Vermelho é a primeira etapa do aniquilamento de
seu corpo e sua memória. O filme se propõe a inverter esse olhar, recuperar o
que de humano transparece nos documentos preservados. Sobre ele paira uma
sombra quando aparece a fatídica fotografia que condensa tudo. A câmera se
aproxima até convertê-la em um contraplano de seu descobridor. O rosto
escuro e inalterado parece que o observa fixamente da mesma forma como
nos olha.
A tarefa não é outra senão a de iluminar e dar vida a essa figura sem
brilho, digna, mas esquecida, uma vez que nem lhe deram um nome no painel
em que figura. A primeira das metamorfoses consiste em devolver a cor da
vida simples do campo e suavizar aqueles traços que a máquina mortal
encheu de sombras, o estilo da roupa imposta, as violências sofridas... Depois
de passar pelo sinistro pátio de Tuol Sleng, a câmera se fixa em uma oficina
em que o sobrevivente Vann Nath, pintor de imagens da prisão, desliza seu
pincel em dois quadros que representam o díptico de Bophana. No primeiro
deles, já concluído, está representada uma jovem de rosto bonito, lábios finos
realçados por um suave carmim, utilizando um colar; seu olhar tímido
transmite uma jovem em plena vida. Ao lado desse quadro, o artista trabalha
em outro que reelabora o mug shot produzido pelo Khmer Vermelho. Esse
díptico aparecerá concluído e exposto no museu: uma tela ligeiramente
oblíqua, em primeiro plano, uma jovem de feições meigas; a seu lado,
ameaçando-a e profetizando seu destino, uma figura obscura, sinistra
estilização do mug shot. O choque é doloroso, acusador, trágico.

O tempo evocado começa como uma fantasia do renascimento: a câmera


acompanha a jovem que anda de bicicleta ao lado de um riacho em um
campo idílico. Uma voice-over nos situa em um passado calmo que vai se
modificando com premonições e fantasmas à medida que discorre sobre a
conturbada história do país. O cenário do Camboja pós-ditatorial (Barray,
Phnom Penh), as imagens do arquivo de propaganda, uma música espectral,
as cartas da jovem, as respostas do seu amado, os relatos dos sobreviventes,
familiares, algozes etc., os lugares representam vozes do passado e passeiam
entre dois tempos; sobre eles sobrevoa a lenda atemporal, pura fantasia,
sortilégio, refúgio e alegoria do Ramáiana. É aí que Panh nos transporta para
o lugar do suplício: Tuol Sleng. Nas salas inertes desse lugar confrontam-se
recordações do artista Vann Nath e do ex-guarda e executor Him Huy.
Porém, qual o papel desempenhado pela imagem-condenação, a foto que
transformou a jovem apaixonada em uma criminosa perigosa? Como essa
imagem nômade passa da aniquilação ao sonho com a paz em uma alegoria
ao mesmo tempo sombria e sobrenatural?
À medida que a condenação de Bophana se presentifica, a contraimagem
que vimos Vann Nath pintar ganha espaço. É uma recordação que a mãe de
Ly Sitha guarda entre seus pertences e na qual o pintor se inspirou para o
quadro. A cor clara do vestido e o penteado da jovem a instalam em “outro
lugar”; além disso, há um desvio do frontal, que deixa a modelo melancólica.
Evidencia-se que existe pose, mas não agressão do olhar, nem na posição do
fotógrafo. Possivelmente foi tirada para recordar uma celebração familiar
(casamento, apresentação na sociedade...). Há algo que se opõe ao rotundo
frontal do mug shot, questionador e sem saída, estabelecido de dentro e pelo
olhar? É por meio dessa dolorosa dialética que Rithy Panh expressa
visualmente a aniquiladora engrenagem que o olhar do Khmer Vermelho
estabelecia sobre suas vítimas. Ao restituir a imagem sem contaminação ao
lado da que expressa a profanação, Panh devolve a humanidade ao ser
retirando-o da mortalha da foto. Uma estranha metáfora: o mug shot como
mortalha. Esse é o sentido assustador que os Khmer Vermelho concediam à
imagem como prenúncio da morte: a redução ao nada. Mas o ato criminoso
traz em si sua própria negação, por insignificante que pareça: esse
documento, essa mortalha, não foi destruído. Um mínimo, acabado,
profanado em relação ao corpo e ao ser, apesar de tudo, é um legado. Se Panh
conclui unindo ambos os seres além da história (Ly Sitha como monge,
Bophana como jovem meiga que desponta, possivelmente, cheia de amor),
sugere, assim, uma felicidade impossível, mas que evoca infalivelmente o
olhar Khmer Vermelho. Além disso, esse mesmo olhar deteriorado, embora
revestido de aura, não é instável; passa pelas mãos de uma testemunha
(possivelmente quem a denunciou) que relata sua caminhada até sua última
morada. Mãos de sobreviventes tocam essas imagens transformadas em
artefatos e não mais em representações ou, pelo menos, invocam suas
vivências, as recuperam no instante da própria lembrança, possibilitando que
sejam retiradas do lugar onde foram designadas como inimigas do povo. Essa
imagem de Bophana é dilacerante, pois foi extraída dos arquivos de sua
própria confissão, mas é vista a partir de qualidades moral e humana. Da
mesma forma que o pincel de Vann Nath, a câmera de Rithy Panh vê
Bophana dividida em duas imagens. Nenhuma delas pode ser ignorada. A
passagem entre uma e outra apela à ética do olhar. No fundo, tal como Nath,
Panh oferece sepultura e epitáfio.
Em suma, o relato trágico de Bophana que é apresentado pela câmera do
cineasta é como uma composição musical de variantes diante de uma imagem
e de uma contraimagem. Quando a câmera volta para as salas de Tuol Sleng e
fixa no mug shot da vítima, estamos perante o trajeto final. Responsável pelos
transportes para Choeung Ek (possivelmente seu executor), Him Huy conta
sobre a saída das celas e o transporte dos condenados para os killing fields;
diante da câmera, encena, dividido possivelmente entre o descaramento, a
negação e a semiconfissão, o método de execução que acompanhava a
verificação da identidade dos condenados (Thompson, 2012:225-240).
Bophana também padeceu. Pahan termina seu filme integrando a iconografia
dos amantes com imagens do passado: a foto de Sitha como monge, a jovem
Bophana. Recuperar essa imagem, um olhar limpo ao horizonte do qual
estará privada e com seu amado vestido com a túnica açafrão de um devoto
discípulo de Buda que depois trocou pelas roupas pretas e por uma pistola, é
salvar ambos do tempo fatídico.

Nas mãos dos algozes, nos braços da justiça


A figura de Bophana nunca abandonou o cinema, a obra, possivelmente a
vida, de Rithy Panh. Este texto não tem a intenção de catalogá-la. Em
contrapartida, existe um principal momento em que o mug shot, na condição
de objeto material imediato, é exposto em um teatro diferente daquele do
trauma e na presença de diferentes atores sociais. Ocorreu em 2009, com uma
campanha midiática sem precedentes, nas vésperas do processo de Kaing
Guek Eav, mais conhecido como Duch, chefe do centro S-21. Antes disso, é
preciso destacar que quando Rithy Panh produziu S21: the Khmer Rouge
death machine (2003), circulavam rumores do fechamento de Tuol Sleng por
abafamento ou por oportunismo político. Nesse filme ousado pela copresença
de vítimas e algozes, a figura demiúrgica de Duch estava em cada canto do
lugar e mantinha seu poder sobre as vozes das testemunhas. Uma mente
astuta, chefe do centro, excelente e implacável burocrata, Duch não estava no
filme porque a permissão para a entrevista solicitada à polícia foi negada. Ao
saber que o julgamento começaria, Panh percebeu que era o momento para
preencher essa lacuna e conhecer o responsável desse inferno de destruição,
que provavelmente escondia um último segredo. Falar com ele, escutar o que
ele tem a dizer, fazê-lo falar, filmar o encontro e seus gestos. “Je n’avais pas
prévu de faire un film sur cet homme, mais je n’aime pas son absence dans S-
21 — La machine de mort khmère rouge, qui est presque entièrement à
charge contra lui: tous l’accusent” (Panh e Bataille, 2011:18). Duch, le
maître des forges de l’enfer tem como base entrevistas realizadas nas
proximidades da prisão e da sala de processo, com meios modestos, limitadas
manobras e um risco psicológico de imprevisíveis consequências.
O grande problema “estético” e ético que S21: the Khmer... propunha em
pequena escala (enfrentar os responsáveis pelas mortes) ganhava grandes
proporções com Duch, o chefe que comandava os interrogatórios no S-21.
Dessa maneira, em um contexto histórico em que a imagem do algoz passava
à natureza comum do genocídio e de retomada dos debates sobre a
“banalidade do mal” tal como ressurgem nos genocídios recentes, como
adotar uma distância do responsável desses crimes? De que forma filmar o
algoz e como colocar em cena seu relato? Como interrogar quem foi o
mandante dos interrogatórios? (Rachlin, 2011:18-33).
Em 2001, condensando sua poética no filme, Rithy Panh expressava uma
ideia que nos pode servir de pista: “Je découvre le personnage en filmant”
(Panh, 2001:388). Esse método inclui desafios formais, psicológicos e éticos
para os quais o cineasta não poderá retroceder, mesmo que enfrente grande
resistência. A primeira asserção envolve suspender o julgamento, respeitar o
tempo da palavra do inimigo, dar opção e registrar sua proxêmica, deixar que
o corpo se expresse, tanto no âmbito direto da entrevista cara a cara quanto
em sua mediação pelo olho frio da câmera. A segunda aposta — o encontro
— tem perturbadoras reminiscências, afinal, faz convergir um algoz e uma
vítima. Nessa dialética, a câmera é a grande aliada do cineasta, mas não pode
ser utilizada impunemente, nem com absoluta liberdade. Nada nem ninguém
poderá se esquivar do choque violento, nem das estratégias de envolvimento
empregadas por aquele que foi o mestre em confrontar e permutar. O tecido
que liga e separa tudo isso permanece no filme.
Dessa condição dúbia nascem as decisões. A primeira delas é determinar
uma distância ideal (documental e humana) adotada em relação ao
personagem. Para Panh, uma distância ideal é aquela que permite representar
seu interlocutor em um cenário dramático formado por uma série de imagens,
na maior parte os mug shots em grande escala de suas vítimas. Duch pode vê-
los ou não; mas, para Rithy Panh, a equação deve ser invertida: são elas, suas
vítimas, que o observam nessa vivificação precária e, apesar de tudo,
duradoura da foto ampliada, que foi concedida e estimulada pela máquina de
repressão. O ex-chefe fica surpreso e pergunta ao cineasta por que tantas
fotos: “À quoi ça sert?”. Ao que Panh não vacila: “Mais… ils vous écoutent.
Koy Thuorn est là. Bophana est là. Taing Siv Leang aussi. Pour moi, ils vous
écoutent” (Panh e Bataille, 2011:322). Possível lampejo do budismo, já que
quem sofreu uma morte cruel visita os vivos para se reconciliar. À medida
que aumentam as perguntas, Duch é chamado para interagir com os seres
desaparecidos, para resistir ao seu olhar (mesmo que ele imponha barreiras)
ou para exibir, nas entrelinhas, seus troféus. Os documentos mais insistentes
e acusadores são o dossiê e as fotos de Bophana. Nos muitos planos do filme,
qual imagem praticamente subliminar, que escapa da percepção do
espectador e provavelmente também de Duch, a foto de Bophana está diante
dele e o observa.
7 ’

Como se Duch espectralmente incorporasse sua posição e revisitasse o


processo de tortura e destruição, a cena manifesta o tratamento de Duch com
sua vítima, depois de muito tempo, com esses meios. O ato filmado e o eco
gritam uma profanação real. O cineasta consegue concentrar assim uma
perversa inversão (ou melhor dizendo, um détournement) daquele gesto
sublime que Michelangelo deixou marcado no teto da Capela Sistina a
fragilidade do homem, cujo dedo elevava-se em direção a seu Criador, sem
alcançar o contato que o protegeria de todo o mal. Para mim, essa é a
dolorosa imagem-afeto que Panh propõe.
Ainda não é suficiente essa presença. O confronto com o personagem é
imprescindível, ainda mais porque Duch escreveu com desprezo em um
dossiê que Bophana era uma vulgar prostituta. É necessário que o algoz se
depare com a documentação da vítima que ele levou à alienação mental por
meio de sua conduta no interrogatório. Duch diz que não se lembra mais,
porém Panh desconfia dele e, em contrapartida, atesta as provas materiais nas
fotografias e nos documentos. Assim força o contato e filma as mãos de Duch
que passam pelas provas materiais dessa vida ceifada. Uma progressão vai
ocorrendo: do dossiê da vítima sobre a mesa às mãos do algoz que levantam
as fotos para comparar os semblantes dos inocentes com os forjados pela
máquina de repressão da qual ele mesmo fez parte e, por último, ocorre a
transgressão, reconhecendo sua própria anotação, data e assinatura. É como
se Rithy Panh filmasse um processo de reconhecimento (anagnórise).
O método utilizado por Rithy Panh, que segue com a colaboração,
consciente ou não, de seu interlocutor, encurta a distância entre Bophana e
Duch: em vez do plano/contraplano, forma clássica que conduz a relação
casual entre estímulo e resposta, o cineasta aprofunda na invisibilidade
material. No entanto, esses olhos que observam diretamente o dispositivo no
mug shot mudam de objeto cada vez que estão localizados em diversos
contextos e diante de pessoas diferentes: observam como vítimas os painéis
do Museu do Genocídio Tuol Sleng; se contagiam com a imagem da jovem
cheia de vida; analisam acusadores o seu algoz a partir de sua condição de
acessório na sala de entrevistas; discorrem histórias de vida, acompanham os
investigadores ou os estagiários de cinema que vão fazer um curso no Centro.
E mesmo assim permanecem em Tuol Sleng. Nessas migrações da imagem
por espaços e tempos diferentes há outras modalidades da gestão da memória:
da repressão à arte; do relato à acusação; da biografia à intelecção. Quaisquer
que sejam suas deambulações, há algo sem clemência que nunca abandonará
a foto: o olhar que a criou; que se encontra forjado a fogo no mesmo suporte,
como se o rosto da jovem, mesmo enriquecendo-se com outras imagens e
voltando ao original, fosse o reflexo, como um espelho do olhar que a fixou
no momento do início de sua via-crúcis. Assim, uma imagem de perpetrador
é uma captura, um roubo ou uma entrega forçada ou consentida. Se a
destruição total estava decidida, algo — minúsculo — falhou na empresa: a
pervivência da imagem. Dela, anônima, podem surgir outras imagens. Ela
guarda zelosamente em si, saiba ou não seu autor ou ela própria, seu
contracampo. Nele habita, todavia, e para sempre, o algoz.

O autor agradece a colaboração de Rithy Panh (Bophana Audiovisual Resource Center),


Youk Chhang (DC-Cam) e Chhay Visoth (Tuol Sleng Genocide Museum), assim como a
Helen Jarvis pelo envio dos documentos que foram utilizados neste texto. Os dados
referidos às filmagens de Duch: o mestre das forjas do inferno foram retirados de uma
longa entrevista com Rithy Panh concedida ao autor em 17 de outubro de 2014, em Phnom
Penh, Camboja. As imagens reproduzidas neste texto foram autorizadas, incluindo o
díptico de Vann Nath sobre Bophana que está sob custódia no citado centro. Tradução do
espanhol para o português de Glaiane Quinteiro.
Marianne Hirsch diferencia gaze e look. O primeiro termo se refere ao conceito ideológico
que inspira o olhar, enquanto o segundo alude ao ponto de vista físico adotado pela câmera.
Conferir Hirsch (1997). Por outro lado, na narratologia do cinema afirma-se que uma
câmera subjetiva não implica adotar um ponto de vista narrativo; muito menos os valores
de quem observa.
Não é possível saber o número exato de fotos, nem o de vítimas, estimam-se
aproximadamente de 12 a 20 mil. Algumas vítimas não eram registradas, como as crianças,
mas isso não resolve o problema da inexatidão dos números. Deve-se considerar também
que muitas vítimas desapareceram antes da sistematização de um arquivo.
Foi desenvolvido um estudo sobre a função da imagem nesses episódios em nosso recente
livro: Sánchez-Biosca (2017).
Sánchez-Biosca (2015b:103-116). Sobre o museu, ver Sánchez-Biosca ( 2015a:152-169).

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2
Cinema de arquivo, história e exposições
universais: Land of liberty (1939), de Cecil
B. DeMille

Eduardo Morettin

Quando pensamos em filmes que retomam o material de arquivo para


revisitar um determinado tema, imediatamente associamos o emprego de
fragmentos retirados de cinejornais e documentários. Percorrendo a obra
seminal de Jay Leyda, Films beget films (1964), e a lista de significant films
que se estruturam a partir da compilação dessas imagens, verificaremos que
são raros, nas primeiras décadas da história do cinema, os que recorrem aos
filmes de ficção para discorrer sobre o objeto ou elaborar seu discurso acerca
do passado.
Pretendemos examinar um desses casos, a saber, Land of liberty (1939),
de Cecil B. DeMille, realizado a pedido dos organizadores da New York
World’s Fair (1939) pela Motion Picture Producers and Distributors
Association (MPPDA), associação das grandes produtoras norte-americanas.
Sua singularidade reside, como antecipado, no emprego majoritário de
material retirado da ficção, de filmes de reconstituição histórica, somado a
atualidades de época sobre a tragédia. A junção de dois tipos de registro, um
de caráter documental, outro ficcional, diluía as fronteiras entre o que a
princípio pertencia a universos distintos, estratégia de autenticação do
discurso fílmico até então inédita.
A intenção, portanto, é examinar as estratégias discursivas empregadas
pelos filmes que recorrem ao material de arquivo a partir de duas chaves: a da
valorização de sua dimensão de documento, entendida a imagem
cinematográfica como registro de uma época e testemunho para o futuro; e a
de monumento, tratada na perspectiva tanto de valorização simbólica de
determinado evento e/ou personagem quanto da crítica ao documento, dentro
da concepção trabalhada por Jacques Le Goff (1984). Nessas vertentes, o
discurso fílmico é pautado por certa concepção de história, que sintetiza os
problemas principais de cada contexto, situando a forma como o cinema se
apropria do discurso da modernidade e, ao mesmo tempo, seu emprego como
arma de combate em um contexto político fortemente polarizado
ideologicamente, como era o caso da década de 1930. Nesse período,
consolidando-se como meio de comunicação de massa, o cinema passou a ser
utilizado cada vez mais como “vitrine” em que a nação projeta as virtudes
nacionais a serem celebradas em um cenário marcado pela corrida
imperialista.
O objetivo mais específico é se debruçar sobre as obras que expressam e
constroem as referidas estratégias discursivas, ligadas à afirmação do estatuto
documental, à valorização do monumento cinematográfico ou à releitura e à
desconstrução desse discurso, ou seja, daquilo que se afirma como imagens-
documentos ou imagens-monumentos.1 Entre outros filmes do período que
dialogam com esse quadro, temos, A queda da dinastia Romanov (1927), de
Esfir Shub, Três canções para Lênin (1934), de Dziga Vertov, Le cinéma au
service de l’histoire (1935), de Germaine Dulac, e Yellow Caesar (1941), de
Alberto Cavalcanti. A especificidade de Land of liberty (1939), de Cecil B.
DeMille, dentro de seu contexto, reside na articulação proposta com o
universo ficcional, como apontado anteriormente.
Do ponto de vista metodológico, deve-se ressaltar que os filmes possuem
um estatuto de memória, já percebido desde o surgimento do cinema no final
do século XIX, como atestam os escritos de Boleslas Matuszewski.2
Veiculando uma determinada imagem sobre um tema, interferindo na forma
pela qual ele é apropriado por diferentes segmentos sociais que, ao assistirem
a uma obra a respeito de qualquer evento histórico, por exemplo, comparam e
confrontam as informações veiculadas com aquilo que aprenderam,
estudaram ou conhecem do assunto, o cinema é lugar de memória. Por fim, é
preciso examinar os filmes a partir de recortes temáticos que não se confinem
aos limites de uma história do cinema apartada das artes e das ciências
humanas em geral, uma história restrita aos diálogos entre os filmes de um
determinado diretor, à discussão dos gêneros cinematográficos e à questão do
estilo. Um dos desafios nesta proposta é não deixar de lado a estética,
identificando nos filmes uma retórica comum, caracterizando um estilo das
imagens que se insere, de maneira nem sempre harmônica, na realidade
sócio-histórica que lhe deu origem.
Estabelecido o quadro geral, gostaríamos de apontar dois eixos a partir
dos quais o filme e sua especificidade podem ser articulados: o uso de
material de arquivo pelo cinema nos anos 1920 e 1930; o espaço das
exposições universais como lugar estratégico de afirmação de um
determinado tipo de cultura visual com o qual o cinema interage.

O uso de material de arquivo pelo cinema nos anos


1920 e 1930
Um primeiro conjunto a se destacar neste contexto se relaciona justamente
com os compilation films empenhados socialmente no embate ideológico da
época, contra o capitalismo ou os regimes totalitários. Pertencem, portanto, às
obras que adotam como perspectiva a demolição dos monumentos
cinematográficos vinculados às elites dominantes, como é o caso do já
mencionado e pioneiro A queda da dinastia Romanov (Padênie dinásti
Románovikh), de Esfir Shub. Montadora e discípula de Vertov,3 Shub
recuperou os registros de família e os de atos públicos feitos pelos
cinegrafistas reais4 para tratar dos motivos que levaram à queda do regime.
Originalmente pensados como materiais de exaltação do tzarismo, a diretora
retomou essas atualidades cinematográficas para subverter seu discurso,
obtendo efeitos diferentes daqueles que os fragmentos continham. Por
exemplo, vemos as imagens de um baile real e o letreiro, introduzido por
Shub, comenta que os convivas dançaram felizmente “até a exaustão”. A
seguir, os casais se desfazem e algumas mulheres enxugam seu rosto com os
lenços ou se abanam. O plano seguinte é o de camponeses arando o campo.
Estes levam seus braços aos rostos a fim de secarem o suor. Deduzimos, pelo
contraponto, que a “exaustão” tem um sentido muito diferente nos dois
exemplos.5
Neste campo, temos ainda os filmes ligados às lutas sociais, com destaque
para o de Albrecht Viktor Blum e Leo Lania, In the shadow of the machine
(Im Schatten der Maschine, 1928). Militantes de esquerda — Blum era
membro do Partido Comunista Austríaco —, a realização da
Volksfilmverband6 foi motivo de um grande debate quando da visita de
Vertov em 1929 à Alemanha para a exibição do seu O décimo primeiro ano
(Odinnadtsatyi, 1927) (Albera, 2010).
Há também os filmes de arquivo que se vinculam à rede de solidariedade
que se firmou nos anos 1930 ao governo republicano espanhol em guerra
civil contra os nacionalistas comandados por Franco.7 Podemos citar España
(1939), de Esfir Shub, e Madrid 36 o España leal en armas (1937), de Luis
Buñuel e Jean-Paul Le Chanois, filme de propaganda destinado a fortalecer
no exterior o apoio à causa republicana.8 Le Chanois foi responsável pela
direção. A Buñuel coube a seleção de materiais, o roteiro e a produção do
filme. O diretor de Las hurdes (1933) estava em Paris desde setembro de
1936, quando foi nomeado agregado cultural da embaixada da Espanha na
capital francesa (Martín, 1982:205). Sua função, como o próprio cineasta diz,
“era agrupar todos os filmes de propaganda republicana rodados na Espanha”
(Buñuel, 2009:226).
Cabe destacar ainda o singular trabalho de Alberto Cavalcanti, Yellow
Caesar (1941), curta-metragem que recorre aos cinejornais fascistas para
descontruir, na chave da ironia, a imagem de Mussolini e de seu regime. O
diretor brasileiro havia, como se sabe, passado antes pela França, envolvido
na realização de projetos ligados às vanguardas artísticas da época, como é o
caso da sua participação na construção dos cenários de L’inhumaine (1923),
de Marcel L’Herbier, do seu documentário Rien que les heures (1926) e dos
trabalhos em conjunto com Jean Renoir no final da década de 1920. Nos anos
1930, ingressa no General Post Office sob o comando de Grierson, realizando
documentários naquele que se convencionou chamar de British Documentary
Movement.9
O segundo conjunto de filmes, menor em comparação com o primeiro,
trata das obras que, a princípio, endossam o valor documental das imagens de
arquivo para erigir verdadeiros monumentos cinematográficos, dedicados a
celebrar determinados momentos da história e propagar e consolidar, por
meio das frequentes exibições, uma determinada leitura do tema. Nessa
perspectiva, o primeiro trabalho a ser referido é Três canções para Lênin
(1934), de Dziga Vertov, documentário realizado para celebrar os 10 anos da
morte de Lênin, dentro de um contexto marcado pelo realismo socialista
instituído como cânon artístico pelo regime totalitário de Stálin.10 A seguir,
temos Le cinéma au service de l’histoire (1935), de Germaine Dulac, diretora
que nos anos 1920 estava ligada às experimentações estéticas do cinema
francês e que passa, na década seguinte, a orientar socialmente seu trabalho
(Williams, 2003). Esse documentário, que recorre a filmes e cinejornais de
diferentes países produzidos entre 1895 a 1935, pode ser visto como um
“monumento ao cinema” que procurou, ao retratar os períodos pré-Primeira
Guerra Mundial e após, apontar os riscos que o mundo corria naquele
momento (Williams, 2014:190).
Um terceiro grupo, praticamente desconhecido e, por isso, não estudado, é
composto por filmes que constroem uma história do cinema a partir da
compilação dos filmes pregressos, conjunto ao qual o documentário de Dulac
poderia ser incluído, como sugerido anteriormente. Temos Twenty years of
Soviet cinema (1940), de Vsevolod Pudovkin e Esfir Schub, que celebra,
como o título indica, a história do cinema soviético (Leyda, 1983:359).
Outro projeto neste sentido foi Film and reality (1942), de Alberto
Cavalcanti. De acordo com Lorenzo Pellizzari, esse filme tinha como
propósito

demonstrar que a contribuição do cinema ao conhecimento da realidade não passa


apenas pelo documentário [...], mas também pelo cinema narrativo, do mais alto nível
de expressão (Eisenstein) aos mais modernos níveis de consumo (Tom Mix), na
condição de que seja “realidade” em seus aspectos e suas locações. [Pellizzari,
1995:34]11

Nosso objeto também pode ser inserido nesse grupo, pois Land of liberty
(1939), de Cecil B. DeMille, é uma verdadeira enciclopédia cinematográfica
da produção norte-americana dos anos 1930, compilação de seus momentos
mais significativos, representando verdadeiro monumento cinematográfico
erigido em prol da indústria hollywoodiana e, portanto, de sua cultura
midiática.12

História, propaganda e exposições universais


Como dissemos, Land of liberty (1939), realizado a pedido dos organizadores
da New York World’s Fair (1939) pela MPPDA, ficou sob a responsalidade
de Cecil B. DeMille, conhecido por épicos monumentais como Cleópatra
(1934), entre outras obras. Will Hays, presidente de associação das grandes
produtoras e mais conhecido por ter implantado em 1934 o código moral de
conduta a ser observado nos filmes das empresas filiadas, foi o seu
coordenador (Palmer, 1993:36-48).
Land of liberty, que foi a primeira contribuição conjunta das grandes
produtoras hollywoodianas, tinha em sua versão original 137 minutos,
compilando 125 filmes de ficção produzidos nos Estados Unidos (Levavy,
2006:440).13 Entre os filmes de ficção selecionados, há os mais variados
melodramas históricos, faroestes e biographical pictures, mais conhecidos
como biopics, tais como: Abraham Lincoln (1930), de David Griffith, Billy
the Kid (1930), de King Vidor, Cimarron (1931), de Nick Grinde, A tale of
two cities (1935), de Jack Conway, e Victoria, the Great (1937), de Helbert
Wilcox. Houve preocupação em selecionar também títulos em que o star
system estivesse presente. Por isso, há fragmentos de reconstituições
históricas em que apareciam Clark Gable, Henry Fonda e Betty Davis, para
falarmos de nomes mais conhecidos atualmente.14 Sua intenção era a de ser
“uma história geral para todos os cidadãos americanos” (Levavy, 2006:440),
contando-a da colonização a 1939. Além do material de arquivo,15 e
consoante com esse objetivo central, DeMille filma episódios que servem de
ligação entre as histórias e que permitem uma maior aproximação do
espectador à narrativa, como a imagem da família que, unida na sala de estar
em torno do rádio, ouve os episódios que nos são mostrados.16
James Shotwell, professor de história das relações internacionais da
Columbia University, foi consultor do filme. Homem muito próximo do
governo, havia integrado a comitiva americana na assinatura do Tratado de
Versalhes em 1919 e participado ativamente da criação da International
Labor Organization, ocorrida um ano após o fim da Primeira Grande Guerra.
Shotwell esteve também na Exposition Internationale des Arts et Techniques
dans la Vie Moderne (Paris, 1937), a convite da IBM, a fim de organizar
sessões de cinema com documentários que mostrassem aspectos da vida e da
indústria americana, experiência que consolidou nele a percepção do cinema
como meio ideal de divulgação das preocupações concernentes aos desafios
que os EUA tinham pela frente.
DeMille foi o responsável pelo roteiro e pela edição final de todo os
trechos reunidos. Sua intenção era, conforme conta, “humanizar e
individualizar nossa história com a intenção de evitar que se tornasse um
longo e talvez monótono filme educacional com pouco apelo de público”
(apud Levavy, 2006:445). O resultado, porém, não agradou ao historiador,
que pediu para que seu nome não constasse dos créditos finais, solicitação
que não foi atendida. As intervenções de Shotwell na preparação do roteiro
procuravam corrigir as informações e as visões sobre o evento, dentro de uma
perspectiva centrada no entendimento de que existe um saber histórico
verdadeiro, cabendo ao cinema apenas sua ilustração. Como disse o professor
em 1939: “se a intenção é que seja História, precisa ser História, e isso é um
assunto sério” (apud Palmer, 1993:42). Apesar das controvérsias, restritas aos
bastidores da produção, o nome de Shotwell foi bastante utilizado no material
de divulgação do filme, a fim de conferir à obra credibilidade.17 DeMille, por
sua vez, seguindo a tradição do melodrama histórico, gênero ao qual estava
vinculado, queria transformar a história em romance, preocupado em atingir o
maior público possível.
De certa maneira, o filme de DeMille atende a um reclamo do historiador
Howard Mumford Jones, feito em 1938 na revista The Atlantic Monthly. Em
artigo intitulado “Patriotism — but how?”, Jones nota que os fascismos
europeus manipulavam mitos patrióticos com fins propagandísticos.18 Por
isso, clama por trabalhos históricos que foquem “elementos positivos” do
passado, devendo se voltar para episódios glamorosos e emocionantes a fim
de neles enxergar os valores democráticos americanos. Um dos temas que
sugere é o da fronteira, mito caro à história e ao cinema norte-americanos.
A fronteira se configura como espaço situado entre a chamada civilização
e a natureza, parte fundamental dentro do imaginário norte-americano tal
como formulado por Frederick Jackson Turner em 1893 na consagrada teoria
da fronteira, vital para a explicação do desenvolvimento histórico e futuro
dos EUA. Para ele, a existência de terras livres a oeste das áreas colonizadas
inicialmente pelos americanos representava um convite para a manifestação
do espírito conquistador dos primeiros povoadores, fazendo com que aquelas
áreas fossem sendo incorporadas à medida que os “desbravadores” a
tomassem (Stowell, 1986:15 e ss.).
Como sabemos, no campo cinematográfico, o tema da fronteira retorna
com grande vigor com o lançamento do western Stagecoach (No tempo das
diligências, 1939), e do filme histórico Young Mr. Lincoln (A mocidade de
Lincoln, 1939), ambos de John Ford.19 Land of liberty, contemporâneo às
obras de Ford, se estrutura em torno dessa noção e dialoga com a mitologia
mobilizada por esses filmes.
A conquista do Oeste perpassa diferentes momentos de Land of liberty,
seja pela retomada de Drums along the Mohawk (Ao rufar dos tambores,
1939), de John Ford, justamente na cena em que a personagem interpretada
por Claudette Colbert atira em índios que invadem uma fortaleza perdida em
meio ao wilderness, seja pelo trabalho de união e dos esforços para acabar
com a divisão no país empreendidos por Abraham Lincoln, em filme
homônimo de David Griffith, de 1930.
O filme de DeMille,20 que se autodefine como “trabalho histórico
compósito”, é dividido em quatro partes, seccionadas em ordem cronológica:
do período colonial até 1805; de 1805 a 1860; de 1860 a 1890; de 1890 a
1938. Depois de um letreiro sobre o sentido da história dos Estados Unidos,
“uma saga de luta e de realização por milhões de homens e mulheres que
trabalharam corajosamente para construir um lar para a Liberdade [...] um
Baluarte da Democracia [...] para usufruir de uma herança sem preço [...]
LIBERDADE!”, as primeiras imagens nos mostram a natureza,21 um espaço a
ser conquistado, como ressalta a locução, pelos “homens brancos” que
imigraram em busca de esperança e paz. Chegamos ao momento da
proclamação do “documento imortal”, a constituição dos Estados Unidos,
acompanhada das imagens de Alexander Hamilton, retiradas do filme de John
Adolfi de 1931. A estratégia aqui e em outros momentos de Land of liberty é
a de deixar uma ou duas sequências da obra original, como se a continuidade
interna da “imagem de arquivo” pudesse ser mantida e reorganizada na
história a ser contada. Não há, portanto, intervenções de grande monta nesse
ponto de partida, a não ser pela seleção das imagens que melhor “ilustram” a
história e seus “fatos históricos”.22
Tendo em vista a estratégia de diluição das fronteiras, vemos, na quarta
parte do filme, o que corresponderia à história da presença norte-americana
na América Latina. De imagens retiradas de atualidades cinematográficas,
provavelmente dos anos 1910, vemos William Jennings Bryan, secretário de
Estado entre 1913 e 1915, e a referência, pela voz over do locutor, à sua
participação na campanha presidencial de 1896. Na sequência, um filme de
ficção reencena a decisão de participar da guerra contra a Espanha pelo
domínio de Cuba (1898). Depois, um longo segmento que trata do
enfrentamento de um inimigo mais poderoso que as armas, como nos diz a
locução: o mosquito transmissor da febre amarela. Esse é o momento para o
emprego de inúmeras cenas do filme Yellow jack (1938), de George Seitz,
que aborda, como o título indica, o combate à doença. Depois,
acompanhamos outro filme de ficção que reencena passagens da vida de
Theodore Roosevelt. A partir de então, a narrativa não se apropria mais de
sequências de filmes históricos. Alguns planos são retirados desses materiais
apenas para ilustrar o discurso que dominará sua última parte: as iniciativas
tomadas pelo Estado a fim de aprimorar, nos mais diversos campos, a vida
dos cidadãos americanos.23 Aqui é recorrente o emprego de cinejornais e
documentários, pois se trata de mostrar as realizações, de “atestar” o que foi
feito. Ao final, Land of liberty se configura como um cinejornal expandido
em duração, com discursos e mais discursos de autoridades, findando com o
do então presidente Franklin Delano Roosevelt e as imagens do conjunto
estatuário do Mount Rushmore e sua galeria dos founding fathers, da
natureza e da estátua de Liberdade.
Land of liberty foi um tremendo sucesso, tendo sido exibido pela primeira
vez no pavilhão do governo federal, o United States Federal Building, na
exposição de 1939, divulgada e conhecida como The World of Tomorrow.
Como todas as exposições universais, dedicadas a celebrar o progresso
capitalista e a tradição pregressa, o pavilhão em que o filme foi exibido
enfatizava as conquistas históricas desde a fundação da cidade de Nova York.
24 Os visitantes entravam e percorriam, antes de chegarem ao cinema,

corredores e estandes com painéis e murais ilustrativos da história americana.


Espaço propício, portanto, para celebrar o cinema, meio de comunicação de
massas da modernidade, como lugar de atualização de uma história visual
que teria em Land of liberty seu ponto de chegada (Levavy, 2006).
Sempre com muito público, foi projetado também na Golden Gate
International Exposition (San Francisco 1939-40), a “última no estilo antigo
das Exposições Universais” (Larson, 1990:301). Sua estreia comercial
ocorreu na capital norte-americana, Washington, em janeiro de 1941. A
versão lançada foi reduzida em mais de meia hora, chegando a 98 minutos.
Na redução, o discurso fílmico valorizou aspectos do embate norte-americano
em sua afirmação territorial e constituição da nacionalidade, direcionamento
devido à guerra, que então parecia iminente. Como bem disse DeMille em
suas memórias, a exibição em circuito comercial alguns meses antes do
ataque de Pearl Harbour cumpriu sua função ideológica: “talvez alguns
daqueles que o assistiram tiveram uma ideia melhor do que eles foram
chamados a defender quando as bombas caíram em solo americano em 7 de
dezembro de 1941” (apud Palmer, 1993:46).25 Entre sua sessão inaugural na
New York World’s Fair (1939) e 1942, estimou-se a audiência em 20 milhões
de espectadores (Palmer, 1993:37). Foi percebido à época como um épico
histórico26 e, curiosamente, visto como um documentário de reencenação. O
dado curioso diz respeito ao entendimento da obra em uma chave há bastante
tempo em desuso, a das chamadas “atualidades reconstituídas”, verdadeiro
gênero dos primeiros anos do cinema até 1908 (Gaudreault, 2005:547-548;
Kessler, 2005:6). Sua intenção era a de recriar os eventos que não tinham
sido filmados ou por serem difíceis de serem captados pela câmera, como o
naufrágio de um navio, ou por não existir nenhuma imagem, como a
coroação de um rei. O problema, tanto para os chamados fatos históricos
quanto para os acontecimentos contemporâneos, era resolvido pela
“reconstituição, reprodução e reencenação” (Gaudreault, 2005:547). O que
está embutido nessa recuperação indica que a presença dos filmes ficcionais
em Land of liberty não necessariamente foi entendida como uma estratégia de
falseamento da história. Pelo contrário, foi recebida como obra de divulgação
histórica.
O uso do cinema para fins educativos, no campo da história, passava à
época pela discussão do estatuto de verdade que estas imagens e sons
carregariam, e a obra pregressa de Cecil B. DeMille era uma referência
incontornável. Roberto Assunção Araújo, que em 1939 escreve no Brasil um
opúsculo dedicado ao tema, critica duramente o trabalho do diretor norte-
americano, particularmente Os dez mandamentos (1923), o já mencionado
Cleópatra (1934) — esta “a pior produção do gênero sobre qualquer aspecto”
—, e Cruzadas (1935), que teriam como característica comum “a
reconstituição suntuosa e prejudicial” (Araújo, 1939:34-35).
Não há notícias da exibição de Land of liberty no Brasil ou em outros
países. Cabe ressaltar, porém, que no mesmo ano de seu lançamento uma
versão de 80 minutos foi editada com o intuito de circular nas escolas e nos
espaços afins.27 A obra atendia, assim, a uma das preocupações do governo
de Franklin Roosevelt, como expresso em 1938 pela primeira dama, Eleonor
Roosevelt, para quem o cinema tinha o potencial de “contribuir fortemente
para a construção do caráter e da educação do indivíduo” (apud Levary,
2006:443).
A carreira do filme parece ter se circunscrevido ao campo, não menos
importante, da formação “cívica”. Em um pequeno prospecto de 1950, de
autoria de Seerley Reid e intitulado One hundred two motion pictures on
democracy, 16mm sound films selected and recommended by an Office of
education advisory committee, encontramos, entre outros filmes, Land of
liberty. Reid é assistant chief visual aids to education, sendo o Office of
Education ligado à Federal Security Agency. O objetivo da brochura é
“oferecer aos professores, diretores e líderes de organizações comunitárias
material visual para o ensino da democracia”, promovendo na juventude
norte-americana, pelo contato com os filmes, um “melhor entendimento e
maior Fé na democracia Americana” (Reid, 1950:IV). O processo de seleção
dos títulos foi longo e criterioso,28 mantendo-se apenas “aqueles filmes que
realmente lidavam diretamente com os princípios e os processos da
democracia” (Reid, 1950:VII). Entre os temas, “nossa herança democrática”,
“o sentido da democracia” e “o processo democrático”. Land of liberty foi
vinculado ao primeiro tema (Reid, 1950:2-3), e também incluído na categoria
“filmes para ocasiões patrióticas” (Reid, 1950:42), criada pelo interesse da
comissão organizadora de recomendar seu uso para encontros mais amplos
(Reid, 1950:VIII).
De todo modo, a circulação nas salas de cinema nos Estados Unidos e seu
emprego para fins educativos e de formação cívica indicam que o filme
ultrapassou os limites das duas exposições universais, dado que revela sua
força e a capacidade de se comunicar de forma mais efetiva com amplos
segmentos da população. Ao mesmo tempo, indicam o sucesso da iniciativa
abraçada pelo próprio DeMille, que, em 1938, declarava entusiasmado seu
objetivo de, com o projeto, “ensinar história por meio do cinema” (apud
Levavy, 2006:442).
Nesta iniciativa temos, portanto, conjugados o cinema de arquivo, o filme
de representação histórica, documentário e ao mesmo tempo ficção, e o
grande espetáculo. Land of liberty, autêntica enciclopédia cinematográfica da
produção histórica norte-americana das primeiras décadas do século XX,
representa verdadeiro monumento cinematográfico erigido em prol da
indústria hollywoodiana e, portanto, de sua cultura midiática. Em um
contexto marcado pelo empenho na realização de filmes que pudessem
contribuir para a divulgação dos valores nacionais, o filme de DeMille
demonstra naqueles anos a força e a dimensão atingidas pelo meio de
comunicação que se tornou efetivamente de massa, momento em que se
antecipam pelo cinema as lutas que ocorreriam em breve.

Esses conceitos foram analisados em Morettin (2015a).


Fotógrafo e cinegrafista de origem polonesa, residente em Paris no final do século XIX,
captou em diversas atualidades cinematográficas eventos na corte russa do tzar Nicolau II
entre os anos de 1896 e 1897. Em março do ano seguinte, publicou em francês o opúsculo
intitulado Uma nova fonte para a história (Matuszewski, 2006). Sobre o assunto, ver
Morettin (2015a).
Além de ter montado 10 filmes russos nos anos 1920, Shub editou cerca de 200 filmes
estrangeiros adaptados para o mercado soviético no período (Leyda, 1983:224).
Para uma história desta produção cinematográfica ligada ao tzarismo, ver Belyakov (1995).
Essa discussão foi ampliada em Morettin (2015a:95-101).
Fundada em 1928 por sociais-democratas e comunistas alemães, a Volksfilmverband
procurou criar um espaço para filmes não comerciais e engajados politicamente (Murray,
1990:139 e ss.).
Cabe destacar aqui o divisor de águas representado por Triunfo da vontade (1934), de Leni
Riefenstahl, que colocou o cinema e os seus vínculos com a propaganda e a política na
ordem do dia. Christian Delage (2006:45-52) relata as tentativas empreendidas pela equipe
técnica da Film Library do MoMA entre 1938 e 1942 de remontagem do filme de
Riefenstahl e de documentários de propaganda nazista para editar uma versão única com o
objetivo de demonstrar ao público americano as estratégias discursivas de convencimento
empregadas pelos nazistas em seu cinema. A iniciativa indica o impacto que Triunfo
provocou em solo americano, dado que devemos reter, tendo em vista nosso objeto de
estudo.
The Spanish earth (1937), de Joris Ivens, também é um dos documentários de época que
recorrem a material de arquivo, apesar de não ser propriamente um compilation film.
Sobre a trajetória de Cavalcanti, ver Pellizzari e Valentinetti (1995).
Como Leyda diz, este documentário “is not a compilation film, and it employs only one
section of archive footage, but this section is to powerful that it merits study” (Leyda,
1971:42). Sobre Vertov e sua produção artística, consultar o excelente trabalho de Labaki
(2016).
Pellizari informa que a escolha feita por Cavalcanti dos documentários integrantes dessa
história não teria agradado seus colegas (Pellizari, 1995:34). Benedito Junqueira Duarte, no
prefácio que faz de Filme e realidade, observa que o livro é “uma edição escrita e ampliada
daquilo que ele também já demonstrara em imagens, uma antologia interessantíssima
constante de seu currículo artístico e da cineteca britânica, Film and Reality” (Duarte,
1952:12).
Analisei esse filme dentro do contexto da New York World’s Fair (1939) (Morettin,
2011:243-245).
Trata-se de filme raro, sem registro em acervos filmográficos e videográficos brasileiros.
O material distribuído aos jornais de época valorizava a presença de inúmeras estrelas,
como podemos ver em: <www.imdb.com/title/tt0033809/mediaviewer/rm3819831552>.
Acesso em: 22 abr. 2017.
Dados disponíveis em: <www.imdb.com/title/tt0033809/fullcredits#cast>. Acesso em: 21
abr. 2017. De acordo com Sara Levavy, o material de arquivo mais antigo reapropriado
pelo filme mostra, em 1908, a escavação do canal do Panamá, sendo o mais recente uma
filmagem de maio de 1939, feita algumas semanas antes de Land of liberty ser finalizado.
O filme de ficção mais antigo visto no filme foi America (1924), de David W. Griffith
(Levavy, 2006:448).
Para além dessa estratégia, essa imagem se referia a uma das atividades midiáticas do
diretor. DeMille apresentou e dirigiu, de 1o de junho de 1936 a 22 de janeiro de 1945, um
programa radiofônico semanal, o Lux Radio Theater, baseado em enredos de filmes
recentemente lançados (Higashi, 1985:145).
Em sua autobiografia, DeMille acrescenta que suas diferenças com Shotwell eram políticas
também. Segundo ele, o historiador era “mais New-Dealista que eu, e queria terminar o
filme com uma fala de Franklin D. Roosevelt. Eu queria uma do Secretário de Estado,
Charles Evans Hughes. Nós usamos ambos”. Na versão do filme analisada neste texto,
restou apenas o discurso de Roosevelt (Hayne, 1959:368).
É de Richard Slotkin (1993:279 e ss.) que retiramos essa referência e discussão.
Para uma abordagem de Young Mr. Lincoln a partir do mito da fronteira e de sua relação
com o momento histórico em que foi feito, ver Morettin (2015b).
Tivemos acesso à versão de 80 minutos, lançada em DVD pela International Historic Films,
Inc. A data de lançamento, 1985, indica, provavelmente, o ano de comercialização do filme
em VHS pela mesma empresa.
Aqui as imagens, em sua origem, são indefinidas, ou seja, foram retiradas ou de um
documentário ou de um filme de ficção. Esse ponto de origem, ambíguo, tende a diminuir
as fronteiras entre os dois campos, o do pretendido realismo e o da representação, estratégia
que é fundamental no filme para conferir à história idealizada estatuto de verdade.
E aqui o Land of liberty retoma uma tradição da pintura de história do século XIX muito
presente em filmes de sua época. Para citarmos um exemplo brasileiro, temos
Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, que reencena, entre inúmeros
quadros, A primeira missa no Brasil (1865), de Victor Meirelles, em uma estratégia de
visualizar o passado por meio das imagens muito caras a essa tradição (sobre o assunto, ver
Morettin, 2012).
Por exemplo, o locutor reafirma a liberdade de pensamento. Para ilustrá-la, temos uma
imagem de comício em que percebemos a presença, em sua maioria, de operários. O plano
seguinte pertence a um filme de ficção, dada a posição de câmera, o tratamento fotográfico,
a encenação etc. Porém, os dois são usados como ilustração, tomados como exemplo
daquilo que foi dito pela voz over.
Apesar do sucesso de Land of liberty, o documentário mais identificado à exposição de
1939 foi The city (1939), de Ralph Steiner e Williard van Dyke, que contou com a
colaboração do historiador da cultura e das cidades, Lewis Mumford, e trilha sonora a
cargo de Aaron Copland.
Se o ataque a Pearl Harbour conferiu, a posteriori, o sentido pretendido, à época de seu
lançamento, senadores, como Gerald Nye, de Dakota do Norte, criticaram o filme por ser
uma “propaganda de guerra”, o que poderia levar “a nação à sua destruição” (apud Levavy,
2006:453). Phil Wagner (2011) também se ocupou da recepção ao filme.
Devemos lembrar que o filme é contemporâneo de Gone with the wind (...E o vento levou,
1939), de Victor Fleming, outro monumento cinematográfico dedicado à celebração da
história norte-americana.
Há notícia de outra versão, preparada em 1959 pelo assistente de DeMille, Henry
Noerdclinger, que acrescenta 22 minutos ao filme. De acordo com Phil Wagner, antes da
estreia comercial, houve exibições gratuitas a escolares e organizações não patrióticas
(Wagner, 2011:15).
O trabalho foi iniciado em 1948. O Office of Education solicitou o conselho e o apoio de
especialistas no campo da educação visual a fim de avaliar, após a definição do escopo
(materiais e temas), dos critérios e de uma filmografia preliminar, 371 títulos (alguns foram
retirados, outros foram sugeridos, outros foram submetidos a maior avaliação). Ao final,
102 foram aceitos, 117, recusados (Reid, 1950:V-VI).

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3
O desvio das imagens: documentário e
montagem de arquivos no cinema de
Gianikian e Lucchi

Luís Felipe Flores

Um plano escuro deixa entrever, ao fundo, uma faixa de luz que contorna o
umbral de um túnel. A câmera se move com lentidão rumo à claridade que
cresce na trajetória curva. Logo identificamos os trilhos no chão e
compreendemos que a câmera se encontra na dianteira de uma locomotiva
que atravessa paisagens alpinas. Durante 10 minutos, vemos uma longa
viagem ferroviária composta por imagens de trens em movimento, em
ambientes variados, marcados pela ausência de figuras humanas (estas
chegam mais tarde, com a violência da caça ao urso). A montagem sugere
uma sucessão espaçotemporal entre os trechos, de uma mesma viagem
possível por território imaginário, não obstante as mudanças de cor e
gradação dos fotogramas.
A descrição é da sequência inicial de Do polo ao Equador (1987), obra
dos cineastas italianos Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi. O filme é
um ponto fulcral para o amadurecimento da dupla no trabalho com imagens
de arquivo, cuja origem remonta pelo menos a 1981, com a realização de
Karagoez catalogo 9,5. O deslocamento do trem, da escuridão à claridade,
constitui um plano emblemático para se pensar a atitude dos artistas, que
operariam no olhar um movimento semelhante, entre a obscuridade e a
luminescência. Uma pedagogia do olhar, capaz de lançar luzes sobre aspectos
da história por meio da elaboração de visibilidades outras e da reconstrução
fílmica de documentos imagéticos específicos.
Do polo ao equador deriva do material homônimo filmado por Luca
Comerio (1878-1940) no final dos anos 1920, sendo marcado, de saída, por
forte caráter metarreflexivo. Comerio foi “um artista futurista, próximo de
D’Annunzio, mas também o cineasta do rei da Itália. Ele fabricava
atualidades para o rei e desejava muito cair na graça do regime fascista”
(Gianikian e Lucchi, 2015:18). Desde o fim do século XIX, esse cinegrafista
percorreu e filmou lugares exóticos com sua câmera Lumière, dos Alpes ao
Polo Sul, passando pela África e pela Índia. Mais tarde, continuou sua obra
publicitária com o registro de acontecimentos ligados a ideologias
progressistas e/ou militares, como a Primeira Guerra Mundial e as invasões
colonizadoras.
O filme de Gianikian e Lucchi realiza uma deambulação visual pela
violência do mundo inscrita nesses documentos (e territórios) imagéticos.
Contudo, a natureza dos materiais convocados implica uma dupla questão.
Por um lado, o estado precário dos arquivos, deteriorados ou fadados ao
desaparecimento, demanda uma estratégia meticulosa de recuperação. Por
outro lado, a carga ideológica das imagens, marcadas pelo ponto de vista
fascista, não permite que sejam restauradas e exibidas simplesmente. Uma
reelaboração crítica se faz necessária, a fim de oferecer novas possibilidades
de visão para os sujeitos e as situações registradas.
Existe um pressuposto ético na reapropriação estética de semelhantes
imagens. “Não podemos dar a ver esses filmes sem precaução, pois ou eles
não seriam vistos [...] ou seriam mal compreendidos, e nós poderíamos ser
tomados como nostálgicos do fascismo e das colônias”, explicam os cineastas
(Gianikian e Lucchi, 2015:18). Cabe a eles, portanto, desconstruir os
discursos da dominação e da injustiça incutidos nos olhares agenciados pelo
regime de Mussolini. Os arquivos devem ser desviados do propósito original,
propagandístico, para possibilitar uma espécie de sobrevida ou segunda vida
aos corpos e destinos filmados.

Entre o desfazer e o reconstruir


A operação de resgate dos filmes de Comerio — os quais “não podiam sequer
ser reproduzidos em laboratórios, porque estes recusavam a aceitar materiais
inflamáveis, suscetíveis de pegar fogo ou explodir” (Gianikian e Lucchi,
2015:54) — é inseparável, assim, da desconstrução de posições e discursos
neles implicados. Tal situação, que se repetirá em diferentes medidas nas
obras posteriores de Gianikian e Lucchi, resulta na decisão de jamais projetar
esses filmes originários diretamente, mas sim realizar, a partir deles,
encadeamentos outros, marcados pela lacuna, pela diferença e pelo atraso. A
ideia geral é “filmar outra vez, remover os intertítulos ou comentários para
reencontrar a objetividade da imagem, e trabalhar com outra cadência, mais
analítica” (Gianikian e Lucchi, 2015:18).
Essa atitude de elaboração, esse método, começa antecipadamente, na
manipulação física do material, por meio de um sofisticado maquinário
cinematográfico inventado pelos artistas, a chamada câmera analítica. Ela
consiste em “um aparelho que avança um fotograma após o outro” (Gianikian
e Lucchi, 2015:54), por meio da articulação de dois componentes:

No primeiro, o original em 35mm avança verticalmente. Ele pode conter a perfuração


Lumière e as películas, com diferentes graus de enrugamento e deterioração do suporte
e da emulsão, até a perda do espaçamento do fotograma e seu total apagamento. O
avanço é feito manualmente, com uma manivela, por causa das condições precárias das
perfurações e do risco permanente do material inflamável. A garra é composta por dois
dentes móveis, em vez de quatro. As lâmpadas utilizadas são lâmpadas fotográficas
com temperaturas que podem ser alteradas com um reostato. Essa primeira parte da
câmera deve sua existência a uma impressora de contato modificada. O segundo
elemento é uma câmera de fotografia aérea sobre um eixo, no qual o primeiro elemento
absorve a imagem por transparência. É uma câmera com recursos microscópicos, mais
fotográficos do que cinematográficos, e remete mais às experiências de Muybridge e
Marey do que às dos irmãos Lumière. A câmera, equipada com mecanismos para o
avanço lateral, longitudinal e angular do material, em todas as direções, pode respeitar
inteiramente o fotograma, sua estrutura original e sua velocidade de aparição no
sentido fisiológico. Ou ela penetra com profundidade no fotograma, para observar os
detalhes, as zonas marginais da imagem, nas partes fora de controle do quadro. A
câmera é capaz de respeitar a cor da tomada original ou da coloração manual do
fotograma, mas pode, também, de maneira autônoma, pintar vastas regiões da película.
A velocidade de avanço é função da velocidade original, que difere em cada parte de
acordo com aquilo que queremos sublinhar. [Gianikian e Lucchi, 2015:91]

A reconstrução desses materiais em vias de destruição desdobra-se, por


meio do dispositivo da câmera analítica, em outros sentidos e possibilidades
de recepção. Tomemos, como baliza, uma imagem de Do polo ao Equador na
qual o problema da decomposição física da película aparece de maneira
direta. Próximo ao fim do filme, vemos trechos com soldados em trajetórias
ascendentes nas paisagens montanhosas. Um deles, em particular, mostra a
lateral esquerda da imagem coberta por uma ranhura vertical decorrente do
desgaste material. Ela esconde, em sua brancura, homens que sobem. Estes
quase desaparecem na ranhura, são vistos, com dificuldade, graças à
desaceleração da montagem. Do lado direito, as rochas permanecem nítidas,
algo significativo em um filme sobre a violência do homem contra si mesmo
e contra a natureza. A fragilidade do corpo fílmico, matéria desbotada, abre
no pensamento visual a possibilidade de renovação.
Esse jogo com a deterioração aparece em outros contextos, como em
Tudo é paz nas alturas (1999), filme baseado em materiais do front italiano e
do front austríaco no confronto entre os dois países na Primeira Guerra.
Trata-se da segunda parte de uma trilogia sobre a Primeira Guerra, composta,
de resto, por Prisioneiros de guerra (1996) e Oh, homem! (2004). A certa
altura, quando o exército italiano avança sobre o monte Adamello, um
fragmento é mostrado repetidamente em três diferentes enquadramentos da
câmera analítica. Um grupo de soldados, dos quais vemos ora os pés, ora os
troncos, ora os rostos, mas que nunca distinguimos o suficiente. Algo que se
agrava devido à emulsão do nitrato: mal reconhecemos um sujeito de bigode
que mira a câmera, uma borra negra invade o centro do quadro e obstrui a
individualização dos rostos dos soldados. Notas cantadas do diário de Robert
Musil se acrescentam à composição da cena. Reforça-se, ao lado do
apagamento material dos corpos, a noção de que a guerra extingue as
existências dos homens.
Esse tênue limiar do desfazer e do reconstruir reflete a tendência do casal
de lidar com materiais raros, precários, usualmente arquivos orientados, na
origem, por discursos da violência, a fim de recompô-los em outras imagens
possíveis, marcadas pela renovação visual e pela abertura semântica. Um
processo que acontece, no mais das vezes, de maneira sutil, sendo
caracterizado pelas ordenações particulares do material de montagem e pelas
intervenções penetrantes nos atributos do visível, como a velocidade, a cor e
o enquadramento.

Coleções de gestos e de figuras


Tudo é paz nas alturas toma como parti pris a busca da singularidade em
meio ao discurso de homogeneização e destruição da guerra, esse que
despersonifica os sujeitos filmados ao transformá-los em integrantes
indistintos da massa militar ou em alvos esquemáticos do sistema de
extermínio. Observemos a variedade de imagens de soldados que caminham
por paisagens inóspitas, nas quais a precariedade dos arquivos, os
enquadramentos, as neblinas e a coreografia militar reforçam muitas vezes o
apagamento sensível dos indivíduos. É o caso dos planos que mostram
homens como borrões pretos no cenário nevado, ou do batalhão vestido em
trajes polares.
A primeira coisa que os documentaristas italianos fazem é reunir gestos e
figuras particulares em meio aos arquivos militares, a fim de compor uma
espécie de coleção contranormativa. Esta reúne elementos sensíveis que
quebram a suposta uniformidade militar, gestos menores, figuras peculiares
como o soldado que gentilmente cede a mão para seu consorte, em trecho
perigoso da trilha, o homem que caminha com passos bêbados, os rostos que
olham para a câmera, os sorrisos abertos dos indivíduos. Tudo o que poderia
vibrar, na esfera imaginária, como um contraponto possível ao ímpeto
homogeneizante do discurso do poder. Não se trata de celebrar tais detalhes
como fetiches, mas sim de valorizar aparições singulares a fim de
desconstruir a visão massificadora da ideologia militar.
Algo dessa lógica contrapropagandista já estava presente no filme anterior
da trilogia, Prisioneiros de guerra, formado por imagens de arquivo dos
campos de prisioneiros da Primeira Guerra, em Londres, Milão, Moscou,
Viena e Budapeste. A maioria dos materiais é proveniente de filmes
publicitários dos próprios exércitos conquistadores, como os impérios
Alemão, Russo e Austro-Húngaro. Na retomada, selecionam-se trechos que
melhor evidenciam a desumanização da guerra: olhares vazios dos soldados
capturados, oficinas de trabalho forçados, crianças órfãs, cativos exibidos
como troféus, corpos caídos, descartados, lançados como pedras.
Sem perder de vista o desejo de “tornar visível aquilo que se passa, de
mostrar a guerra em todo o seu horror”, a atenção dos cineastas se volta
constantemente para os gestos dos prisioneiros, os detalhes de suas figuras
que tentam, de alguma maneira, utilizar os próprios documentários do
inimigo para se colocarem em evidência na imagem (embora essas filmagens
jamais tenham sido liberadas). É interessante reter essa tentativa de
elaboração pautada por uma dupla exigência: a denúncia da violência e a
reapresentação dos vencidos.
Em termos mais objetivos, podemos definir as coleções figurativas como
um método que permite a composição de blocos propícios a certa
organização narrativa, desprovida de ênfase, bem como o reforço dos desvios
pela reiteração de elementos visuais. Trata-se de organizar um “arranjo de
imagens por vias de comparação”, como nos 347 mil fotogramas em torno do
“tema lendário da viagem” que constituem Do polo ao Equador. Nele, alguns
elementos se repetem por espaços geográficos distintos, certas paisagens,
animais, objetos, danças, rituais, retratos, multidões, desfiles, vestuários. Ao
mesmo tempo, os contrastes imagéticos fornecem pistas para se compreender
as relações históricas: “os únicos que estão vestidos são os conquistadores, os
caçadores, os padres, os soldados, Mussolini” (Gianikian e Lucchi, 2015:85-
86). A repetição e a diferença participam de uma renovação do olhar na qual
advém a “deflagração da violência pela catalogação dos materiais”
(Gianikian e Lucchi, 2015:86).
Mas é no filme Oh, homem! (2004) que essa catalogação adquire sua
formulação mais radical, sendo a obra dividida em blocos organizados a
partir de motivos figurativos centrais (Aumont, 1996). Após uma sequência
introdutória, com registros da guerra e da ascensão do fascismo, vemos
imagens de crianças afetadas pelas atrocidades da guerra. Primeiro, sob o
título “Os corpos das crianças: 1919, Áustria”, estão imagens dos infantes
acolhidos nas casas de abrigo oficiais, devido à sua condição de órfãos ou
mutilados. Depois, introduzidas pela cartela “Os corpos das crianças: 1921,
Rússia”, estão cenas de crianças em condições miseráveis, na contramão de
qualquer ilusão de cuidado presente na falsa propaganda militar. Um plano
revela o que ninguém quer olhar, as cruzes de madeira ao fundo, os
incontáveis corpos de crianças empilhados na frente do quadro. A guerra é a
destruição da vida, e os cineastas mostram de perto suas marcas ao
reenquadrar os corpos das crianças mortas. A sequência apresenta outros
registros abissais: um bebê ao lado da mãe morta, um animal definhado,
crianças que colhem migalhas na terra, os rostos marcados de dor e de
aflição, os corpos descarnados, solidários entre si.
A etapa final reúne os corpos dos soldados, sempre agrupados em torno
do tipo de membro mutilado. Há séries compostas pelas deformações dos
olhos, dos rostos, dos braços, das mãos, das pernas. Os indivíduos estão
constantemente submetidos a operações médicas ou intervenções de próteses
mecânicas. Cabe constatar, sobretudo, o valor simbólico que alguns desses
materiais adquirem na dinâmica interna do filme, a ponto de engendrar
figuras que se relacionam com a violência da guerra e com a conexão entre
homem e máquina.
Os cineastas querem evitar a vitimização dos sujeitos filmados, motivo
pelo qual se aproximam dos seus corpos com operações de reenquadramento
ou desaceleração. Trata-se, por um lado, de expor criticamente as
consequências nefastas da violência do homem contra o homem, as quais
prefiguram, de vários modos, tragédias históricas do passado e do presente;
por outro lado, de conferir uma nova existência possível às crianças e aos
homens que tiveram suas vidas violadas, permitir que a imagem mostre, por
trás dos olhares vazios, algum lampejo possível de resistência contra a morte.
Novamente, falamos de uma estratégia de desvio, pois essas imagens foram
produzidas no contexto da propaganda estatal-militar e da publicação
científica para mostrar aos soldados como eles ou suas crianças seriam bem
tratados em caso de fatalidades.

Intervenções no visível
O processo de composição das coleções acontece, inevitavelmente, na
ferramenta de manipulação das imagens conhecida como câmera analítica.
Dado que os materiais de base se encontram, frequentemente, impróprios
para o manuseio convencional, os cineastas só podem visualizá-los e
selecioná-los com essa máquina de edição pessoal, capaz de amplificar as
possibilidades de apreensão dos elementos menores devido ao ritmo manual
de um fotograma por vez. Eles dizem:

Era preciso analisar fotograma a fotograma para expor aquilo que estava oculto, para
descobrir a ideologia fundamental. É somente com o desenrolar fotograma a fotograma
do material que se pode intervir em uma imagem e encontrar, nela, detalhes
importantes. [Gianikian e Lucchi, 2015:15]

Tal processo possui, ainda, um complemento fundamental que permite ao


espectador visualizar os detalhes e desvios organizados pelos artistas, a saber,
os procedimentos de intervenção nos atributos do visível que compõem a
imagem, como a velocidade de sucessão, as proporções do enquadramento, as
cores do fotograma. A trilha sonora pode ser considerada um quarto
elemento, pois modifica a recepção do visível. Para fins analíticos, esses
parâmetros serão analisados, sempre que possível, em contiguidade, pois
parecem trabalhar de maneira interligada para causar deslocamentos nos
materiais e provocar renovações no olhar. Nem sempre, porém, eles
aparecem de maneira conjunta em um mesmo fragmento fílmico, e por isso
podem ser tomados isoladamente em determinados casos.
Um primeiro exemplo pode ser encontrado no filme Do polo ao Equador,
quando, em meio ao percurso imagético por territórios exóticos, uma freira
italiana ensina o sinal da cruz para um grupo de meninos negros da Etiópia.
Posicionadas de pé, em linhas horizontais correspondentes aos bancos
eclesiásticos no pátio aberto, as crianças obedecem aos comandos da freira
situada na lateral esquerda do quadro. Talvez em sua origem propagandista
essa filmagem desejasse ostentar o ímpeto civilizatório das expedições
coloniais ou das ordens religiosas perante povos supostamente desprovidos
de cultura. Com a velocidade reduzida, porém, um detalhe ganha relevo na
duração do plano: enquanto a freira realiza o gesto com o braço esquerdo, as
crianças usam o direito. A função da montagem é valorizar tal desvio sensível
que, por menor que seja, coloca um potencial de diferença entre a imagem do
povo e a imagem do dominador, à maneira de um intervalo de desobediência
mimética.
A desaceleração pode ser acompanhada da ampliação de determinado
elemento visual, a fim de intensificar sua suspensão espaçotemporal na
superfície dos documentos históricos. Um caso marcante está no final de
Prisioneiros de guerra, quando alguns homens caminham entre as pilhas de
mortos no chão. Uma figura que mexe nos cadáveres tem seu gesto quase
congelado pela desaceleração. A seguir, três homens carregam um corpo para
o extracampo, e depois retornam para pegar outro, e mais outro, e mais outro,
no quadro preenchido pela morte. A trilha sonora, marcada durante a
sequência por uma melodia algo trágica, tocada em violino, é atravessada
aqui por um canto lírico de teor, a uma só vez, elegíaco e sublime. Essa trilha,
vale dizer, fornece uma chave de leitura algo cerimoniosa às imagens cruas,
como se víssemos um ritual de sepultamento, ao mesmo tempo que garante
um substrato rítmico para o realce das emoções condensadas pela projeção
desacelerada.
Enquanto o canto continua, um automóvel chega com defuntos na
traseira, os quais são carregados e agrupados no chão. Um grupo de homens
com pás dispersa-se após concluir a escavação de uma vala comum, local em
que os cadáveres serão jogados pelas mãos dos soldados, sob o olhar
impassível do comandante militar de chapéu. Este se desloca uma única vez,
para melhor vigiar e garantir a execução das ordens. Mas, se a representação
do poder militar quer enfatizar a eficiência do processo, Gianikian e Lucchi
atuam para matizar as singularidades inscritas na imagem. Uma ampliação
mostra os carregadores e os cadáveres mais de perto, ao mesmo tempo que
exclui o comandante do campo de visão. Com nitidez e detalhamento, vemos
os homens trazerem corpos para a encosta, e deixá-los rolar até o fundo do
buraco. Fica claro, agora, que apenas os soldados (de gorros) fazem contato
com a morte, em seu trabalho braçal, enquanto os figurões (de chapéu)
observam tudo como estátuas.
Esse tipo de efeito contribui para produzir conhecimento — ou
reconhecimento — em relação às figuras e ações engendradas com a
intervenção sensível no material de arquivo. A maior duração do plano, a
interrupção do fluxo imagético, a ampliação das ações, são técnicas que
demandam do espectador um olhar atento para os corpos despejados na vala
comum. A obra de Gianikian e Lucchi se compõe, como sugere Raymond
Bellour, de “instantes escolhidos da espécie humana” (Gianikian e Lucchi,
2015:243), cujos registros abandonam as fronteiras do documento e da ficção
para conferir uma nova visibilidade aos sujeitos filmados. Além disso, esses
mortos, ceifados pela violência humana, não possuem nome. Talvez as
intervenções visuais, somadas à música elevada, sejam uma maneira frágil de
lhes construir uma lápide no cinema.
De volta a Tudo é paz nas alturas, um dos procedimentos típicos
utilizados é a desaceleração da projeção quando a imagem se aproxima de um
rosto ou enquadra outro signo de individuação, como se buscasse oferecer
visão mais duradoura aos elementos de singularização. Em dado momento,
soldados caminham lentamente, carregam objetos para a guerra, rodas,
caixas, armas. São cenas que se repetem, com variações, ao longo de toda a
obra. Seus esforços físicos são evidentes, mas eles fazem graça quando
passam, interpelam a câmera com sorrisos, olhares, acenos. Um fragmento
frontal mostra os rostos ampliados, de maneira a revelar suas
microfisionomias. Tais traços humanos, dotados de expressões particulares,
permaneceriam talvez indistintos na propaganda do exército, na
representação do poder insensível às manifestações do indivíduo.
Ainda em Tudo é paz nas alturas, a tentativa de dar vez ao invisível
adquire, por vezes, caráter mais analítico, de dimensão algo científica, como
na tentativa de “recuperar o instante em que o soldado é atingido e cai”
(Gianikian e Lucchi, 2015:55). Uma sequência de combate mostra, com
velocidade reduzida, soldados que correm sobre a neve branca em direção ao
fundo do quadro. Um soldado tomba, depois outro, enquanto os demais
continuam a fugir. Então, vemos praticamente a mesma imagem com a cor
ligeiramente modificada para enfatizar o vermelho, e o enquadramento
alterado para focar nos soldados caídos. Podemos captar melhor suas quedas,
bem como as de três outros homens atingidos, antes imperceptíveis. Seus
gestos derradeiros ganham destaque, seja a perna que se ergue, seja o braço
que se debate. Os cineastas explicam que esse tipo de ação:

Sucede em um intervalo quase infinitesimal, às vezes no espaço de apenas três


fotogramas, de modo que no cinema, após uma projeção normal, não se faz mais do
que ressentir, sem olhar verdadeiramente. Era uma visão subliminar. Para esse trabalho
de resgate, multiplicamos os fotogramas individuais, o que permitia analisar o evento
em curso. [Gianikian e Lucchi, 2015:55]

Essa multiplicação dos fotogramas almeja, é certo, reter determinados


instantes para reforçar visualmente a violência da guerra, a partir dos próprios
registros publicitários que desejam promovê-la. De certo modo, são esses
mesmos princípios ético-estéticos que orientam a parte final da trilogia da
Primeira Guerra. Oh, homem (2004) é constituído pela remontagem de
arquivos medicinais utilizados para catalogar os corpos dos soldados
destroçados pela guerra e divulgar avanços científicos disponíveis para tratá-
los. Novamente, o discurso oficial é desviado para compor uma crítica da
violência que marca os homens mutilados, devidamente redobrada pela
exploração propagandista. Os cineastas afirmam que desejavam, sobretudo,
“fixar para sempre as marcas da guerra no corpo humano, sua destruição, e a
ilusão da reconstrução: o aço, a madeira, a porcelana, e a cadeira
sanguinolenta, a violência do cirurgião” (Gianikian e Lucchi, 2015:47). O
filme elabora, assim, uma possibilidade de crítica e memória.
Grosso modo, os artistas utilizam três estratégias formais basilares. A
primeira é a organização dos arquivos em coleções que repetem motivos
figurativos e permitem movimentos de associação, como mencionado. A
segunda é a redução da velocidade de sucessão das imagens, que contribui
para um maior potencial de retenção das figuras filmadas. A terceira, por fim,
é a ampliação meticulosa dos materiais, de modo a excluir todos os gestos
médicos que pudessem se sobrepor aos olhares dos soldados mutilados. Os
próprios artistas explicam que “esses filmes indicavam os nomes dos médicos
como forma de publicidade, enquanto os nomes dos feridos não eram
mostrados”. Ao retomar tais documentos, um dos objetivos de Gianikian e
Lucchi seria:

Tentar dar uma identidade aos esquecidos anônimos dos quais não são mencionados
sequer os nomes, nem o local onde foram feridos, nem a menor indicação de suas
vidas. A identidade aparece por meio dos gestos, dos olhares, das expressões, dos
detalhes, dos objetos que fogem no curso do tempo cinematográfico constante.
Expressões mudas de raiva ou de embaraço quanto ao fato de serem obrigados a posar
diante de uma câmera pretensamente “científica e médica”. Impossibilidade de
esconder as marcas da guerra sobre o próprio corpo. E mesmo forçados de colocá-las
em evidência. [Gianikian e Lucchi, 2015:122]

É o caso da sequência dos rostos mutilados, organizada em dois


momentos. Primeiro, vemos os soldados exibirem para a câmera as
deformações atrozes provocadas por tiros ou explosões de guerra. Dirigidos
pelo cinegrafista, eles giram o corpo para exibir as próprias faces sob
diferentes perspectivas. Em um segundo momento, com enxertos e cirurgias
plásticas, os soldados são submetidos ao mesmo cenário de exibição corporal,
agora segurando nas mãos uma memória imagética do estado anterior, como
uma fotografia ou um modelo protético. Supomos que tais materiais, “no
curso do tempo cinematográfico constante”, eram convocados pelas
instituições científicas ou militares para ostentar avanços medicinais na
recuperação das feridas de guerra. Com a velocidade retardada e a ampliação
do material, o fracasso da recomposição artificial é revelado, dando a ver a
brutalidade de uma destruição cujas marcas jamais se apagarão.
Em outro momento, o rosto de um soldado aparentemente bonito é
ampliado pela câmera analítica. No plano seguinte, que mostra o mesmo
homem em uma difícil caminhada, os cineastas abrem o quadro. O fascínio
da beleza é quebrado, pois os gestos do soldado, como sua extrema
dificuldade para andar e seu desequilíbrio anatômico, escancaram as marcas
da violência inscritas em seu corpo.
Aqui e nas demais obras citadas, o cinema de Gianikian e Lucchi propõe
um nível de exigência elevado em relação ao espectador. Observar os corpos
deformados dos soldados, mostrados em planos com duração dilatada,
marcados pela violência do mundo e da guerra, sujeitos ao controle
sistemático de um contexto científico-publicitário, é tarefa bastante custosa.
Os cineastas assumem a necessidade de “transmitir ao espectador essa
dificuldade de ver e de entender esse sofrimento das imagens” (Gianikian e
Lucchi, 2015:19). Para além da quase ausência de instruções, comentários ou
demais recursos didáticos, seus filmes querem recolher visualmente os afetos
temporais, os vestígios presentes nos arquivos, de modo a condensá-los de
maneira potente em um sentimento da história.
Esse aspecto pode adquirir, em alguns momentos, uma espécie de
insinuação metafórica e alegórica. Na sequência de abertura de Oh, homem!,
após a epígrafe de Leonardo da Vinci sobre a violência da espécie humana,
vemos um breve retrospecto da consolidação militar do Estado fascista
italiano, com soldados, armas, monumentos, cortejo, discurso do Duce em
negativo, combate, todo um conjunto de registros que dão a ver a
pomposidade destrutiva do maquinário militar. Esse conjunto é submetido, de
saída, a dois desvios estéticos importantes: a exploração das qualidades
plásticas dos negativos, que transforma alguns dos corpos em existências algo
grotescas — destaque para o Duce em seu palanque —, e a estranha trilha
sonora composta por barulhos metálicos que contribuem, em certa medida,
para criar um clima de ameaça e de terror, acentuado pelas cenas de combate.
A seguir, vemos um trator que cultiva o campo, em substituição aos
tanques de guerra que atravessavam o quadro. Em sobreimpressão, aparecem
camponeses que marcham com ferramentas em punhos, imagem que, a
princípio, remeteria à Batalha do Trigo, um dos eventos econômicos que
contribuíram para a consolidação do regime de Mussolini. Cabe lembrar, é
claro, que a tradição rural italiana constituiu um importante campo de disputa
(material e simbólica) no processo de ascensão do fascismo, para o qual a
vocação agrária e guerreira do país representaria uma espécie de elo
imaginário com o esplendor do antigo Império Romano.
Em uma interpretação bastante livre, a sequência pode produzir também
uma inversão figurativa que ecoa na Resistenza partigiana, movimento
armado que se opôs às forças fascistas alemãs e italianas na Segunda Guerra
Mundial. Após a marcha dos contadini, o trigo arrastado pelo trator dá lugar a
um plano incendiário, no qual o fogo se levanta nas casas de madeira da
floresta. Não mais a explosão das bombas de guerra, mas sim o trabalho
ardente da resistência. Essa intervenção pode ser entendida, assim, como
tomada de posição antifascista e manifesto estético de Gianikian e Lucchi,
para quem o “derradeiro estado do cinema [é] tornar-se bomba explosiva
incendiária da memória” (Gianikian e Lucchi, 2015:119).
Em outro momento, ao final dos fragmentos dilacerantes das crianças
afetadas pela guerra, duas mãos enquadradas em primeiro plano brincam com
vagões de madeira para montar um trem. No plano seguinte, vemos esse
brinquedo supostamente infantil ser levado por um homem de barba, com
trajes semelhantes aos de um interno de prisão ou hospital. De maneira
alegórica, esse plano parece conectar as imagens das crianças marcadas pela
violência às dos deportados para o extermínio nos campos de concentração,
que seriam instaurados 20 anos após a filmagem desses materiais.
Cabe apontar que o trabalho de Gianikian e Lucchi sobre as violências
históricas inscritas nas imagens de arquivo encontra formulações potentes em
muitos outros filmes, como O espelho de Diana (1996), que reflete
criticamente sobre as conexões entre o fascismo italiano e os anseios
imperiais da antiga Roma; Inventário balcânico (2000), que analisa as
transformações da vida na região dos Balcãs dos anos 1920 aos 1940, a partir
de registros realizados por cinegrafistas amadores e soldados alemães;
Imagens do Oriente (2001), que lida com o turismo exótico das elites
europeias na Índia nos anos 1920; Ghiro Ghiro Tondo (2007), que registra
uma coleção de brinquedos deteriorados oriundos da Primeira e da Segunda
Guerra Mundiais; os Fragmentos elétricos (2001-13), série de curtas-
metragens que abordam questões políticas variadas ao redor do mundo; e
País bárbaro (2013), que retoma filmagens de Comerio encomendadas pelo
regime fascista de Mussolini para representar os países colonizados —
Etiópia, Líbia etc. — como terras bárbaras e produzir um falso consenso em
torno da invasão colonial.
De maneira geral, é interessante observar que as técnicas utilizadas pelos
artistas na elaboração dos arquivos — para repetir, a desaceleração da
imagem, as modificações de enquadramento e as mudanças de textura —
possuem em comum a valorização da autonomia imagética em relação aos
elementos textuais. Recordemos, de passagem, que o método de trabalho do
casal envolve, por exemplo, “remover os intertítulos ou comentários para
reencontrar a objetividade da imagem”. Uma tradição que pode ser buscada
nos artistas pós-modernos com obras pautadas pela primazia do visível, como
Jean-Luc Godard (sobretudo após o abandono do Grupo Dziga Vertov) e
Harun Farocki,1 mas também no modelo de neorrealismo italiano teorizado
por Bazin, Barbaro e Zavattini.
Os próprios cineastas afirmam perseguir uma espécie de “realismo
moral”. A inspiração se encontraria, talvez, na crença da objetividade
imagética do cinema, cujo poder de “revelação” do real seria apropriado ao
engajamento político e à profanação histórica pela via visual. É o que vemos,
em diferentes medidas, em obras como Roma, cidade aberta (Roberto
Rossellini, 1945) e Umberto D. (Vittorio de Sica, 1952). Diferentemente dos
cineastas neorrealistas, no entanto, que permaneceram demasiado apegados
aos moldes tradicionais de realização fílmica, Gianikian e Lucchi
estabelecem um desvio radical em relação aos pressupostos industriais, ao
fundar um dispositivo quase artesanal de fabricação imagética.
No texto “A existência da Itália”, Fredric Jameson (1995:165-166)
pergunta: “como escapar da imagem com os meios da imagem?”. A dupla de
cineastas italianos parece oferecer, assim, uma espécie de resposta prática a
essa questão, ao romper com as formas de dominação sedimentadas na
tradição hegemônica da imagem ocidental. As sequências são elaboradas na
contramão do naturalismo ou da verossimilhança, de modo a articular outros
olhares possíveis sobre os povos oprimidos. A qualidade fragmentária da
montagem só vem reafirmar essas promessas, desinvestindo as totalizações
de sentido ou pretensões de unidade, e abrindo as imagens para outras
significações possíveis.
No último bloco do quarto movimento de
France/tour/detour/deux/enfants (1977-78), série televisiva realizada por
Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, a câmera observa fixamente três
mulheres que trabalham na cozinha de um restaurante. Enquanto duas delas
levam os pratos às mesas, a outra organiza a louça e recita elementos centrais
da formação do Estado ocidental, como guerra, trabalho, agricultura,
comércio, religião. Betty, a apresentadora fictícia do programa, explica que
essa “é a história do socialismo. [...] Quando uma cozinheira podia virar
chefe de estado”. O apresentador fictício diz não entender, então Betty repete
a cena em câmera lenta, no lugar do som ambiente uma ária de Rinaldo cujo
texto diz: “deixa eu lamentar / a sorte pungente, / ou estremecer / pela
liberdade! / A dor vai quebrar / as duras correntes / do meu padecer, / por
pura piedade”.
Os apresentadores voltam a conversar. A disjunção sonora, a mudança de
velocidade, as pausas para comentários, tudo isso provoca um distanciamento
crítico que ressalta a indicialidade da imagem. Betty explica que a mulher
“tem desejo pelo desconhecido. E quando falamos de um desconhecido,
dizemos machin [fulano]. Mas se for uma mulher que não conhecemos,
podemos dizer machine [fulana/máquina], ela fez isso. Com seu corpo —
machine”. De volta à cena desacelerada, uma funcionária no centro do quadro
move o corpo de maneira rítmica em relação à melodia. Ergue o pescoço,
atravessa o quadro, pega um prato e sorri. Decompostos, seus gestos remetem
à tensão entre o desconhecido e a técnica, entre o trabalho que mecaniza as
ações e o instante de iluminação que atravessa a montagem. Ao final da cena,
a apresentadora conclui, “com seu corpo — machine. Desacelerar a
máquina”, e o homem responde, “a máquina do Estado”.
Essa proposta de retardamento da máquina elaborada por Godard pode ser
entendida como uma estratégia de enfrentamento estético das fábricas
capitalistas de produção imagética, que encontram sua formulação apoteótica
nas indústrias de Hollywood e da publicidade televisiva. A mecanização do
corpo por uma ideologia da repetição e do consumo acarretaria consequências
simbólicas e concretas no funcionamento do olhar, pautada pela adesão
histórica às forças hegemônicas do poder e da dominação. É o que Farocki
também analisa em relação às mudanças na percepção e na experiência
humana derivadas de tecnologias avançadas de construção imagética, ao
colocar “sem cessar uma terrível questão [...]: por que, em que e como a
produção de imagens participa da destruição dos seres humanos?” (Didi-
Huberman, 2010:46).
Em suma, para construírem contrapontos às forças dominantes que
modelam e normatizam a visão, inclusive a cinematográfica, de maneiras
concretas ou simbólicas, tais cineastas se valem de procedimentos artísticos
capazes de fazer ruir a univocidade da imagem e abri-la para a aparição da
diferença. Assim também parecem proceder Gianikian e Lucchi, cujas
intervenções no visível, como a redução da velocidade de sucessão da
película, podem ser vistas como uma forma de “desacelerar a máquina” da
história e do olhar, a fim de conferir visibilidade àquelas figuras ameaçadas
temporalmente pelo esquecimento e pela injustiça.2

Em seu filme Interface (1995), por exemplo, Farocki dizia: “Até hoje, apenas as palavras,
ou às vezes a música, comentaram as imagens. Aqui, as imagens comentam as imagens”.
Como pergunta Jacques Derrida (2001): “É possível que o antônimo de ‘esquecimento’ não
seja ‘rememoração’, mas sim ‘justiça?’”.

Referências
AUMONT, Jacquès. À quoi pensent les films? Paris: Éditions Séguier, 1996.
BELLONI, Ilario; GIANIKIAN, Yervant; LUCCHI, Angela Ricci. Memorie
d’archivio contro la guerra. In: Global Cinema, dez. 2003. Disponível em: <h
ttp://bit.ly/2ezouQP>. Acesso em: 5 nov. 2016.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. How to open your eyes. In: EHMANN, Antje;
ESHUN, Kodwo (Ed.). Harun Farocki: against what? Against whom?
Colônia: Walther König, 2010.
GIANIKIAN, Yervant; LUCCHI, Angela Ricci. Notre caméra analytique.
Paris: Post-Éditions, 2015.
JAMESON, Fredric. A existência da Itália. In: ____. As marcas do visível.
Rio de Janeiro: Graal, 1995.
4
O inverno da desesperança

Mariarosaria Fabris

A meu pai,
que me contava de Biagio, súdito austríaco
e cidadão italiano, que não foi à guerra para
não atirar em seus irmãos.

No âmbito das comemorações do centenário da Primeira Guerra Mundial (28


de julho de 1914 — 11 de novembro de 1918), Ermanno Olmi realizou Os
campos voltarão (Torneranno i prati), cuja primeira projeção em 2014, no
dia 4 de novembro (data do fim do conflito na Itália), contou com a presença
do presidente da república e das mais altas autoridades do governo italiano.
A Itália entrou no conflito mundial em 24 de maio de 1915, tendo entre
seus objetivos a conquista dos territórios irredentos (Veneza Tridentina e
Veneza Júlia), ou seja, regiões de população itálica sob o domínio do império
austro-húngaro. Em virtude disso, foi considerada por muitos a quarta guerra
de independência por ter permitido ultimar a unificação do país, iniciada com
os conflitos de 1848-49 e continuada nas batalhas de 1859 e na expedição
garibaldina de 1860, que levaram à proclamação do Reino da Itália (17 de
março de 1861) e à conquista do Vêneto em 1866. Com a tomada de Roma,
em 20 de setembro de 1870, a configuração política da nova nação estava
quase completa.
A retórica irredentista inflamou “corações e mentes especialmente dos
mais jovens” (Olmi, 2014), os quais, imbuídos de “amor pátrio, vale dizer, o
amor pela terra dos pais”, como lembrou Olmi (Cattani, 2014), se alistaram
no exército. Entre eles, o pai do diretor, que, aos 19 anos, se arrolou no corpo
dos bersaglieri arditi, ou seja, das “tropas de ataque, e se encontrou no meio
de um banho de sangue nas batalhas do monte Carso e do rio Piave, que
marcaram sua juventude e, sem dúvida, o resto de sua vida” (Olmi, 2014).
Por isso, o filme é dedicado ao pai do cineasta, o qual, quando Olmi era
criança, contou a ele e ao irmão mais velho “a respeito da agonia da guerra,
daqueles momentos terríveis passados à espera de uma ordem para entrar na
refrega, sabendo que a morte estava à espreita na borda da trincheira. Ele se
lembrava de seus camaradas soldados, e mais de uma vez, eu o vi chorar”
(Olmi, 2014).
Como os que sobreviveram àquele conflito já se foram e não podem mais
contar de viva voz “a dor e o sofrimento causados por aquela carnificina”
(Olmi, 2014), o diretor, embora partindo de suas lembranças afetivas, deve
ter lançado mão de todo um repertório que museus e colecionadores
particulares, instituições e grupos de pesquisa tornaram acessível, para
desenrolar o fio da memória histórica sobre a Primeira Guerra Mundial:
lugares, objetos, documentos oficiais, filmes, fotos, cartões-postais, canções,
revistas e jornais ilustrados, diários de guerra, textos literários e testemunhos
escritos por pessoas “mais humildes, nos quais a verdade não está
embelezada pela retórica” (Olmi, 2014). Não por acaso, a epígrafe final de Os
campos voltarão é de um pastor: “A guerra é uma besta-fera, que roda o
mundo sem nunca parar”. Além disso, o filme inspira-se num dos contos de
guerra escritos por Federico De Roberto entre 1919 e 1923, “La paura”
(1921) e, embora não seja citado nos créditos, outro texto literário do qual
Olmi deve ter retirado dados, detalhes e atmosferas é Un anno sull’Altipiano
(1938), leitura obrigatória sobre a Grande Guerra na Itália. Nele, o socialista
Emilio Lussu rememorou, entre 1936 e 1937, sua participação como capitão
na Brigada Sassari (151o e 152o Regimentos), que, de junho de 1916 a julho
de 1917, estacionou no planalto de Asiago.
A reconstrução do posto avançado e a caracterização dos militares foram
cuidadosas, com a longa fileira dos beliches dos soldados; o alojamento do
capitão; as frestas para os atiradores, com o degrau para serem alcançadas; o
orifício com a tampa de ferro para espiar o inimigo;1 os aquecedores a lenha;
as lâmpadas de querosene; os tambores com o rancho; as marmitas e outros
utensílios de cozinha; baldes e bacias; caixas e baús; o tinteiro e a pena; o
maço de cigarros populares; fotos de época retratando mulheres, crianças,
familiares ou vistas de aldeias; a correspondência com os carimbos de
expedição (Correio Militar, 12/9/1917) e da censura e com a localidade de
destino (zona ou frente de guerra); mapas de batalhas; telefones de
campanha; as armas; os uniformes, com mantos, capacetes, quepes, botas,
meias de lã, faixas para as pernas; os cobertores etc.
Mesmo a parte externa da base avançada não foi descuidada: cavaletes e
traves com arame farpado e chocalhos, sacos de terra, a trincheira de
comunicação, o pequeno cemitério com as cruzes, numa paisagem soterrada
pelas nevadas e dominada por um marasmo cortado apenas pelo canto do
tocador de mula, por uma ou outra presença humana ou de animais, por novas
rajadas de neve, sinalizadores sulcando o céu, e, no fim, por explosões de
bombas e granadas.
A escolha precisa das locações — o planalto de Asiago, onde as tropas
italianas estacionaram em outubro de 1917, em virtude da “chegada do
inverno que, no alto da montanha, começa desde o outono” (Lussu,
2000:139) — e o apuro dos figurinos e da cenografia, com objetos de época
ou reproduzidos com o máximo esmero, transformaram Os campos voltarão
numa espécie de arquivo vivo, num novo “documento” sobre os
acontecimentos retratados.2
A não ser por um ou outro segmento que, pinçado de uma sequência
completa, contém um esboço de ação, as imagens iniciais, que esquadrinham
a cenografia, vão se seguindo plano após plano, justapostas, quase fixas,
provocando o que Anna Di Martino (2000:39) denomina “efeito slide”.
Retiradas de um enunciado maior, essas imagens que “congelam” o espaço
acabam suspendendo também o tempo, que se torna indeterminado. Dessa
forma, o diretor consegue traduzir na tela a sensação experimentada na espera
durante as tréguas — “antes a morte no campo do que aquela inércia
enervante, aquela suspensão no vazio, o estilicídio daquele tédio, as mil
pontadas das provações de todos os dias e de todas as horas” (De Roberto,
2015:21-22) — ou no fragor das batalhas:

Quanto durou aquela salva de tiros, eu não sei dizer. Não poderia dizê-lo nem então.
Durante uma ação perde-se a consciência do tempo. A gente acredita estar às dez da
manhã e está às cinco da tarde. [...] Por quanto mantivemos nossa posição, eu não
lembro. No combate, perde-se a noção do tempo, sempre. [Lussu, 2000:43, 72]

Durante um conflito, a suspensão temporária das hostilidades representa a


exceção, como diz o narrador, em Os campos voltarão, diante da natureza
que hiberna para renovar suas forças: “Enquanto isso, a guerra também
parou... Depois, também a trégua, que parecia querer durar ainda um bocado,
aos poucos voltou à sua normalidade, que, para nós, é a guerra”. Sentimento
expressado também por Lussu (2000:139, 105) — “A guerra para a infantaria
é o ataque. Sem o ataque, há trabalho duro, não guerra” —, embora a hora da
ação seja a mais temida, a mais terrível, a prova de fogo: “Quem não
conheceu aqueles instantes, não conheceu a guerra”.3
O ataque é o corpo a corpo com o inimigo que, em outros momentos,
parece ser uma presença abstrata. No filme de Olmi, o inimigo permanece
oculto: ouve-se sua voz louvando o canto do soldado napolitano que alegra o
coração de todos; ouvem-se os disparos que matam um “voluntário” na
trincheira de comunicação; ouvem-se e veem-se as explosões provocadas
pelos bombardeios, mas nenhum rosto. Por mais absurdo que possa parecer,
isso era comum, como escreve Lussu (2000:37, 135):

Faz mais de um ano que estou na guerra, um pouco em cada frente e até agora não
estive cara a cara com um único austríaco. E, no entanto, matamo-nos reciprocamente,
todos os dias. Matar-se sem conhecer-se, sem nem ao menos ver-se! É horrível!
[comentário de um tenente-coronel piemontês]

Eu nunca tinha visto um espetáculo igual. Agora estavam lá, os austríacos: próximos,
quase em contato, tranquilos, como transeuntes na calçada de uma cidade. Tive uma
sensação esquisita. [...] Uma vida desconhecida mostrava-se de improviso a nossos
olhos. Aquelas trincheiras, que nós também tínhamos atacado tantas vezes em vão,
diante de sua resistência tão feroz, haviam acabado por parecer-nos inanimadas, como
coisas lúgubres, não habitadas por seres viventes, refúgio de fantasmas misteriosos e
terríveis. Agora se mostravam a nós em sua vida verdadeira. O inimigo, o inimigo, os
austríacos, os austríacos!... Eis o inimigo e eis os austríacos. Homens e soldados como
nós, de uniforme como nós, que agora se mexiam, falavam e tomavam café,
exatamente como estavam fazendo, atrás de nós, naquela mesma hora, os nossos
mesmos companheiros. Coisa esquisita.

Os relatos reportados em Un anno sull’Altipiano servem para afastar o


paralelo com O deserto dos tártaros (Il deserto dei tartari, 1976) — que
Valerio Zurlini filmou a partir do romance de Dino Buzzati (1940) —
proposto por Luiz Zanin Oricchio (2016), para quem a “questão da espera
desloca o filme para outro lado”. Desta feita, não se trata de lidar com
antagonistas fictícios, como ainda sugere Ambra Cusin (2014), para quem
estes “nunca se veem, talvez porque os inimigos somos nós que os
inventamos”,4 nem de uma espera metafísica, mas de uma lenta, exasperante
espera pela batalha, a qual, quando chega, também é devastadora e pode ter
graves consequências para a saúde mental dos combatentes. “Eu também
sentia ondas de loucura aproximar-se e desaparecer. Às vezes sentia o cérebro
chacoalhar dentro da caixa craniana, feito água agitada numa garrafa”,
registra Lussu (2000:110) depois de um combate, enquanto o sargento
olmiano aconselha com resignação: “Quando bombardeiam, é preciso manter
a cabeça ocupada. Contar os números, um, dois, três, quatro e assim por
diante, ver até que número você chega entre a explosão da qual escapou e a
que vem a seguir”.5 Porque, na guerra, qualquer segundo a mais de vida se
torna precioso:

Quem não esteve na guerra, nas condições nas quais nós estivemos, não pode ter ideia
desse gozo. Até uma única hora em segurança, naquelas condições, era muito. Poder
dizer, ao alvorecer, uma hora antes do ataque: “pronto, vou dormir ainda meia hora,
posso dormir ainda meia hora, depois vou acordar e fumar um cigarro, esquentar uma
xícara de café, tomá-lo aos golinhos, fumar outro cigarro”, já parecia o prazeiroso
programa de uma vida inteira. [Lussu, 2000:119]

Os soldados de Olmi também estão apegados à vida e esse apego, apesar


do desânimo estampado em seus rostos, manifesta-se nas canções do
napolitano, as quais, embora falem de saudades da pessoa amada e de morte,
ainda são entoadas com um incontaminado entusiasmo; na reação do capitão
(“Não existia a morte nos nossos sonhos”); no combatente que aninha em sua
mão um ratinho depois de tê-lo alimentado com bolinhas de pão, mantendo
viva a chama dos afetos dentro de si; na observação de bichos (coelho,
raposa)6 e árvores, que permite aos militares de origem camponesa reatar seus
fortes laços com a natureza e seus ciclos; na ansiosa espera pela chegada da
correspondência, elo com o universo familiar que ficou para trás —
manifestações que ajudam a afastar o espectro da demência naquela situação
devastadora para seus corações e mentes.
A loucura da guerra, porém, torna a abater-se sobre a tropa, com a ordem
absurda de instalar um telefone de campanha, não interceptado pelos
austríacos, numas ruínas a 10/12 passos do posto avançado, impossíveis de
serem alcançadas por causa de um atirador de elite. A obediência cega às
ordens superiores leva a sacrifícios inúteis e inglórios, como o do
“voluntário”, atingido assim que começou a arrastar-se pela trincheira de
comunicação, e o do outro militar que preferiu suicidar-se a ser morto pelo
inimigo. Pôr termo à própria vida não era uma prática incomum na Grande
Guerra, como mostra o final do conto de Federico De Roberto (2015:47),
quando o tiro que partiu do mosquete do soldado suicida “fez esguichar o
cérebro nos sacos do parapeito”, e como relata Lussu (2000:105): “Dois
soldados se mexeram e eu os vi, um ao lado do outro, ajeitando o fuzil
debaixo do queixo. Um deles inclinou-se, disparou o tiro e dobrou-se sobre si
mesmo. O outro imitou-o e estatelou-se ao lado do primeiro. Era covardia,
coragem, loucura?”. Ou, como sugere Antonio Di Grado (2015:9), um ato de
heroísmo de quem “diante do horror, prefere desertar da vida”?
O horror que vitimava a tropa condoía alguns de seus comandantes, que
começam a pôr em dúvida a validade das ordens recebidas, como o tenente
Alfani em “La paura”, ao ver seus homens tombarem um a um na tentativa de
alcançar uma plataforma a 50 metros da trincheira, embora o temor das
sanções disciplinares sustasse atos de rebeldia:
Nunca, em dois anos de guerra, nas terríveis refregas, debaixo do saraivar da
metralhadora, no meio de sanguinolentas searas de homens ceifados a mancheias, em
frotas, tinha tido a ideia bizarra que agora tomava conta dele diante daquela lenta,
metódica e inútil chacina. Nas circunstâncias mais graves, nas situações mais
embaraçosas, por temperamento e por raciocínio, ele sempre tinha tido a certeza de que
não estava errando ao ater-se estritamente às ordens; agora não, agora hesitava, agora
sentia que aquelas ordens já custavam demasiadas vidas. [De Roberto, 2015:42-43]

No filme de Olmi, o capitão prefere renunciar a seu grau para não ter que
dar uma ordem que considera criminosa e impor mais um sacrifício “estúpido
e cruel” (De Roberto, 2015:36), mas antes exige que as baixas sejam
registradas pelo nomes e não apenas pelos números;7 e o jovem tenente, que
assume temporariamente seu posto, versado em ciências humanas e filosofia,
extravasa sua angústia numa carta familiar:

Minha mãe querida e amadíssima,

o acaso ou talvez o destino reservou-me viver dentro de uma guerra que eu imaginava
mas não conhecia. Estou num posto avançado na alta montanha. Ao redor, apenas neve
e silêncio. A trincheira dos austríacos está tão perto que me parece ouvir sua
respiração. Estou aqui há pouco mais de uma hora e parece que, de chofre, me tornei
um velho, a tal ponto que meus estudos e até meus ideais perderam seu significado,
como minha juventude.

Mãe amadíssima, há jovens como eu que morrem a cada dia e, mesmo os que
regressarão a seus lares, levarão dentro de si a morte que conheceram. E esse
pensamento jamais os abandonará. Eles se sentirão como sobreviventes condenados a
viver duas vezes. O mais difícil será perdoar. Se um homem não sabe perdoar, que
espécie de homem é?

Perdoar a quem? À pátria, pois — como sugere Alessandro Sperduti, que


interpreta o jovem tenente — mãe e pátria se confundem numa única figura?
“A mãe pode ser entendida como a pátria. Ele, num certo sentido, relaciona-
se com a pátria, conta a inutilidade desse sofrimento” (Cattani, 2014).
Perdoar como, se perdoar é um gesto cristão, de quem ainda acredita, de
quem ainda confia? Os combatentes já estavam descrentes de Deus —
“Ninguém sabe onde o Pai Eterno está escondido, nem o papa. Se Deus não
deu ouvidos a seu Filho na cruz, vai dar ouvidos a nós, que somos pobres
coitados?”8 — e tinham plena consciência de que era à custa dos mais pobres
que o conflito prosseguia:

“A guerra pode durar, que eu resisto!”

Era a frase irônica, o bordão mordaz com o qual os humildes soldados de infantaria,
que se consumiam nos fossos das trincheiras, que suportavam toda a fadiga, que
enfrentavam todos os perigos, que sofriam todas as torturas, exprimiam a mágoa e o
desdém pelas nobres intenções ostentadas pelos que se subtraíam ao serviço militar,
pelos heróis acomodados em suas poltronas, pelos especuladores que lucravam com o
grande infortúnio. [Roberto, 2015:36]

E a montanha — “resignada e cansada sob o manto da lua branca”, como


diz a canção napolitana9 — desperta de sua letargia com os tiros do atirador
de elite, os sinalizadores e as explosões de bombas e granadas, a passagem do
grosso da tropa em retirada, os soldados que cavam os túmulos dos caídos
que permanecerão debaixo da neve até a primavera,10 ou talvez para sempre,
se ninguém reclamar seus corpos. Para os que ficam, a dura rotina da espera,
a provável ameaça de uma mina austríaca,11 que um ex-mineiro conseguiu
detectar, e mais rajadas de neve. A guerra enquanto combate, eludida em boa
parte de Os campos voltarão, se fez presente e eclode com toda sua força em
rápidas sequências de imagens em movimento de época. Essas imagens criam
um hiato dentro do discurso alusivo proposto pelo diretor e provocam um
salto espacial, ao arrancarem a ação do âmbito circunscrito da alta montanha,
e um salto temporal, porque fazem a narrativa avançar até o fim das
hostilidades.
O que são essas imagens? São fragmentos justapostos que mostram uma
trincheira iluminada por explosões; soldados correndo num campo de
batalha; explosões de bombas; tiros de artilharia; mais soldados correndo
num campo de batalha; novas explosões; trincheiras; soldados nas trincheiras
retirando quem foi atingido; soldados carregando uma metralhadora;
soldados atirando uma granada nas linhas inimigas atrás do arame farpado;
soldados correndo depois de terem superado uma cerca de arame farpado;
soldados correndo com macas; soldados correndo para conquistar novas
posições; um general observando a refrega por um binóculo; oficiais na
retaguarda dirigindo um bombardeio; o mesmo general exultando; uma boca
de fogo atirando, vista de trás e de frente; um morteiro com soldados;
soldados numa encosta da região do planalto de Asiago, com árvores
devastadas pelos bombardeios; soldados ajeitando cuidadosamente um ferido
numa maca; uma longa fileira de soldados carregando feridos em macas e
cobertores; um grande contingente de infantaria entrando numa cidade;
soldados e população civil ao redor de bandeiras do Reino da Itália; soldados
descendo triunfantes uma encosta em direção a uma ponte de madeira
improvisada sobre um rio, provavelmente o Piave, enquanto civis e militares,
do lado de lá de uma ponte que ruiu, saúdam com bandeiras (a contiguidade
dos dois trechos acaba criando um campo-contracampo); soldados
triunfantes, e um caminhão no fundo, por uma estreita estrada dos Alpes
Cárnicos; população que saúda tropas que desfilam a pé, a cavalo e em
caminhões, em cidade(s); desfile de civis; civis e militares que abrem alas à
passagem de uma carruagem com altas autoridades; desfile de militares
carregando bandeiras numa grande praça apinhada de civis; civis que correm
para acompanhar desfile; entrada de desfile militar no Palácio do Quirinal,
em Roma, residência oficial do rei da Itália; cruzes e lápides, a maioria
semicaídas, num cemitério improvisado.
O que dizem essas imagens? Contam sucintamente a história a partir do
momento em que o grosso da tropa deixa a trincheira na alta montanha depois
do rompimento da frente nordeste do exército italiano. Ou seja, arrancam o
espectador da dimensão meramente evocativa para introduzi-lo, de chofre, na
história. Contam os sangrentos combates que se seguiram diante da repentina
ofensiva lançada pelo exército austro-húngaro, em outubro de 1917, os quais
culminaram na batalha de Caporetto, deflagrada no dia 24 do mesmo mês,
que resultou numa catastrófica derrota das tropas italianas e na ocupação do
Friul e do norte do Vêneto; contam a vitória de Vittorio Veneto, depois da
reorganização do real exército, numa batalha que durou de 24 de outubro a 4
de novembro de 1918, que determinou a capitulação do inimigo; contam a
triunfal acolhida das tropas uma vez finda a guerra.
São “imagens silentes” (Fabris, 2008:179), mas não mudas, porque vêm
carregadas de significados, imagens à espera que alguém as interrogue para
tornarem a narrar uma história, auxiliadas por outros testemunhos. Nelas
aparecem personagens ilustres (o general provavelmente é Luigi Cadorna,
chefe supremo do real exército), mas, principalmente, soldados anônimos, os
verdadeiros heróis dessa guerra para Olmi. Por isso o diretor — como seu
capitão, que exigiu o nome dos caídos — tenta dar-lhes uma identidade, se
não verdadeira, ao menos fictícia, pois os integrantes da tropa de 1917 são
chamados pelo nome e sobrenome de seus intérpretes em 2014. Os oficiais e
outros militares de destaque no filme, não. São o major, o jovem tenente, o
capitão, o sargento, o cabo, o atendente, o tocador de mula, o esquecido; a
única exceção é quando o major, na dramática sequência da escolha dos
“voluntários”, chama o capitão pelo nome, Emilio, talvez numa homenagem
a Lussu.
Na canção antibelicista La guerra (1963), Sergio Endrigo cantava:
“Disseram-me para morrer, / para deixar de história / e quem escreverá a
história / não falará de nós”. A fala final do atendente, quando o espectador é
trazido de volta ao presente da diegese, também vai nesse sentido:
“Terminada também esta guerra, todos voltarão de onde vieram. Aqui terá
brotado uma grama nova. O que aconteceu aqui, tudo o que nós padecemos,
disso não se verá mais nada, não parecerá mais verdadeiro”. Os campos
voltarão a ficar cobertos de relva, porque, diz Olmi, “qualquer tragédia,
qualquer [...] mudança radical de uma época, em cujo final sobrarão cinzas e
chamas, [...] qualquer dessas ocasiões tem sempre um epílogo: é que tudo,
depois, voltará ao normal, como os prados” (Falzoni, 2014).
O diretor, porém, quis falar exatamente dos condenados ao esquecimento,
tentando resgatá-los do anonimato, devolver-lhes um rosto (em planos
isolados ou nos carrinhos que vão percorrendo a tropa enfileirada no interior
do posto avançado), um nome, uma história pessoal, uma voz autêntica
(numa cuidadosa sobreposição de falas regionais) e, principalmente,
sentimentos.
Apesar de toda a pompa de seu lançamento e de ter sido realizado com o
apoio da Presidência do Conselho de Ministros — Estrutura de Missão para
Datas Comemorativas de Interesse Nacional, Os campos voltarão não se
reveste de um caráter oficial, enaltecedor, pois, como disse o cineasta numa
entrevista (Mollica, 2014),

continuamos a cultivar essa culpa, que é a de não ter dado uma resposta a esses mortos.
Fazemos as celebrações, bandeiras, fanfarras, mas eles querem saber “por que
morremos?”, “que vantagem isso trouxe à humanidade?”. Sabe por que permanecemos
em silêncio? Porque nos envergonhamos um pouco.

E, poder-se-ia acrescentar, nos envergonhamos pela indiferença com que


as elites promoveram um “absurdo massacre de classe” (Fofi, 2016), como
alertavam na época os socialistas e como hoje lembra Olmi, mandando os
mais humildes para o matadouro:

A sugestão feita aos jovens era a de mostrar, dentre todos os sentimentos, o mais nobre,
o amor pátrio. Aqueles rapazes acreditaram nisso. Milhares e milhares de homens
inutilmente sacrificados por essa arrogância dos poderosos, que, então, se encontravam
nas altas aristocracias dominantes. Acredito que, se formos examinar, na história da
humanidade, os grandes acontecimentos trágicos dos conflitos têm como pressuposto
sempre o mesmo motivo: o poder para poucos, a riqueza para poucos. Espero que este
filme mostre exatamente isso: para além da dor, não digo um caminho, mas um indício
para sairmos dessa vergonhosa armadilha da traição em relação aos mais fracos.
[Cattani, 2014]

Os campos voltarão não é um filme de guerra, mas “sobre a dor da


guerra”,12 como especifica Claudio Santamaria, que interpreta o major, a
respeito do momento em que três oficiais estão às voltas com a missão
impossível da instalação da nova linha telefônica: “Ermanno guiou-nos num
percurso de dor da guerra, pois para ele era fundamental que se entendesse
que, naquela sequência, não estávamos falando simplesmente de táticas
militares, mas que, por trás de nossas palavras, havia precisamente a dor da
guerra” (Cattani, 2014). E continua: “Ermanno soube guiar-nos com
metáforas, referências poéticas, musicais [...]. Conseguiu destravar algo
dentro de nós, porque Olmi não busca em você o ator, busca o ser humano”
(Ugolini, 2016).
Em busca desses seres humanos de que seu pai lhe falava na infância,
Olmi fez aflorar de suas lembranças um acontecimento histórico que ele não
presenciou, mas cuja narrativa lhe foi transmitida oralmente, tornando-o o
depositário de um testemunho carregado de emotividade, que ele quis
compartilhar antes que se perdesse. Por isso, seu filme também, como os
demais testemunhos sobre a Primeira Guerra Mundial, é um lugar de
memória,13 porque o que ele oferece a seus espectadores não são apenas
imagens, mas a recuperação de sentimentos que a história oficial havia
recalcado.

Esse tipo de visor, embora comum, parece ter sido retirado das páginas de Lussu
(2000:117): “Os soldados tinham colocado uma abocadura escudada, encontrada nas ruínas
de Asiago. Era uma placa de aço pesada, com um furo para poder observar, que se podia
abrir e fechar com um obturador também de aço”.
Uma vez terminadas as filmagens, as trincheiras foram doadas à prefeitura de Asiago para
serem exploradas como atração turística. A contradição entre os propósitos do filme e a
exploração comercial do cenário não deixa de chamar a atenção. É a esgarçadura da
transmissão de acontecimentos marcantes às novas gerações, só assimiláveis se
transformados em espetáculo. “O tempo dos lugares é esse momento preciso onde
desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória, para só
viver sob o olhar de uma história reconstituída”, como diria Pierre Nora (1993:12).
A espera pelo combate também era exasperante, como registra Gianni Biondillo
(2016:334): “Os bombardeios da artilharia pesada contra as trincheiras austríacas haviam
começado, copiosos, já na noite anterior. Bastava isso para a tropa entender que estava
programado um ataque com arma branca, sem precisar esperar pelas ordens oficiais. Em
seguida, quando chegou de Monfalcone um abundante fornecimento de provisões, não
houve mais dúvidas. Os mais jovens comeram o chocolate com os olhos marejados de
lágrimas. Os veteranos atordoaram-se com conhaque”. Lussu (2000:113) também relata o
grande uso de bebidas alcoólicas nas trincheiras: “— Beber e viver. Conhaque. Dormir e
viver e conhaque. Ficar à sombra e viver. E mais conhaque. E não pensar em nada. Porque,
se tivéssemos que pensar em algo, deveríamos matar uns aos outros e acabar com isso de
uma vez por todas”.
É um pouco diferente do que afirma Olmi ao dizer que “sempre existirá guerra porque
estamos em guerra com nós mesmos e não temos a coragem de chegar a uma
autoconsciência”, e ao apontar outro tipo de adversário: “Os inimigos não são os das
trincheiras em frente. São os que mandaram você para a trincheira atingir outros que são
como você” (Cattani, 2014).
Em artigo publicado em 1932, Mário de Andrade (2010:49), ao resenhar Guerra, flagelo de
Deus (Westfront 1918: Vier von der Infanterie, 1930), de Georg W. Pabst, considera fora
de tom uma sequência sobre a perda da razão num conflito armado: “Assim, quando aquele
tenente enlouquece no campo de batalha e faz continências gritando ‘Às ordens’ pra uma
invisível Sua Majestade, a cena choca demais. É um verso de ouro falso e a gente se lembra
que está no cinema”. Isso, no entanto, correspondia à realidade, como se pode constatar em
Lussu (2000:106-107): “Oficiais e soldados caíam com os braços esticados e, na queda, os
fuzis eram projetados para frente, longe. Parecia o avanço de um batalhão de mortos. O
capitão Bravini não parava de gritar: — Saboia! [...] Chegamos às trincheiras. O capitão
Bravini também caiu, atingido, e eu o vi, com os braços abertos, desabar numa moita.
Pensei que estivesse morto. Mas, logo depois, ouvi seu grito ‘Saboia!’, repetido, em
intervalos, com voz fraca”.
Lussu (2000:68) também registra essa atenção dada a animais, ao descrever as alegres
brincadeiras de dois esquilos.
Numa entrevista, o diretor lembra que, diante da comoção e das lágrimas do pai ao falar da
guerra, já se perguntava, quando criança: “Pode existir uma guerra que mata os homens,
mas não os sentimentos?” (Falzoni, 2014).
Segundo Olmi, “o que é realmente trágico não é apenas que Deus não responde a esses
coitadinhos, mas que Deus está ausente, não existe” (Mollica, 2014). Meu pai, que
combateu durante a Segunda Guerra Mundial, sempre (se) perguntou de que lado Deus
ficava num campo de batalha.
São versos de Tu ca nun chiagne, de Ernesto De Curtis e Libero Bovio, lançada em 1915,
um pouco antes da entrada da Itália na guerra, que exaltam a beleza de outra montanha, o
Vesúvio. A segunda canção entoada no filme, Fenesta ca lucive, é tradicional e nos
créditos finais resulta de autoria de Vincenzo Bellini, quando, na verdade, se trata apenas
de uma atribuição. Como assinala Biondillo (2016:274), outro grande sucesso da época nas
trincheiras foi ‘O surdato ‘nnamurato, também escrita em 1915, de autoria de Aniello
Califano e Enrico Cannio, que falava das saudades que um combatente tinha de sua amada.
Lussu (2000:125) também registra a presença de um napolitano cantor.
Federico De Roberto (2015:108), também, no conto “L’ultimo voto”, descreve esses
sepultamentos debaixo da camada de neve: “Sob aquele sudário jaziam ainda tantos
cadáveres — narrava-se —, todos os que não havia sido possível recolher em virtude da
retirada repentina. De vez em quando, aliás, o capitão Tancredi, comandante interino do
novo Batalhão, recebia uma carta da Brigada ou da Divisão, solicitando-lhe a recuperação
do corpo de um dos caídos no último combate; [...] qualquer busca era impossível, naquele
momento: voltariam a falar disso na primavera”.
Durante a Grande Guerra, era comum cavar galerias subterrâneas na rocha para criar
grandes poços que chegassem até as linhas inimigas. Esses poços eram carregados de
explosivos com os quais fazer voar pelos ares as trincheiras. Lussu (2000:156) também se
refere a uma engenhoca instalada pelos austríacos, que deveria iluminar o lado italiano na
noite de Natal: “Nós achávamos que a mina havia sido cavada na rocha, debaixo de nossas
trincheiras, na extremidade direita do setor. Nossos aparelhos tinham captado o barulho da
perfuratriz, desde outubro, e os comandos estavam constantemente preocupados”.
Sentimento presente também em Jean Cocteau, que registrou sua participação no exército
francês, por ele denominado “A fábrica de fazer mortos” (Caizergues, 2000:14), em
retratos, desenhos, no romance Thomas l’imposteur (1923) e no poema “Discours du grand
sommeil”, que integrou o volume Poésie 1916-1923 (1925). Segundo Pierre Caizergues
(2000:14), o poeta acusa a guerra em suas fotos: “Elas a mostram em sua trágica verdade, a
dos feridos e dos moribundos, a do sofrimento de todos os combatentes, quer se trate de
soldados franceses e aliados, quer de inimigos. E é menos o heroísmo dos guerreiros a ser
sublinhado do que a tristeza e a dor das vítimas dos dois lados”.
Mais do que estar vinculada ao texto de Pierre Nora, aqui o emprego da expressão “lugar
de memória” está ligado à análise de Germano Celant (2016:5, 6) sobre Roxys (1961),
assemblage do norte-americano Edward Kienholz. Para o crítico de arte italiano, ao recriar
um bordel, Kienholz resgata um “lugar de memória”, fazendo emergir das lembranças de
sua juventude um local considerado socialmente execrável. Dessa forma, pela recriação,
em vez de ser relegado ao esquecimento, o local “torna-se o veículo linguístico com o qual
o artista atrai e cativa a sensibilidade do público, colocando-o diante de seu recalque e de
sua memória, de modo que não seja apenas a imagem, mas também o inconsciente, a
vencer”.

Referências
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CAIZERGUES, Pierre. Présentation. In: COCTEAU, Jean. Photographies et
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CATTANI, Fabrizio. Appunti dal set torneranno i prati di Ermanno Olmi
(2014). In: OLMI, Ermanno. Torneranno i prati (DVD). Roma: Rai
Cinema/01 distribution, 2015.
CELANT, Germano. Edward e Nancy Kienholz: il bello del putrido.
Quaderni Fondazione Prada, Milão, n. 5, p. 2-11, maio 2016.
CUSIN, Ambra. Torneranno i prati di Ermanno Olmi. nov. 2014. Disponível
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ENDRIGO, Sergio. La guerra. In: ____. Endrigo. São Paulo: RCA Victor,
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5
Anticolonialismos e reapropriação das
imagens fílmicas de uma emboscada
(1969-2014)

Alexsandro de Sousa e Silva

O texto procura trazer reflexões sobre uma circulação, entre outras, do


registro fílmico realizado por uma equipe francesa de reportagem em 1969,
quando ela flagrou a emboscada de africanos anticolonialistas contra
soldados do exército português na Guiné Portuguesa, atualmente conhecida
como República de Guiné-Bissau. Como referência metodológica,
recorremos a correntes historiográficas da França e do Brasil que valorizam a
análise fílmica como forma para compreender o material fílmico em seu
contexto de produção, ou seja, como forma de trabalhá-lo como fonte
histórica. Assim, seguimos propostas indicadas nas obras de historiadores
como Marc Ferro (1992), Pierre Sorlin (1985), Marcos Napolitano (2005),
entre outros. Antes de apresentarmos as fontes audiovisuais a serem
analisadas, iniciaremos com o contexto da produção das imagens.
Em 18 de outubro de 1969, na estrada entre Có e Pelundo, região do Bula
na atual Guiné-Bissau, um agrupamento militar português mal equipado
realizou uma desastrosa operação terrestre para perseguir guerrilheiros do
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGCV),
grupo responsável pela oposição militar, política e ideológica ao colonialismo
lusitano visando a independência. O governo salazarista de Marcello Caetano
havia convidado uma equipe de jornalismo para filmar a situação das
colônias africanas, planejando minimizar a oposição interna e externa ao
regime autoritário por meio do material a ser exibido internacionalmente. A
equipe era francesa, estava a serviço do Office de Radiodiffusion Télévision
Française (ORTF) e Paris Match, e havia realizado filmagens em Vietnã,
Angola e Moçambique. Com experiência na cobertura de conflitos de guerra,
o grupo acompanhou a chamada Operação Ostra Amarga na Guiné
Portuguesa e registrou a emboscada. O enfrentamento resultou em dois
soldados portugueses mortos e um ferido que havia pisado em mina terrestre,
cuja explosão deu início ao ataque do PAIGCV. Fontes oficiais afirmam que
houve quatro baixas e dois feridos pelo lado anticolonialista (Briote e Graça,
2007b), informação não respaldada por outros meios de informação.
A jornalista da equipe de filmagens foi Geneviève Chauvel, da Agência
Gamma, que acompanhou todo o conflito, mas pouco escreveu sobre o
assunto. A revista Paris Match (n. 1071, 15 nov. 1969) publicou matéria
sobre a emboscada, com o título “Guiné: a estranha guerra dos portugueses”,1
mostrando certo distanciamento com a propaganda oficial salazarista (Briote
e Graça, 2007c). Na matéria, destaca-se a figura do então governador colonial
da Guiné (e futuro presidente de Portugal, entre maio e setembro de 1974),
António de Spínola, que apareceu no local dos enfrentamentos horas depois
para fazer relatório sobre a situação.
Com as filmagens realizadas, a equipe do ORTF realizou reportagem
sobre o colonialismo português e exibiu-a no programa Ponto-Contraponto
em 11 de novembro de 1969. Trata-se de um panorama “imparcial” em que
constam a propaganda oficial portuguesa e a oposição anticolonialista,
dividido em quatro partes: A oposição portuguesa e o mato da Guiné
(28min45s), Guerra na Guiné (13min58s), Guerra em Angola (12min30s) e
Guerra em Moçambique (5min45s).2 A primeira matéria dá voz a exilados
portugueses na França, em especial na periferia em Nanterre, contrários ao
colonialismo lusitano, e inclui entrevistas do poeta Manuel Alegre e do líder
do PAIGCV, Amílcar Cabral. Nas matérias sobre Angola e Moçambique, a
equipe de filmagem acompanhou algumas expedições ao lado de tropas
fortemente armadas, porém sem registrar enfrentamentos. A sequência sobre
a emboscada que analisaremos adiante, caracterizando a primeira fonte
audiovisual a ser analisada, constitui a maior parte do segundo eixo temático
da reportagem sobre a Guiné.3 Vale ressaltar que as reportagens não foram
veiculadas em Portugal, porém tiveram repercussão internacional negativa
sobre o regime salazarista.
A cineasta portuguesa Diana Andringa e o diretor de Guiné-Bissau Flora
Gomes recuperaram as imagens da emboscada de 1969 para comporem uma
parte do documentário As duas faces da guerra, de 2007. Trata-se de uma
obra conjunta em que diversos participantes dos conflitos ocorridos na ex-
colônia entre 1959 e 1974 dão seus testemunhos sobre os ocorridos. Em sua
maioria, são figuras contrárias ao salazarismo que se viram dentro de uma
extensa guerra pela soberania de um povo. Dividida em duas partes com
cerca de uma hora cada, a narrativa mobiliza imagens e sons de época,
valendo-se de um amplo uso das imagens cinematográficas de arquivo e
filmagens em locais onde ocorreram batalhas. Andringa realizou uma
pesquisa junto a ex-combatentes e conseguiu acessar o material da ORTF
bem como informações até então pouco divulgadas sobre a emboscada
(Briote e Graça, 2007a). Como segunda fonte audiovisual a ser analisada,
veremos quais os sentidos de memória que a emboscada representou para o
documentário e para os atores sociais que nele aparecem.
Em 2014, o diretor sueco Göran Hugo Olsson retoma a mesma sequência
em Concerning violence: nove cenas de defesa anti-imperialista. O
documentário é composto por imagens registradas entre as décadas de 1950 e
1980 em diferentes países africanos. Como elemento estrutural, a narrativa
vale-se da divisão em prefácio (por Gayatri Chakravortty Spivak), nove
capítulos4 e conclusão, semelhante à forma do livro Os condenados da terra
de Frantz Fanon, publicado originalmente em 1961. Trechos do livro são
lidos por Lauryn Hill, como se fossem comentários das imagens exibidas. A
cena da emboscada em 1969 foi incorporada na primeira sequência do
capítulo 8, “Derrota, a Guerra de Independência de Guiné-Bissau”, como
metáfora da queda do imperialismo ante a resistência africana. A cena será
nossa terceira fonte a ser analisada, em que buscaremos compreender a forma
e os sentidos dessa apropriação dentro do discurso fílmico do documentário.
Após esta breve apresentação das obras, analisaremos as sequências
referentes à reportagem de 1969. Como hipótese que guiará nossas análises,
acreditamos que a circulação das imagens da emboscada expõe os dilemas
dos contextos históricos de produção e apropriação e ajuda a entender melhor
os respectivos períodos do que o próprio evento histórico em si mesmo. Três
problemáticas entrelaçam as análises das apropriações das imagens: a
primeira refere-se aos imaginários coloniais, a segunda aborda o
questionamento do conflito e a última está ligada aos dilemas do
recrutamento de soldados negros pelas forças militares portugueses.
Esforçamo-nos aqui para propor um “ajuste do ver[, do escutar] e do saber”
(Lindeperg, 2007:66) que o trabalho com as imagens audiovisuais, cotejado
com outras fontes históricas, pode propiciar.

Imagens de uma emboscada: uma contra-análise do


colonialismo?
A reportagem Guerra na Guiné possui 108 planos e está dividida em dois
eixos temáticos. O primeiro, entre os planos 1 a 37 e com duração de
3min51s, representa a chegada da equipe ao interior da colônia portuguesa
por meio de vistas aéreas, helicópteros, barcos e algumas passagens por
Bissau, onde vemos habitações, ruas asfaltadas e comércio em
funcionamento. O narrador em voz over traz dados sobre a região e faz
alusão à oposição anticolonialista de Amílcar Cabral e o PAIGCV. O jovem
líder concedeu entrevista falando em francês na reportagem anterior, A
oposição portuguesa e o mato da Guiné, onde expôs as motivações políticas,
econômicas e ideológicas para exigir a independência. A matéria sobre Guiné
inicia-se, portanto, em um movimento de inserção temática e espacial sobre o
território iniciado pouco antes de sua exibição. O segundo eixo temático
constitui, a nosso ver, a longa sequência envolvendo a emboscada (65 planos)
e a entrevista do governador colonial António de Spínola (6 planos),
totalizando 71 planos (do 38 ao 108) em 10min6s.
As imagens da emboscada iniciam-se exibindo jovens militares brancos e
alguns negros fardados trilhando em meio a um matagal, com proeminência
do verde em tela (planos 38 a 42). A câmera segue a fila de soldados em uma
sequência de tomadas até que o tiroteio com as forças do PAIGCV obriga
todos a se resguardarem (plano 43). Durante o combate, quatro planos
exibem a movimentação de soldados (planos 43 a 47) e apenas um mostra
alguém utilizando armas de fogo, um lança-foguetes, no caso (plano 44).
Após o confronto, oficiais pedem ajuda à base militar mais próxima para
resgatar o corpo do soldado português Henrique Costa e os feridos, António
das Neves, que havia pisado em uma mina terrestre, e António Capela,
gravemente ferido. A espera dos helicópteros e a tentativa de socorrer Capela
tornam o momento inquietante para os militares, expresso em diversos closes
e planos americanos que mostram os jovens incomodados com a situação
(planos 48 a 74). O moribundo não resiste e falece antes do socorro
especializado (planos 75 a 79). Os veículos chegam, levam os mortos e o
ferido (planos 80 a 94), e segue-se nova espera: a da chegada do governador
colonial António di Spínola (planos 95 a 99). O representante do
colonialismo chega no terreno, acompanha a restituição dos eventos pelos
seus subordinados (planos 100 a 102) e, na base militar, lê um documento em
francês onde expõe o ponto de vista oficial sobre a situação das colônias
(planos 103 a 108).
Os quatro planos que registram efetivamente as movimentações dos
soldados durante o confronto evidenciam rastros do “ato fotográfico”
(Dubois, 1998) pela equipe de jornalismo. O plano 45 expõe a cautela do
grupo de soldados, quando se agacham para se protegerem, e evidencia que o
câmera deixou o dispositivo em funcionamento enquanto avançava por uma
fileira, até que o aparelho escorregou de suas mãos. As filmagens são feitas,
portanto, em momentos de mínima segurança da equipe. E em nenhum
momento o “inimigo” foi filmado, tendo em vista que os ataques ocorrem de
forma intensa, em pouco tempo e com uma retirada igualmente estratégica.
Segundo as memórias de um dos protagonistas do episódio, o comandante
João Mendes Sentieiro, as cenas filmadas “não são nem mais nem menos do
que as que ocorreram muitas vezes na Guiné” (Briote e Graça, 2007b),
configurando-se, dessa maneira, imagens de um confronto típico da luta de
libertação de Guiné-Bissau.
Durante toda a segunda parte de Guerra na Guiné, a voz over do narrador
faz poucas intervenções, o que poderia significar uma pretensão à
imparcialidade do registro, próximo às intenções dos expoentes do “modo
observativo” do documentário, como Frederick Wiseman e adeptos do
“cinema direto” dos anos 1960 (Nichols, 2012:146-153). Essa constatação
nos obriga a compreender as imagens com maior profundidade, a verificar
como elas permitem identificar um discurso visual sobre a época, seja pelo
registro realizado in loco ou pela montagem do material. Pierre Sorlin (1985)
ressalta que o trabalho de análise da imagem pressupõe a construção de um
olhar sobre o objeto: “Não existe uma significação inerente ao filme: são as
hipóteses da investigação que permitem descobrir certos conjuntos
significativos” (Sorlin, 1985:49). Assim, a nosso ver, a emboscada expõe a
fragilidade da força militar colonial portuguesa, ideia não ratificada pela voz,
porém verificável pelas imagens de desamparo e abandono dos soldados. A
exposição do corpo de António Capela (imagem 1) constitui a imagem-
síntese da situação do colonialismo português em 1969, isto é, representa o
corpo danificado do império colonial em ruínas. Essa ideia fora reforçada
décadas depois na cena final de Non, ou a vã gória de mandar (1990), de
Manuel de Oliveira, que faz o paralelo entre a morte do alferes Cabrita e o
fim do colonialismo português.
De acordo com João Mendes Sentieiro, a equipe de soldados estava “algo
deprimida” em 1969 desde o início da Operação Ostra Amarga, aludindo ao
não retorno à Guiné Portuguesa de dois portugueses em férias em Lisboa, um
deles reaparecendo em Paris, isto é, o comandante refere-se a um caso de
deserção (Briote e Graça, 2007b). Inferimos que o dilema sobre a
legitimidade da guerra estava presente entre aqueles fardados, visto que a
deserção e o exílio foram estratégias recorrentes de oposição à guerra em que
os jovens eram obrigados a participar. A câmera exibe, portanto, a desilusão
dos sobreviventes, provavelmente os mais próximos em relação aos soldados
mortos. Dessa forma, o projeto inicial de fazer a propaganda do colonialismo
entra em confronto com os significados propiciados pelas imagens (imagens
2 e 3), como se fossem uma “contra-análise” do projeto imperialista lusitano
(Ferro, 1992:79-115).
3
4

Chama a atenção do espectador a presença de soldados negros entre os


militares colonialistas. Tratou-se de uma estratégia defendida pelo
governador António de Spínola: a formação de grupos africanos de apoio ao
imperialismo, separados por etnias. Segundo o pesquisador João Paulo
Borges Coelho (2003), o colonialismo português militarizou os colonizados
das diferentes regiões africanas como forma de “integrá-los” ao tecido social,
enfraquecer as lideranças tradicionais, reduzir custos orçamentários militares
e minar o apoio camponês às guerrilhas. A estratégia de recrutar africanos
intensificou-se em 1968, com a saída de António de Oliveira Salazar do
poder político e a entrada de Marcello Caetano, que incentivou a prática, e
com o avanço das forças anticolonialistas nas colônias (Borges Coelho,
2003:182-183). Nos closes registrados após a emboscada, percebe-se um
aspecto de temor e atenção redobrada entre os soldados negros (na imagem 4,
como exemplo) em relação aos demais, brancos, que expressam desânimo e
sentimento de derrota (imagens 2 e 3). Uma explicação plausível para o que
consideramos temor maior entre os negros nas imagens dá-se pelo extremo
grau de violência entre os negros africanos durante os conflitos — o que João
Paulo Borges Coelho (2003) chama de “potencial de violência”) — sejam do
PAIGCV, que consideram traidores os soldados colonialistas negros, sejam
do lado inimigo, que via nos guerrilheiros uma ameaça para a própria
ascensão social, profissional e política em um território explorado, que não
oferecia maiores oportunidades.
Assim, a reportagem mobilizou imaginários colonialistas, como expresso
na vontade do Estado português em querer exibir seu suposto domínio sobre
a Guiné, trouxe à tona uma possível leitura do questionamento da
legitimidade da guerra contra o PAIGCV e pôs em tela o problema dos
“comandos africanos” a serviço do colonialismo. Veremos a seguir como a
sequência da emboscada será apropriada pelos documentários e como essas
questões estiveram presentes.

A recuperação das imagens e a cabeça da Medusa


A sequência da emboscada foi discutida no documentário As duas faces da
guerra (Diana Andringa, Flora Gomes, 2007), no qual protagonistas dos dois
lados da emboscada se reconhecem em tela, identificam os companheiros
filmados, rememoram o contexto do evento e comentam as consequências
das filmagens. O filme se vale da visita aos lugares da memória (Nora, 1993)
e utiliza diversas imagens de arquivo, porém, curiosamente, as imagens de
1969 são algumas das poucas que têm sua origem detalhada e discutida.
Enquanto a reportagem Guerra na Guiné exibe o conflito de forma
distanciada, sem comentários em over expressando juízo de valor, a narrativa
fílmica do documentário é menos distante: exibe os soldados como vítimas de
um império arruinado e os comentários destacam as consequências subjetivas
e históricas das imagens. A reflexão ocorre quase 40 anos após os eventos
registrados, o que evidencia a dificuldade na sociedade portuguesa, e também
na guineense, em discutir as guerras de independência na África e seus
desdobramentos políticos.
No documentário há um movimento constante entre Portugal e Guiné-
Bissau. Dois motivos conduzem a narrativa: a inexistência de ódio entre
portugueses e guineenses, reafirmada por uma frase do líder do PAIGCV
Amílcar Cabral constantemente citada (“Não lutamos contra o povo
português, mas contra o colonialismo”), e a pedra de Geba, em Guiné-Bissau,
um monumento em ruínas com nomes de soldados portugueses mortos no
local, dos quais dois faleceram quando a cineasta completou 20 anos, em 21
de agosto de 1967. Isto é, a convergência entre, por um lado, portugueses
vítimas da obrigação militar colonialista e, por outro, povos africanos
explorados é um dos pilares da narrativa. A sequência sobre a emboscada
insere-se nessa lógica.
Após os sete planos iniciais da segunda parte do documentário, que
também abrem a primeira parte (a mão da cineasta sobre a pedra de Geba, os
letreiros iniciais, o mapa de Guiné-Bissau sob canto coral, a afirmação dos
dois motes do filme), vemos a radialista Amélia Araújo reencenando a leitura
do discurso dirigido aos soldados portugueses nos anos 1960 e 1970,
veiculado à época pela Rádio Libertação do PAIGCV. A mensagem convoca
os militares a deixarem a guerra e reconhecerem a ilegitimidade do conflito.
Quando a primeira imagem de arquivo referente à emboscada de 1969 surge
na tela, com os soldados em fila atravessando a mata na direção da câmera, a
voz em off da radialista conclui a leitura: “Lembra-te de que vertes o teu
sangue e fazes sacrifícios em proveito dos colonialistas contra os teus
próprios interesses”. Ou seja, a mensagem dá ensejo a uma leitura na qual os
soldados mostrados na tela aparecem como vítimas do colonialismo e, dessa
maneira, atua como um “condutor de discurso” (Sánchez-Biosca, 2012:50)
para as imagens de arquivos que assistimos a seguir. Sob as mesmas imagens
de arquivo, escutamos novos “condutores”: as vozes em off de Leonel
Martins e Pedro Gomes, soldados sobreviventes da emboscada, identificando
na tela os ex-companheiros e a si próprios. Vale recordar que a estratégia de
autoidentificação na tela remete à experiência feita por Jean Rouch e Edgar
Morin em Crônica de um verão (1960), na qual os participantes fazem
apontamentos sobre o material filmado.
Dos 71 planos originais de Guerra na Guiné, o documentário As duas
faces da guerra utiliza 43, os quais retratam todo o movimento de
adentramento ao local do ataque, o confronto, o primeiro socorro aos feridos,
a espera do helicóptero, o resgate, a nova espera e a chegada do governador
Spínola no palco das ações. Alguns estão fora da ordem inicial, como os
planos 55, 56 e 57, que reproduzem os planos 51 (soldado organizando
munição), 52 (soldado negro em guarda) e 58 (soldado branco em guarda no
mato) da reportagem e no documentário são mostrados após o resgate,
enquanto no original estavam localizados antes da chegada dos helicópteros.
As imagens de arquivo são alternadas com testemunhos de Leonel Martins,
Pedro Gomes, João Mendes Sentieiro (comandante da tropa), Manuel dos
Santos (oficial do PAIGCV), Mbana Cabra (ex-guerrilheiro do PAIGCV que
se afirma participante no combate) e Pedro Pires (Comitê Político do
PAIGCV). Toda a sequência tem duração de 11min5s. Sylvie Lindeperg
(2007) afirma que há um amplo movimento nos trabalhos com imagem desde
os anos 1980 “que consiste em atribuir um nome às vítimas anônimas há
tempos perdidas em uma massa crescente de cifras, em uma apreensão global
e abstrata do extermínio” (Lindeperg, 2007:63); acreditamos que As duas
faces da guerra veio a fortalecer o movimento de tirar os sujeitos históricos
do anonimato.
Dos 28 planos da reportagem excluídos no documentário, estão os
referentes ao corpo mutilado de Henrique Costa, à agonia e morte de António
Capela, a alguns detalhes do resgate e à espera pela chegada do governador e
a entrevista de Spínola. Ainda que os planos referentes à morte de Capela não
estejam no documentário, a imagem-síntese do corpo destruído (imagem 2)
aparece em tela. Assim, a obra reforça a ideia de um império em ruínas,
enfraquecido, tal como sugerido na reportagem de 1969, mas não busca
reproduzir integralmente o sofrimento do soldado. A mesma ética da imagem
é observada na exposição da primeira vítima fatal da emboscada, Henrique
Costa. O plano 55 (51 na reportagem original) mostra um combatente
organizando munição e exclui o movimento da câmera que mostrava o corpo
de Costa em plano americano sem um dos braços e com grandes feridas no
tronco e no outro membro. Por outro lado, o plano 12 do documentário,
originalmente o 53, mostra o cadáver de forma que a mutilação não seja
claramente visível e exclui o close inicial do plano sobre um crucifixo no
chão próximo ao defunto. O tema da religião não está na pauta de As duas
faces da guerra, o que sugerimos como possível explicação para a exclusão
da mencionada imagem.
Leonel Martins e Pedro Gomes, vendo as imagens em uma tela em off,
localizam e repetem facilmente alguns nomes de conhecidos; porém, ao
comentarem o evento e seus desdobramentos, mostram maiores dificuldades
do que os demais entrevistados. Sentieiro, dos Santos, Cabra e Pires mostram
maior desenvoltura, pois não tinham vínculos pessoais com as vítimas da
cena da emboscada. No plano 42 do documentário, após a exibição da partida
dos helicópteros, Martins e Gomes estão visivelmente emocionados e não
conseguem iniciar os comentários. Será a diretora Diana Andringa, em off,
quem iniciará a conversa, e ambos pouco a pouco irão relembrar os eventos.
Aqui vemos as consequências do trauma, aflorado pelo contato com as
filmagens. Roberto Vecchi (2010) analisa conceitualmente a condição
traumática dos relatos de guerra e evoca o ícone da Medusa,

cuja cabeça degolada constitui a máscara mítica do horror [...] Horror é um deverbal do
latim horreo (phrisso, grego) que remete para a reação física do horror sobre o corpo,
particularmente o eriçar-se dos pelos e dos cabelos perante um fato repugnante, que
petrifica (e aliás há também uma pseudoetmologia que remete para o latim frigus, o
congelamento), que não deixa via de fuga, mas pelo contrário se bloqueia, numa
paralisia insondável e mais insuportável do que a própria consciência da morte.
[Vecchi, 2010:166]

Assim, as imagens de arquivo despertam o trauma que, por sua vez,


represencia o horror vivido por Martins e Gomes diante da iminência da
própria morte. As expressões de desalento dos ex-combatentes após a
projeção em 2007 assemelham-se às imagens de desamparo dos soldados na
reportagem de 1969. Pedro Gomes, o mais emocionado após a projeção,
afirma que as imagens sempre passavam na televisão e que “mexiam com
nosso sistema nervoso; ainda mexe”. Cabe ressaltar que os protagonistas
relembram a censura à matéria na época do salazarismo, pois o regime
propagandeava o controle sobre a situação nas colônias. João Mendes
Sentieiro afirmou aos blogueiros Virginio Briote e Luís Graça (2007b) que
“nunca viu o filme [Guerra na Guiné], que sabe que ele existe e que as
únicas imagens que viu são as que às vezes aparecem na TV. Ele chama a
essas imagens de fruta fresca, isto é, quando a TV quer mostrar cenas
violentas da guerra da Guiné, aí vão elas”. O oficial denuncia, portanto, a
espetacularização do uso das imagens de guerra pelos meios de comunicação.
Se, por um lado, Martins e Gomes lembram vários nomes de ex-
combatentes na tela de forma imediata, eles sentem dificuldade em recordar
os soldados negros. Infere-se que o contato dos sobreviventes com os
militares africanos à época do conflito não era frequente e não estreitou laços
como ocorreu com os mortos em combate. Apesar de não ter destaque na
sequência sobre as memórias da emboscada de 1969, a questão dos comandos
negros é uma das problemáticas da segunda parte de As duas faces da guerra,
que destaca o reconhecimento das autoridades portuguesas na atuação desses
grupos contra o PAIGCV, bem como o “potencial de violência” acumulado
no período. Vale lembrar que após a independência, reconhecida em Portugal
depois da Revolução dos Cravos de 1974, os oficiais negros de maior patente
que permaneceram em Guiné-Bissau foram sumariamente executados,
ampliando as feridas sociais abertas pelo colonialismo (Borges Coelho,
2003:189). O cabo-verdiano Pedro Pires, a voz autorizada pelo documentário
para fazer sínteses estratégicas do PAIGCV, diz que houve “equívocos” nos
“dois lados”, mas o colonialismo cometeu o principal “crime” por estimular a
“vietnização da guerra”, ou seja, a divisão entre os próprios explorados.
Enfim, o documentário As duas faces da guerra questiona de maneira
frequente o colonialismo português, abre espaço para diversos protagonistas
oficiais e anônimos dos conflitos ocorridos pela independência de Guiné-
Bissau e abre espaço para o problema dos comandos negros, ainda que falte a
voz desses mesmos sujeitos, como os que apareceram nas filmagens da
emboscada de 1969.
Frantz Fanon imagético e os soldados ocultos
Um conjunto de imagens elaborado a partir de Guerra na Guiné abre o
capítulo 8 do documentário Concerning violence, dirigido por Göran Olsson,
excerto intitulado “Derrota; a Guerra de Independência em Guiné-Bissau”. O
capítulo utiliza menos da metade dos planos originais, porém dá conta do
movimento narrativo geral da reportagem, isto é, adentramento na mata,
ataque, espera dos helicópteros, resgate, Spínola em campo e entrevista do
governador colonial. Pela análise que propomos, veremos que há uma
tentativa de enquadrar o excerto fílmico ao discurso geral do filme, que
possui no livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon, sua força motriz.
O final do capítulo anterior do documentário “7. O Fiat G.91, com a
Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] em Moçambique 1972”
mostra uma jovem gravemente ferida e seu bebê recebendo cuidados
médicos. O pequeno tem uma perna amputada e ela, um braço decepado após
ataque colonialista. A narrativa expõe os membros ainda sem curativos, em
carne viva, e encerra sua presença em tela com um zoom sobre a jovem,
cabisbaixa, desesperançada. Com essa “introdução” e seu impacto na
audiência, os letreiros sob o fundo negro anunciam o próximo capítulo, com
o título estampado ainda na tela (“8. Derrota, ...”) quando aparecem as
imagens dos soldados em tela, selando o destino daquela operação militar e
sugerindo um efeito catártico pela expectativa de punição ao colonizador pelo
sofrimento causado à jovem e ao bebê. Lembramos que em As duas faces da
guerra houve estratégia semelhante na antessala das imagens em arquivo de
1969. Recuamos a narrativa para antes da emboscada, pois ela se insere num
discurso fílmico mais amplo e faz parte da busca do sentido intrínseco ao
filme segundo sua própria lógica organizacional (Napolitano, 2005:275).
O documentário de 2014 utiliza somente 31 planos das 71 imagens
originais. Como afirmamos anteriormente, é possível acompanhar o
movimento geral da reportagem de 1969: inicia-se com o adentramento dos
soldados na mata, seguido do ataque militar, a morte de Henrique Costa, a
agonia e morte de António Capela, a chegada do primeiro helicóptero. Daí,
salta-se para as imagens do governador António de Spínola no terreno e uma
parte da sua entrevista ao final. Os 31 planos utilizados são colocados na
devida sequência, com uma pequena alteração entre os planos 2 a 5 que
reproduzem, da numeração original, os planos 39, 40, 41 e 38, o que não
altera o sentido narrativo, pois são cenas dos soldados percorrendo o matagal.
O tempo total da sequência é de 4min8s.
Dois detalhes chamam a atenção na reapropriação da sequência. Em
primeiro lugar, a voz em over não lê nenhuma passagem do livro de Frantz
Fanon. Isso vai ocorrer apenas na sequência seguinte, enquanto vemos
imagens de uma menina telegrafando mensagens num aparelho móvel, como
se a jovem estivesse transmitindo uma mensagem a algum destinatário
desconhecido (poderia ser inclusive os militares, tal como em As duas faces
da guerra):

O homem colonizado encontra a liberdade na e através da violência. A violência


ilumina, porque aponta para os meios e para os fins. Ao nível dos indivíduos, a
violência é uma força de limpeza. Liberta o homem colonizado do seu complexo de
inferioridade. Torna-o destemido e recupera o seu autorrespeito.

A passagem visa dar um sentido ao ataque contra os soldados


portugueses, mostrado na sequência anterior. A violência do colonizado
como ato de libertação subjetiva estaria na ação de quem ataca, mas não é
mostrada em tela, pois vemos apenas os soldados colonialistas em tela na
sequência. Outras imagens ao longo do documentário o fazem, como as
imagens da jovem mãe no hospital, fechando o ciclo “colonizado humilhado
— punição ao colonizador — colonizado justificando sua ação”.
Se a voz over não interfere durante a exibição da emboscada, uma canção
o fará, especificidade entre as imagens de arquivo trabalhadas no
documentário. A Canção do desertor foi gravada em estúdio inicialmente por
Luis Cília em 1973, no álbum Meu país (LP Chant du monde, LDX 74308,
França), com letras, música, arranjos e guitarra creditadas a José Mário
Branco. A letra simula a carta de um soldado anunciando sua deserção e
denunciando a guerra: “Oh mar... oh mar... / Que beijas a terra, / Vai dizer à
minha mãe / Que não vou p’rá guerra. [...] Vou cantar a Liberdade, / Para a
minha Pátria amada, / E para a Mãe negra e triste / Que vive acorrentada
[...]”. Na narrativa de Concerning violence, a canção surge a partir do plano
10 da sequência da emboscada (plano 49 no original), onde dois militares
tentam socorrer António Capela gravemente ferido, e termina no plano 25,
com a morte do soldado. Esse “condutor de discurso” parece expressar uma
dramática crise de consciência dos soldados, atordoados com a situação após
o enfrentamento. Dessa forma, o documentário não expõe apenas os dramas
dos colonizados, mas também de quem se viu empurrado a uma guerra
colonial, acompanhando a mesma postura de As duas faces da guerra.
O segundo detalhe é a seleção das imagens excluídas em relação à
reportagem inicial. Entre os planos excluídos, está o de número 51 da
reportagem, onde vemos o corpo de Henrique Costa mutilado e com graves
ferimentos, imagem que Diana Andringa e Flora Gomes também escolheram
para não ser exibido na obra de 2007. No entanto, chama a atenção que no
documentário de Göran Olsson se opte por escolher as imagens da jovem e
seu bebê com as feridas escancaradas, em carne viva, e exclua-se a exposição
do corpo do soldado. Uma possível explicação seria evitar a exposição do
militar sem vida, exibido na reportagem em 1969; imagens semelhantes são
evitadas na narrativa.
Entre os planos excluídos estão os que mostram soldados negros entre os
oficiais colonialistas. Na reportagem Guerra na Guiné, correspondem aos
planos 42, 52, 59, 65, 68 (imagem 5), 78, 95 (imagem 6), 96, 97 e 99. A
ausência dos planos retira do espectador a percepção da presença de negros
entre os militares, uma vez que o soldado negro no plano 3 da sequência (40,
no original), na fila de militares adentrando a mata, passa desapercebido após
as violentas imagens da jovem mutilada. Entre os audiovisuais aqui
analisados, Concerning violence é o que expõe com maior destaque a tensão
entre evidência e representação (Napolitano, 2005:240), ou seja, entre o que
mostrar ou não mostrar. Dessa forma, o documentário não aborda o problema
do colonizado que colaborou com o colonizador e que, em Guiné-Bissau,
gerou consequências políticas e sociais que marcaram as memórias do
conflito, como discutimos anteriormente.
Concerning violence busca trazer à tona uma série de imagens que
denuncia abertamente a violência do colonialismo, em diálogo aberto com a
obra de Frantz Fanon, e que demole os imaginários coloniais que visam
legitimar a suposta superioridade de uma raça ou etnia sobre as demais. Por
outro lado, ao excluir as imagens dos soldados colonialistas negros, a
narrativa opta por concentrar-se na oposição colonizado-colonizador e deixa
em segundo plano a discussão sobre os comandos negros.

Conclusão
Acreditamos que a produção da reportagem Guerra na Guiné e as
reapropriações da sequência da emboscada permitem-nos compreender as
tensões das respectivas épocas (1969, 2007, 2014) de modo a pensar nos
dilemas que envolvem a experiência traumática da guerra anticolonial. Desse
modo, pensamos que o termo “reciclagem” das imagens (Lindeperg,
2007:69) seria inapropriado para se referir à circulação ou à “migração”
(Sánchez-Biosca, 2012) e aos “usos políticos do passado” (Hartog e Revel,
2001) dos registros de arquivo, pois cada apropriação traz novos sentidos à
luz dos dilemas do respectivo contexto histórico. Se no final da década de
1960 vemos a exposição da fragilidade do imperialismo português na África
e o implícito questionamento à sua legitimidade a partir dos próprios
soldados, essas constatações são o ponto de partida dos documentários
realizados décadas depois com a reiteração de imagens como a do corpo
exposto de António Capela. Os imaginários imperiais são colocados em
xeque pelas três formas fílmicas do embate. Se a presença de soldados negros
é algo aparentemente normal na reportagem, as obras fílmicas posteriores
darão diferentes respostas ao tema: por um lado, As duas faces da guerra
também não problematiza a presença negra entre os portugueses nas imagens
da emboscada, mas discute, em outro momento da narrativa, os traumas
gerados por essa cooptação. Corcerning violence, por sua vez, opta por
excluir as imagens dos soldados negros e evitar a análise necessária dessa
complexa relação entre colonizado e colonizador.
As traduções no texto foram realizadas pelo autor, que optou por manter o original de
Concerning violence (“A respeito da violência”, segundo fontes na rede virtual) e nomes de
instituições.
De acordo com as informações disponibilizadas na página do Institut National de
l’Audiovisuel (INA), consta como produtor das reportagens o ORTF, e vemos
mencionados os nomes de Isidro Romero (realizador), Jose Dias e François Ede
(jornalistas), Marc Boussard (operador de som) e Jean Loius Normand e Pierre Dupouey
(operador de som) como responsáveis pela matéria sobre os exilados portugueses, e de Jean
Baronnet (realizador), Jean François Chauvel (jornalista), Roger Mathurin (operador de
som) e Jean Louis Normand (operador de imagem) nas reportagens sobre as colônias
africanas. Disponível em: <www.ina.fr/emissions/point-contrepoint/>. Acesso em: 9 nov.
2016.
O vídeo está disponível na rede virtual em: <www.ina.fr/video/CAF89037680>. Acesso em
27 jan. 2017. O INA esclareceu-nos por e-mail que não está habilitado a autorizar ou não a
publicação das imagens que seguem no texto, esclarecendo-nos a legislação pertinente ao
direito de propriedade intelectual (Code de la proprieté intellectuelle, Article L 122-5) que
autoriza a reprodução de imagens “sob reserva de que sejam indicados claramente o nome
do autor e a fonte” (alínea 3).
Os capítulos do documentário são: 1. Descolonização, com o MPLA [Movimento Popular
de Libertação de Angola] em Angola, 1974; 2. Indiferença, entrevista com Tonderai
Makoni, PhD, Rodésia/Zimbábue, conduzido em Estocolmo, 1970; 3. Rodésia; 4. Um
mundo dividido em dois; 5. Lamco, Libéria, 1966; uma greve surgiu em uma parte da
Companhia de Mineração Sueco-Americana Lamco [Liberian-American-Swedish Mining
Company] em Nimba. Uma equipe de televisão sueca fez-se presente; 6. Essa pobreza de
espírito; 7. O Fiat G.91, com a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] em
Moçambique, 1972; 8. Derrota, a Guerra de Independência de Guiné-Bissau; 9. Matérias-
primas (raw materials).

Referências
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pós-colonial violenta. Sobre um legado das guerras coloniais nas ex-colônias
portuguesas. Lusotopie, Paris, p. 175-193, 2003.
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(2): uma das raras cenas de combate, filmadas ao vivo (ORTF, 1969, c. 14
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ostra amarga ou Op Paris Match (Bula, 18 out. 1969). Luís Graça &
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____; ____. Guiné 63/74 — P2351: vídeos da guerra (6): uma Huître Amère
para a jornalista francesa Geneviève Chauvel. Luís Graça & Camaradas da
Guiné, s.l., 15 dez. 2007c. Disponível em: <https://blogueforanadaevaotres.bl
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VECCHI, Roberto. Excepção atlântica. Pensar a literatura da guerra colonial.
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6
Anistia 79: A restauração das imagens da
história pelo cinema1

Anita Leandro

No momento em que Roma acolhia a Conferência Internacional pela Anistia


Ampla, Geral e Irrestrita e pelas Liberdades Democráticas no Brasil, um
jovem brasileiro, sem experiência em cinema, saiu de Paris para filmar o
acontecimento, em companhia de um cinegrafista e de um operador de som.
Com essa equipe mínima, Hamilton Santos, ex-militante da Ala Vermelha,
exilado em Paris desde 1973, quando ali chegara, proveniente do Chile, após
o golpe militar contra Salvador Allende, filmou o evento com uma câmera
Arriflex 16 mm e um gravador Nagra para o registro do som direto, em
suporte magnético. As imagens produzidas, as únicas desse evento até hoje
conhecidas, permaneceram sem sincronização até o início de 2016, quando
foram encontradas, em Paris, durante uma busca, nos arquivos franceses, de
imagens relacionadas com os exilados brasileiros na Europa.
Ao filmar esse acontecimento central na história da luta pelo retorno dos
exilados e pela libertação dos presos políticos no Brasil, Hamilton Lopes dos
Santos tinha a preocupação de produzir um registro para o futuro. Mas ele
não podia, então, prever o interesse posterior do material filmado para a
historiografia e o cinema. A raridade de suas imagens só seria constatada
quatro décadas mais tarde, com o avanço das pesquisas sobre o período da
ditadura. O encontro de Roma havia reunido representantes de quase todos os
comitês de anistia organizados no Brasil e em países da Europa, além de
exilados, parlamentares, ativistas políticos, sindicalistas do campo e da
cidade, militantes e ex-combatentes. Entre os presentes estavam alguns dos
quadros mais importantes da resistência à ditadura e do movimento pela
anistia, muitos deles já mortos, hoje. Suas falas, gravadas pela equipe de
Hamilton, chegam agora até nós com uma inquietante atualidade. Inscritas no
momento presente e confrontadas a outros documentos, a fontes orais e ao
conhecimento sobre o passado e os desdobramentos da democracia
controlada que então se anunciava, essas falas produzem uma estranha
ressonância no Brasil atual. A moção final da conferência de Roma soa como
um verdadeiro “aviso de incêndio” (Löwy, 2005), do qual o material filmado
em 1979, agora retomado, aparece como um porta-voz.

A conferência de Roma
A Conferência Internacional pela Anistia aconteceu entre 28 de junho e 1o de
julho de 1979, nas dependências do parlamento italiano e na sede da Liga
Internacional para os Direitos e Libertação dos Povos. Essa fundação, que
deu apoio importante ao evento, foi criada por Lelio Basso, senador socialista
italiano e relator no Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra — o
Tribunal Russel, criado por iniciativa dos filósofos Bertrand Russel e Jean-
Paul Sartre para julgar os crimes dos Estados Unidos na guerra do Vietnã
(Greco, 2003:187). Inspirado nesse tribunal e mediante solicitação de
exilados brasileiros no Chile, Lélio Basso criaria, em 1971, o Tribunal Russel
II, voltado para os crimes de tortura e morte perpetrados pelo Estado militar
no Brasil e em outras ditaduras da América Latina (Rollemberg, 1999:233).
A Conferência Internacional pela Anistia, organizada por Lélio Basso poucos
meses antes de sua morte, teve o apoio da prefeitura de Roma e da
administração da região de Lazio. O evento recebeu 300 participantes, dos
quais 100 exilados (Greco, 2003:204).2 O encontro, cuja abertura acontecera
um dia depois da apresentação ao congresso brasileiro do projeto de anistia
restritiva do regime militar, tinha por objetivo mobilizar as forças de esquerda
e todos os comitês de anistia existentes no Brasil e no exterior, com vistas ao
fortalecimento da luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita.
Havia, na época, 30 comitês de anistia criados no exterior a partir de
1975, dirigidos por brasileiros e personalidades locais de diversos países da
Europa, África e América Latina. Calcula-se um total de 10 mil exilados e
130 banidos brasileiros espalhados pelos diversos continentes nessa época
(Greco, 2003:191). O regime considerava “banidos” apenas os 130 presos
políticos que, ao serem trocados por diplomatas sequestrados pela guerrilha,
assinaram uma declaração obrigatória de aceite de saída da prisão e de
banimento do país. Quanto aos exilados, que não eram reconhecidos
enquanto tais pelo regime, constituíam um contingente bem maior de
pessoas, incluindo, além das diferentes gerações de resistentes que fugiram
do Brasil, várias crianças nascidas no exterior, apátridas e sem
documentação. O Brasil, única ditadura da América Latina a negar passaporte
aos exilados, admitia existir, fora do país, apenas os banidos e recusava-se a
anistiar quem tivesse participado de ações armadas (Greco, 2003:78, 182).
Mais do que restritiva, a anistia inicialmente proposta pelo regime era
considerada, na verdade, uma farsa, uma vez que não reconhecia os exilados.
Contra a decisão do regime, os comitês de anistia no Brasil e no exterior,
apoiados por parlamentares de esquerda, movimentos sociais e organizações
sindicais, reivindicavam uma “anistia ampla, geral e irrestrita”. Os exilados
brasileiros de diversas tendências políticas, previamente reunidos em torno da
campanha contra a tortura e pela obtenção de documentos, encontraram na
campanha pela anistia um centro de convergência das esquerdas no exílio. A
representatividade de diferentes tendências políticas de esquerda na
Conferência de Roma vai refletir essa convergência.
Embora os militares recusassem a anistia ampla, Heloisa Greco considera
que o contexto histórico de 1978-79 favoreceu a luta dos CBAs. As denúncias
de tortura no Brasil haviam ganhado maior visibilidade, graças à divulgação
de listas com os nomes de centenas de torturadores e à descrição dos métodos
de interrogatório por eles utilizados. A extrema-direita respondera a essas
listas com atentados a bomba e ameaças de morte e os fatos repercutiram na
imprensa nacional e internacional. Uma carta de protesto contra os crimes da
ditadura, exigindo anistia geral e irrestrita, é enviada ao governo brasileiro,
com 5 mil assinaturas de personalidades internacionais do meio científico e
cultural, como os prêmios Nobel Francis Jacob e Alfred Kestle, além dos
cineastas Jean-Luc Godard e Alain Resnais, dos filósofos Jean-Paul Sartre e
Simone de Beauvoir e dos escritores Gabriel García Marquez e Julio Cortázar
(Greco, 2003:199). Outro documento com assinaturas de mil intelectuais
importantes, entre os quais Paul Ricoeur, Michel de Certeau, Lelio Basso,
Paul Veyne e o prêmio Nobel André Wollf, é encaminhado à embaixada do
Brasil na França, tendo à frente Alfred Kestler e Etienne Bloch, presidente do
Comité France-Brésil, criado em solidariedade aos exilados brasileiros
refugiados no território francês. “A repressão à missão de alto nível à porta da
embaixada brasileira acaba potencializando a repercussão, na mídia, da
pressão política dos intelectuais europeus” (Greco, 2003:201-202). Heloísa
Greco evoca ainda três acontecimentos graves no período, amplamente
divulgados no exterior, que teriam contribuído para o desgaste do regime
perante a opinião pública: o assassinato do padre Burnier pela polícia,
enquanto visitava uma cadeia em Ribeirão Bonito, no Mato Grosso do Sul; a
tortura a dom Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu; e o massacre da Lapa,
quando a polícia invadiu um local de reunião clandestina do PCdoB,
assassinando, friamente, pessoas desarmadas. Heloisa Greco vê na
Conferência de Roma, como em várias outras ações que a precederam e a
tornaram possível, um “momento privilegiado e bem aproveitado de desgaste
da ditadura militar brasileira”, bem como de “fortalecimento da luta pela
anistia e potencialização de sua visibilidade” (Greco, 2003:204). A realização
do III Encontro Nacional pela Anistia, no Rio de Janeiro, há poucos dias da
conferência de Roma, havia exposto a contradição do regime, capaz de
propor a anistia com a manutenção da Lei de Segurança Nacional, do aparato
repressivo, da censura à imprensa e da restrição à mobilização dos
trabalhadores (Greco, 2003:211).
Três semanas depois da Conferência Internacional de Roma, em 22 de
julho de 1979, os presos políticos do Presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro,
iniciam uma greve de fome de 32 dias pela anistia ampla, geral e irrestrita.
Com apoio de artistas, intelectuais, sindicalistas e personalidades políticas e
eclesiásticas, o movimento ganha vários outros presídios (Amorim Viana e
Cipriano, 1992). A lei de anistia é, finalmente, promulgada em 28 de agosto
de 1979, com restrições que colocam em suspensão o que Heloísa Greco
considera os três eixos centrais e fundantes dessa luta: o retorno de todos os
exilados, a libertação de todos os presos políticos e o esclarecimento sobre os
mortos e desaparecidos, “com seus corolários, a punição dos torturadores, o
fim da legislação de exceção e o desmantelamento do aparato repressivo”
(Greco, 2003:215). Na aurora da lei da anistia, a repressão, paradoxalmente,
recrudescia contra operários em greve, assassinados em Minas e em São
Paulo. Havia risco em voltar para o Brasil e as CBAs recomendavam um
retorno coordenado, se possível coletivo, organizando recepções nos
aeroportos e rodoviárias, de forma a tornar pública a volta dos exilados e
clandestinos e garantir minimamente sua integridade física (Greco,
2003:216). Uma avaliação bastante clara desse contexto histórico emerge,
como vamos ver, do material filmado em Roma em 1979.

As imagens de Hamilton Lopes dos Santos


As filmagens da conferência de Roma foram financiadas pelo Comité France-
Brésil, dirigido, na época, por Etienne Bloch, cofundador do sindicato da
magistratura e filho do historiador Marc Bloch. O comitê doou a Hamilton
Lopes dos Santos mil francos, o suficiente para pagar o aluguel da câmara e
do gravador. A equipe foi constituída por voluntários e amigos, a quem
Hamilton pagou, com recursos próprios, as passagens de trem Paris-Roma.
Dirigidos por ele, dois técnicos do mercado cinematográfico, um italiano,
Chicho, e o outro brasileiro, Velso, asseguraram, respectivamente, o som e a
imagem. De maneira improvisada, sem roteiro e, no caso de Hamilton, sem
experiência em realização, os três filmaram toda a conferência da anistia,
durante um final de semana, movidos apenas por uma espécie de faro
historiográfico. “Era preciso deixar um registro para as gerações futuras”,
avalia, hoje, Hamilton, diante de suas imagens.3
Do conjunto do material bruto, nos foi possível, até o momento, ter acesso
a nove bobinas de som e a 75 minutos de banda visual, transferida para
suporte mini-DV, em quatro cassetes. As fitas mini-DVD, com imagens sem
som e em preto e branco, foram depositadas por Hamilton Santos na BDIC-
Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine, na cidade de
Nanterre, França, em 2006, para fins de preservação, sem a possibilidade de
consulta. A telecinagem dos rolos de filme havia sido feita naquele ano por
Sílvio Da-Rin durante sua pesquisa de imagens para o documentário
Hércules 56 (2006), filme que utiliza dois trechos do material de Roma: uma
fala curta do líder comunista Gregório Bezerra e outra fala, igualmente breve,
do sindicalista Rolando Frati, ambos trocados pelo embaixador norte-
americano Charles Elbrik, sequestrado pela guerrilha no Rio de Janeiro.
Como o material depositado na BDIC não tinha som, entrei em contato com
Hamilton e descobri que os originais, em 16 mm, ainda existiam, bem como
as nove bobinas de som, guardadas em Paris, nos arquivos pessoais do
realizador. O conjunto do material bruto reunido — mini-DVs e bobinas de
som — ainda não havia sido mixado ou submetido a qualquer tipo de
montagem. Hamilton tinha uma outra atividade profissional e, por falta de
dinheiro e de tempo disponível para construir um projeto de documentário,
guardou o material durante quase quatro décadas, sem proceder a nenhum
tipo de montagem. A digitalização do som em 2016, para dar início à
mixagem, revelou um volume de material sonoro (124 minutos) bem maior
do que o de imagens (75 minutos), um indício de que, talvez, nem todos os
rolos de filme tenham sido telecinados por Da-Rin. Assim, antes da
montagem do material bruto, será ainda necessário proceder a uma
verificação do conteúdo dos rolos originais de película.
A mixagem do material deu acesso ao registro de diferentes momentos da
Conferência Internacional pela Anistia. Foram filmados os discursos das
seguintes pessoas: Helena Greco, fundadora do Movimento Feminino pela
Anistia de Minas Gerais; Carmela Pezzuti, representante dos exilados; Linda
Bibi, secretária-geral da Liga Internacional para os Direitos e Libertação dos
Povos; Manuel da Conceição, líder dos trabalhadores rurais; Gregório
Bezerra, militante do PCB; Jean-Marc von der Weid, liderança estudantil dos
movimentos de 1968; Modesto da Silveira, advogado de presos políticos;
Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas; e a atriz Ruth Escobar, que faz
o discurso de encerramento. Apenas dois desses discursos — o de Linda Bibi
e o de Ruth Escobar — parecem ter sido filmados na sua integralidade e com
som. A maioria está cortada e se resume a trechos breves das falas, às vezes
sem som. O discurso de Helena Greco, por exemplo (figura 1), embora tenha
sido inteiramente filmado, não tem som e sua fala não está gravada em
nenhuma das nove bobinas de som localizadas em Paris.

Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.

Além dos discursos, o material bruto traz também o registro de uma


entrevista coletiva com três deputados do antigo MDB (Elquisson Soares,
Edson Kahir e Airton Soares) e três veteranos da resistência à ditadura,
exilados na Europa (Gregório Bezerra, Apolônio de Carvalho e Diógenes
Arruda).4 Os seis são entrevistados pelo ex-presidente da UNE, Luiz
Travassos, ele também exilado (figuras 2 e 3).5
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.

Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.
Trata-se da mais longa sequência de todo o material filmado, com
aproximadamente 40 minutos de falas, algumas delas carregadas de emoção,
como a do ex-deputado federal do PCB Gregório Bezerra, sobre o terrorismo
de Estado, do qual ele foi uma das primeiras vítimas, logo após o golpe de
1964:6

Continuarei lutando e mobilizando as massas tanto quanto me seja possível, para


conseguir uma anistia total, sem nenhum adjetivo, uma anistia ampla e irrestrita, para
todos os cidadãos brasileiros que há 15 anos vêm sofrendo, sendo humilhados pelas
forças repressivas da ditadura militar fascista que tiraniza o povo brasileiro. [Bezerra,
apud Lopes dos Santos, 1979]

Na única sequência rodada fora das dependências do parlamento italiano,


onde se realizava o encontro, assistimos a uma conversa entre três
sindicalistas, filmada num terraço, ao ar livre. Manuel Conceição Santos, ex-
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pindaré-Mirim,
entrevista dois outros líderes sindicais: o metalúrgico Rolando Frati, da ALN,
e José Pedro da Silva, da Ação Popular, liderança das greves de 1968 em
Osasco (figura 4).

4
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.

Manoel Conceição, preso político barbaramente torturado no Maranhão,7


alerta quanto à violência generalizada do regime e do risco, para os
trabalhadores da cidade e do campo, de saírem da clandestinidade, sem o
direito de ter o seu próprio partido. Rolando Frati chama a atenção para a
possibilidade, naquele momento, de se criarem no Brasil milhares de
organizações populares, como estratégia para se chegar a um programa único
de libertação do país e de conquista de um regime realmente democrático, de
interesse das massas:

Eu tenho que contrariar a opinião de muita gente da esquerda que diz que a luta pela
liberdade é coisa da burguesia. Não é não. É de operário. A burguesia nunca defendeu
a liberdade, sempre foi contra. No Brasil, nunca houve liberdade. Porque a liberdade dá
às classes exploradas a possibilidade de se organiza e lutar contra a exploração. Então,
todas as aberturas que estamos vendo no Brasil são mínimas. [Frati, apud Lopes dos
Santos, 1979]

Embora a anistia ampla, geral e irrestrita unifique os discursos de todos os


delegados presentes ao encontro de Roma, as falas registradas dão acesso a
avaliações ligeiramente divergentes sobre os rumos da democracia no Brasil.
Helena Greco, juntamente com o jurista Luiz Eduardo Greenhalgh,
representa, no evento, os movimentos pela anistia no Brasil, sublinha em seu
discurso o risco da manutenção do aparato repressivo e de cooptação de
setores da oposição por parte do regime:

[...] a ditadura procura controlar o processo de mudança, sem querer transformar a sua
essência, numa tentativa de perpetuar a sua dominação. [...] o comportamento indeciso
do partido oposicionista legal permitido, no seu conjunto, não conseguindo articular
uma alternativa firme e combativa diante do projeto governamental, é um empecilho
real à nossa ação. [Greco, 1979]8

Helena Greco critica, aqui, o MDB, único partido de oposição existente.


As falas dos parlamentares entrevistados por Luiz Travassos demonstram a
importância e a profundidade do debate político instaurado, na época, em
torno da organização partidária, como nesta fala do deputado Edson Kahir, do
então MDB:

Mesmo que nosso projeto alternativo em favor de uma anistia ampla geral e irrestrita
seja derrotado dentro do MDB ou fora dele, no parlamento como um todo, nós vamos
insistir em denunciar a anistia parcial, bem como todo um complexo de medidas em
favor dessa democracia restritiva. [...] A questão da anistia está intimamente ligada à
luta geral do povo brasileiro para recuperar as chamadas liberdades democráticas e
avançar, a fim de que o povo possa, efetivamente, ele sim, dar um passo avante,
restabelecendo um estado de direito democrático. [Kahir apud Santos, 1979]

Duas questões mobilizam o conjunto das falas: a inquietude quanto à


manutenção do aparato repressivo e a necessidade de criação de um partido
proveniente das massas operárias, como se verifica também no discurso dos
dois outros parlamentares do MDB entrevistados por Travassos. Para o
deputado Elquisson Soares, o PTB já não era mais capaz de despertar o
interesse da massa operária de São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte,
onde se concentravam as greves. Mas se, por um lado, havia pressão dos
trabalhadores para a criação de um partido que os representasse, por outro,
havia também uma sofisticação dos métodos de dominação da ditadura,
conforme alerta o deputado Airton Soares em sua fala. A ditadura não
precisava mais ser cruel e sanguinária. Sofisticada e mais esclarecida, ela
havia mantido, intocado, todo o seu aparelho repressivo.
Considerado pelas instituições de defesa dos direitos humanos um país-
chave do sistema imperialista na América Latina, crucial na preparação de
outros golpes no continente e na expansão de regimes análogos, o Brasil
despertava, desde essa época, o interesse internacional das entidades ligadas à
defesa dos direitos humanos. Na avaliação da representante da fundação
Lelio Basso, Linda Bibi, a utilização da tortura como instrumento de governo
e não mais apenas como um terrível instrumento judiciário de polícia havia
encontrado, no Brasil, sua mais alta expressão. Sua fala, fortemente aplaudida
e filmada em sua integralidade, é próxima do discurso de Manoel da
Conceição, ele também muito aplaudido. Segundo o líder camponês, a
condição para uma democracia ampla, geral e profunda a partir daquele
momento seria o reconhecimento, por parte dos torturadores, de seus próprios
crimes, o que até hoje não aconteceu.
Todas as falas alertam quanto à gravidade do contexto político brasileiro,
como a de Carmela Pezzutti, ex-militante do Colina, trocada pelo embaixador
suíço, representante dos exilados reunidos em torno dos comitês brasileiros
de anistia da Europa, América do Norte, América Latina e África:

Esse projeto pretende excluir da vida política nacional aqueles que, num determinado
momento, fizeram uso do direito legítimo à resistência armada contra o regime
ditatorial que suprimiu todas as liberdades e se manteve durante 15 anos graças à
tortura, ao assassinato e à violência policial. [...] O regime instalado em 1964 sob o
pretexto de liquidar a inflação e a corrupção convive com ambas em grau escandaloso.
[Pezzutti apud Santos, 1979]

Embora atento à singularidade do momento, Diógenes Arruda, fundador


do PCdoB, preso e torturado em 1968, faz um pronunciamento otimista sobre
a correlação de forças em jogo no Brasil:

O elemento essencial para levar o regime militar à crise, à desagregação e a


contradições crescentes foi a luta de nosso povo, que tem como figura principal, hoje,
emergente, com grande força e força crescente, o movimento operário e o movimento
sindical. Se compreendermos esse fato, vemos que a ditadura, por mais que mantenha
uma aparência, está acuada, na defensiva. [Arruda apud Santos, 1979]

O fortalecimento dos trabalhadores e dos movimentos populares aparece


nas falas registradas como uma estratégia de luta política intimamente ligada
ao retorno dos exilados. Apolônio de Carvalho, ex-combatente da guerra civil
espanhola e da resistência francesa, que retornou ao Brasil de maneira
semiclandestina, em 1957, via na transição vigiada dos militares o risco de
controle do movimento operário e do movimento popular. Em sua avaliação,
o bloco dominante, mais do que qualquer outra coisa, temia, naquela época, o
movimento popular, e mais do que qualquer outra área do movimento
popular, temia a emergência do movimento operário. A lei de anistia deveria,
assim, vir de forma articulada com o combate ao conjunto da legislação
repressiva do regime. É o que assinala Jean-Marc van der Weid em seu
discurso tristemente premonitório, do qual apenas um pequeno trecho existe
no material encontrado:

Estaremos submetidos à possibilidade eterna de voltarmos à cadeia. Porque, se nós


viemos para o exterior por ações e princípios que nós combatemos, nós continuamos
combatendo aqui e vamos continuar combatendo quando voltarmos lá. De modo que
todos os riscos continuam e acredito que muitos de nós ainda tenhamos de passar por
situações bastante difíceis. [Van der Weid apud Santos, 1979]

Além desses três grandes eixos das filmagens (os discursos dos
delegados; a entrevista com os parlamentares e os exilados; e a conversa entre
os sindicalistas), o material bruto contém ainda dois brevíssimos trechos de
entrevistas com Modesto da Silveira, falecido em 2016, e Edson Kahir, além
de diversos planos de cobertura: controle dos participantes na entrada da sede
do parlamento; reencontro emocionado de ex-combatentes, advogados e
militantes; ouvintes no plenário; aplausos; chegada de Denise Crispim e
Eduarda Crispim Leite, respectivamente, esposa e filha de Eduardo Leite, o
Bacuri, da ALN;9 uma conversa entre Nancy Mangabeira Unger, trocada pelo
embaixador suíço, Heloisa Greco, ativista dos direitos humanos, e Murilo
Pezzuti, trocado pelo embaixador alemão.10
A montagem do material
A retomada desse material, tantos anos depois, deve, hoje, levar em conta não
somente o contexto histórico da produção dessas imagens, mas também sua
própria história, a raridade desses planos e dos discursos neles contidos.
Numa época em que se filmava em película, um suporte oneroso, enquanto a
maioria dos exilados vivia em condições precárias, perseguidos pela polícia e
sem dinheiro para a sobrevivência, a produção independente e amadora nesse
meio era, é claro, quase inexistente. Os filmes realizados por Luiz Alberto
Sanz no exílio chileno e sueco são, nesse sentido, uma exceção da regra entre
os exilados brasileiros. E seus documentários só foram possíveis graças à
cooperativa Film Centrum, da Suécia, que apoiava produções de cineastas de
países em situação de conflito (Leandro, 2015). É igualmente raro o registro
de imagens de exilados brasileiros nos arquivos das televisões europeias —
onde as notícias sobre o Brasil, com raras exceções, eram pautadas por
interesses bem mais econômicos do que humanitários: só falaram dos
exilados nos momentos dos sequestros de embaixadores. Mesmo na França,
considerada, no entanto, uma terra de acolhida, com o maior contingente de
refugiados e instituições de apoio, os exilados brasileiros praticamente não
apareceram na televisão durante os 21 anos de duração da ditadura militar.
Nos acervos do Institut National de l’Audiovisuel (INA), entre os cerca de 14
mil títulos de materiais audiovisuais relacionados com o Brasil difundidos
entre 1964 e 1981 pela televisão francesa, apenas quatro reportagens trazem
entrevistas com exilados brasileiros. Somadas, elas não ultrapassam sete
minutos e meio, no âmbito de uma vastíssima programação sobre o Brasil
cujos temas predominantes são o carnaval, o futebol e a Floresta Amazônica.
Os únicos brasileiros com aparições mais frequentes na televisão francesa
durante a ditadura foram dom Helder Câmara (seis aparições no período,
entre reportagens e programas de auditório), Carlos Lacerda (três
reportagens) e, é claro, os generais presidentes, durante suas visitas oficiais à
França (duas reportagens sobre Costa e Silva, sete sobre Ernesto Geisel e
quatro sobre Figueiredo), além do ministro do interior de Castelo Branco e do
ministro das relações exteriores de Geisel, cargos importantes nas
colaborações políticas e econômicas do governo francês com a ditadura.11
Toda essa carência de arquivos audiovisuais sobre os exilados brasileiros
confere um valor suplementar aos registros da conferência de Roma.
Hamilton Lopes dos Santos viu o material mixado pela primeira vez em
junho de 2016, quando fui filmá-lo nos Pirineus. Ele quis ver as imagens ao
lado de um velho amigo, também presente na conferência de Roma, Dirceu
Greco Monteiro, com quem chegara em Paris em 1973, fugindo do golpe no
Chile. Eles foram, então, filmados juntos, diante das imagens, enquanto as
descobriam, emocionados. A mediação das lembranças e da fala desses
homens pelas imagens feitas por um deles em Roma permitiu o
estabelecimento de um rico diálogo entre o passado e o presente. Hamilton e
Dirceu não foram entrevistados. Em vez de se organizar como respostas a
perguntas, a fala dos dois amigos provém de um face a face com o material
filmado. Uma relação de reciprocidade se estabelece entre a fala e os
arquivos. As imagens desencadeiam a fala (ou a colocam em suspensão,
conforme o caso), da mesma forma que a fala atualiza as imagens, tornando-
as acessíveis em sua materialidade documental. Os arquivos são mudos e
órfãos, diz Paul Ricœur, e “dependem dos cuidados de quem tem a
competência para questioná-los e, assim, defendê-los, socorrê-los, dar-lhes
assistência” (Ricœur, 2000:213). O repasse desse cuidado e dessa
competência à testemunha da história muda seu estatuto: de entrevistada, ela
torna-se uma narradora singular dos acontecimentos, capaz de contá-los na
primeira pessoa, de um ponto de vista interno e a partir de um lugar
privilegiado, o espaço das filmagens, onde acontece o entrecruzamento de
suas lembranças com a carga mnêmica das próprias imagens. O encontro de
Hamilton e Dirceu com as imagens da conferência de Roma abriu esse
material a novas interpretações. Longe de dizer a palavra final sobre o evento,
suas falas evidenciam, ao contrário, as lacunas da história. Quem são aquelas
pessoas reunidas em Roma? Do que estão falando? O que aconteceu com elas
depois do retorno ao Brasil? O diálogo com as imagens do passado convida,
assim, a ampliar o debate, convocando outras testemunhas e outros
documentos relacionados com o acontecimento filmado.
Algumas lacunas puderam, por exemplo, ser imediatamente detectadas na
digitalização e sincronização do material, como a falta de alguns sons e de
algumas imagens. Mas, além disso, um outro tipo de lacuna, bem mais
profundo e irremediável, aparece nesses registros: no intervalo de tempo
decorrido entre as filmagens em Roma e o atual projeto de montagem do
material, a maioria das pessoas presentes nas imagens já havia morrido.
Numa das mais belas cenas filmadas pela equipe de Hamilton, rodada do lado
de fora do parlamento romano, sob o sol de verão do Sul da Itália, Murilo
Pezzuti, Nancy Mangabeira Unger e Heloísa Greco conversam, sorridentes,
no meio da rua (figura 5). O plano dura poucos segundos e a conversa é
captada pela câmera num rápido movimento circular em torno deles. Embora
muito breve, a cena, filmada no estilo do cinema direto, desperta a
curiosidade do espectador. Quem são esses três jovens, surpreendidos num
momento de aparente intimidade? Sobre o que eles estão falando? Tantos
anos depois, a cena permanece, ainda hoje, envolvida em mistério, pois o
som da conversa, infelizmente, não foi gravado. Como nenhum dos três foi
entrevistado ou pronunciou discurso no plenário, o único registro de fala
desses jovens durante todo o evento está contido nessa conversa inaudível.
Depois de voltar do exílio, Murilo suicidou-se em 1990 e desse pequeno
grupo restam, hoje, Nancy e Heloísa. Talvez, diante das imagens, elas
possam rememorar esse encontro.
Fonte: Fotograma do material filmado em Roma pela equipe de Hamilton Lopes dos
Santos, durante a conferência pela anistia.

Não somente as imagens trazem consigo vestígios da história, mas elas


têm também uma historicidade. Para tornar acessível essa historicidade do
documento, a montagem pode proceder à associação de outras fontes
documentais e orais. As próprias imagens de Hamilton Lopes dos Santos nos
colocam, hoje, na pista de outras imagens. Uma segunda equipe de filmagem
e dois fotógrafos aparecem, por exemplo, em planos rodados pela equipe de
Hamilton no plenário e numa sala do parlamento italiano. Quem são esse
cinegrafista e esse operador de som? Quem são esses fotógrafos? Suas
imagens, se ainda existem, poderão, talvez, associar-se, na montagem, às
imagens encontradas, complementando-as, restaurando pequenas lacunas
sonoras e visuais. Da mesma forma, vê-se, nas mãos dos palestrantes, o texto
de suas conferências. Se as cópias desses discursos foram arquivadas, é
possível, a partir do texto, recuperar o conteúdo de palestras cujo som se
perdeu. Foi assim que tivemos acesso ao conteúdo da fala sem som de Helena
Greco, uma das personalidades mais importantes da luta pela anistia no
Brasil. Seu discurso, arquivado no Instituto Helena Greco de Direitos
Humanos e Cidadania, pode agora ser retomado na montagem. O texto
escrito, vestígio documental da oralidade perdida dessas imagens, pode ser
gravado, comentado e transformado na montagem em fala viva.
Procedimento básico na atividade do historiador, o cruzamento de fontes
documentais e orais encontra, na montagem cinematográfica, ferramentas
úteis à escrita da história. Além de associar materiais de origens diversas,
como um documento textual e um testemunho oral, a montagem restaura
documentos visuais e sonoros, sincroniza imagem e som, compõe uma
narrativa com as falas das testemunhas e com os silêncios dessas mesmas
falas. Diante do material filmado em Roma, pessoas presentes ao evento
podem trazer informações sobre o extracampo desse acontecimento, sobre
seu contexto histórico. De acordo com o tipo de abordagem que reservamos
aos arquivos no cinema, podemos despertar “algo que jazia na imagem e que
ainda não havia chegado até nós” (Comolli, 2008:30). Em vez de tapar os
buracos existentes nas imagens do passado, a montagem pode, ao contrário,
escavá-los ainda mais. A montagem reenquadra o detalhe imperceptível na
imagem, aproxima o documento e dá acesso a uma micro-história do
acontecimento, procedendo a uma espécie de “análise com lupa” (Ginzburg e
Poni, 1981:133). Ao reduzir a velocidade do movimento, a montagem traz
também a possibilidade de dilatar o tempo, permitindo uma “decomposição
analítica do gesto” (Gianikian e Ricci Lucchi, 1995). Passa-se a ver mais de
perto e melhor, fotograma por fotograma. Dependendo da forma como são
aplicados, os procedimentos da montagem oferecem ao documentário
histórico certa margem de cientificidade.
O raccord, um dos principais recursos da montagem clássica, aproxima
diferentes tempos históricos, inscrevendo no presente vestígios do passado. A
montagem justapõe discursos antagônicos e associa temporalidades distintas.
Ela cria as condições de audibilidade e de visibilidade para as fontes orais e
documentais, matéria-prima do documentário histórico. Ao expor as ruínas
do passado como tais, a montagem adquire, por essa via, um estatuto
epistemológico inegável, mostrando que um filme histórico pode ser algo
mais do que um filme de conteúdo histórico. Ao tornar evidente o caráter
lacunar dos documentos da história, a montagem produz conhecimento
histórico sobre esses mesmos documentos e, por meio de uma abordagem
materialista das fontes, se filia a um projeto hermenêutico mais amplo, que
“passa do nível da explicação da textualidade ao da compreensão histórica”
(Dosse, 2010:757). O documentário histórico vai além de uma narrativa
animada e ilustrada da história, destinada à vulgarização da história escrita.
Na montagem, o documentário escreve a história com seus próprios meios e
dá acesso a novos aspectos dos acontecimentos.
A montagem, como método historiográfico, interfere na escrita da história
desde o momento do registro dos testemunhos. Transportado para o set de
filmagens, o material de arquivo convida a testemunha a um retorno à gênese
dos documentos. E, em vez do sistema tradicional de entrevistas, baseado em
perguntas e respostas, procede-se à mediação da oralidade pelos documentos
da história, numa montagem antecipada que reúne fonte documental e oral
num mesmo plano. O cruzamento de fontes documentais e orais, que começa
nas filmagens de uma fala viva e se conclui na montagem propriamente dita,
dá acesso a uma dupla “poética do testemunho” (Derrida, 2005): uma poética
da fala, que chama a atenção para a forma do documento, e uma poética do
próprio documento, determinante para a estética da fala. Assiste-se a uma
memória em ação, em duplo sentido, fruto do encontro da testemunha com os
vestígios de sua história. O cinema revela aspectos dos documentos e da fala
viva dificilmente compartilhados sem os procedimentos específicos da
montagem e o jogo de aproximações e distanciamentos espaçotemporais que
ela produz. Um certo cinema historiográfico, dentro do qual se insere o
projeto de retomada das imagens da conferência de Roma, parece, hoje,
acenar com uma nova heurística, um método de descoberta de camadas
subterrâneas da história que passa pela montagem.

Pesquisa pós-doutoral financiada pela Capes, desenvolvida por Anita Leandro (PPG-
Com/UFRJ) junto à Université Paris-Sorbonne entre 2015 e 2016, com supervisão do
historiador Jean-Pierre Bertin-Maghit. Os primeiros resultados desta investigação foram
apresentados no Seminário Internacional de Documentário de Arquivo — Arquivos em
Movimento na Escola de Ciências Sociais da FGV/CPDOC, Rio de Janeiro, de 24 a 25 de
novembro de 2016.
Para um relato mais detalhado sobre a Conferência de Roma, remetemos à tese de
doutorado da historiadora Heloísa Greco, Dimensões fundacionais da luta pela anistia,
defendida em 2003, junto ao Departamento de História da UFMG, sob orientação de
Lucília de Almeida Neves. Ver, em particular, o capítulo 6, intitulado “A frente externa: a
luta pela anistia em solo estrangeiro” (p. 141-185). Heloísa Greco é uma das 300
participantes do evento, juntamente com sua mãe, Helena Greco, uma das líderes do
movimento pela anistia no Brasil.
Hamilton Santos foi filmado pela autora desse texto em junho de 2016, na França.
Hoje, esses três resistentes estão mortos. Arruda morreria logo após essas filmagens, em
novembro de 1979, poucos dias depois de retornar ao Brasil, com a anistia.
Travassos morreu num acidente de automóvel no Rio de Janeiro, em 1982.
Preso em 2 de abril de 1964, um dia depois do golpe, Gregório Bezerra foi espancado,
queimado, esfolado e arrastado pelas ruas do bairro Casa Forte, em Recife, amarrado ao
pescoço por três cordas atadas a um Jeep, enquanto a polícia incitava a população ao
linchamento. O espetáculo macabro contra esse homem de 64 anos de idade, na época, foi
comandado pelo coronel do Exército Darcy Villocq Vianna, da Companhia de
Motomecanização da 7a Região Militar de Recife (Comissão da Verdade, 2014: v. II, p. 69,
113).
Esse líder camponês foi vítima de torturas inenarráveis, cujo requinte de crueldade
motivou, inclusive, um pronunciamento do papa Paulo VI, em 1970. Ver o testemunho de
Manuel Conceição Santos à Comissão Nacional da Verdade (2014:414).
Gravado sem som, como explicado anteriormente, o discurso de Helena Greco é aqui
restituído graças a um documento textual arquivado pelo Instituto Helena Greco de Direitos
Humanos e Cidadania (Greco, 1979). Com exceção do discurso da ativista mineira,
transcrito a partir do texto arquivado, as demais falas provenientes da Conferência de
Roma, citadas neste texto, são transcrições do material sonoro bruto registrado pelo
operador de som da equipe de Hamilton Santos.
Bacuri foi assassinado pela equipe do delegado Fleury, depois de 109 dias de tortura
ininterrupta, praticada por diferentes órgãos de repressão, entre eles o Centro de
Informações da Marinha e o DOI-Codi do I Exército (Comissão da Verdade, 2014: v. I, p.
112 e 449). Parte de sua história é contada no filme Repare bem (Maria de Medeiros,
2012).
Juntamente com Angelo Pezzuti da Silva, seu irmão, os companheiros Maurício Paiva,
Afonso Celso e Paulo Bretas e mais cinco outros presos, Murilo Pinto da Silva serviu de
cobaia numa aula de tortura para mais de 100 sargentos, na 1a Companhia de Polícia do
Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro, ministrada em 8 de outubro de 1969 por um
oficial da PE, o tenente Ailton Joaquim, chefe da seção de informações da 1a Companhia
(Comissão da Verdade, 2014: v. I, p. 351). Murilo Pezzuti suicidou-se em 1990, no Brasil.
Além de trocas econômicas com o Brasil — como a exportação de aviões e de tecnologia
nuclear firmada antes do golpe e mantida pelos militares — a França colaborou também
com o regime ditatorial no campo político. Documentos diplomáticos de difusão restrita,
consultados nos Archives Nationales, no âmbito da presente pesquisa, mostram, por
exemplo, a conivência de autoridades francesas com a entrada clandestina de policiais
brasileiros no país, entre outros tipos de colaboração. É conhecida a atuação, no Brasil, do
general francês Paul Aussaresses, um dos mentores da tortura na guerra da Argélia. Depois
de ter dado treinamento em técnicas de contrainsurreição ao exército norte-americano e a
militares brasileiros nos Estados Unidos, esse comerciante de armas da Thompson treinou
o exército brasileiro no Centro de Instrução de Guerra na Selva, de 1973 a 1975 (Duarte-
Plon, 2014). Nomeado adido militar francês no Brasil no auge da repressão, ele manteve
relações estreitas com membros do Esquadrão da Morte, como o delegado Sérgio Fleury e
o general Figueiredo, chefe do SNI, na época.

Referências
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Paulo: Fundação Perseu Abramo; Vitória: Edufes, 1992.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. 2014. v. I e II.
COMOLLI, Jean-Louis. Images d’archives: emboîtement des regards.
Entretien avec Sylvie Lindeperg. Images Documentaires, n. 63, p. 11-39, 1. e
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DERRIDA, Jacques. Poétique et politique du témoignage. Paris: L’Herne,
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DOSSE, François. Herméneutique. In: ____. Historiographies, II. Concepts
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GIANIKIAN, Yervant; LUCCHI, Angela Ricci. Notre caméra analytique.
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GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. La micro-histoire. Le Débat, p. 133-136,
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GRECO, Heloisa Amelia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese
(doutorado) — Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
____. Discurso. Roma, 28 jun. 1979. Fundo CBA-MG, acervo pessoal de
Helena Greco, depositado no Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e
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LEANDRO, Anita. Cinema do exílio. Entrevista com Luiz Alberto Sanz e
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LOPES DOS SANTOS, Hamilton. Imagens da Conferência Internacional
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LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses
Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.
RICŒUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro; São
Paulo: Record, 1999.
7
Reapropriação como reconfiguração de
arquivos: o método poético do found
footage e um estudo de caso no YouTube

Carlos Adriano Jeronimo de Rosa


Claudio Marcondes de Castro Filho

Arquivos e ruínas da história


Se nomear um objeto é também uma forma de definir tal material no tempo e
no espaço, sob o sentido de situá-lo em propósitos e funções, o caso do found
footage é exemplar.1 Procedimento ou gênero, o found footage é uma forma
de produção cinematográfica que recicla, reedita, ressignifica e se apropria de
imagens alheias, filmadas em outro tempo e outro contexto. O termo em
inglês é adotado em outras línguas, mesmo que em francês se fale em cinéma
de recyclage ou cinéma de remploi (Brenez, 2012) e em português possa se
usar “cinema de reapropriação de arquivo” (Rosa, 2008). A própria
dificuldade de se traduzir found footage enuncia o problema de conceituá-lo
apropriadamente e anuncia a irredutibilidade, ou irreprodutibilidade, da
formulação. Como traduzir found footage: “metragem de filme encontrada”,
“metragem de filme encontrado”, “material fílmico achado”, “matéria
filmada que foi descoberta”?
Se os homens precisaram arquivar seu conhecimento para constituir uma
memória, tal arquivo seria apropriado pelas gerações seguintes não apenas
para instituir um conhecimento (uma função pragmática da memória?), para
reconstituir uma história (uma função de salvaguarda da história?), mas
também para reimaginar um passado que poderia ter sido e não foi, gorado no
agora do presente; enfim, para reinventar uma experiência.
Uma das apostas mais instigantes na abordagem da história como
reimaginação da memória é o pensamento de Walter Benjamin. Na
perspectiva de uma história do ponto de vista dos vencidos e dos fragmentos,
Benjamin recolheu os cacos da história para construir um monumento em
ruínas. Na configuração de uma constelação, o passado e o presente
articulam-se em fulguração, numa alegoria inaugural e fecunda — “As ideias
se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas”
(Benjamin, 1984:56).
A “imagem dialética” (Benjamin, 2006) é uma imagem alusiva (aspira à
presentificação de uma ausência), elusiva (opera com pedaços de ruína) e
evasiva (condiciona a experiência a uma promessa de incompletude). Pela
dobra à sombra do duplo e o dobre ao pesar da perda, a imagem dialética é
uma alegoria do cinema, dada sua condição mesma de existência: imagem
fugaz e efêmera que tenta, no instante transitório do agora, reter o tempo num
flash e agarrar o momento (perd)ido; imagem bruxuleante do flicker que
configura o feitiço de uma provisória provisão e cristaliza o pensamento;
ambígua e nebulosa constelação que pisca e passa, isca de risco, que
des/aparece num lampejo.
O termo (e os termos da equação implicados) da imagem-dialética é
iluminador na relação entre os tempos que a imagem configura:

Não se deve dizer que o passado esclarece o presente ou que o presente esclarece o
passado. Uma imagem, ao contrário, é aquilo em que o Outrora encontra o Agora num
relâmpago, para formar uma constelação. Em outras palavras, a imagem é a dialética
em suspensão. [Benjamin, 2006:504].

O found footage opera com restos e so(m)bras de imagens, imagens que


restaram — como reticência, lapso, silêncio —, articuladas em constelações.
A ruína é a evidência dos restos do tempo. O cinema de reapropriação de
arquivo re(in)staura a experiência das ruínas. Achar a imagem filmada é
reprocessar o tempo reencontrado. Pensar o tempo como montagem de
elementos heterogêneos: justaposição poética. Aproximação de realidades
distantes. Daí a graça, o assombro e o encanto do encontro.
Como síntese apropriada para um cinema de arquivo, citamos uma feliz
formulação gerada na análise do filme (nostalgia) de Hollis Frampton,
produzido no mesmo ano em que o artista americano escreveu sobre a meta-
história, formulação que funcionaria também como uma alegoria do found
footage e da meta-história: “criar ruínas é o trabalho da sobrevivência”
(Moore, 2006:67).

Meta-história
Em 1971, Frampton (1931984) realizou dois trabalhos seminais: o ensaio
“For a metahistory of film: commonplace notes and hypotheses”, publicado
na revista Artforum, e o filme (nostalgia). Curiosamente, o texto não
menciona o gênero found footage. Axiomaticamente, o filme parte do arquivo
de fotos do cineasta. Então seria possível equacionar os dois trabalhos para o
projeto de uma meta-história do found footage.
A meta-história é um artifício ético-estético que permitiria ao artista
continuar compondo seus trabalhos como justificativa de seu projeto pessoal
e da pertinência de seu meio artístico. A partir de uma linhagem à la Ezra
Pound e Jorge Luis Borges, elegem-se parâmetros de formação para um
programa poético. As novas obras se articulariam com as obras antigas numa
constelação de invenção, arquivo infinito de imagens e sons destinado a
inseminar consistência ressonante ao processo de produção. Segundo o
cineasta,

[o] meta-historiador do cinema está ocupado com a invenção de uma tradição, isto é,
um conjunto coerente e manejável de monumentos discretos, a fim de inseminar
consistência ressonante no corpo crescente de sua arte.

Tais obras podem não existir, e então é seu dever fazê-las. Ou elas podem já existir, em
algum lugar fora do perímetro intencional da arte [...]. E então ele deve refazê-las.
[Frampton, 2009:136]
Proposta por Frampton por meio da investigação e da recontextualização
de textos históricos, a constituição desta tradição viva é facilitada tanto pelo
trabalho do artista quanto do arquivista, condensados na figura do meta-
historiador. Noël Carroll nos lembra que a meta-história de Frampton é, em
primeiro lugar, e antes de tudo, crucial pelo fato de ser artisticamente
geradora. Carroll sugere que Frampton desenvolveu a noção de meta-história
para reconciliar produtivamente duas abordagens opostas e centrais da teoria
do cinema e da crítica de arte dos anos 1960, 1970 e 1980: “a abordagem
essencialista e a abordagem histórica” (Carroll, 1986-1987:200).
Frampton faz uma teleologia ao revés, e faz do artista um meta-
historiador:

[...] o meta-historiador do cinema, mesmo que aberto à história do cinema, não vê a


história do filme como convergindo para o presente. A história do cinema de fato é
híbrida; não há um destino inscrito nela. [...] na história do filme propriamente dita [...]
tais condições não foram de fato exploradas rigorosa e autoconscientemente. Torna-se
tarefa do meta-historiador compensar esta falha, para visualizar a história do cinema
como teria sido caso esta fosse rigorosamente autoconsciente, para então reconstruí-la
“axiomaticamente”. O cineasta meta-historiador imagina como a história do cinema
deveria ter sido (de acordo com seus critérios), e então segue adiante para realizá-la.
(Carroll, 1986-1987:204]

Para encerrar, entre interstícios retrospectivos e prospectivos, o crítico


conclui:

[...] pois a conceituação teórica de Frampton foi planejada para sustentar sua
sobrevivência como cineasta — não no sentido de subsistência material, mas como
forma de manter a continuação de seu trabalho criativo. [Carroll, 1986-1987:204]

No ensaio sobre a meta-história, Frampton procedeu à conceituação-chave


de um “cinema infinito” (Frampton, 2009:134), que projeta sua materialidade
enquanto constituição de fotogramas vazios e vazados, e, portanto,
disponíveis ao preenchimento de imagens, para além do sistema técnico e
institucional do filme. Em nossa visão-intervenção, acomodaria ainda o ideal
de um arquivo infinito — conceito apropriado para a noção de found footage
como método.
Mesmo não tratando de found footage em seu ensaio de 1971, a meta-
história tal como pensada pelo realizador de (nostalgia) é preceito
fundamental para a manifestação do cinema de reapropriação de arquivo, ao
menos para aqueles “cineastas historicamente responsáveis pela perenidade
do meio”.2
Para os cineastas de found footage — meta-historiadores-artistas —, a
meta-história atuaria como uma senha para os signos fílmicos em rotação de
constelações, como uma gazua para os repositórios das imagens esquecidas
ou desconhecidas nos arquivos. Aplicada ao found footage, a meta-história
proporcionaria uma abordagem crítica e poética dos arquivos da história do
cinema.

Cinema dos primeiros tempos (early cinema)


O cinema das origens permaneceu para os cineastas do found footage como
uma reserva de insubordinação. Visto retrospectiva e prospectivamente, o
primeiro cinema configura-se como uma instância mais avançada, e por vezes
até mais sofisticada, do que o cinema narrativo que veio depois. Os filmes
narrativos domesticaram as características ousadas dos filmes das origens,
traços que permaneceriam como inspiração para o cinema de vanguarda.
Convencionou-se afirmar que o primeiro cinema ocorreu entre 1895, data da
primeira exibição pública e paga de Lumière, e 1915, data da sistematização
da linguagem narrativa por Griffith (Popple e Kember, 2004).
Tributária da história dos Annales, a nova história do cinema adotou o
cinema das origens como sua peça de resistência. O Congresso da Fiaf de
1978 em Brighton revelou um continente inédito do early cinema. Os filmes
americanos apresentados só puderam ser reconstituídos graças à Paper Print
Collection da Biblioteca do Congresso de Washington (Rosa, 2008:177).
Em função de lutas e disputas sobre patentes e copyrights nos anos 1910,
toda companhia deveria depositar uma cópia na íntegra do filme reproduzido
em papel, para ter sua produção protegida. A Paper Print Collection foi base
fundamental de vários filmes foond footage de matiz estrutural, como The
Georgetown loop e Disorient express (1995) de Ken Jacobs.
Segundo André Gaudreault, Charles Musser, Miriam Hansen, Thomas
Elsaesser e Tom Gunning, o método de estudar a história do cinema a partir
do cinema das origens trouxe novos parâmetros de pesquisa sobre formas e
condições de produção, distribuição, exibição e fruição do cinema.3 Recorreu
a registros de patentes, processos legais de copyright, documentos de salas de
exibição, anúncios de jornal e toda sorte de documentos tomados como fontes
de informação.
O “cinema de atrações” é o conceito mais popular e profícuo da re-visão
do cinema das origens enfeixado pela nova história. Lançado por Tom
Gunning e André Gaudreault,4 fundou-se sobre dois aspectos: a visão dos
filmes em confronto com suas condições de exibição e recepção; a noção da
montagem de choques de Eisenstein, inspirada no circo e na experiência
moderna da vida na cidade.
O “cinema de atrações” interpela diretamente o espectador; seu apelo
estético e seu tr(i)unfo técnico estão no poder de seu ato básico: mostrar, e
não narrar, incitando a curiosidade visual (Gunning, 1990:57-58). Para
Gunning, o cinema de atrações não desapareceu com o advento da dominação
e domesticação do cinema narrativo; diluiu-se na engrenagem da indústria
comercial dos efeitos especiais de Spielberg, Lucas & cia., e vigorou
underground nas “estruturas de agressão” (Burch, 1993) da vanguarda dos
anos 1960 e 1970.

Cinema de reapropriação de arquivo (found footage)


Uma genealogia da apropriação no cinema remeteria ao cinema das origens.
Leyda (1971:13) e Wees (1993:35) apontam possíveis rudimentos aplicados
à: 1) projeção de filmes, como o acréscimo de planos alheios ao filme de
Lumière sobre Dreyfus quando exibido pelo distribuidor Francis Doublier em
1899; 2) produção de filmes, como The life of an American fireman de Edwin
S. Porter em 1902.
Ao longo da história do cinema, o filme de imagens reutilizadas foi
tratado de maneiras diferentes. Um gênero (pre)dominante é o da compilação
histórica dos documentários de arquivo. Abordamos aqui outra forma de
trabalhar o arquivo, afeita ao cinema experimental, o found footage, que, por
vezes, pode transitar entre as fronteiras do ensaio e do documentário,5 como
de certo modo ocorre em Sem título # 3: E para que poetas em tempo de
pobreza?
A preciosa cartografia de Brenez e Chodorov (2015) propõe duas formas
principais de apropriação. A “apropriação intertextual” (calcada in re) refere-
se não ao uso de material já filmado, mas à refilmagem literal de um original:
Segundo de Chomon com Voyage dans la lune (1909) a partir do filme de
Méliès (1902) ou Gus Van Sant com Psycho (1999) a partir de Hitchcock
(1960). A outra forma de apropriação é a “reciclagem”, decalcada na
“recuperação in se”, que comportaria duas formas (Brenez e Chodorov,
2015:2).
A “reciclagem endógena” se aplica ao trailer (peças promocionais) e à
síntese do diretor que usa os próprios filmes, como Un film (Marcel Hanoun,
1983). A “reciclagem exógena” se aplica a três modalidades básicas de
citação (Brenez e Chodorov, 2015:3): “stock footage”, exemplificada pelos
filmes B que inserem planos de outras produções para compensar falhas ou
faltas; “filmes de montagem”, representada pela crítica de atualidades (A
queda da dinastia de Romanov, Esther Shub, 1927) e pelo ensaio (Nosso
século, Artavazd Pelechian, 1982); “found footage”, que se concentra na
manipulação do material fílmico, torna as imagens autônomas e aponta para
novas esferas e formas de montagem. Nas subdivisões prismáticas de sua
taxonomia, os autores propõem cinco usos de found footage: elegíaco, crítico,
estrutural, materiológico e analítico.
O uso elegíaco (Brenez e Chodorov, 2015:4) escolhe momentos do filme
original tornados objetos de fetiche e leitmotif (Rose Hobart, Joseph Cornell,
1939).
O uso crítico tem quatro operações formais: 1) a “anamnese” (Brenez e
Chodorov, 2015:4) justapõe “imagens de uma mesma natureza de modo a
fazê-las significar não algo diferente do que elas dizem, mas precisamente
aquilo que elas mostram e que nos recusamos a ver” (A movie, Bruce Conner,
1958); 2) o “desvio” (Brenez e Chodorov, 2015:5) é o procedimento do
détournement da Internacional Situacionista (La société du spectacle, Guy
Debord, 1973); 3) a “variação/exaustão” (Brenez e Chodorov, 2015:5)
“concentra-se em um único objeto fílmico, até esgotar suas potencialidades
pela introdução de um ou vários parâmetros plásticos (visuais ou sonoros)”
(Lettre de Sibéria, Chris Marker, 1958); 4) o “ready made” (Brenez e
Chodorov, 2015:6) retoma o gesto duchampiano de se apropriar do objeto
sem tocá-lo (Perfect film, Ken Jacobs, 1986).
O terceiro uso de reciclagem found footage é o estrutural (Brenez e
Chodorov, 2015:7), cuja norma é “elaborar um filme não a partir de uma
imagem ou motivo, mas de uma proposta, de um protocolo que diz respeito,
reflexivamente, ao próprio cinema” (Berlin horse, Malcolm LeGrice, 1970).
O quarto uso (Brenez e Chodorov, 2015:8) é o materiológico, de
exploração do material substancial da película: a “química da emulsão” (em
Carl Brown); a decomposição “do fotograma em camadas e subcamadas” (em
Cécile Fontaine); o tratado do formato fílmico (Standard gauge, Morgan
Fisher, 1984).
O quinto uso (Brenez e Chodorov, 2015:9) é o analítico, com quatro
modos de operação: 1) “glosa” (Erich von Stroheim, Maurice Lemaître,
1979); 2) “montagem cruzada” (Histoire(s) du cinéma, J.-L. Godard, 1978-
98); 3) “variação analítica” (Tom Tom the piper’s son, Ken Jacobs, 1969-71);
4), “síntese entre montagem cruzada e variação analítica” (Dal polo
all’equatore, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, 1986). Para Brenez e
Chodorov (2015:11), Outer space (Peter Tscherkassky, 1999) é uma
aglomeração de todos esses procedimentos e efeitos.
Um estudo de caso
As funções found footage da anamnese crítica, do estrutural, do
materiológico e do analítico, tais como definidas por Brenez e Chodorov
naquela cartografia, são as mais marcantes da construção de Sem título # 3: E
para que poetas em tempo de pobreza? (Carlos Adriano, 2016), mas não
apagam um componente de compilação enfeixado pela narrativa como ensaio
poético: a coleção de entrevistas dos poetas é arrolada entre fulgurações de
imagens sobre a poesia.
Por recorrer quase que exclusivamente a materiais de arquivo disponíveis
no YouTube, Sem título # 3: E para que poetas em tempo de pobreza?
permitiria ainda indagar sobre as diferenças de acesso e uso segundo a
natureza do acervo (público, privado) e colocar em questão aspectos
envolvidos na apropriação e na difusão do saber humano. Toda esta
investigação se dá no território artístico, do ensaio experimental como forma
de enunciação distinta do discurso argumentativo.
O conceito de Cobbedick (1996, apud Cordeiro, 2013:69) sobre “o
comportamento dos artistas em busca de informação” indica desvios entre
“Fontes de informação inspiradora e Fontes de informação visual específica”.
É uma situação que ainda parece ignorada por áreas como a biblioteconomia
e a ciência da informação: “a informação demandada por artistas em serviços
de informação e, especialmente, em bibliotecas, tem sido negligenciada pelos
profissionais da informação” (Cordeiro, 2013:69). Isso implica reconhecer
que as demandas dos artistas em relação aos arquivos são outras6 e mudam de
acordo com o zeitgeist. As solicitações que os artistas dirigem aos sistemas de
informação são de natureza diversa daquelas feitas por questões pragmáticas,
de função utilitária, como o protocolo de cartório para um documento legal.
Nessas circunstâncias, a informação deve servir a um propósito concreto e
imediato, colado à superfície cotidiana. Não é o que ocorre quando a
informação é reapropriada segundo propósitos artísticos. Muito já se
perguntou, e muitos já se perguntaram: qual a função da arte, qual seu sentido
para a vida? Poderíamos argumentar com o poeta que define o mito (primeiro
verso de Ulisses): “é o nada que é tudo” (Pessoa, 1934:19).
Integrante da série Sem título — da qual fazem parte Sem título # 1:
Dance of Leitfossil (2004) e Sem título # 2: La mer larme (2005) —, E para
que poetas em tempo de pobreza? conjuga três instâncias: a) entrevistas e
depoimentos de poetas; b) récitas e declamações de poemas; c)
reconfigurações e metáforas poéticas (associações imagéticas, musicais,
plásticas).7
Como contraponto aos ditos sobre a função e o ofício dos poetas, foram
escolhidas imagens documentárias de duas situações de miséria humana
separadas por um abismo de décadas: o povoado de Las Hurdes (Tierra sin
pan, Luis Buñuel, 1933) e o povo dos refugiados sírios (reportagens de
televisão, 2015).
A escolha da região espanhola foi decidida em função do que veio a ser,
na montagem final do filme, o segundo segmento (ou, em nomenclatura
musical, o segundo movimento), mas que foi a primeira seção trabalhada e da
qual derivou todo o filme: os versos de Antonio Machado musicados por
Joan Manuel Serrat na canção Cantares8 foram montados com as imagens
documentais dos poetas, do filme Las Hurdes e dos refugiados sírios.
Ainda na esfera das atrações articuladas, a figura do caminante foi
determinante para a escolha das outras músicas do filme: peças do
compositor de vanguarda Luigi Nono (1924-90), No hay caminos, hay que
caminar e Hay que caminar soñando. A sequência musical é central não
apenas por sua posição e importância na estrutura do filme, mas também por
seu estatuto de baliza: está entre a primeira parte (depoimentos dos poetas) e
a segunda (declamações de poemas).
Sem título # 3 traz trechos dos filmes: Schwarze sünde (1988) e Toute
révolution est un coup de dés (1977) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet;
Le testament d’Orphée: ou ne me demandez pas pourquoi” (1960) de Jean
Cocteau; Le mépris (1963) de Jean-Luc Godard; Il Decameron (1971) e I
racconti di Canterbury (1972) de Pier Paolo Pasolini; Stéphane Mallarmé
(1966) de Éric Rohmer. E são declamados poemas de Pound (por ele
mesmo), de Hölderlin (um poema recitado por Fritz Lang e outro por Danièle
Huillet), de Mallarmé (por Huillet).
Os poetas que aparecem na sequência musical são: Antonio Machado
(1875-1939), Blaise Cendrars (1887-1961), Ezra Pound (1885-1972),
Federico García Lorca (1898-1936), Giuseppe Ungaretti (1888-1970), James
Joyce (1882-1941), Jean Cocteau (1889-1963), José Lezama Lima (1910-76),
Stéphane Mallarmé (1842-1898), Vladimir Maiakóvski (1893-1930). Os
poetas que aparecem em entrevistas são: Pound, Ungaretti, Cocteau, Joan
Brossa (1919-98), Pier Paolo Pasolini (1922-75), Mallarmé.
Com exceção deste último, todas as imagens são de poetas dando
entrevistas para televisão e documentários e de poetas atuando em filmes de
ficção — Cocteau como Orfeu em seu Testamento, Pasolini como Chaucer
em seu filme Canterbury e como Giotto em seu Decameron, Maiakóvski em
Baryshnya i khuligan (1918). As imagens de Mallarmé foram extraídas do
filme que porta o nome do poeta no título e traz o ator Jean-Marie Robain
representando o papel do Lance de dados.
Se desafortunadamente não foram feitas ou não restaram (até onde se
saiba) imagens fílmicas documentais de Mallarmé, por alguma sorte foi
possível incorporar a imagem ficcional (representação encenada da realidade)
a um filme cujas imagens são na maioria documentárias (registros diretos da
realidade). Isso dá ao filme uma irônica ambiguidade, ao instaurar o atrito
entre as potências do falso e do verdadeiro, da ficção e da verdade.
Na coda, configura-se uma espécie de manifesto da arte poética. Frases já
ditas no filme são sobrepostas às mãos dos poetas em close-up e em negativo.
As mãos enunciam movimentos como pontuações indicativas e
interrogativas. As imagens em negativo sugerem o que se projeta, o que ainda
é inaugural, propulsão da descoberta. A reiteração das mãos na sequência
final, em cadência de rimas e ritmos, enfatiza o caráter “fazer” da poesia:
poiesis.

#3
É de Friedrich Hölderlin (1770-1843) o verso que dá título a Sem título #
3: “e para que poetas em tempo de pobreza?” está no poema Pão e vinho,
iniciado em 1800 e completado ao longo da vida do autor, com publicação
póstuma.
A colheita dos elementos visuais e sonoros e a consequente reelaboração
destes sugerem um método de fazer filmes e um método de pensar a história
do cinema: o afortunado encontro das constelações de referências. Como a
meta-história para Holis Frampton, o found footage seria um conceito-chave
para se continuar fazendo filmes de modo consciente, consistente e
responsável pela história do cinema.

Mediação, YouTube, reapropriação


Por ser fenômeno relativamente recente e ainda pouco estudado, não há um
devido distanciamento para se avaliar todas as implicações e novas
configurações que o YouTube coloca. Pesquisas como as de Lovink (2008),
Snickars e Vonderau (2009) e Fagerjord (2010) forneceriam subsídios para
começar a tatear um território cujo mapa não cabe neste texto.
Para o found footage, todo arquivo é um banco de dados de imagens e
sons disponíveis para apropriações, um sistema de informação audiovisual
que é fonte e repositório, referência e inspiração, memória e conhecimento.
Em determinadas circunstâncias, o found footage pode ser considerado uma
instância mediadora: as operações de pesquisa, escolha e edição das imagens
a serem trabalhadas no filme envolvem o gesto crítico da mediação.
Tanto para a mediação como para o found footage, as ações e as noções
de interferência e de apropriação no arquivo são fundamentais. Pela própria
natureza intermedia (entremeios) e intermediária (sua posição estratégica),
pelo caráter crítico e analítico (sua posição heurística) que tanto a mediação
como o found footage envolvem, a interferência e a apropriação constituem
instâncias necessárias à consumação do processo mediador, pois

[n]esse processo, enaltece-se a apropriação da informação, no momento em que o


indivíduo transforma seu conhecimento de forma a modificá-lo, a alterá-lo. Não cabe
somente à informação registrada ser objeto da ciência da informação: adicione-se a ela
as atividades culturais inseridas nos ambientes informacionais. Essa associação torna-
se, para Almeida Júnior (2007, p. 36), o objeto da ciência da informação. [Ferreira e
Almeida Júnior, 2013:165]
Para o dispositivo found footage, o arquivo também se configuraria “[...]
como forma de interlocução, de informação, de conhecimento” e seria dotado
de um “[...] papel mediador, de serviço de comunicação e informação, de
ensino e aprendizagem” (Castro Filho, 2011:147).
Em tempos de hipertextos e hipermídias trafegando em congestionadas
infovias, o arquivo assume outras configurações e funções e,
consequentemente, exige outras formas de interface e de mediação. Se as
redes sociais se encontram e se desencontram saturadas de informação, às
vezes mal sinalizadas e organizadas, o papel e o lugar da medição demandam
questões atualizadas ao estado da arte da sociedade informacional, uma vez
que

[...] em nossa atual era de redes sociais sem fio, a ênfase não está sobre novas formas
radicais de mediação, mas sobre a conectividade, a ubiquidade, a mobilidade e a
afetividade sem cesuras. O YouTube fornece talvez o exemplo paradigmático desta
nova formação dos meios, já que sua popularidade é menos um resultado de
proporcionar aos usuários novas e melhores formas de mídias do que de tornar
disponíveis mais eventos de mediação, mais facilmente compartilhados e distribuídos
por e-mail, mensagens de texto, redes sociais, blogs ou sites de notícias. O YouTube é
também parte e parcela da proliferação de câmeras de foto e vídeo como recursos-
padrão de telefones celulares e da multiplicação e mobilização de redes sociais [...].
[Grusin, 2009:65]

A disseminação das tecnologias da informação e comunicação e o


consequente acesso a elas trazem um dado novo para o que antes era
chamado de consumidor, hoje convertido em usuário. Com seus graus de
alfabetização, repertório e competência constantemente atualizados, o usuário
dos serviços de comunicação, informação e apropriação é também — como
prova o YouTube, por exemplo — um provedor de informação e apropriação,
instâncias permeáveis e intercambiáveis:

[...] o que ocorre, diferentemente de épocas anteriores, é que as Tecnologias da


Informação e Comunicação configuram agora a possibilidade de criação de espaços
menos hierárquicos de circulação dessas informações, podendo fazer de cada
consumidor cultural um potencial crítico ou mediador da informação. [Almeida,
2009:195]

Seguindo os pressupostos de Cook, Fonseca (2005:64) aponta “[...] o fato


de que hoje o arquivista deve ser um mediador ativo na ‘formatação da
memória coletiva através dos arquivos’”. Tal formulação parece encaixar-se
sob medida justa a este mediador que é o YouTube. E, em sua função
metacrítica, Sem título # 3 apontaria para uma espécie de ensaio audiovisual
em que a mediação e a remediação9 da matéria do arquivo são condições
cruciais.

Considerações finais
Em um dos depoimentos de Sem título # 3: E para que poetas em tempo de
pobreza?, é proferido o enunciado mallarmaico: “escolher um objeto e extrair
dele um estado de alma por uma série de decifrações”. Fazemos essa alusão
sob a hipótese de que tal assertiva pode ser uma espécie de manifesto para
um método poético que busca compreender um motivo de estudo por meio do
processo de pesquisa analítica.
A partir de dois modelos de conceituação teórica — o da meta-história de
Frampton e o da história do cinema das origens — e de um modo de
produção cinematográfica — o do filme found footage —, entendemos que a
reapropriação de arquivo implica um método mais amplo e interdisciplinar,
indistinto a um procedimento ou a um gênero delimitados, não restrito a uma
categoria excludente de conceituação.
Em outro depoimento, Pasolini comenta uma expressão da poesia
provençal, ab joy — “o rouxinol canta ab joy, por júbilo”; no sentido de
“êxtase poético, de arrebatamento poético”. Ele então afirma que, como
poeta, escreve ab joy: “para além de todas minhas determinações e definições
culturais, o signo que domina toda minha produção é esta espécie de
nostalgia da vida; esse senso de exclusão, que, contudo, não diminui mas
aumenta o amor pela vida”.
Sem título # 3: E para que poetas em tempo de pobreza? começa com a
voz de Ezra Pound, sobre a tela preta,10 lendo um fragmento do Canto 81 (em
tradução de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari): “O que amas
de verdade permanece, o resto é escória / O que amas de verdade não te será
arrancado / O que amas de verdade é tua herança verdadeira” (Campos,
1983:202).
O fazer por júbilo, a nostalgia da vida, o arrebatamento poético, a
permanência do que se ama, o verdadeiro amor como herança verdadeira: são
elementos que poderiam definir uma forma de trabalhar a reapropriação de
arquivo. Como método poético para os estudos do cinema, o found footage
contemplaria a realização de filmes e a crítica histórica, abordaria a mediação
e a organização da informação audiovisual, em visada metaoperacional, como
um metamétodo, quase como uma alegoria mesma do processo de
investigação. Mas, sobretudo, o found footage versaria — como uma crítica
em versos, ao reverso — sobre uma reconfiguração da própria noção de
arquivo, e, por extensão (sob alguma nostalgia benjaminiana?), uma
reconfiguração da vida como promessa de história.

Este artigo apropria-se parcialmente de uma pesquisa de pós-doutorado de Carlos Adriano


Jeronimo de Rosa, ora em curso, no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-
USP, com bolsa Capes.
Nicole Brenez comenta os cineastas responsáveis historicamente, que assumem a
perenidade do meio cinema, em entrevista para o filme Santos Dumont: pré-cineasta?
(2010).
A antologia-referência é aquela organizada por Elsaesser (1990).
Um balanço compreensivo é o de Strauven (2006), com artigos inaugurais, genealogia e
perspectiva histórica do conceito, e extenso conjunto de textos que enfeixam revisões e
críticas.
Para uma compreensão mais ampla, ver o Dossiê Found Footage (Adriano, 2015a, 2015b).
Eduardo Morettin comenta as demandas de artistas e de historiadores em relação aos
acervos, em entrevista para o filme Santos Dumont: pré-cineasta? (2010).
O filme recebeu menção honrosa do júri do É Tudo Verdade (2016), sob a justificativa:
“Pela ousadia de desafiar o conforto do espectador com um filme-ensaio radicalmente
pessoal, ao mesmo tempo erudito e emotivo”.
Eis os versos da canção: “Todo pasa y todo queda / pero lo nuestro es pasar / pasar
haciendo caminos / caminos sobre el mar. // Nunca perseguí la gloria / ni dejar en la
memoria / de los hombres mi canción. // Yo amo los mundos sutiles / ingrávidos y gentiles /
como pompas de jabón. // Me gusta verlos pintarse / de sol y grana, volar / bajo el cielo
azul, temblar / súbitamente y quebrarse. / Nunca perseguí la gloria. // Caminante, son tus
huellas / el camino y nada más / caminante, no hay camino / se hace camino al andar. / Al
andar se hace camino / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de
volver a pisar. / Caminante no hay camino / sino estelas en la mar. // Hace algún tiempo en
ese lugar / donde hoy los bosques se visten de espinos / se oyó la voz de un poeta gritar /
Caminante no hay camino / se hace camino al andar. // Golpe a golpe, verso a verso. //
Murió el poeta lejos del hogar / le cubre el polvo de un país vecino / al alejarse, le vieron
llorar. / Caminante no hay camino / se hace camino al andar. // Golpe a golpe, verso a
verso. // Cuando el jilguero no puede cantar / cuando el poeta es un peregrino / cuando de
nada nos sirve rezar / Caminante no hay camino / se hace camino al andar”.
Apropriando-se da formulação de Bolter e Grusin (2000).
O poema é lido logo após a cartela-dedicatória: “para / Bernardo / poeta da programação de
filmes e arquivos / programador-poeta de cinemateca / que em 2016 faria 70 anos”. Ver
Dossiê Bernardo Vorobow, revista Trópico, set. 2009, com textos de Carlos Reichenbach,
Walter Salles e Carlos Adriano. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/texto
s/3119,1.shl>; <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3121,1.shl>; <http://p.php.uol.c
om.br/tropico/html/textos/3120,1.shl>. Acesso em: 24 dez. 2016. Ver também: MacDonald
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8
The uprising: a desterritorialização das
imagens-acontecimentos

Kênia Freitas

The uprising (Reino Unido/Bélgica, 2013) é um filme feito completamente a


partir de imagens-acontecimentos das Revoluções Árabes postadas no
YouTube. Por meio da pesquisa desse imenso material, o diretor Peter
Snowdon combina as muitas tomadas subjetivas de manifestantes da Tunísia,
do Egito, de Bahrain, da Líbia, da Síria e do Iêmen e constrói uma narrativa
própria de uma revolução pan-árabe. Não há dessa forma o objetivo de
contextualizar ou recontar cronologicamente as revoluções de cada um desses
países, mas sim de, a partir da edição desse material, imaginar uma revolução
que só existirá na tela. Como explicita o crédito inicial do filme: “A
revolução que esse filme imagina é baseada em uma série de revoluções
reais”.1
Essas revoluções reais fizeram parte de uma onda de insurgências e
protestos na região do Oriente Médio e do norte da África (que ficaram mais
conhecidas no Ocidente como a Primavera Árabe2) que se iniciou no final de
2010, na Tunísia, e desde então ressoou com rapidez para a Líbia, o Egito, a
Argélia, o Iêmen, o Marrocos, o Bahrein, a Síria, a Jordânia e o Omã,
atingindo cada local com intensidades diferentes.
As consequências dos protestos foram múltiplas na região. Mas no geral,
podemos dizer que, se pensarmos a Revolução Árabe apenas pelos seus
resultados históricos imediatos, pode-se chegar a uma análise pessimista da
efetividade dos acontecimentos insurgentes. Isso porque, até nos países que
conseguiram derrubar os governos de décadas, a implantação de regimes
políticos mais democráticos tem sido um processo tumultuado. Além disso, o
cenário de injustiça social e econômica pouco ou nada se alterou na região. E,
nos países que atravessam fortes conflitos internos armados pós-Revolução
Árabe, como Síria e Líbia, a situação de grande parte da população tornou-se
ainda mais crítica.
Mas, para além da sua efetivação, esses acontecimentos também podem
ser considerados forças intempestivas que trazem consigo a criação do novo e
processos de descontinuidades. Ainda que seus desdobramentos sejam
ambíguos política e economicamente, a Revolução Árabe marca o surgimento
de novas perspectivas por meio da manifestação popular transformando um
cenário que parecia inalterável por algumas décadas. E não podemos
esquecer que a ressonância desses protestos iniciou globalmente um novo
ciclo de manifestações.
Neste texto, então, propomos pensar junto com o filme The uprising como
as forças intempestivas desses acontecimentos atravessam suas imagens. Se,
por um lado, a montagem de um filme de arquivo desterritorializa as imagens
amadoras criando novas narrativas no cinema; por outro, acreditamos que a
potência das insurreições atravesse as imagens, como um resíduo do
acontecimento real. Desse duplo movimento vemos emergir a imagem-
acontecimento.

A imagem-acontecimento: documento, verbo e ação


Ao descrever a produção de videoativistas na revolução Síria, a pesquisadora
Cécile Boëx cunhará a expressão imagem-acontecimento. Para a autora, trata-
se de “captações mais ou menos elaboradas da ação em vias de se fazer,
mobilizando técnicas específicas ligadas à urgência de situações onde elas
são gravadas e a sua proximidade com o registro midiático” (Boëx, 2012).3
Na Síria, devido ao embargo da cobertura televisiva em campo, essas
imagens tornaram-se fundamentais para a ressonância dos eventos, tanto pela
internet quanto pelas redes de televisão não censuradas de fora do país que as
retransmitem. Assim, devido ao caráter violento e a extensão temporal que a
revolução e a repressão adquiriram no país, essa produção de imagens dos
ativistas passou a ter um papel fundamental. Como descreve Boëx:

Diante da tentativa do regime de desacreditar a revolução por meio de uma campanha


de desinformação que a assimila a uma iniciativa terrorista, os manifestantes
encontraram nos vídeos, gravados a partir de telefones celulares ou de pequenas
câmeras digitais, o meio mais imediato de fazer ouvir as suas vozes. Ao longo dos
meses, os usos militantes dessa tecnologia comum se diversificaram, gerando um
corpus visual heteróclito, inédito e colossal, alimentado por centenas de vídeos
postados cotidianamente no YouTube. Essas imagens dão forma à experiência
revolucionária síria ao mesmo tempo que elas nos dão acesso. Elas são ao mesmo
tempo documento, verbo e ação. [Boex, 2012]

As imagens-acontecimento seriam nesse sentido intensamente ressonantes


sendo não apenas produzidas pela multidão de manifestantes nas ruas, mas,
em muitos casos, produzidas em momentos em que esses corpos estão em
situações-limite de confronto. Documento, verbo e ação ao mesmo tempo,
essas imagens teriam um alto potencial de afetar seus espectadores, por
encarnarem a experiência revolucionária de quem filma.
Também tentando pensar relações entre a imagem e os acontecimentos
insurgentes ressonantes, no artigo “Ensaio na revolução: o documentarista e o
acontecimento”, Cézar Migliorin, ao refletir sobre a produção de um
documentário no Egito em 2011, formula a questão: “O que pode esse
documentarista diante de um grande evento? — de um evento que se
apresenta como um divisor de águas da política mundial e paradigma do que
pode contaminar praças e países, jovens e vidas; um verdadeiro
acontecimento” (Migliorin, 2014:235). Para o autor, não interessa pensar os
acontecimentos como bons ou ruins, mas como um refrator de raios, algo que
interromperia os processos econômicos, sociais, políticos e subjetivos de uma
comunidade.
Dessa forma, o autor defende que a revolução seria como “um nó de onde
as continuidades se mantêm incertas” (Migliorin, 2014:236). Ao
documentarista caberia o desafio de filmar sem reduzir. Nesse aspecto, para
Migliorin, trata-se de um deslocamento de pensar o filme não como
representação (que será sempre uma redução), mas como imaginação e
criação. Por essa chave, “a imagem torna-se decisiva para que possamos
saber sobre o evento e participar do conhecimento que o documentarista se
propõe a produzir sobre o que vê. É com imagens que imprimem um saber e
um não saber sobre a revolução em processo que o evento pode ser pensado”
(Migliorin, 2014:250). Nesse sentido, o autor destaca que a própria existência
da revolução passa pelos processos de construção e fabricação, inclusive por
meio das suas imagens.
Ao propor uma análise do filme Videogramas de uma revolução (1992),
de Harum Farocki e Andrei Ujica, André Brasil traça algumas relações entre
o cinema e a política que nos parecem bastante pertinentes para pensarmos
essas imagens audiovisuais feitas nas manifestações. Brasil começa por
propor uma definição cinematográfica para a revolução como “[...] o
momento de defasagem entre uma imagem do mundo e outra imagem do
mundo em vias de se criar. Ou melhor, o momento de defasagem entre um
mundo de imagens e outro mundo de imagens ainda por vir” (Brasil,
2009:19). Nesse sentido, para Brasil, a revolução seria uma fissura entre
esses mundos: o existente e o que se está criando.
André Brasil destaca, no acontecimento que o filme aborda, a queda do
ditador romeno Nicolae Ceausescu, em 1989, como a importância da
cobertura televisiva já era vital e imediata. O autor fala em uma
indissociabilidade cada vez mais intensa entre os acontecimentos da história e
as imagens que circulam em tempo real na mídia. Ele acredita que à medida
que os acontecimentos (e a própria vida) se performam como imagem, as
imagens se tornam sua condição de possibilidade, o lugar em que eles
acontecem. Assim, ele complementa: “O nosso é, portanto, um mundo em
que a história se faz ‘ao vivo’, num lapso — em um intervalo mínimo —
entre imagem e acontecimento” (Brasil, 2009:20).
O autor vai denominar as imagens televisivas e amadoras que compõe o
filme de imagens emergenciais. Essas imagens, amadoras, da mídia,
domésticas, precárias, captadas por diversos dispositivos e colocadas em
circulação imediata, constituiriam cada vez mais o que chamamos de
realidade. Brasil explica: “Nomeá-las emergenciais deve-se ao fato de que
sua aparição é colada à emergência dos acontecimentos, em uma espécie de
curto-circuito entre a imagem e o evento” (Brasil, 2009:21). Captação e
transmissão das imagens se indiscernem e passam a fazer parte do próprio
acontecimento, e da sua ressonância. Uma ressonância que passa pelas
marcas de corporalidade de quem filma na imagem e pela intensificação do
tempo presente do acontecimento.
Potentes como força política e de construção das insurreições, como
podemos pensar essas imagens-acontecimento e emergenciais quando estas
se deslocam? O que resta da sua potência de descontinuidade original, da sua
fissura, e o que se reconfigura? E, mais, como pensar esse conjunto de
imagens de acontecimentos que podem ser tão extensos a partir de um
elemento em comum?
O programa de televisão Images of a Revolution,4 produzido pela rede
independente de televisão Aljazeera, compila uma série dessas imagens
amadoras que se tornaram virais e icônicas em seus países durante as
manifestações que ocorreram no início de 2011. Na Tunísia, em Tunis, um
homem grita pela liberdade sozinho na rua à noite. A população de Sidi
Bouzid (uma pequena cidade na região central da Tunísia) inicia uma
manifestação em frente a um prédio do governo logo após o vendedor
ambulante, Mohamed Bouazizi, atear fogo no próprio corpo como forma de
protesto. Em Alexandria, no Egito, um homem desarmado enfrenta a polícia e
é friamente baleado. No Cairo, uma dezena de manifestantes enfrenta com os
corpos desarmados um caminhão-pipa da polícia e os carros blindados do
exército.
São alguns exemplos das imagens amadoras que se tornaram
massivamente populares durante as Insurgências Árabes, presentes no
documentário. Em geral, a qualidade de resolução das gravações é baixa, com
quadros pixelados e nem sempre com um som identificável. E, ainda assim,
são registros que circularam amplamente nas redes sociais — bem como
várias das imagens que compõem The uprising.
Os casos de imagens que serviram de forma exemplar nesse processo de
revolta global são muitos. No caso dessas imagens que circularam viralmente
durante os períodos de mobilização desse ciclo de manifestações, a
intensidade das imagens nos parece vir da presença de corpos comuns e
desarmados diante de situações de violência governamental organizada (a
polícia ou o exército e todos os seus instrumentos: capacetes, escudos,
teasers, cassetetes, jatos de água, blindados etc.). São imagens que nos
afetam como espectadores a partir dos corpos que são diretamente afetados
nelas. Da intensidade desse afeto surgiu, em muitos casos, a necessidade de
compartilhar, analisar e produzir outras imagens, mas também de sair às ruas
e de manifestar-se. São imagens ressonantes, que produzem afetos diferentes
em cada um dos corpos que as recebe, mas que de uma forma geral provocam
abertura para que esses afetos se intensifiquem. Entendendo ressonância a
partir da definição de Gastón Gordillo como: a intensificação dos afetos
produzidos pela vibração da multidão encontrando-se e apropriando-se de
lugares públicos (Gordillo, 2015).
A ressonância das imagens nos parece ser, então, um dos elementos em
comum a partir do qual é possível pensar como um conjunto a produção de
filmes e vídeos dessas manifestações. Pois os acontecimentos e a circulação
de suas imagens em cada país afetaram não apenas a população local, mas
espalharam-se globalmente via internet afetando manifestantes de muitos
outros lugares.
E é na pista desses questionamentos que propomos agora uma leitura do
filme The uprising.

The uprising: desterritorializações e resíduos


Para fazer a sua narrativa, The uprising se divide em sete blocos, cada um
representando um dia a menos em uma contagem regressiva até o presente. O
final do filme marca assim um “hoje” da insurreição que não veremos, e os
dias anteriores vão trazer os eventos da multidão insurgente até esse
momento.
O prólogo do filme começa com imagens de uma rua deserta, com poucas
casas ao redor. No céu vemos nuvens carregadas e alguns relâmpagos no
horizonte. Ouvimos a respiração da pessoa que faz a gravação, essa se torna
mais pesada, dando a impressão de que o cinegrafista corre. Em seguida,
ouvimos sua voz tentando fazer contato com alguém. O som está abafado e é
difícil identificar o que está sendo dito. Por cima da sua voz, começamos a
ouvir sons que falam sobre as manifestações. Na imagem, o enquadramento
mostra um tornado se aproximando no céu.
Entramos assim no primeiro bloco, “Sete dias atrás”, com cenas que
marcam o início da insurreição. Temos, então, vídeos variados com discursos
inflamados de manifestantes, convocações para protestos, marchas cheias e
entusiasmadas. São imagens do primeiro momento de ressonância da
multidão: quando ela descobre a alegria de estar junta tomando as ruas e
desabafa suas reivindicações e indignações acumuladas.
Após a explosão de entusiasmo, o segundo bloco vai ser caracterizado
pelas imagens-acontecimentos de confrontos entre a multidão e as forças do
governo: a polícia e o exército. São imagens ressonantes pela força dos
corpos sendo atingidos, pelo sangue derramado e as vidas perdidas. Mas
ressoam também pela insistência da multidão no combate, mesmo em
momentos em que ela está lutando desarmada contra tiros de verdade.
No bloco seguinte, “5 dias atrás”, o filme começa com imagens de calma,
como se fosse o dia seguinte de uma batalha violenta. Temos a entrevista de
um homem e sua filha, dentro de casa, contando os eventos dos dias
anteriores. Também, imagens de outro homem dirigindo seu carro e
mostrando o local, agora vazio, onde um companheiro foi atingido pela
polícia. E os meninos que brincam, nas ruas tranquilas, com um lança-
foguete usado em confronto. Mas, ao final do dia, os conflitos e os tiros
recomeçam: a multidão volta para lutar sua batalha.
O dia seguinte, a quatro dias do fim, já começa com imagens da multidão
em protesto. As pessoas estão nas ruas, conversando, cantando, marchando, e
permanecem, até que finalmente podem explodir e comemorar a derrubada
do governo. Após essa primeira vitória, vemos cenas da multidão invadindo a
casa do antigo presidente (uma mansão suntuosa com piscina, academia,
mesquita). Mas esse é também o dia de se ocupar a cidade conquistada:
varrê-la, limpá-la, pintar as grades desgastadas. Dona da cidade, a multidão
liberta os presos políticos. Outro grupo invade a sede da Secretaria de
Segurança, agora abandonada, e procura documentos contra os manifestantes.
Enquanto isso, um ex-prisioneiro político reencena a tortura sofrida pela
polícia. E, em uma rua vazia à noite, um homem grita de felicidade. Os
vizinhos gritam para comemorar com ele. Mas um policial aparece e contém
o momento de alegria com novas ameaças.
Por fim, um manifestante denuncia sozinho em seu apartamento,
mostrando imagens da internet, que os confrontos continuam com a polícia,
mesmo depois da derrubada do governo. É seu questionamento que encerra o
bloco: e o que de fato mudou depois que o governo foi derrubado?
Após a euforia, a multidão volta às ruas para protestar. A manifestação
está sendo rigorosamente vigiada por helicópteros e muitos policiais. Voltam
a ocorrer repressões violentas do exército à multidão nas ruas. E essa precisa,
mais uma vez, cuidar dos seus feridos e enterrar seus mortos.
E é com imagens do velório de um manifestante que o dia anterior ao
final começa. Nesse bloco, a multidão é convocada por uma manifestante a
voltar às ruas no dia seguinte. A narração emocionante em voz over traduz o
momento do filme e da sua revolução por vir:

Agora são 10:30. Amanhã não é a revolução. Não é o dia em que iremos mudar tudo.
Amanhã é só o começo do fim. Amanhã, se marcamos nossa posição de forma pacífica
e unificada, apesar do que quer que as forças de segurança façam, nós teremos dado o
primeiro passo na estrada para a mudança. Nos últimos dias, eu recebi muitos
telefonemas de pessoas de todas as etapas da vida. É tão bonito que todos nós nos
importemos uns com os outros. Todos falam comigo como se eu fosse de suas famílias!
Eu sinto que todos vocês se importam comigo. Essa é a coisa mais bonita que eu já
senti na minha vida. Eu os verei amanhã. Eu estarei esperando por vocês às 2PM, em
ponto. Esse país nos pertence — a você e a mim. Amanhã, eu estarei esperando por
vocês, pessoal. Amanhã é nossa esperança, nosso sonho, nosso primeiro passo. Eu
estarei esperando por vocês.5
Enquanto ouvimos essa narração, o filme mostra imagens de
manifestantes se preparando para protestar, eles estão com os rostos cobertos
correndo com paus e pedras na mão. A narração se encerra e a multidão
continua sua luta tomando as ruas. Chegamos assim finalmente, no “Hoje”.
Voltamos a ver brevemente o tornado do início do filme, enquanto ouvimos
as vozes ressonantes da multidão nas ruas.
Essa breve descrição tenta contemplar a maneira como o filme roteiriza
seu material. Mas, obviamente, muito da protuberância das imagens se perde
nesse resumo. A montagem do filme é como um grande fluxo de imagens-
acontecimentos, um transe de imagens emergenciais de origens e
ressonâncias diversas. Essas imagens-acontecimentos são todas feitas em
meio aos protestos ou seus desdobramentos diretos, sendo dessa forma muitas
vezes tremidas e com uma resolução ruim.
Assim, em muitos momentos, essas imagens-acontecimentos do filme são
mais uma presença corporal de quem filma do que imagens figurativas ou
explicativas. Snowdon, de certa forma, consegue levar adiante a proposição
pasoliniana (Pasolini, 1980) de compor um filme a partir de planos-
sequências variados de um mesmo acontecimento — se pensarmos os
eventos insurgentes como um objeto fílmico único. E a montagem do diretor
opera justamente o ordenamento desse material, a transformação do filme em
cinema.
E é justamente esse um dos desafios de The uprising: como singularidades
isoladas, seus vídeos são um material ressonante e potente; mas, ao compô-
los em uma narrativa única, essa ressonância não nos afeta da mesma forma
no corpo fílmico resultante. Podemos pensar essa questão sob o aspecto do
ponto de vista do filme e da identificação do espectador. The uprising
constrói sua narrativa a partir de diversas imagens de manifestantes
anônimos. Esses vídeos, em geral, feitos de forma amadora com a câmera na
mão, carregam a presença dos manifestantes que os produzem — tanto pelo
ponto de vista subjetivo e a narração em primeira pessoa quanto pelas marcas
corporais dos realizadores que perpassam nas imagens: a respiração pesada e
o tremor das imagens, em momentos de deslocamento, ou mesmo as sombras
dos corpos refletidas para dentro do plano. Mas, se em cada vídeo
individualmente esse produtor amador das imagens funciona como um ponto
de identificação, o mesmo não acontece com o resultado final do filme. Ao
colocar de forma sucessiva todas essas perspectivas, as narrações com vozes
variadas, os tons e afecções diversos, o filme dilui esse produtor de imagens
em uma multiplicidade de olhares — assim como o ponto de apoio narrativo
do espectador. Não há uma identificação convencional possível com um
sujeito ou personagem.
Em uma entrevista6 sobre o filme, Peter Snowdon comenta a questão da
ausência de personagens na frente da câmera como ponto de identificação
para o espectador. Segundo o diretor, o efeito é proposital e é uma das
características do seu cinema. E apesar de provocar o que Snowdon vai
chamar de “experiência desestabilizadora para o espectador”, para o
realizador essa desestabilização pode ser uma consequência positiva,
principalmente da perspectiva política (Snowdon, 2014). Ainda assim,
acreditamos que essa desestabilização torna a narrativa do filme menos
fluida. E mais do que o conjunto das imagens, a relação de ressonância torna-
se mais forte em relação aos vídeos como singularidades. Mais do que pela
história que costura as imagens de arquivo, a força do filme reside no valor
de documento do seu material.
Portanto, podemos dizer que The uprising é um filme de montagem
carregado de resíduo do seu material de arquivo. Resíduo é o termo que Jean-
Claude Bernardet vai usar para falar de quando o contexto original da
imagem utilizada em um filme de arquivo sobrepõe o novo texto que este está
querendo criar (Bernardet, 2004:77-78). A ressonância das imagens originais
é um resíduo que permanece de forma intensa no filme de Snowdon.
E foi justamente a ressonância desse material que motivou a existência do
filme, em primeiro lugar. Para Snowdon, o projeto começou a ser pensado a
partir da sua própria experiência de assistir às imagens da Revolução do
Egito, via internet, quase imediatamente ao desenrolar dos eventos, como o
diretor relata: “Fiquei impressionado com a energia bruta e a emoção que
esses vídeos transmitiam. Em vez de ser alienado pela distância entre nós, eu
me senti atingido pela mesma onda de energia que estava tomando o país e os
princípios do seu povo” (Snowdon, 2015).7
A partir de sua experiência de mergulho nos vídeos-acontecimentos
postados no YouTube de vários países durante as Revoluções Árabes,
Snowdon pôde notar não só a afecção que estes provocavam nele, mas
também como eram ressonantes entre si. É esse efeito que ele descreve ao
falar dos vídeos: “Eu vi como eles frequentemente se ecoavam, como se
fossem parte de uma conversa em andamento, na qual símbolos, slogans e as
suas imagens se tornam os vetores pelos quais a energia coletiva circulava e
se fortalecia” (Snowdon, 2015). A experiência do diretor ao assistir aos
vídeos postados pela multidão na internet durante as manifestações foi a de
acompanhar a ressonância delas pelas imagens, como cada vídeo, ao mesmo
tempo que denunciava uma repressão policial, mostrava um protesto ou fazia
uma convocação para os próximos, criava uma afecção entre os
manifestantes, estando estes no mesmo país ou em regiões distantes.
O processo de produção do filme começou por organizar as imagens
como uma antologia: procurando em vídeos diferentes os gestos e as ações
que ressoavam de outras imagens. O objetivo seria mostrar em países
diversos como as revoluções seguiam desenvolvimentos similares e
ressonantes entre si: as convocações para os protestos, as marchas da
multidão, os confrontos com a polícia etc. Mas, segundo o diretor,
narrativamente, a repetição dos acontecimentos em países distintos, apesar de
demonstrar a circulação da energia coletiva na região, não funcionava na
montagem do filme. Mais do que a sobreposição dos mesmos gestos, o
diretor partiu para um processo de linearização de uma história que trataria
não mais daquelas insurgências em suas singularidades, e sim de uma
insurreição que só existiria no filme, tomando emprestadas as imagens das
revoluções reais. Acreditamos que o que esse procedimento termina por fazer
é um processo de desterritorialização dessas imagens.
Dessa forma, partindo das imagens-acontecimentos e emergenciais das
revoluções, o filme vai usar um efeito de quase ficcionalização, criando sua
própria revolução por vir. Essa revolução do filme não segue os limites
territoriais dos países de origem das imagens, a cronologia dos eventos de
suas insurgências e os contextos políticos de cada local. Assim, uma
convocação de protesto na Tunísia pode ser seguida pela multidão nas ruas
no Egito ou a repressão violenta no Iêmen pode ser contada no dia seguinte
pela experiência semelhante de um manifestante na Síria.
Por causa dessa desterritorialização das imagens, o filme afasta-se de um
sentido meramente documental dos acontecimentos. Snowdon vai defender
que o “processo do documentário também pode ser usado para deslocar e
romper a realidade, ou ao menos nossas ideias convencionais sobre a
realidade” (Snowdon, 2014). O diretor acredita que conseguiu tornar visível a
partir da sua edição do material do YouTube uma conversa entre as diversas
imagens, sem com isso eliminar o caráter emocional e de imediatismo dos
vídeos originais (Snowdon, 2014).
Nesse sentido, o resíduo ressonante, mais do que um efeito colateral
indesejável da montagem, é um elemento fundamental para a potência do
filme.

Considerações finais
Acreditamos que os eventos insurgentes nos países árabes foram, dentro
desse ciclo de protestos que eclodiram entre 2011-14, os mais politicamente
atravessados por uma potência ressonante de ruptura, sobretudo no Egito e na
Tunísia. Nesses países, a tomada das ruas pela multidão foi capaz de derrubar
os regimes vigentes e traçar novos desdobramentos políticos. Em outros
países, em que os regimes foram apenas parcialmente derrubados ou nos
quais os conflitos evoluíram para uma situação de guerra civil, a potência da
multidão foi também de grande intensidade. E assim temos, em relação a
essas revoluções, a produção de imagens-acontecimentos marcadas por uma
forte ressonância — se comparada a outros eventos.
Nesse sentido, defendemos que mais do que um filme sobre as
Revoluções Árabes, The uprising é um filme sobre as imagens emergenciais
dessas insurgências que circularam na internet e foram ressonantes tanto para
os envolvidos diretamente nos acontecimentos quanto para quem os vivia
como espectador. A partir do filme, essas imagens-acontecimentos passaram
a possuir mais um canal de circulação e atualizaram suas potências de
afetarem os espectadores.
Da mesma forma, ao fixar seu ponto final como um presente (o hoje) da
revolução que não veremos nas imagens, ou seja, um presente que permanece
irrealizável, a revolução imaginária do filme torna-se uma espécie de
acontecimento puro. Essa pan-revolução árabe das imagens é um eterno devir
fílmico. Trata-se, assim, de um filme que não se situa no passado histórico,
mas na projeção de um futuro da revolução a partir de suas próprias imagens
ressonantes. Mais do que uma temporalidade do evento insurgente encerrado,
The uprising nos propõe uma temporalidade kairós do acontecimento — que
devemos agarrar pelos cabelos para acompanhar seu transcorrer permanente.

Tradução livre.
Neste texto, evitaremos o uso dessa denominação. Porque, embora recorrente nos países
ocidentais, a expressão não foi adotada de forma hegemônica pelos países árabes onde os
protestos aconteceram. Vamos assim preferir o uso dos termos: “Revolução Árabe” ou
“Insurgência Árabe”, de uso mais corrente entre os manifestantes e ativistas que
participaram da insurreição.
Tradução livre.
O programa está disponível online para ser visto gratuitamente no endereço:
<www.aljazeera.com/programmes/aljazeeraworld/2011/10/2011101974451215541.html>.
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Tradução livre.
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9
Para a mamãe, com amor: arquivo e
memória nas cartas filmadas de A family
affair (2016)

Patricia Rebello da Silva

Introdução
Sob cada folha, abrem-se os lábios de uma ferida para deixar entrever a possibilidade
abissal de uma outra profundidade prometida à escavação arqueológica.
Jacques Derrida
O cartão-postal, para mim, era a imagem, a única imagem possível depois do mapa
geográfico. Eu sempre enviei para todo mundo, segundo meus amores, minhas amizades e
minhas fidelidades.
Serge Daney

Sobre a mesa da biblioteca de Ernest Hemingway na Finca Vigía, lar do


escritor em San Francisco de Paula (Cuba), há um carimbo com a seguinte
inscrição: Eu nunca escrevo cartas. Ernest Hemingway. Na mesma
biblioteca, Hemingway também guardou em um cofre uma carta
datilografada. O envelope, selado e onde se lia “IMPORTANTE — ABRIR
QUANDO EU MORRER”, continha uma nota datada de 20 de maio de 1958.
“Aos meus testamenteiros, é meu desejo que nenhuma carta escrita por mim
ao longo da vida seja publicada” (Spanier, 2015:xviii-xix). Como escreve
Sandra Spanier, organizadora da correspondência do autor, por mais que
adorasse receber cartas, o modo como Hemingway “encarava a
correspondência variava entre diversão, tábua de salvação, obrigação
exasperante e, no pior dos casos, um perigo ao seu trabalho” (Spanier,
2015:xvi). Lilian Ross, autora de um notório perfil de Hemingway,1 recorda
uma divertida passagem em uma troca de cartas com o escritor:

Certa vez, repassei algumas observações agradáveis que havia escutado sobre seu filho
John, e Hemingway escreveu de volta [dizendo] que amava muito o filho, e então
seguiu dizendo que, ao longo da vida, ele também havia amado três continentes, vários
aviões e barcos, os oceanos, suas irmãs, suas mulheres, vida e morte, manhã, meio-dia,
tarde e noite, honra, cama, boxe, natação, baseball, tiro, pesca, leitura, escrita e todos
os bons filmes. [Ross, 1961:25]

Olhos e coração dobrados por fragmentos de uma vida, imagens


esculpidas na memória, arquivadas no corpo. Ou talvez, o contrário: porque
são as imagens a esculpir o corpo, Hemingway respondia a quem lhe
indagava que escrever cartas deixa escritores “como um arremessador [de
baseball] cujo braço é fraco”. Seja porque escrever cartas consome a mão,
instrumento de trabalho do escritor, ou porque “quando você está escrevendo
bem, não sobra nada em você com que se possa escrever” (Spanier,
2015:xvii), as cartas se fazem instrumentos de sedução e, talvez seja o caso,
sumidouros a evidenciar a curta distância entre nadar ou se afogar em ideias.
Por outro lado, o rosnado de Hemingway também fala de uma potência
evocadora das cartas para a performance do sujeito, da criação de um relato
autobiográfico que se constrói no jogo entre remetente e destinatário.
Este texto levanta questões em torno da narrativa epistolar no domínio do
audiovisual, optando por um recorte que privilegia o uso do arquivo de
imagens de família tal qual explorado pelo diretor de A family affair. Por
meio de cartas em vídeo trocadas entre a família, na Holanda, e a avó, na
África do Sul, fotografias antigas — rasgadas, remendadas —, álbuns de foto,
filmes em super 8 e fitas de vídeo cruzam oceanos em busca de redenção.
Imagens de recordação com desejo de produção. Por vezes amorosas, por
vezes cruéis, mas sempre imagens desejosas de despertar e serem
despertadas.
A family affai : montagem bergsoniana
Tom Fassaert cresceu sob o olho da câmera do pai, Rob. Se descobriu
cineasta ao retornar para essas imagens e descobri-las como perfurações,
buracos e frestas da história da família. Urdidura lenta, reconstituída a partir
de fiapos de conversas entreouvidas, dispersas no tempo, feita de dúvidas e
silêncios. A family affair2 é uma tentativa de entendimento a partir dos cacos,
fragmentos, estilhaços e lascas de imagens, narrativas e contatos esparsos.
Montagem que mais difunde do que funde um ideal de família, de caminhos a
serem percorridos.
Ao completar 30 anos, o inusitado convite para uma visita à casa da avó
paterna, Marianne Celliers, se transforma na oportunidade para o diretor
confrontar os rumores e silêncios em torno da figura de uma personagem que
ocasionalmente irrompiam em meio a conversas, celebrações e encontros da
família. Aos 95 anos, morando na África do Sul, para Tom, Marianne não é
tanto uma experiência de afeto quanto um conjunto de mitos, rupturas,
desvios de rota e interrupções radicais. Retoma-se aqui, de certa forma, a fala
anterior de Vicente Sánchez-Biosca,3 ao comentar que o fim dos homens não
é a morte, mas sim o desaparecimento. Se o diretor afirma que o filme teria
por “objetivo” tirar a máscara da família, desconstruir certa aparência de
harmonia, é justamente dessa intenção que o documentário faz sua matéria,
subvertendo esse possível: torna imperativo parar de procurar uma história
aprisionada nas imagens dos filmes caseiros, e firmar o olhar sobre elas como
a presença de olhares, sentimentos e experiências. De uma falta, por assim
dizer.
“Meu pai capturou todos os momentos icônicos da minha vida”, diz o
diretor, “por 14 anos, ele documentou quase 100 horas do que achava mais
significante em sua vida: sua própria família”.4 O fim do casamento também
decretou o fim de um cineasta: após a separação, Rob Fassaert parou de
filmar, e nunca mais pegou na câmera. Como escreve a historiadora Susan
Aasman, “longe de ser um documento ingênuo e textualmente inocente, o
filme de família é de uma grande complexidade” (Aasman, 1995:109). O
paralelo entre o fim do casamento dos pais e o fim das filmagens inquietou o
diretor do documentário quando ele começou a escavar a história da própria
família.
Narrado em primeira pessoa, pelo próprio diretor, o “caso de família” que
dá título ao documentário parte da relação difícil entre o pai do diretor com a
avó.5 Em Mal de arquivo, Jacques Derrida escreve sobre uma topo-
nomologia, um lugar de fala cuja autoridade seria intrínseca à matéria do
arquivo:

[...] o arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral,


não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável
passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo,
acreditaríamos ainda que aquilo que aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura
técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável
em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto
produz quanto registra o evento. [Derrida, 2001:28-29]

Interessado na questão da memória na dinâmica psíquica, sob a lógica do


pensamento freudiano, Derrida evoca o modelo técnico da máquina-
ferramenta destinada “a representar exteriormente a memória como
arquivamento interno, a saber o Bloco Mágico (der Wunderblock)”6 (Derrida,
2001:25). Como marcas na superfície apagadas da memória, inscritas sob um
registro outro que, de acordo com a luz, podem ser novamente encontradas, é
nas percepções forjadas na tensão dos acontecimentos, das conversas
entreouvidas, nas imagens de uma família feliz que parecem inadequadas ou
descoladas do cotidiano que estão os argumentos que apenas a realização do
documentário permitirá vibrar em suas facetas dialéticas,7 sua narrativa como
um acerto de contas com a própria consciência, aquilo que a atravessa,
envolve, amadurece... e se transforma em dúvida.
Há algo de intenso nos movimentos da memória. Henri Bergson (1990)
estabelece a articulação de duas funções, responsáveis por uma atribuição de
sentido: a imaginação e a repetição. A repetição surge de um hábito
esclarecido, uma organização dos mecanismos de invenção da memória, que
cria um padrão na forma de agir. A imaginação, irrepetível, é um estalo de
consciência, uma forma de percepção singular que define as bases para o
reconhecimento: “a lembrança espontânea é imediatamente perfeita; o tempo
não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturalizar; ela conservará
para a memória seu lugar e sua data” (Bergson, 1990:64). Imaginar não é
lembrar-se, conclui Bergson. O gesto da lembrança envolve um percurso de
escavação no passado, um retorno sujeito a releituras à medida que
acumulamos mais “passados”. Por outro lado, a imaginação é sempre um
processo novo, uma forma de interação da consciência com o mundo. Por
isso, um retrato será sempre um fragmento de tempo carregado de sentidos
que podem ser feitos (e refeitos) no momento seguinte: “[...] a verdade é que
jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída” (Bergson,
1990:111). A essa definição da memória bergsoniana acrescentemos uma
outra, de Jacques Rancière, para quem “uma memória é um conjunto
qualquer, um arranjo qualquer de signos, de traços, de monumentos”
(Rancière, 2001:201).
A montagem de A family affair seria, de certa forma, essencialmente
bergsoniana, orientada por esses movimentos de insistência da memória, dos
arrazoamentos dialéticos que atravessam a vida:8 a súbita mudança da família
para a África do Sul depois de um telefonema da avó, a figura enigmática do
tio René, homem recluso e que dependia dos cuidados do pai, e,
especialmente, as histórias, mitos e lendas em torno da relação de Marianne
com os parentes.9 Montagem produzida na tensão entre as imagens feitas pelo
pai, o arquivo de fotografias da avó e os registros da visita do diretor a
Marianne, o documentário desafia a lógica do arquivo, bem como revela os
processos desencadeados pelas trocas de imagens entre os personagens de sua
família.

Os arquivos Fassaert
Talvez as melhores histórias sejam aquelas forjadas a partir dos acasos e
inusitados, das sombras e fantasmas que sobrevivem, apenas esperando serem
descobertos em caixas empilhadas, álbuns de fotografias ou rolos de filme.
Aqui, essa história começa com um par de pés inchados. Os pés pertencem à
mãe do diretor do documentário. Aqui, eles bailam alegres sustentando o
peso de uma mãe recém-nascida, do bebê e de toda felicidade que cabe nesse
imaginário dos começos que insistem em se repetir ao longo da vida.
Existem muitas maneiras de mostrar a imagem de uma jovem que se
transforma em mãe, bem como as transformações implícitas no processo. O
pai do diretor, autor do registro, optou por uma imagem dos pés inchados:
bem mais que uma figura idealizada da maternidade como um ponto de
virada na vida da esposa, os traços da metamorfose do corpo, no tempo
próprio dos procedimentos de transformação e adaptação.
Em A imagem-tempo (1995), Gilles Deleuze nos diz de uma experiência
da imagem-lembrança, uma condição capaz de oferecer sentido
completamente novo às imagens, e que amadurece com o cinema-moderno.
Idealizada como uma virtualidade que “tira proveito da separação [da
montagem na narrativa clássica], a supõe, já que se insere nela, mas é de
outra natureza, [...] o que ‘se acrescenta à matéria, e não mais o que a
distende’” (Deleuze, 2005:63), a imagem-lembrança oferece, enfim, “[...] um
peso de passado sem o qual elas continuariam a ser convencionais” (Deleuze,
2005:66). É justamente esse gesto de montagem, evocando os filmes de
família a título de imagens-lembranças, aquilo que ativa o arquivo nos
diferentes sentidos explorados pelo documentário: como tática (Pimentel,
2014), monumento (Périot-Bled, 2014), documento (Aasman, 1995),
desordem (Farge, 2009), testemunha (Niney, 2002) e montagem (Didi-
Huberman, 2009).
Feitos sem a pretensão de ser testemunhas, nem comprometidas com uma
história a ser contada, os filmes amadores são, em sua grande maioria,
desprovidos de estrutura dramática e montagem. Ato de exteriorização da
memória, escreve Catherine Blangonnet, “o filme amador em seu uso privado
tem por função reacender a lembrança, permitir reconstruir junto a história da
família” (Blangonnet, 1997:24-25). Filmar tudo. Filmar sempre. Como se,
depois de uma vida de abandonos e lacunas, uma infância sem memórias,
Rob Fassaert, levado aos três anos por Marianne para uma “casa de crianças”,
10 se esforçasse em se tornar dono de uma história, de criar matéria para um
passado. O menino reservado que, outrora, mostrava incômodo em ocupar o
lugar de filho na fotografia, cresce e transforma a câmera numa ocupação na
vida da família. Seria preciso preservar o máximo de detalhes da própria vida,
uma forma de se tornar dono de uma história. Qualquer história. Aquela que
for possível.
Como uma maldição que atravessa gerações, as crianças da família
Fassaert parecem condenadas a uma infância de abandonos e lacunas,
rupturas e vazios. Talvez por isso, quando crescem, se tornam colecionadoras
compulsivas de imagens da vida íntima, num esforço de capturar os
acontecimentos, se apropriar de uma história. Se Rob, o pai, encarna o
personagem do “catador de imagens”,11 cabe a nós, espectadores, nos
perguntar a forma de nos colocar diante dessas imagens. Como indaga Bill
Nichols (2011) a respeito do trabalho de Péter Forgács, diretor notável pelo
uso de imagens de arquivo, os filmes de família utilizados pelo diretor de A
family affair, passados de pai para filho, são feitos por “pessoas que não
sabem o que será do futuro, mas que oferecem suas imagens para aqueles que
sabem o que aconteceu no passado” (Nichols, 2011:x). Igualmente, continua
Nichols, ansiamos ver no que eles viam evidências da história que eles ainda
iriam encontrar, “também ansiamos ver o mundo da maneira como eles o
viam, com serenidade e inocência cega a seu próprio futuro” (Nichols, 2011).
Cezar Migliorin (2013), em artigo que comenta a linguagem epistolar no
audiovisual:

[...] os filmes-carta, talvez, forcem um lugar complexo para o espectador. Entre ser e
não o destinatário, entre poder e não poder compartilhar aquele gesto subjetivo. Nesse
sentido, trata-se de filmes que transitam em uma tênue linha entre o público e o
privado, entre o individual e o coletivo. E nessa linha se instala o potencial político
dessas obras, uma vez que operam no desejo do sujeito se dirigir subjetivamente ao
outro e, ao fazer isso com os meios do cinema tornam o gesto pessoal imediatamente
público. [Migliorin, 2013:11]

No contracampo de todas as imagens realizadas por Rob Fassaert, essa


tentativa infinita de capturar uma história, uma caixa com fotos em preto e
branco, fotolivros personalizados, recortes de jornal e toda sorte de
reminiscência que sobreviveu ao tempo e às constantes mudanças de
domicílio da avó do diretor. Diferentemente do filho, Marianne coleciona,
mais que imagens, gestos. Uma fotografia de um casal colada com uma fita
adesiva talvez fale, bem mais do que o momento da história em que foi
capturada, daquilo que se seguiu a ela — que seja uma desavença, uma
mágoa, uma dor, um arrependimento, uma tentativa de apagar um
acontecimento, a fita adesiva produzindo uma dobra na história daquela foto,
e nos permite pensar para além da foto. Imagens pontuais, desconexas entre
si — histórias que começam e se encerram nos limites da própria moldura —,
quem sabe escolhidas na urgência de uma mudança de endereço, na falta de
tempo (e espaço) para fazer caber fragmentos do cenário da vida em uma
mala, o conflito entre o que é prático, o que é precioso e sentimental
(Huntington, 2012:ix).12
Um dos aspectos interessantes sobre o registro amador, escreve Susan
Aasman, é o fato de que “existe uma contradição entre o objetivo inicial [do
registro] e a significação que pode ser colocada em evidência por uma análise
de conteúdo” (Aasman, 1995:100). Não sabemos por que essas fotografias
foram feitas, no momento em que elas nasceram. Contudo, sabemos que elas
são convocadas pela avó durante o encontro com o neto como um derradeiro
gesto de “sobrevivência” ao lugar vazio, a imagem fantasmática em todos os
aniversários, almoços e pequenos acontecimentos em família no arquivo de
imagens dos Fassaert; aos fragmentos de histórias, lendas e mitos em torno de
Marianne que circularam ao longo de tantos anos. Uma ideia que se fortalece
na fala da avó no documentário, ao comentar que talvez seja o neto (e por
consequência, o filme que ele faz) a pessoa que talvez possa ajudar a
remendar os retalhos da família.
“Sabe, Tom, o que também é muito importante, e o que é difícil de
entender... No começo há muito tempo em Berlim, quando eu ainda era
jovem, eu só queria uma vida normal, a vida de uma jovem.” As confissões
da avó são realizadas durante o translado da África do Sul para a Holanda,
rumo ao encontro com a família. No navio, território sem rastros de passados,
Marianne fala sobre a relação difícil com seu próprio pai, da gravidez
precoce, do casamento apressado, no sentimento de liberdade podado muito
cedo na bela moça que sonhava ser modelo.

Videocartas: para a mamãe, com amor


Para preencher a distância que se instala entre a mãe e o resto da família, Rob
Fassaert idealiza uma série de cartas filmadas para a mãe; nelas mostra o
crescimento da família, dá conta dos processos de sua própria vida e da dos
irmãos, especialmente o problemático René. Eventualmente, recebia algumas
respostas, também em vídeo, da mãe.
Como escreve Alain Moreau (1997), a emergência de documentários que
se referem explicitamente à carta (sobretudo no título), bem como a
proliferação da videocorrespondência como um dispositivo de práticas
audiovisuais socioculturais se consolidam popularmente nos domínios do
registro doméstico no começo dos anos 1980:13

A videocarta, tanto como objeto estético como de uso prático, se inscreve na longa
tradição do cartão-postal: uma fotografia retangular, na parte de trás da qual o
expedidor inscreve um texto pessoal mas não confidencial aos cuidados de um
destinatário nominalmente designado. É a partir desse modelo simples, que se
desenvolveu rapidamente desde a invenção da fotografia um uso social particular da
correspondência, reunindo sobre um mesmo suporte uma imagem e um texto.
[Moreaus, 1997:27]

É também no começo dos anos 1980, espécie de “ressaca” das sequências


de turbulências sociais de entre fins de 1960 e meados de 1970, que começa a
emergir um conjunto de reavaliações de instituições e valores que pareciam
definir culturas e projetos de civilização. No importante estudo que realiza
sobre a etnografia da produção íntima nos filmes americanos desse período,
Scott Macdonald pontua esse momento histórico da seguinte maneira:
O governo federal envolveu a nação numa guerra durante a qual o exército americano
perpetrou brutalidades chocantes e desumanas contra humildes perdedores [...].
Governos estaduais que haviam tolerado gerações do apartheid americano foram
atacados por seus cidadãos destituídos de direitos e por “agitadores de fora”, incluindo
um presidente e um procurador do governo educados em Harvard. Sob pressão dos
estudantes e universitários, faculdades e universidades começavam a repensar suas
exclusividades econômica e étnica. E uma nova onda de feminismos estava
questionando a natureza das relações entre homens e mulheres, a instituição do
casamento e um dos pressupostos centrais da família nuclear americana: a crença na
privacidade. [MacDonald, 2013:127]

Em The subject of documentary, Michael Renov assinala o crescimento de


filmes com uma proposta autobiográfica como sintoma de uma forma de
reposicionamento do sujeito na sua maneira de se relacionar com o mundo.
Essa nova maneira vai ser predominantemente manifestada pela escrita
subjetiva como filtro de percepção e forma de representação. É também
interessante pensar que essa produção ativa e atualiza uma série de processos
inaugurados ainda no começo da história do cinema, notadamente associados
a certo “primórdio do documentário”, como Rien que les heures, de Alberto
Cavalcanti (1926), O homem com a câmera na mão, de Dziga Vertov (1929),
The bridge e Rain, de Joris Ivens (1928-29) e À propôs de Nice, de Jean Vigo
(1930).
Os vídeos enviados para Marianne, na África do Sul, tentam dar conta da
dinâmica da família, mas de maneira a criar pequenas histórias ausentes de
tensão, de confrontos e intertextualidades. Se, por um lado, a família Fassaert
é marcada por rupturas, rusgas e complexidades entre as relações, as imagens
trocadas entre Rob e Marianne optam por deixar todas essas questões de fora.
Contudo, essa correspondência, naquilo que justamente escolhe não falar,
cria uma situação controversa: se cartas deveriam encurtar as distâncias,
nesse caso elas aumentam ainda mais o abismo entre mãe e filho. Ou, como
escreve Cezar Migliorin, “os filmes-carta que me interessam são como
mensagens na garrafa. Cada palavra é acompanhada da sorte de termos nos
encontrado” (Migliorin, 2013:11). É movido por essa estranha sensação de
que se tratava de cartas vazias, incapazes sequer de tanger sua própria razão
de existência, que surge o documentário A family affair.14

Conclusão
A artista visual mineira Fernanda Meireles (2013) chama os filmes-carta de
mapas ilustrados. Nele, segue a autora, tudo se move, um caleidoscópio que
já não cabe na palma da mão:

Escrita de si é contínua invenção de si, ao escrever, transbordamos. Os escritores de


filmes-carta repartem sua intimidade abrindo-a ao público, criando uma carta que não
vai passear sob tantos olhos, mas ser fio de uma rede de experiências partilháveis, fios
estes que poderão criar laços, alguns fortes, outros nem tanto, mas tecidos entre o
público e o privado. [Meireles, 2013:21]

Como uma maldição que atravessa gerações, as crianças da família


Fassaert parecem condenadas a uma infância de abandonos e lacunas,
rupturas e vazios. Talvez por isso, quando crescem, se tornam colecionadoras
compulsivas de imagens da vida íntima, num esforço de capturar os
acontecimentos, se apropriar de uma história. Contudo, esse desejo de
memória atiça e desperta a fúria do arquivo, que transcende a função de
informação e ressurge em sua vocação elementar de ensino. Te docere
possum, si vis. Posso te ensinar, se quiser. Ensinar como percorrer imagens
que não são autoridade sobre a história, mas apelos de seus personagens.
Jamais esquecer que “os gestos espontâneos, as cenas improvisadas e as
situações concretas que observamos não foram criadas como indicadores de
forças históricas externas, mas como lembranças animadas de história
pessoal” (Nichols, 2012:13). Diferentemente das fotografias e dos filmes de
família, aqueles que as observam conhecem o futuro daquelas imagens, e se
torna impossível olhar para elas fora dessa conjugação. Fúria de arquivo,
fúria do arquivo. Espera sem horizonte acessível, como escreve Derrida,
“questão do porvir do fantasma, ou do fantasma do porvir, do porvir como
fantasma” (Derrida, 2001:110).
Tom Fassaert cresceu sob o olho das várias câmeras do pai, Rob.
Descobriu-se cineasta ao retornar para essas imagens e descobri-las como
perfurações, buracos e frestas da história da família. Urdidura lenta,
reconstituída a partir de fiapos de conversas entreouvidas, dispersas no
tempo, feita de dúvidas e silêncios. A family affair, documentário holandês
que conquistou o prêmio de melhor filme na competição internacional da
edição 2016 do festival de documentários É Tudo Verdade, é uma tentativa
de entendimento a partir dos cacos, fragmentos, estilhaços e lascas de
imagens, narrativas e contatos esparsos. Montagem que mais difunde do que
funde um ideal de família, caminhos a serem percorridos.
Ao completar 30 anos, o inusitado convite para uma visita à casa da avó
paterna, Marianne Hertz, se transforma na oportunidade para o diretor
confrontar os diferentes mitos em torno dela. Aos 95 anos, morando na
África do Sul, para Tom Marianne não é tanto uma experiência de afeto
quanto um conjunto de lendas, de contos em aberto, desvios de rota e
interrupções radicais. Se o diretor afirma que o filme teria por “objetivo” tirar
a máscara da família, desconstruir certa aparência de harmonia, é justamente
dessa intenção que o documentário faz sua matéria, subvertendo esse
possível: torna imperativo parar de procurar uma história aprisionada nas
imagens, e olhar para elas como a presença de olhares, sentimentos e
experiências.

O perfil foi escrito para a revista de ensaios americana The New Yorker, e publicado em 13
de maio de 1950. Ver bibliografia.
O documentário conquistou o prêmio de melhor filme na competição internacional da
edição de 2016 do festival de documentários É Tudo Verdade. Anteriormente, o filme
também já havia sido escolhido para abertura da edição de 2015 do International
Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA). Detalhes sobre a carreira do documentário
no site:
<www.tomfassaert.com/#/A%20FAMILY%20AFFAIR/Screenings,%20Awards%20&%20Press/>.
Acesso em: 29 jan. 2017. Até o momento da finalização deste texto, o filme pode ser
assistido no canal provedor de produções audiovisuais via streaming Netflix/Brasil.
A fala de abertura do seminário, com o título Cuando las imágenes faltan. Estrategias
documentales para representar el genocídio camboyano, foi ministrada pelo professor da
Universidade de Valencia, Vicente Sánchez-Biosca. Nela, o autor retoma interessantes
questionamentos (como o de filme-acontecimento, ver bibliografia) sobre a relação da
imagem com a história. Porque, no caso do presente documentário, a avó sempre foi a
figura ausente durante a infância do diretor, aquela que desaparece sem deixar paradeiro,
isso teria um efeito mais mortal na relação com o neto do que se efetivamente ela tivesse
falecido.
Disponível em: <http://blog.afi.com/the-afi-docs-interview-a-family-affair-director-tom-fas
saert/>. Acesso em: 30 out. 2016. Todas as citações do diretor foram colhidas na entrevista
concedida a esse mesmo blog.
“Uma vez que eu acreditava que o problema era essencialmente entre meu pai e minha avó,
eu achei que podia contar a história a partir dessa perspectiva de observação.” Ver nota 3.
Em “Uma nota sobre o bloco mágico”, Sigmund Freud concebe a atividade do inconsciente
como um aparelho de memória que funcionaria analogamente ao brinquedo infantil bloco
mágico. Neste, a pressão de uma folha de celuloide sobre uma prancha de resina permite à
criança “escrever” sobre uma superfície sem necessariamente deixar traços sobre ela;
deixa, contudo, as marcas dessa escrita impressas no bloco, logo abaixo. Aqui trata-se de
uma breve explicação apenas para contextualizar a relação entre consciente e inconsciente
desenvolvida pelo médico.
“Quando criança, me sentia como um observador, um forasteiro de minha própria vida —
especialmente durante os momentos em que era confrontado com grandes mudanças que eu
não entendia bem […]. Através desses acontecimentos, desenvolvi uma curiosidade geral
por coisas que não estão em ordem, ou apenas caóticas, assim como um profundo desejo de
compreender as complexidades da vida, e não apenas a minha.” Ver nota 3.
Cumpre lembrar que não se trata aqui de nomear (ainda mais) um tipo de montagem. A
relação da memória e do tempo da montagem apontada retoma os processos que se
fortaleceram no período do cinema moderno, e exemplarmente já descritos e comentados
por Deleuze em A imagem-tempo. Trata-se tão somente, neste caso, de fazer pensar os
específicos do movimento no caso deste filme.
“[...] também queria colocar um ponto final no silêncio sufocante na minha própria família.
Tudo isso me impulsionou para olhar por trás dos mitos e lendas persistentes que eu ouvia
sobre minha avó, Marianne, a quem eu mal conhecia.” Ver nota 3.
Aos três anos de idade, Rob e o irmão Renée foram levados por Marianne para um abrigo
para menores. Essa foi a primeira das muitas desaparições que a avó de Tom Fassaert
performaria ao longo de seus quase 100 anos de existência.
A figura do catador à qual o texto se refere é a notável personagem encarnada e narrada
pela cineasta belga Agnés Varda no documentário “Os catadores e a catadora” (Les
glaneurs et la glaneuse), 2000.
Sobre esse tema, recomendo vivamente a agradável compilação organizada pelo Foster
Huntington, The burning house (2012). Em breve resumo, a partir da pergunta “Se sua casa
estivesse pegando fogo, o que você levaria com você?”, inicialmente lançada em um blog,
depois formalizada em projeto e endereçada a diferentes pessoas, artistas ou não,
Huntington reúne uma coleção inusitada do que talvez seriam “potenciais narrativas de
urgência”.
Nesse sentido, talvez seja interessante pensar o lugar dessa produção que emerge entre o
cinema experimental dos anos 1970 e os documentários performáticos, enviesados por um
caráter mais reflexivo, que começam a surgir no começo dos anos 1990. Livros como
“Blurred Boundaries: questions of meaning in contemporary culture”, de Bill Nichols
(University of Indiana Press, 1994) e Home movies and other necessary fictions, de
Michelle Citron (University of Minnesota Press, 1999), podem iluminar alguns aspectos
importantes do período.
“Parece que nos limitamos a registrar os momentos dos quais temos orgulho, e desligar a
câmera quando acreditamos que fomos malsucedidos, ou quando a realidade é muito
dolorosa para ser capturada. Eu queria preencher os vazios entre os momentos icônicos de
felicidade da família.” Ver nota 3.

Referências
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10
Boas moças: a desconstrução do olhar
masculino por meio da retomada do filme
doméstico1

Beatriz Rodovalho

O filme doméstico,2 em sua estrutura fragmentária e incompleta, é produzido


por um sujeito coletivo e plural: a família. Esse sujeito múltiplo profere um
discurso polifônico3 inscrito em sua forma “malfeita”. Trata-se de uma
“construção coletiva consensual” e eufórica (Odin, 1995:36). As memórias
protéticas carregadas por esses filmes lacunares são completadas pelas
lembranças individuais dos participantes e compõem a memória e a história
familiares. Do evento da filmagem ao da projeção, o ritual do cinema familiar
— jogo coletivo (Odin, 2004:42) — produz e reforça os laços do grupo. No
entanto, por trás da câmera, existe um operador único.
Ao longo do século XX, no interior do círculo familiar, o controle do
registro foi principalmente privilégio do homem, do pater familias do lar.4
Afirmando e perpetuando a instituição familiar em sua configuração
patriarcal, nuclear e heterossexual, o filme de família reproduz a hierarquia
de gênero da sociedade burguesa. Construindo imagens que oscilam entre o
real e o imaginário, ele contribui para a normatização e a naturalização da
distribuição dos papéis de gênero. No filme doméstico, essas tensões
permeiam a relação entre aquele que filma e aqueles que são filmados e
determinam a representação. De maneira geral, então, a mulher constitui um
objeto do olhar da câmera amadora. O corpo feminino pode se tornar objeto
do desejo, do amor, do afeto, da perversidade e do poder dos homens. A
câmera, nesse sentido, pode agir como um instrumento de controle e de
manutenção da ordem de gênero da infância à vida adulta.
Nesse contexto, como inverter ou subverter o olhar masculino, paterno e
patriarcal que enquadra a mulher no espaço privado? A rebelião feminina
pode ocorrer, primeiro, no interior do registro. Como lembra Michelle Citron,
existem os ocasionais atos de revolta, em que as mulheres podem mostrar a
língua, cobrir a lente com as mãos ou sair de quadro — recusar, de alguma
maneira, o olhar que se lança sobre elas (Citron, 1999:13), ainda que eles não
ameacem a lógica patriarcal que as enquadra. Afinal, em certa “partilha da
luz”, a objetiva obedece a um duplo domínio: o do operador e o de seu objeto
(Rancière, 2012:19). Essa rebelião também pode se dar por meio da
apropriação dos aparelhos, como revela a história do cinema amador e
profissional realizado por mulheres desde os primeiros tempos — história
periférica, ignorada pela historiografia oficial. Ela pode igualmente ocorrer
no cinema de remontagem. Nessa prática, algumas cineastas e artistas
recuperam filmes de família tradicionais e produzem um cinema “de segunda
mão” (Blümlinger, 2013) feminista e libertário. A partir de filmes de
Michelle Citron (Daughter Rite, 1978), Su Friedrich (Sink or swim, 1990),
Alina Marazzi (Un’ora sola ti vorrei, 2002) e Marina Lutz (The Marina
experiment, 2009), analisamos como a reapropriação e a remontagem de
filmes amadores podem desmontar a lógica de gênero que orienta o cinema
doméstico.

“Ela tem mesmo razão, mamãe Beauvoir”5


Estudando a circulação do olhar na prática da fotografia de família, Marianne
Hirsch desenvolve a noção de “olhar familiar” (familial gaze) (Hirsch, 1997,
1999; Citron, 1999). Para a autora, o olhar familiar estabelece o tecido
ideológico da representação. Construindo certa visão da família, ele enquadra
e determina os olhares (familial looks) que se cruzam na fotografia e no filme
de família (Hirsch, 1997:7). Esse olhar familiar, que pode se transformar
historicamente, contudo, corresponde, antes, a um olhar patriarcal inscrito em
seu tempo. Ao longo do século XX, se o olhar familiar do filme doméstico
assume as nuances das conjunturas sócio-históricas locais, a lógica patriarcal
burguesa que o orienta permanece hegemônica.
O gênero, segundo Judith Butler (2005), pode ser concebido como
performatividade; não a performance como ato de teatro ou invenção, mas a
performance que orienta os atos de formação da subjetividade (Alsop et al.,
2006:99). A performatividade do gênero constrói e determina a experiência
do mundo. Ela está, necessariamente, ligada a estruturas de poder — ao
patriarcado e à divisão hierárquica que ele institui. O filme doméstico é um
lugar de performatividade por excelência, encerrando a dialética da
construção e da reprodução de uma imagem desejada da família pautada por
diferenças de gênero. Filmes de família, assim, produzem as identidades que
aparentemente representam — são instrumentos do olhar patriarcal e da
institucionalização das subjetividades no interior da família nuclear.
O cinema amador, dessa forma, sempre foi prerrogativa masculina,
sobretudo em sua origem como atividade de recreação familiar.6 Ele participa
da nova concepção da paternidade no século XX, que pode ser fixada pelo
filme doméstico como prática do tempo de lazer do pai com as crianças
(Aasmann, 2004). Como resume Citron, “filmes de família estão repletos de
imagens das meninas — a mãe, a esposa ou as filhas — desfilando como
objetos diante do olhar paterno por meio do olho da câmera” (Citron,
1999:13). Contraditoriamente, tem-se a invisibilidade da figura do pai na
imagem. Sua presença manifesta-se na própria possibilidade do registro,
assim como no controle da filmagem, confirmando sua posição dominante.
“Como subverter o poder quando integramos sua estrutura?”, pergunta-se
Abigail Child (Bovier, Child e Da Silva, 2011:132). Como desafiá-lo e
propor novos possíveis? Como reivindica Butler, como desconstruir,
desnaturalizar e deslocar as performances de gênero?
Os filmes aqui analisados partem de posições marginais de criação. Su
Friedrich e Michelle Citron, ao lado de Abigail Child, por exemplo, são
matriarcas do cinema feminista, que se estabeleceu à margem de um cinema
essencialmente masculino. Como relembra William Wees, aliás, até os anos
1980 os “gigantes” do cinema de vanguarda norte-americana, com exceção
de Maya Deren, eram homens (Wees, 2001:71). Em Sink or swim e Daughter
Rite, Friedrich e Citron desenvolvem uma forma cinematográfica própria,
baseada na remontagem. É a remontagem, como repetição e reapropriação,
que permite a desestabilização da norma. Como afirma Giorgio Agamben
(1995), a repetição não é o retorno do mesmo: a força da repetição é o retorno
enquanto possibilidade. A remontagem das imagens permite seu retorno
como potência e possibilidade — como re-visão7 do passado e transformação
do presente. Os filmes de Friedrich e Citron reclamam, a partir da enunciação
subjetiva, um olhar feminino possível, uma re-visão feminina sobre uma
sociedade patriarcal. Alina Marazzi e Marina Lutz, em diferentes registros,
herdam essa potência do cinema de reapropriação autorreferencial da geração
anterior.
Esses filmes problematizam questões de filiação. De certo modo, eles são
todos “ritos de filha”, como propõe o filme de Citron. Porém, por meio da
remontagem, os ritos praticados por essas filhas são ritos de passagem, de
rebelião, de emancipação e de subjetivação. Trata-se de ritos que provocam, a
despeito da continuidade, ruptura, resistência e recriação.

Sink or swim: menina(s) dos olhos do pai


Em Sink or swim, filmes domésticos da infância de Friedrich são remontados
com imagens de diversas origens. O filme estrutura-se de acordo com o
abecedário invertido (de z a a) — uma primeira transgressão da ordem
estabelecida e transmitida. Cada parte conta um episódio de uma história de
uma menina, narrado em over e em terceira pessoa por uma voz infantil.
Histórias e anedotas d’“a menina” e de seu pai, revelando traumas, punições,
decepções, desentendimentos, desencontros e dúvidas, cruzam-se com mitos
gregos, cantigas infantis e contos de fadas. Os mitos de Atena, Atalanta,
Afrodite e Deméter (deusas num panteão patriarcal) fundam o imaginário
d’“a menina” sobre o “ser mulher”. A partir desses mitos de origem e por
meio de histórias íntimas entre um pai e uma filha, deslocadas por meio da
terceira pessoa, Friedrich questiona o que é tornar-se e fazer-se mulher. As
imagens amadoras de Friedrich menina, filmadas por seu pai, misturam-se
com imagens de outros corpos femininos, como as de meninas fantasiadas em
um carnaval, meninas nadando em um lago, meninas em um pátio de escola,
meninas patinando no gelo, meninas em sua primeira comunhão, mulheres
halterofilistas, mães, artistas circenses, mulheres nuas em um chuveiro
coletivo, mulheres na praia, mulheres em figuras pornográficas e pinturas
religiosas, e, finalmente, o corpo da própria cineasta adulta. A montagem
dessas imagens e dessas narrativas inscreve as histórias d’“a menina” em uma
mitologia do que é ser filha e mulher.
Essa multiplicidade de mulheres interroga a posição da mulher na
sociedade patriarcal em sua configuração moderna e ocidental. Dissolvendo-
se na voz enunciadora da menina, que, por sua vez, dilui-se n’“a menina”,
n’“ela” e n’“a mulher”, e em todas as representações femininas, a cineasta
transforma a experiência íntima em política e o sujeito feminino em sujeito
necessariamente composto. Ainda, como nota William Wees, Friedrich o faz
em oposição ao “eu” que enuncia os filmes autobiográficos dos “gigantes” do
cinema experimental norte-americano, como Jonas Mekas, Stan Brakhage e
Jerome Hills (Wees, 2001:81).
O pai evocado pela narradora, nessa construção complexa, é uma figura
ambígua que transita entre o afeto e a proteção e a opressão. Primeiro, ele é
legado à invisibilidade na imagem (as visões do pai de Friedrich perdem-se e
diluem-se entre as imagens de outros pais anônimos, de outros rostos em
preto e branco) e ao silêncio na enunciação. Esse poder pertence agora à
filha-cineasta. Seu pai, professor universitário, linguista e antropólogo, é
agressivo, ausente e eventualmente abandona a família para constituir uma
outra. Ele não corresponde ao pater familias das novelas da televisão. Na
sequência “Dever de casa” (Homework), a narradora conta que “a menina”
chegava em casa para ver seus programas favoritos. O filme mostra a tela de
um aparelho no qual se veem as aberturas de antigas novelas norte-
americanas: Make room for daddy, The Donna Reed show, e Father knows
best. Em poucos segundos, condensa-se o ideal da domesticidade da família
nuclear burguesa, em que as mães são devotadas e os pais, amorosos. A
ausência da trilha sonora e a diferença de frequência do aparelho televisivo
reforçam a distância da realidade produzida pela ficção.
A sequência “Realismo” refere-se diretamente ao título do filme —
afunde ou nade. “Um dia, a menina disse ao pai que queria aprender a nadar.
Naquela tarde, eles foram à piscina da universidade. Ele levou-a à parte funda
da piscina, explicou os princípios de bater a perna e respirar, disse que ela
teria de voltar sozinha, e então empurrou-a.” O filme narra outros episódios
em que o pai, abandonando seu papel protetor, aterroriza e diminui “a
garota”. “Daquele dia em diante, ela foi uma nadadora dedicada.”
O motivo aquático percorre todo o filme, tanto na imagem quanto na voz-
over. Além da primeira lição de natação, por exemplo, veem-se imagens de
meninas nadando e mergulhando e de mulheres à beira da água. Grande parte
dos filmes domésticos retomados por Friedrich mostra cenas de verão no
lago. No capítulo “Memória” (Memory), apresenta-se o fantasma de outra
nadadora que persegue “a menina”. Sobre imagens filmadas pelo pai de
Friedrich em que dois garotos e a própria cineasta, de roupas de banho,
correm pela floresta e mergulham em um lago, a narradora conta a história do
afogamento da irmã do pai em questão. As imagens tremeluzem. Entre cada
fotograma que registra a alegria das crianças, há um vazio, um fotograma
negro em que se inscreve o inverso do que contém o filme de família. Entre
um momento negro e outro, a imagem da menina que se desequilibra antes de
mergulhar na água se repete. Outros filmes de família seguem essas cenas. A
montagem repete os primeiros filmes domésticos do filme, em que o pai da
cineasta brinca com ela ainda bebê. Em um dos planos, ele a carrega nos
ombros. Quando a voz da narradora lê o poema que o pai escreveu nos
primeiros dias de vida de Friedrich, a cineasta congela um fotograma do pai
sorrindo para a câmera, e em seguida um da filha, repetindo o olhar. No
poema, ele tenta imaginar a filha no futuro, como uma menina e uma mulher.
No entanto, “agora só resta o rosto quieto que substitui enfim uma irmã
afogada”. A voz-over completa o sentido das imagens que passam das mãos
do pai para as da filha: a transmissão dos traumas do pai e a projeção da irmã
morta sobre o corpo da menina.
w

Em uma das sequências em que Friedrich se coloca em cena, a câmera


mostra a cineasta em uma banheira, bebendo uma cerveja. Ela submerge seu
corpo, senta-se e esfrega o rosto. A imagem contradiz os códigos patriarcais
do comportamento feminino. O próprio corpo nu da cineasta — um corpo
não objetificado pelo olhar masculino, um corpo divergente e lésbico —
desloca a performance de gênero normativa. É sob a água do chuveiro,
ademais, por meio da imagem do banho de duas mulheres nuas em um
vestiário, que a cineasta sugere o desejo, o amor e o olhar lésbico. A água,
meio movediço, é o território em que ela confronta o pai e o patriarcado. Na
última sequência, “Atena/Atalanta/Afrodite”, “a menina” consegue
finalmente rejeitar o pai. Em vez de provar ao pai que ela é capaz de
atravessar a nado todo o lago, ela decide abandonar a travessia e flutuar (“o
sol aquecia sua face, e a água a envolvia como os braços de um/a amante”).
Ela nada, enfim, de volta à margem. Nadar é o ato que desterritorializa o
olhar masculino e patriarcal: é a fluidez da água que liberta e lava as
limitações femininas num universo regido por normas heterossexuais e
masculinas.8 “A menina”-cineasta (re)nasce na água (primeiro quando ela
aprende a nadar, depois quando ela decide nadar sozinha, para longe e contra
o pai).
No epílogo, vê-se a imagem da cineasta adolescente acenando e sorrindo
para a lente paterna, vestida de roupas de banho e com o cabelo trançado. A
voz da menina é substituída pela voz da narradora adulta, que recita o
abecedário em uma cantiga. A imagem e o som repetem-se e superpõem-se
continuamente. A garota única multiplica-se, dissolve-se, confunde-se,
construindo um fragmento de filme palimpsesto. A repetição — tanto quanto
retomada quanto sobreposição — perturba o registro paterno. Ela cristaliza
em uma única imagem a menina, a adolescente e a adulta, livres agora do
olhar do pai. A imagem estabiliza-se ao som do último verso da canção
infantil: “tell me what you think of me”. A resposta, porém, já não importa.

Daughter Rite: “Por que você tem de dizer tudo isso?”


Assim como Sink or swim, Daughter Rite narra histórias de mulheres —
filhas e mães — cujas famílias foram desfeitas pelo pai. No filme de Citron,
no entanto, a ausência paterna corresponde à total invisibilidade. O filme
remonta imagens de família filmadas pelo pai da cineasta, que introduz o
olhar familiar, patriarcal e masculino. Sob a voz-over em primeira pessoa de
uma narradora, as várias imagens do passado mostram Citron e sua irmã na
infância, ao lado da mãe. Nesse falso documentário, intercalam-se a elas a
entrevista, mise en scène como cinéma vérité e novela (Williams et al.,
1981:21), de duas irmãs que se encontram na casa da mãe enquanto esta está
hospitalizada por causa de um câncer. As três vozes femininas do filme
confessam sua relação com a figura materna. As histórias narradas são
compostas por histórias de diferentes mulheres, inclusive da própria
realizadora. Elas transvestem-se no corpo e na voz das atrizes que encarnam
Stephanie e Maggie, assim como na voz desincorporada da narradora (seria
ela Citron? Seria ela outra de nós?) e nos corpos das meninas e da mãe dos
filmes de família. Como em Sink or swim, constrói-se um sujeito composto e
político. Suas histórias tornam-se ficções necessárias (Citron, 1999), ou seja,
que precisam ser ditas e contadas.
Mais do que questionar o olhar paterno, interroga-se o olhar patriarcal que
se dissimula no filme doméstico. Como escrevem Linda Williams e B. Ruby
Rich (1981:19), o patriarcado depende, em parte, da capacidade da mãe de
atuar como uma força conservadora e reprodutora de sua estrutura. No filme,
esse substrato patriarcal é o território sobre o qual se dá a relação conflituosa
entre mãe e filha. A narradora revela, por exemplo, que ama, mas odeia sua
mãe, e, odiando-a, odeia a si mesma.
As lembranças, as dores, as dúvidas de sua relação são declaradas sobre
os filmes de família de Citron. Neles, as meninas e a mãe sorriem para a
câmera e acenam, esboçando uma imagem eufórica e harmoniosa da família.
Veem-se fragmentos felizes da vida familiar: a mãe e a primogênita
participam de uma brincadeira em um piquenique escolar, a mãe e as meninas
passeiam de barco em Boston, elas andam abraçadas pela calçada em um dia
de sol, as meninas lavam os pratos do jantar, elas reúnem-se em torno da
mesa para o bolo e os presentes de suas festas de aniversário. A voz da
narradora adulta, nesse contexto, escava a superfície desses filmes de alegria,
dessas lembranças protéticas que não correspondem à memória da cineasta
(Citron, 1999:14). Ela revela as rasgaduras entre mãe e filha no interior da
sociedade patriarcal. Essas fraturas são construídas formalmente por meio da
desaceleração e da repetição das imagens, efeitos que instituem um mal-estar
na visão desses filmes. Na sequência que mostra a mãe e a cineasta menina
brincando num balanço, por exemplo, a variação entre superexposição e
subexposição leva seus rostos à invisibilidade. A variação da cadência produz
uma desnaturalização do registro. Enquanto a mãe empurra a filha, a
narradora diz: “há tanta dor em sua voz […]. Sua dor é o resultado de más
escolhas em uma cultura opressiva na qual ela não tinha escolha de qualquer
jeito”. Estaria ela condenada a repetir o destino (feminino) da mãe?

A maior opressão dessa cultura patriarcal permanece no avesso dos filmes


de família. Descrevendo a cena do passeio pela rua, em que a mãe, segurando
as meninas pelas mãos, anda sorrindo em direção à câmera, Citron reflete:

Eu poso para a câmera com minhas caretas e acenos, ou é para meu pai que eu sorrio?
Essa imagem representa como eu quero ser vista ou como meu pai escolheu me ver? A
minha atração é pelo meu pai em particular, ou pelo poder do Pai, expresso através da
capacidade do meu pai em conduzir essa caminhada? Tornando-me, adulta, uma
cineasta, torno-me o Pai e ascendo a uma espécie de poder? […] O ano em que esta
imagem foi filmada foi difícil para mim […]. Em 1956, com oito anos, eu queria
desesperadamente morrer. [Citron, 1999:6]

Em Daughter Rite, essa cena é perturbada pela desaceleração, a


rebobinagem e a repetição de certos fotogramas. Nesse momento, a narradora
fala da separação com a mãe, que se muda para longe: “eu não tenho mais lar,
nem mais infância, nem mais mãe”.
No filme, a perda do lar que se estende à infância e à mãe e o trauma real
evocado por Citron são deslocados para o relato ficcional de Stephanie.
Olhando para a câmera, ela conta a história do estupro incestuoso que sofreu.
Além dos pais ausentes pelo divórcio ou pela morte, a figura masculina e
patriarcal, aqui, o padrasto, é novamente representada como uma força
destrutiva. A mãe de Stephanie, exercendo seu papel em uma cultura do
estupro, nega-se a ouvir a verdade da filha. Essa ficção necessária verbalizada
por Stephanie repete a história de estupro contínuo e de silêncio da própria
cineasta (Citron, 1999:20, 22). O estupro permanece invisível e indizível na
família patriarcal. Citron escreve que apenas anos depois sua mãe confessou-
lhe que era estuprada pelo irmão. No patriarcado, ele é também perpetuado,
repetido e transmitido de geração para geração. Além disso, Citron interpreta
a imagem em que ela, criança, abraça forçosamente a irmã mais nova como
uma “paródia obscena da dominância masculina”, uma reprodução “dos
pecados do meu avô, uma agressão sexual deslocada forçada sobre uma
criança mais nova, menor e mais indefesa do que eu” (Citron, 1999:24).
Como analisam Williams e Rich (1981:21), o testemunho de Stephanie é
precedido pela sequência que retoma imagens da festa de aniversário infantil.
As imagens remontadas, sobretudo planos próximos, revelam a menina entre
os corpos, os braços e as mãos dos adultos. A voz-over da narradora conta
um sonho em que sua mãe e avó forçam-na a tomar uma injeção “pelo bem
da humanidade”. A imagem da mãe ajeitando o penteado da filha se repete
múltiplas vezes — gesto “intrusivo e possessivo” (Citron, 1999:18). Seria
essa injeção a transmissão desse fardo geracional? Como sugerem as autoras,
seria ela um instrumento fálico do poder patriarcal? No sonho, no entanto, a
narradora afirma a possibilidade da recusa.
No final de Daughter Rite, a cineasta realiza um último rito. Sobre uma
série de imagens domésticas de sua mãe, a narradora relata um sonho em que
ela ateia fogo em sua avó doente e a assiste queimar. É sua mãe que descarta
o corpo. Finalmente, a filha pode então abraçar e chorar nos braços da mãe.
Junto da sequência de imagens que reitera a presença calorosa e risonha da
mãe, seria essa a revelação do desejo da cineasta de reconciliação? Seria essa
a adesão ou a ruptura em relação ao passado?
No filme de Citron, ser mulher (ser mãe, ser filha) é habitar um campo de
conflitos, é habitar um terreno instável.

Un’ora sola ti vorrei: um corpo que cai


Un’ora sola ti vorrei constitui igualmente um rito de filha para mãe. No
filme, Alina Marazzi retoma os filmes de família de seu avô em que o objeto
de devoção da câmera é sua mãe, Luisa. Nascida em 1938, Liseli morreu em
1972, quando Alina tinha apenas sete anos. O rito que ela executa e exorciza
pelo cinema de remontagem é, ao mesmo tempo, um rito de luto e de
renascimento. Marazzi re-suscita as imagens do avô e reanima a beleza que
elas encerram em película e a beleza de Liseli — uma beleza que é “plena”,
como escreve a cineasta (Marazzi, 2006:51). Uma beleza, porém, que
também é pena.
O que jaz atrás dos olhares, dos sorrisos, dos gestos de Liseli? As imagens
do avô de Marazzi compõem um retrato imaculado de sua família, à imagem
da felicidade burguesa. Diante dos filmes que embalsamam a imagem da
mãe, a cineasta, explorando a potência da desaceleração na remontagem,
declara encontrar-se ante uma “extrema evanescência, intangibilidade,
inaprisionabilidade. Como em um sonho, como em um filme” (Marazzi,
2006:14). Por meio de trechos dos diários e das cartas da mãe, o filme
explora a distância entre a imagem de Liseli e a realidade, o intervalo entre a
vida e a representação desejada da vida. Nessa lacuna, o que se contesta é o
olhar patriarcal do filme de família. Marazzi sublinha que “todas as imagens
foram rodadas por um homem que registra suas mulheres, suas musas: a
esposa, a filha”. “As imagens que ele produziu representam uma projeção de
seu desejo estético” (Marazzi, 2006:49). O que deseja ver esse pai? O que ele
lega à invisibilidade?
Pouco a pouco, a remontagem das imagens permite o desdobramento de
seus significados, introduzindo tensões latentes e invisíveis. Por exemplo, a
imagem de Liseli criança, filmada em contra-plongée contra o céu azul,
funde-se com a imagem de um sol. Porém, um eclipse encobre sua
circunferência e rouba sua luz. O “sol negro” (Marazzi, 2006:64) torna-se o
anúncio e o agouro retrospectivo da depressão que toma Liseli. A construção
musical tensa contribui para sua interferência intempestiva e anacrônica na
narrativa. Uma imagem em preto e branco, subexposta, em que Luisa bebe de
um copo, é intercalada com uma imagem de seus pés balançando contra uma
parede. Liseli lança o olhar para o alto, para fora do quadro, e a montagem
mostra uma cena em que ela salta sobre uma duna. Um falso raccord faz o
salto terminar num mergulho. A imagem do salto consiste também em uma
imagem-sintoma.
Liseli casa-se com Antonio e tem o primeiro filho. Em oposição às
imagens da nova família, os textos da mãe de Marazzi revelam uma angústia
crescente em relação ao seu papel de esposa e de mãe. Ela confessa sua
incapacidade de exercer, como o fazia sua mãe, sua posição, de se adequar a
ela. Emerge, assim, uma mulher cindida entre a imagem e a essência, entre a
perfeição e o inferno, entre a felicidade e a tristeza profunda, entre a
completude e a fratura. Em oposição à imagem, a dor da mãe se revela na
palavra, pronunciada pela voz da filha, que estabelece um jogo entre o visível
e o invisível, o dizível e o recalcado.
Como em Daughter Rite, a ordem patriarcal é uma força de destruição,
uma pulsão de morte. Trata-se de um mundo que aniquilou Liseli. Como
lembram Rachel Alsop, Kathleen Lennon e Annette Fitzsimons (2006:72),
citando Monique Wittig, a heterossexualidade e o contrato do casamento
constituem particularmente a base da opressão das mulheres. Sobre imagens
de Liseli com Martino, seu filho, e Antonio, Marazzi lê uma carta endereçada
à avó: “tenho tantas responsabilidades agora, e isso faz-me sentir tão
sozinha”. Entre as imagens, outra imagem-sintoma: um plano em preto e
branco em que Liseli cobre seu rosto com as mãos. “Eu não consigo fazer
nada direito, eu passo o dia tentando fazer as coisas, mas inutilmente”,
escreve Luisa à melhor amiga antes de partir para viver nos Estados Unidos
com a família. O estado psíquico de Liseli, no entanto, sua grande fratura
consigo mesma, só se degrada. De volta à Itália, ela é submetida a longos
períodos de internação. Seria ela mais uma mulher fechada em hospitais
psiquiátricos por uma ciência ditada por homens?
Na sequência final, o filme retoma uma série de imagens em que Luisa
olha para a câmera. A desaceleração faz seu olhar persistir na tela, alongando
seu mistério. “Por toda a vida este homem filmou a esposa e depois a filha
sem conseguir, porém, vê-las verdadeiramente, sem capturar o verdadeiro
olhar” que elas lançavam para ele, escreve Marazzi (2006:50). A montagem
repete uma das primeiras imagens de Liseli no filme — imagem que traduz a
evanescência e a intangibilidade dessa mulher. Alternadamente, vê-se a
imagem do salto, dessa vez até sua aterrissagem na areia. O filme fixa seu
olhar para a câmera, acompanhado por um sorriso doce e enigmático, e a
imagem dissolve para o preto. Um recorte de jornal revela seu destino: “[...]
do quinto andar do edifício onde habitava. Morreu na hora. Luisa Hoepli, 33
anos, há muito tempo sofria de depressão psíquica e distúrbio nervoso...”.
A imagem do salto adquire, então, seu aspecto sombrio e premonitório.
Teria, contudo, o salto de Liseli a libertado enfim de seus demônios? Poderia
essa imagem de seu corpo livre no ar condensar o único instante de liberdade
de Luisela? Será que no interior dessa imagem jaz o único momento possível
em que Liseli se encontra a si mesma? No final, Liseli caiu ou voou?


Como escreve Maura Bergonzoni, ela se encontrava entre o sistema
opressivo dos anos 1950 e o movimento de liberação feminista dos anos
1970. Marazzi pergunta-se: se Liseli tivesse conhecido o movimento
feminista desse período, será que algo poderia ter mudado? (Marazzi,
2006:82) De todo modo, sua mãe sofria de um problema que não deveria ter
sido tratado apenas com fármacos em hospitais psiquiátricos.

Th Ma ina xp im nt: “Sorria para mim”


O filme The Marina experiment9 teve sua origem, justamente, durante o
tratamento psicológico de Marina Lutz, de modo quase amador. Seu rito de
filha é, por sua vez, uma rebelião, uma vingança, uma libertação. A
realizadora conta que, depois da morte do pai, ela encontrou caixas repletas
de fitas de áudio, filmes 8 mm e mais de 10 mil fotografias — “eles eram
todos de mim”. Ela partiu então para um processo arquivístico de
identificação e de catalogação de cada fita e de cada imagem. Esse método
obsessivo e exaustivo, descrito no início do filme, permite, porém, um
distanciamento da cineasta de si mesma como objeto do registro. É desse
intervalo que se cria, a partir da retomada, a possibilidade de transbordar o
íntimo e de alcançar o político; algo da experiência feminina sob o (olhar do)
patriarcado.

Em uma das primeiras sequências do filme, a montagem associa


paralelamente um vídeo de uma tourada com fotografias de planos fechados
dos olhos do pai de Lutz e com imagens feitas por ele. Nelas, a menina
aparece frequentemente nua ou de roupas íntimas. Por vezes, ela é
surpreendida pela câmera. O ângulo de diversas tomadas expõe suas nádegas.
A retomada dessas imagens constitui um verdadeiro confronto. Seria ela o
animal atingido e machucado, pronto para ser capturado? Apesar de tudo,
Lutz reclama a força de um touro. Por outro lado, o touro, temido adversário,
oponente masculino, pode encarnar o pai, que, pouco a pouco, a filha abate.
O filme, em seguida, revela a história e a produção fotográfica
profissional do pai de Lutz, uma verdadeira coleção de corpos femininos nus.
Quais são os limites entre o olhar masculino que os enquadra e o olhar
paterno que enquadra a filha?
Por meio da remontagem, Lutz inverte a lógica desse(s) olhar(es): ela
expõe e desnuda o voyeur. Seu olhar é revelado como perverso e pervertido,
portador de uma violência que se dá pela imagem. A lente é a arma e o
instrumento fálico desse homem. O experimento, aqui, é reapropriado pela
filha. Seu rito, finalmente, é o de des-familiarização do olhar e da figura do
pai.

Conclusão
O filme de remontagem que se apropria de filmes domésticos cria um novo
campo de possíveis que desestabiliza, desloca, rompe e subverte o olhar
patriarcal que determina o olhar familiar e o olhar masculino. Ele pode
também perturbar e desconstruir a performance de gênero. Nos filmes
citados, têm-se mulheres que produzem outras visões de mulheres.
É importante notar, porém, que essas visões se encontram inseridas em
dois contextos distintos da história do cinema: do cinema de remontagem
especificamente, e do movimento feminista. Os filmes de Citron e de
Friedrich emergem do contexto político e cultural da vanguarda
cinematográfica norte-americana e da chamada segunda onda feminista dos
anos 1970 — tema, aliás, de outro filme de remontagem de Marazzi,
Vogliamo anche le rose (2007). Nesse momento histórico, tem-se a
emergência do cinema e do vídeo militante produzido por coletivos
feministas, a exemplo do trabalho de Carole Roussopoulos na França. Além
disso, as ideias de Laura Mulvey, por exemplo, publicadas em 1975 no texto-
manifesto Visual pleasure and narrative cinema, pavimentam teoricamente a
produção cinematográfica feminista. Visando a experiência íntima e coletiva,
os filmes de Friedrich e de Citron convocam um sujeito feminino composto,
como afirmamos, um eu, que, como mostram suas formas enunciatórias,
desdobra-se em um nós.10 Nós, mulheres. Ainda: nós, filhas, nós, cineastas,
nós, lésbicas. Eles questionam o que é ser mulher em seu tempo. Como se
torna mulher? Como se constrói um olhar feminino e feminista? Eles também
conjugam em sua estrutura diferentes formas documentais e ficcionais, além
de imagens de inúmeras origens para compor seu imaginário feminino.
Os filmes de Marazzi e de Lutz, por sua vez, parecem dialogar com um
movimento de individualização e de singularização das experiências, tanto no
cinema quanto na pauta feminista contemporânea. Desde os anos 1990,
multiplicam-se as diversas formas do “cinema do eu” (Lebow, 2012:5, 6),
notadamente os filmes em primeira pessoa que remontam (unicamente)
imagens de arquivos familiares. Seus filmes realizam uma arqueologia da
imagem doméstica que estrutura uma experiência íntima do mundo — uma
escavação da memória familiar que traça um movimento interior. Contudo,
mesmo sem chamar por um nós feminino, Un’ora sola ti vorrei e The Marina
experiment, assim como Daughter Rite et Sink or swim, atingem a partilha do
sensível, criando dissenso (Rancière, 2010) e construindo laços entre
mulheres por onde eles são mostrados.
De qualquer modo, nesses quatro filmes, a reterritorialização das imagens
de família convoca um território novo. Figurado pela água no filme de
Friedrich, pela comunidade de mulheres no filme de Citron, pelo salto
redentor de Liseli no filme de Marazzi e pela morte simbólica do pai no filme
de Lutz, esse novo território aponta para uma utopia, no sentido atribuído por
Gilles Deleuze e Félix Guattari, de mulheres livres. Instaura-se, igualmente, o
território de um cinema de remontagem feminista.

Trabalho apresentado no Seminário Internacional de Documentário de Arquivo —


Arquivos em Movimento na Escola de Ciências Sociais da FGV/CPDOC, Rio de Janeiro,
de 24 a 25 de novembro de 2016.
Grosso modo, filmes domésticos ou filmes de família são parte da prática do cinema
amador localizada dentro da esfera familiar. Produzidos pela família e para a família, eles
capturam a vida cotidiana, eventos e rituais familiares e servem à história e à memória
familiar. (Odin 1995:27; Ishizuka e Zimmermann, 2008:8).
Ideia desenvolvida por Armando Silva (2008:25-26).
Roger Odin não nega essa dimensão enunciatória. Ver Odin (2004:41-53).
“Elle a bien raison, maman Beauvoir. Elle a bien raison, et tout en chantant on peut faire
valoir nos idées, nos gags et nos espoirs.” “Ela tem mesmo razão, mamãe Beauvoir. Ela
tem mesmo razão, e cantando nós podemos fazer valer nossas ideias, nossas piadas e
nossas esperanças.” Parte de Papa Engels, canção do filme L’une chante, l’autre pas
(Agnès Varda, 1977). A canção completa aparece no programa único de variedades que se
seguiu ao filme: Quelques femmes bulles (escrito por Agnès Varda, dirigido por Marion
Sarraut, 1977).
Como nota Patricia Zimmermann, por exemplo, fabricantes de câmeras amadoras, desde os
anos 1920, chegaram a considerar o público feminino como consumidor, retratando em
suas peças publicitárias mulheres operando os aparelhos e demostrando, assim, a facilidade
de manuseio e a compactibilidade do equipamento. A prática amadora e os discursos
produzidos acerca da atividade cinematográfica doméstica, porém, foram
hegemonicamente privilégio masculino. Ver Patricia Zimmermann (1995:60-61).
“Um ato de ver e de rever, de rever sabendo, de rever procurando compreender,
interrogando o olhar das vítimas” ou dos esquecidos pela história “e o olho da câmera”.
Lindeperg (2011:51). Minha traducão.
Esse imaginário líquido atravessa a obra de Friedrich. Ver Gently down the stream (1981) e
The ties that bind (1984), por exemplo.
Disponível em: <http://themarinaexperiment.com/>. Acesso em: 31 jan. 2017.
Sophie Mayers conclui o mesmo acerca da construção da subjetividade em Mixed greens
(Michelle Citron, 2004). Ver Mayers (2012:201-218).

Referências
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11
Não entender: arquivos, documentos e
criação no encontro com o Diário de
David Perlov

Ilana Feldman

Antes de tudo, uma advertência


Como sabem os pesquisadores das ciências humanas, trabalhar com arquivos
requer a constante problematização e reinvenção de um método, que tão mais
interessante se torna quando as inquietações e angústias de uma pesquisa são
capazes de promover, autorreflexivamente, a problematização da posição do
pesquisador. Ao acolher a angústia como parte constituinte de uma pesquisa,
em lugar de simplesmente recalcá-la sob o manto de uma suposta
neutralidade, o pesquisador, defende Georges Devereux em De l’angoisse à
la méthode (2012) [Da angústia ao método], rompendo com a dialética
sujeito/objeto, pode ver a si mesmo como observador, fazer de suas
inquietações uma “tomada de consciência” e assim se implicar diretamente
nas consequências de sua pesquisa. Pois, numa época marcada por um forte
“teor testemunhal da cultura”,1 não há conhecimento do outro sem
reconhecimento de si.
Portanto, caro leitor, o texto a seguir se pretende um pouco heterodoxo.
Não tratará de analisar arquivos e fundos cinematográficos; não abordará um
tema ou período histórico por meio de imagens de arquivo; não se ocupará de
analisar exclusivamente filmes que fazem dos materiais de arquivo sua
matéria constituinte. Para além de possibilidades de análise tão legítimas
quanto essas, nos interessa interrogar a incorporação de imagens
preexistentes pela produção audiovisual documental mediante a seguinte
pergunta, a qual se apresenta a todo pesquisador que se lança à pesquisa de
campo e que se vê diante do “arquivo” de seu objeto pesquisado: o que se
passa quando o pesquisador soma aos arquivos pesquisados seus próprios
arquivos pessoais? É possível dissociar a vida da pesquisa acadêmica? E o
que, de uma pesquisa, incide e transforma a própria vida do pesquisador,
como um encontro entre arquivos?

Encontro entre arquivos


A indagação é, portanto, metodológica, movida por minha própria
experiência de pesquisa sobre as relações entre o privado e o político no
cinema autobiográfico de David Perlov (1930-2003), cineasta brasileiro-
israelense. Exilado no país em que escolheu como lar, embora seja
considerado o pioneiro do cinema moderno em Israel, o Diário 1973-1983 de
Perlov (filmado entre 1973 e 1983 em seus trânsitos por cidades como Tel
Aviv, São Paulo, Paris, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Lisboa), e
posteriormente seus Diários revisitados 1990-1999 têm se constituído como
fonte inesgotável de pesquisa. Construída no entrecruzamento, entre narrativa
biográfica e reflexão crítica, entre a ancoragem pessoal de uma busca e a
investigação de uma possível dimensão política que daí adviria, a pesquisa se
tornou, se é que se poderia dizer de forma tão elementar, indissociável da
vida.
Problematizando, desse modo, o encontro entre a pesquisa acadêmica
acerca de um arquivo com meus próprios arquivos pessoais, encontro que
ultrapassa e transforma a relação entre sujeito e objeto de pesquisa, gostaria
de refletir sobre os diferentes materiais e documentos que constituem essa
investigação em andamento, no contexto de uma obra que faz uso de arquivos
diversos — como imagens da televisão, fotografias, cinejornais, fotogramas,
reproduções de pinturas, tomadas de filmes anteriores etc. — e que
ressignifica, por meio da montagem e da temporalidade da narração, a própria
noção de arquivo.
Nesse contexto, o trabalho com os documentos, próprios e alheios
(fragmentos de filmes, fotografias, cartas, postais e documentos), se torna
fundamental na exploração das diferentes possibilidades de investigação e
transmissão do saber acadêmico, mesmo que esse saber seja marcado pela
opacidade, pelo risco do fracasso e pelo não entendimento, na fronteira
sempre delicada e problemática entre o pessoal e o coletivo. Por isso, a
investigação em torno das relações entre o privado e o político no cinema
autobiográfico de David Perlov não poderia deixar de problematizar o
testemunho do pesquisador, entrelaçando vida e escritura, documento e
criação, pesquisa — que é também uma forma de ensaio, experiência e
aventura — e transmissão.

Janeiro de 2015
Essa aventura começa em janeiro de 2015, quando, em função de minha
pesquisa de pós-doutorado sobre os diários cinematográficos de David
Perlov, passo um mês na cidade de Tel Aviv, em Israel. Vou com a família,
meus pais e minha irmã, e alugamos um apartamento: Siderot Nahshon (ou
rua Nahshon), número 8, ao norte da cidade. Ao contrário da imagem da rua
disponível no Google Maps, numa tarde que parece fresca e ensolarada,
somos recebidos por uma tempestade de chuva, vento e areia. O apartamento
alugado, num primeiro momento, é uma decepção, claro, mas o pior é não
podermos sair.
Eu me machuco, quase perco uma unha, ao tentar abrir e fechar uma
janela, o que faz o mau humor explodir. Já minha mãe maldiz o despreparo
de suas roupas para a situação: ela não tem um casaco adequado. Meu pai,
sempre bem-disposto, checa as instalações da casa tentando fazer o
aquecedor funcionar, enquanto minha irmã consegue, do absurdo, fazer
graça. Na primeira noite, somos acordados com muita água e areia no quarto,
que, não se sabe como, entrou pela janela. O romance de Jean Echenoz que
lia na ocasião, construção tragicômica sobre a guerra de trincheiras de 1914,
boia na poça ao lado da cama. A trincheira parece ser aqui.
No confinamento do apartamento, entre discussões de família e conversas
banais, acompanhamos pela televisão as imagens dos últimos
acontecimentos. Mas não falamos hebraico. Perplexos, diante de imagens da
tempestade branca que paralisa o país, ficamos sabendo de um atentado em
Paris contra o Charlie Hebdo, por onde acabamos de passar a caminho de
Israel. Mas não entendemos. Tudo, naquela situação, se torna opaco: da tela
da televisão à paisagem da janela que nada revela.

Novembro de 2015
Em novembro de 2015, quase um ano após a viagem e 10 dias depois dos
atentados da sexta-feira 13, novamente em Paris, faço uma conferência acerca
da pesquisa em curso. Interessa-me pensar, por meio do cinema, de que modo
o âmbito privado e pessoal é atravessado pelo público e pelo político.
Interessa-me pensar, por meio do singular gesto autobiográfico, de que modo
a alteridade pode ser figurada. Para isso, mostro uma sequência do Diário
1973-1983 (1985), de David Perlov, realizado em Israel, através de suas
janelas.2
Mas, há um problema — e antes de começar a conferência é preciso
enunciá-lo. Tendo herdado um nome próprio tipicamente israelense e um
sobrenome tipicamente judeu, sei que corro o risco de ter minha fala reduzida
ou vista sob certa desconfiança. No entanto, se um nome é algo que se
recebe, que se herda, é também algo que se inventa e de que se apropria. Um
nome é uma palavra que se carrega, como uma coisa, como uma pedra, no
decorrer dos exílios e deslocamentos.

O apartamento
Chegamos há pouco e ainda não podemos sair de nosso apartamento-bunker,
a não ser para correr rapidamente a um “am pm” a fim de comprar as
provisões necessárias, como hommus, pão, gefilte fish (umas almôndegas de
peixe em conserva), raiz forte e frutas. Esperamos pela tempestade que virá
limpar a cidade de todo pó, terra e areia que a ventania deixou. Estou ao lado
da janela: a vista para o pátio interno do prédio é tão feia que chega a
comover, e o vento, junto com o barulho do mar, uiva com violência. Agora
uma chuva fina cai, começando a limpar o vidro imundo de terra. Minha mãe
segura nas mãos Judas, último romance de Amós Oz, enquanto minha irmã lê
em voz alta as notícias do jornal Haaretz. Elas tentam compreender.
Anoto em uma caderneta, entre listas de afazeres e informações úteis, que
chegar em Israel é sempre para mim uma experiência de muita angústia,
cegueira e certo esgotamento. Apesar disso, me inscrevo num tour para
Hebron, na Cisjordânia, realizado por uma ONG israelense. Mas, com a
iminência da tempestade que passará por todo o país — o qual se encontra
em estado de alerta oficial —, o tour é cancelado.
Horas mais tarde — ou seriam dias, talvez? —, um primo jornalista nos
escreve perguntado se estamos bem. Eu não entendo. Ele então nos conta do
Charlie Hebdo e de sua inquietação por nós, já que, dois dias antes dos
atentados de 7 de janeiro, viu uma fotografia nossa em Paris, que papai
postou no Facebook com muito sucesso e que recebeu mais de uma centena
de “likes”. Eu digo a ele para não se preocupar. Em Tel Aviv, por enquanto,
só atentados à faca e dilúvios dignos do Velho Testamento.

As janelas de David Perlov


O mau tempo cessa e procuro por Mira Perlov, que mora no 14o andar de um
edifício entre as avenidas Shaul Hamelech e Ibn Gvirol, na região central de
Tel Aviv. Sem saber falar hebraico, me esforço para pronunciar o acento
gutural dos nativos, estratégia que nem sempre dá certo. “Ibn Gvirol”, é
difícil dizer em hebraico. Viúva de David Perlov e mulher extraordinária,
Mira se tornou uma amiga próxima. Tomamos café e conversamos por horas
diante de suas janelas, que revelam uma cidade belíssima, de edifícios de
pedra. Durante o dia, com os prédios-alvo e a claridade intensa, é difícil,
quase impossível, encarar a paisagem. Prefiro então os finais de tarde.
Mira me mostra documentos, passaportes, cartas e postais que trocou por
tantos anos com David durante a década de 1950, quando ele estava em Paris
— onde fora assistente de Henri Langlois, então diretor da Cinemateca
Francesa, e trabalhara com Joris Ivens, mestre do documentário poético —,
enquanto ela ordenhava vacas num kibutz perto da Faixa de Gaza. Em um
deles, ela escreve, com exclamação, “Eu te espero!”.

Entre esses documentos, está o passaporte de Anna Perlov, então Anna


Berman, mãe de David, que, como tantos outros judeus, fugira da pobreza
extrema na Europa do Leste.
Anna viera da Bessarábia, hoje Moldávia, na época Romênia, na mesma
época em que também chegara da Bessarábia meu avô, Abram Leib Feldman,
pai de minha mãe, no Brasil apelidado de Seu Luiz. Nos documentos de
Mira, descubro o primeiro registro de Anna, já em Belo Horizonte, depois de
ter passado por Paris e aportado no Rio de Janeiro.

Para minha surpresa, nesse salvo-conduto expedido pela Polícia do Estado


de Minas Gerais, Anna, que continuou muito pobre no Brasil e permaneceu
analfabeta, é identificada como empregada doméstica.

Diário 1973-1983
Retomo as imagens domésticas, caseiras, do Diário, obra composta por seis
capítulos, com seis horas de duração ao todo, filmada ao logo de 10 anos,
entre 1973 e 1983. Em Diário, Perlov filma o cotidiano de sua família e da
cidade de Tel Aviv através das janelas de seu apartamento; das janelas da
televisão, que trazem para o espaço privado acontecimentos políticos
dramáticos, como a guerra de Yom Kippur em 1973 e a subida da direita ao
poder em 1977; e das janelas dos carros em circulação pelas geografias
afetivas de cidades como São Paulo, Paris e Rio de Janeiro.
“Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar para
mim mesmo e por mim mesmo. O cinema profissional não me interessa
mais”, diz Perlov no primeiro capítulo de seu projeto documental, recusando
a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de
trapaças, truques e mistificações — embora mais adiante admita que, em
diversos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade lhe oferece.
Considerado o precursor do cinema moderno israelense, Perlov, filho de
um mágico itinerante e de uma mãe iletrada, nasce no Rio de Janeiro em
1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte. Aos 10
anos muda-se com o irmão para a casa do avô, no bairro da Vila Mariana, em
São Paulo, abandonando uma infância sofrida, traumática e nada protegida.
Entre os estudos em um colégio estadual e as viagens de bonde, Perlov
dedica-se ao desenho e a pintura (tendo frequentado o ateliê de Lasar Segall),
e engaja-se no movimento juvenil socialista-sionista Dror, onde conhece
Mira. Ela, judia polonesa sobrevivente da Shoah, será a produtora do Diário
1973-1983 e sua companheira por toda a vida.
Vivendo uma espécie de “exílio” forçado em seu próprio apartamento,
após duros embates com as autoridades israelenses de então, que almejavam
um documentário convencional e de propaganda oficial, Perlov relaciona a
escritura de seu diário fílmico a um ato de guerra, assim como de desespero,
conferindo ao gênero uma radicalidade que não existia no cinema israelense
de então. Em Diário é a primeira vez, nessa cinematografia, que a
investigação sobre si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma
questão cinematográfica. É a primeira vez, nessa cinematografia, que a
enunciação na primeira pessoa do singular toma forma, situada na voz
corporificada e ritmada do próprio Perlov. “Estranho aqui, estranho lá,
estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um
estranho lá”, afirma ele citando uma canção de Odetta,3 enquanto observa,
através da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil,
passantes em uma rua quieta de São Paulo.
Entre diversos filmes realizados por Perlov, Diário 1973-1983 (1985)
constitui sua obra mais importante e vigorosa, acrescida dos também
autobiográficos Diários revisitados 1990-1999 (2001) e do ensaio fílmico
Minhas imagens 1952-2002 (2003), seu filme-testamento. Somam-se a essas
obras dois outros filmes que, embora não tratem diretamente da própria vida
do cineasta, inauguram em Israel a questão do testemunho no cinema, bem
como a particularização da enunciação fílmica por meio da inserção da voz
em off do documentarista, em detrimento da enunciação “neutra” própria aos
discursos oficiais e genéricos da grande política. São eles: Biba (1977),
primeiro filme de Perlov narrado por ele mesmo e único a portar um nome
próprio, sobre a dor de uma mulher que perdera o marido na guerra de Yom
Kippur, e Memórias do julgamento de Adolf Eichmann (1979), em que Perlov
entrevista, na própria sala de estar de sua casa, algumas das testemunhas (ou
filhos de testemunhas) do emblemático julgamento4 ocorrido em 1961,
fundindo nesse simples gesto, literalmente, o privado ao político.

A carta
A viagem toma seu curso e a investigação dos filmes e documentos corre em
paralelo a outras investigações, mais pessoais. Além de um casaco de inverno
adequado, minha mãe quer encontrar em Israel a pequena parte da família
que sobreviveu à Segunda Guerra, da qual não temos notícias desde uma
última carta escrita em iídiche, enviada por seu tio, de Israel a Recife, em 23
de outubro de 1974. Mas nós, assim como não falamos hebraico, também não
falamos iídiche. Minha prima que mora em Yafo, a parte mais antiga e
oriental da cidade, tenta nos ajudar. Faz pesquisas na internet e nas listas
telefônicas, mas o endereço não existe. Procuramos nos sistemas de busca
dos museus Yad Vashem, dedicado à Shoah, e Beit Hat-fut-sot, o Museu da
Diáspora. Nada. Se David ou Moshé Feldman — minha mãe já não tem
certeza — são inalcançáveis, que dirá então seus descendentes.

A carta em iídiche, como uma relíquia a ser decifrada, tão impenetrável


quanto um muro de pedra, fica à espera de tradução.
“Batucada”
Ao longo do Diário, não são poucas as vezes em que o olhar de Perlov migra
da observação sobre a família e o cotidiano, do comentário político e social e
do cultivo de um estado de espírito, muitas vezes marcado pelo mal-estar,
para uma radicalização formal, em que a linguagem, por meio da montagem,
é estremecida e convulsionada. O momento mais intenso é quando, no
terceiro capítulo, uma harmoniosa dança com os amigos ao som de uma
música5 brasileira, na sala de estar do casal Mira e David, faz com que o
cineasta se recorde dos momentos de penúria em sua infância:

Essa dança em casa é muito repentina. Quantos momentos do passado ela revela?
Quantos carnavais perdidos? Eu pressinto o início de uma longa jornada a caminho de
casa. Minha casa, a casa em Belo Horizonte. Feijão sem arroz. Uma ou duas bananas
por semana. Nada mais.

A partir desse comentário, a montagem intercala a situação da dança


(desfrutada por Mira e os amigos Julio e Fela) com a casa vazia em silêncio,
e, em seguida, com o som de uma intensa batucada que ritma o
estremecimento de fotografias, postais, pinturas e recortes de jornal afixados
na parede do quarto de Perlov. Nesse momento, a câmera na mão, agitada,
vai ao encontro da cidade em convulsão, vista através da janela, como num
tremor de terra, até voltar à dança e à despedida dos amigos, o que traz um
toque tanto de alegria como de ironia. Esse entreato caótico, com a duração
de quase 10 minutos entre o início e o final da dança, opera no Diário como
uma vertiginosa paisagem interior de Perlov, espécie de fluxo de consciência,
porém com palavras estancadas, carregado de agitação e angústia.
Na conferência dada em novembro de 2015, comento que nessa
sequência, a que chamo justamente de “Batucada”, a narração de Perlov não
apenas contextualiza os momentos da filmagem como vê nesses momentos
passados — como sua penosa infância em Belo Horizonte — pontes com
sentimentos, sensações e presságios que habitam seu presente. Como se,
como queria Walter Benjamin em seu método desenvolvido nas Passagens,
na análise do pequeno momento individual — a dança com os amigos —,
Perlov encontrasse uma angústia subterrânea, o traço de uma tragédia
iminente, “o cristal do acontecimento total”.6
Entre o plano da narração e o plano da imagem, entre sua traumática
experiência pessoal no passado e seus sentimentos negativos pelo futuro
próximo de Israel, existiria uma espécie de tumulto existencial, de tremor, de
terremoto — situação subjetiva expressa pelo modo como ele filma, com uma
câmera convulsa, a paisagem da cidade através da janela. Aqui, não podemos
esquecer que estamos em 1981, a menos de um ano da Guerra do Líbano,
guerra que comparecerá mais explicitamente no capítulo seguinte. Como se
percebe, em Perlov o trauma é parte de um evento pessoal e fundador, cuja
dor faz perpetuamente a passagem à dimensão coletiva de uma história que
só pode ser entrevista, à maneira benjaminiana, como fragmento, presságios e
catástrofe.
Nessa rua de mão dupla, as paisagens exterior e interior são fundidas,
amalgamadas. O espaço doméstico da casa e da família transborda, não está
protegido nem separado, é parte do caos da cidade, da agitação da política, da
iminência da catástrofe e da espera, quem sabe, pelo milagre. Como vemos
na sequência, se, na Tel Aviv de Perlov, o traumático passado pessoal do
cineasta se liga ao dramático futuro coletivo de Israel, é porque existe um
potente trabalho de montagem que, a todo o tempo, abre o espaço doméstico
da família a um Fora — o “fora” das janelas do apartamento, o “fora” de suas
referências artísticas e afetivas.
Fazendo um uso singular de seus arquivos pessoais (compostos por
fotografias, pinturas, postais, recortes de jornais e desenhos), Perlov filma seu
mural “warburguiano” de maneira convulsiva e tremulante, fundindo
referências da história da arte, do cinema e de sua própria família e trajetória
biográfica, em uma espécie muito particular de Atlas Mnemosyne7 para uso
diário. Entre recortes de jornal com imagens do pai prestigiador, encenando
seus números de mágica, vê-se nesse mural uma recorrente imagem de A
paixão de Joana D’arc, de Carl Dreyer (1928), com ênfase no rosto em
primeiro plano da personagem em súplica; uma reprodução da litografia
Sorrow, de Van Gogh (1882); uma polaroide caseira de um corpo de mulher
nu e destituído de cabeça (provavelmente Mira); e manchetes de periódicos
com o apelo “Meu filho, meu filho!”, como quem grita de pavor diante da
partida de um filho para a guerra.

Foi isso o que eu disse na tal conferência — enquanto pensava o quanto


essas palavras, na busca por organização, sentido, coerência, também
recobriam a assombrosa experiência de estar lá, lá do outro lado do mundo,
cega por uma luminosidade ofuscante, imobilizada pela tempestade de vento,
surda pela incompreensão da língua que não se domina.

Pedras
É 2 de março de 2015 e ainda não faz um mês que estamos de volta ao Brasil,
quando Nancy Rosenchan, tradutora do iídiche para o português, escreve a
minha mãe:

Keyla,

No envelope consta David Feldman. O endereço é Per 18-10 na cidade de Hadera.


Consultei pelo Google mas não achei uma rua com este nome. Pode ter mudado ou
desaparecido. Não há assinatura. A carta acaba na segunda folha. No topo, ele
aproveitou, virou o papel e escreveu pedindo para enviarem logo fotografias.
Independentemente do que não consegui ler, a carta é bastante truncada e o
conhecimento dele da escrita iídiche é pouco, o que é perceptível pela grafia tanto de
palavras iídiche como de palavras hebraicas, que ele grafa pelo som e não como se
grafa originalmente. A pessoa é originária da Rússia (escreve gospital, que é a forma
russa para hospital).

Se em hebraico a palavra “bait” significa a um só tempo casa, templo


religioso e corpo de mulher, a palavra “davar” significa tanto palavra como
coisa. Na carta de meu tio-avô, mais do que coisas, as palavras parecem
pedras. Pedras azuis sobre um túmulo branco. Pedras de difícil tradução, cuja
transmissão possível, doloridamente precária, se dá entre aquilo que não se
escreve e que se inscreve, entre aquilo que resta e que se perde.
Demorei muito para ter coragem e conseguir ler a tradução da carta, acho
que uns bons meses. Foi difícil chegar às últimas linhas, onde David Feldman
se despedia implorando por fotos. Depois de lê-la, fiquei com essa sua frase
ressoando, como o dobrar de um sino às seis da tarde: “Eu não sei em que
mundo me encontro”.
David Feldman sobreviveu ao genocídio nazista e stalinista, só
conseguindo chegar em Israel em 1974, já idoso e com muitos problemas de
saúde. Não obstante, seus documentos, como ele mesmo conta, foram
apreendidos na fronteira e sua agenda de endereços quase fora extraviada.
Meu avô, que provavelmente só recebeu a carta no início de 1975, na cidade
do Recife, não teve tempo de respondê-la. Naquele mesmo ano, ele descobria
um câncer de pulmão, que o levaria às pressas ao Rio de Janeiro para um
tratamento de saúde. Foi sua última viagem.
Minha avó, que não sabia iídiche e não entendia o que a correspondência
dizia, após a morte de meu avô guardou o documento como um tesouro a ser,
um dia, descoberto. Ao que tudo indica, David Feldman deve ter morrido em
Israel logo depois do irmão no Brasil. Nunca recebeu as fotos. Mas nos
deixou uma sua.

Arquivo
Mais de um ano e meio após a viagem de janeiro de 2015, me vejo ainda
diante de documentos de difícil decifração. Naquela ocasião, entre um café e
outro em tardes de inverno, Mira Perlov deixava sob minha confiança e
cuidado os diários — dessa vez escritos — de David. Em três volumes, de
cerca de 300 páginas cada um, ele escreve e, sobretudo, descreve seus dias.
Eu não entendo bem o que devo fazer com esses documentos, abro-os com
certo constrangimento, como se mirasse através de uma janela que não
deveria ser aberta.
Nessas páginas, a depressão é uma constante e, numa quinta-feira em 24
de abril, provavelmente de 1980, Perlov anota, sempre em português:
“Acordo às 10h mas só levanto às 11h e pouco. Um pouco ansioso por ter um
dia sem ter o que fazer. Tomo o café da manhã, tomo as pílulas, me visto e
faço a barba. Estou sozinho em casa”. Em outro momento, conta que está
lendo Angústia, de Graciliano Ramos. Não poderia ser mais apropriado.

Fecho a caderneta — e penso que se temos construído nosso presente, a


partir das ruínas do passado, como um único e gigantesco arquivo,8 o arquivo
pessoal de Perlov, longe de ser um “depósito que cataloga os traços do já dito
para os consignar à memória futura”, na definição de Agamben (2008:145),
se dá numa lacuna, como um hiato entre sua língua mãe, o português, uma
língua perdida num país estrangeiro, e aqueles que a perderam, seus
descendentes — uma língua que já não tem mais muito a dizer.
Resta assim retornar à obra do realizador, essa que ressignifica a própria
noção de arquivo por meio da montagem e da temporalidade da narração —
sempre anacrônicas e construídas anos depois da captação das imagens —,
como se tudo o que vemos fosse o compósito de um grande arquivo pessoal e
político. Aqui, é interessante notar que, embora o Diário tenha começado a
ser filmando em 1973, o processo de montagem e construção dos
comentários era esporádico até o início dos anos 1980. Em 1977 ou 1978, um
episódio piloto de 45 minutos (composto por fragmentos de 1973 a 1977-78)
fora exibido na TV israelense, no âmbito de um programa chamado
Identidades, e em 1980 o mesmo episódio fora mostrado no Channel 14 em
Nova York.
Segundo me relatou Mira, naquelas tardes debaixo de suas janelas, apenas
em 1982, ela e David Perlov encontraram o diretor do Chanel 4 inglês,
Michael Kustow, que decidiu financiar o projeto a partir do piloto a que ele
assistira (o qual corresponderia hoje a partes do terceiro capítulo). Graças ao
financiamento do canal, o quinto e o sexto capítulos (que envolvem viagens a
Londres, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Lisboa) puderam
ser feitos, sendo montados entre 1981 e 1984-85. Em 1988, os seis capítulos
do Diário são exibidos pelo Channel ٤ na Inglaterra, ao longo de seis dias, e
só no ano seguinte, em ١٩٨٩, eles são projetados em Israel, no Museu de Tel
Aviv.
Em todo esse processo, Perlov sempre escreveu o texto de sua narração e
comentários em português, enquanto Mira trabalhava, como coautora, na
tradução para o inglês, já que o filme fora orginalmente feito graças ao
subsídio do Channel 4. A versão para o hebraico só foi realizada alguns anos
depois. Curiosamente, em seus diários escritos, aparentemente
contemporâneos da montagem do Diário, Perlov pouco fala de seu processo
de criação e montagem. Suas cadernetas nos revelam tão somente a
opacidade de uma retórica despojada, descritiva e faltante, testemunho das
horas e dos dias, da angústia e da depressão, da sobrevivência e da finitude,
mas testemunho também do que não sabemos e jamais saberemos. Pois,
como já defendeu tantas vezes George Didi-Huberman (2004), para saber é
preciso imaginar — imaginar com as vozes dos arquivos.9

Anna
No início do Diário, David Perlov começa sua jornada com a seguinte
epígrafe, à primeira vista, apenas à primeira vista, um pouco enigmática:
“Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não sabiam assinar
colocavam duas cruzes nas suas fotografias: nome e sobrenome”. Num café
em Paris — ou seria numa padaria na Vila Mariana? —, escrevo em um
guardanapo que onde não há nome, não há transmissão. Onde não há nome,
não há túmulo, não há restos, não há vestígios nem cinzas. Onde não há
nome, não pode haver luto.
Filho de uma mãe analfabeta, Perlov conhecia essa cruz como ninguém.
Ao longo de seus diários, filma alguns túmulos e vai por duas vezes ao
cemitério israelita de Belo Horizonte, onde sua mãe, Anna, figura pouco
evocada e envolta em brumas, fora enterrada. Na primeira visita, no sexto
capítulo do Diário, Perlov percebe que o nome de Anna, em sua lápide de
pedra, havia sido grafado errado, “Anna Perlof”, com “f”, em vez de
“Perlov”, com “v”. Tal inscrição do “f”, letra que para Perlov se assemelha ao
signo da cruz, opera no Diário como uma espécie de sombra a acompanhar a
busca de Perlov pela “imagem fatal”10 da mãe, a mãe iletrada que não podia
assinar seu próprio nome. A mãe iletrada que não podia, pela miséria, pela
loucura, se inscrever na ordem simbólica da linguagem.
Já na segunda visita, quase 20 anos depois, no terceiro capítulo dos
Diários revisitados 1990-1999, o nome de Anna é finalmente corrigido a
pedido do filho. No lugar do “f”, Anna recupera o “v” de seu nome, reavendo
também, contra o fluxo do esquecimento e do anonimato, a inscrição de sua
própria identidade. Assim, corrigir o nome da mãe, inscrevê-lo com “v” na
memória dos que vivem,11 já que ela própria não sabia escrever — e, como os
analfabetos, assinava o sinal da cruz no lugar do nome —, será o
compromisso de Perlov ao longo de toda sua obra autobiográfica.
É justamente por Anna habitar o lugar do trauma, do irrepresentável por
excelência, que voltar ao túmulo e fazer o luto constituem o sentido mais
amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos, como se, para
garantir a continuidade da vida, fosse preciso, por meio do luto, abandonar a
origem no momento mesmo em que ela é encontrada. Pois, como bem sabem
os sobreviventes, “onde não existe túmulo, o trabalho de luto nunca termina”
(Klüger, 2005:87). Não é por outra razão, como ressalta Jeanne-Marie
Gagnebin a partir do helenista Jean-Pierre Vernant, que a palavra grega sèma
tem como significação originária a de “túmulo” e, só depois, a de “signo”, já
que o túmulo é signo dos mortos. Túmulo, signo, palavra escrita, imagem:
todos lutam contra o esquecimento (Gagnebin, 2006:112).

Cruzes
Na viagem de janeiro de 2015, junto aos materiais de pesquisa, levo comigo
um exemplar de A câmara clara, belo ensaio autobiográfico de Roland
Barthes. Nesse livro, contemporâneo aos diários de Perlov, Barthes tenta
fazer o luto de sua adorada mãe, inventando para isso outra forma de narrar,
na qual mistura reflexão crítica, imagens, aforismas e narrativa biográfica
para dar conta da dificuldade de sustentar o olhar sobre a fotografia da mãe,
cuja imagem ele não consegue ou pode publicar. “Diante da foto de minha
mãe criança, eu me digo”, escreve Barthes, “ela vai morrer. [...] Que o sujeito
já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe” (Barthes,
1984:142).
Benjamin já assinalou que tudo o que desaparece vira imagem; no
entanto, algumas fotografias — como “a imagem fatal” da mãe de Perlov ou
a imagem da mãe de Barthes aos cinco anos, prenhe de futuro, sobre uma
ponte à frente de um jardim — são verdadeiras câmaras escuras e não podem
ser reproduzidas no interior das obras que, pelo negativo, as contêm.
Portanto, à estética da presença, segundo a qual a fotografia seria um ápice do
real e da inscrição do referente, tanto Perlov como Barthes problematizam os
limites da imagem e trazem à tona suas impossibilidades, propondo uma
estética da ausência, da perda e da desaparição. Uma estética do
“impossível”, no dizer de Alain Badiou (2004) — quem sabe uma “imagem
impossível” no lugar daquela “imagem fatal” de Anna — que possa fazer
frente à impotência do trauma, sustentando a necessidade do luto.
Em Paris, cidade na qual Perlov viveu seis anos antes de emigrar para
Israel em 1958, quando começou a fotografar a partir da rue de L’aqueduc,
ele reencontra, no quinto capítulo do Diário, cruzes por todo lugar:
Sei agora que o luto — por todos aqueles que já pereceram, por tudo
aquilo que desapareceu ou fora extraviado — é o que coloca a vida em
movimento.
Isso, só isso, eu entendo.

Márcio Seligmann-Silva tem desenvolvido o conceito de “teor testemunhal da cultura” em


diversos artigos e livros publicados nos últimos anos, dos quais destacaríamos História,
memória e literatura — o testemunho na era das catástrofes (2003). Segundo o autor, após
as viradas linguística e mnemônica ocorridas nos anos 1970 e 1980, seria mais produtivo
pensar os traços desse teor testemunhal, hoje fortemente presentes em diversas
manifestações da cultura (como o cinema, a literatura, as artes visuais e até o teatro), do
que tentar restringi-los a um gênero específico, como “literatura de testemunho” ou
“cinema de testemunho”. O “teor testemunhal” se dá justamente entre a ficção operada pela
linguagem e aquilo que convencionamos a chamar de real, isto é, entre o literário e o
factual.
O Diário sempre me faz pensar em outro filme, também realizado em Tel Aviv e através
das janelas, o doído, claustrofóbico e autobiográfico Lá (2006), de Chantal Akerman. A
respeito de Lá, ver Feldman (2009).
A canção Stranger here, cantada por Odetta Holmes (1930-2008), espécie de adágio da
jornada de Perlov, me remete a um belo texto de Georges Perec, que parece iluminar o
exílio existencial presente nos diários: “Quelque part, je suis étranger par rapport à
quelque chose de moi-même; quelque part, je suis ‘différent’, mais non pas différent des
autres, différents des ‘miens’”. In: Perec e Bober (1980).
Não por acaso, o julgamento do oficial nazista Adolph Eichmann em Israel, em ١٩٦١,
inaugura, segundo Annette Wieviorka, uma “era do testemunho” em países como França,
Estados Unidos e Israel, quando o testemunho (sobretudo aquele decorrente dos
genocídios) passa a reivindicar um lugar privilegiado no espaço público e na construção
das identidades individuais e nacionais. Ver Wieviorka (2009:81).
Sabemos pela informação de Mira Perlov que a música original tocada na sequência era O
que será que será?, de Chico Buarque, mas que, por problemas de direitos autorais, ela
fora substituída na montagem.
Ver Benjamin (2006:503; V, p. 575).
Referência ao Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, composto entre 1924 e 1929 e que
restou inacabado. O Atlas de Warburg constitui para todo historiador da arte — e inclusive
para todo artista hoje — uma obra de referência e um caso fascinante, que transformou o
modo de compreender as imagens. O Atlas Mnemosyne foi sua paradoxal obra-prima e seu
testamento metodológico: reúne todos os objetos de sua pesquisa em um dispositivo de
“painéis móveis” constantemente montados, desmontados, remontados. Aparece também
como uma reação de duas experiências profissionais: a da loucura e a da guerra. Pode-se
vê-lo, então, como uma história documental do imaginário ocidental (herdeiro, nestes
termos, dos Disparates e dos Caprichos de Goya), e como uma ferramenta para entender a
violência política nas imagens da história (comparável, nesse ponto, a um compêndio dos
Desastres da guerra). Ver Didi-Huberman (2013a), bem como: <http://culturaebarbarie.org/
sopro/outros/atlas.html>.
Ver Seligmann-Silva (2009b:271-281, 2009a:26).
De acordo com Arlette Farge, o arquivo é sempre singular e anônimo, absoluto e faltante;
ele é sobrevivência, mas é sobretudo o signo da finitude. Na formulação de Farge, “utilizar
o arquivo hoje é traduzir essa falta em questão”. Ver Farge (2009:58).
No segundo capítulo do Diário 1973-1983, Perlov se refere à fotografia de uma moça, que
aparece por pouco tempo dentro de uma gaveta entreaberta, como “a imagem fatal”. Só ao
final da obra compreendemos, por meio de alusões e dos dois “x” marcados em sua
fotografia, que aquela é a única imagem de Anna, sua mãe, em todo o filme.
É interessante notar que, no Ano Novo judaico, após o Yom Kippur, o Dia do Perdão —
que não deixa de ser um tributo ao luto —, deseja-se ao outro em hebraico um “Gmar
chatimá tová”, isto é: “Que sejamos inscritos no livro da vida com uma boa assinatura”.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.
ALTOUNIAN, Janine. L’intraduisible. Deuil, mémoire, transmission. Paris:
Dunod, 2005.
BADIOU, Alain. Por uma estética da cura analítica. A Psicanálise & os
Discursos, Rio de Janeiro, a. XXIII, n. 34/35, p. 237-242, 2004.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
____. Diário do luto. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia; Sobre o conceito de
história. In: ____. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1996.
____. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
DEVEREUX, Georges. De l’angoisse à la méthode. Paris: Flammarion,
2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e
tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto,
2013a.
____. Cascas. Serrote, São Paulo, n. 13, p. 99-133, 2013b.
____. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2004.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
FELDMAN, Ilana. David Perlov: epifanias do cotidiano. In: FELDMAN,
Ilana; MOURÃO, Patrícia (Org.). David Perlov: epifanias do cotidiano. São
Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 21-64.
____. Lá: do lugar que não existe à entrevista que deixou de existir. Revista
Cinética, maio 2009. Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br/cha
ntalilana.htm>.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34,
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KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente
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PEREC, Georges; BOBER, Robert. Récits d’Ellis Island. Histoires d’errance
et d’espoir. Paris: POL, 1980.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e Theodor
Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
____. Estética e política, memória e esquecimento: novos desafios na era do
Mal de Arquivo. Remate de Males, v. 29, n. 2, p. 271-281, jul./dez. 2009.
____. História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes.
São Paulo: Ed. Unicamp, 2003.
____. Narrar o trauma — a questão dos testemunhos de catástrofes históricas.
Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008.
WIEVIORKA, Annnette. L’ère du temoin. Paris: Hachette, 2009.
Sobre os autores

Alexsandro de Sousa e Silva


Mestre em história social pela Universidade de São Paulo e doutorando pela
mesma instituição. Pesquisador das relações entre cinema e política na
América Latina e as conexões do subcontinente com a África.
Anita Leandro
Professora associada da Escola de Comunicação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e documentarista. Integra o corpo permanente do PPG-Com,
com pesquisa sobre a fala filmada e as imagens da história no cinema de
montagem. Possui graduação em comunicação social/jornalismo pela
Faculdade de Filosofia de Belo Horizonte (1981), mestrado e doutorado em
estudos cinematográficos e audiovisuais pela Université Paris III —
Sorbonne-Nouvelle (1993-97). Pós-doutorado na Paris III, sobre os arquivos
da história no cinema.
Beatriz Rodovalho
Doutoranda na Universidade Sorbonne Nouvelle — Paris 3. Sua pesquisa
dedica-se à reapropriação de filmes de família no documentário
contemporâneo. Estuda também o filme amador a partir de sua relação com o
deslocamento (viagem, exílio, migração) e a partir dos estudos de gênero. É
responsável pela disciplina Cinema de Remontagem nas Universidades Paris
3 e Paris 8.
Carlos Adriano Jeronimo de Rosa
Carlos Adriano é doutor em estudo dos meios e da produção mediática pela
Universidade de São Paulo (bolsa Fapesp). Pós-doutorado em artes pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (bolsa Fapesp). Pós-doutorado
em meios e processos audiovisuais na ECA-USP (bolsa Capes). Cineasta,
com retrospectivas no Festivais do Rio e de Locarno (seção Cineastas do
Presente) e filmes exibidos no MoMA-NY.
Claudio Marcondes de Castro Filho
Professor na Universidade de São Paulo, no curso de graduação em
biblioteconomia, ciência da informação e da documentação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Professor na Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/Marília, no Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Informação.
Eduardo Morettin
Professor de história do audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. Autor de Humberto Mauro, cinema, história (São
Paulo: Alameda Editorial, 2012) e um dos organizadores de História e
cinema: dimensões históricas do audiovisual (2. ed. São Paulo: Alameda
Editorial, 2011), entre outros livros. É um dos líderes do Grupo de Pesquisa
CNPq História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação ( <htt
p://historiaeaudiovisual.weebly.com/>). Bolsista produtividade em pesquisa
CNPq, nível 2.
Kênia Freitas
Pós-doutoranda (Capes/PNPD) no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação na Universidade Católica de Brasília. Atua no Grupo de
Pesquisa Estudos de conteúdos digitais transmidiáticos e interativos como
coordenadora do ciclo de palestras Diálogos Digitais. Doutora pela Escola da
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha
Tecnologias da Comunicação e Estéticas. Mestre em comunicação pelo
Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade de Campinas.
Graduação em comunicação social com habilitação em jornalismo pela
Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito
Santo.
Ilana Feldman
Doutora em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética
da Universidade Paris VIII, tendo desenvolvido a tese Jogos de cena: ensaios
sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Atualmente, realiza pós-
doutorado em teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade de Campinas, com pesquisa sobre cinema, testemunho, trauma
e autobiografia a partir da obra do cineasta brasileiro-israelense David Perlov.
Luís Felipe Flores
Doutorando em comunicação social no PPGCOM da Universidade Federal de
Minas Gerais, onde desenvolve pesquisa sobre o cineasta Harun Farocki, sob
orientação do professor doutor César Guimarães. Mestre em cinema na EBA-
UFMG. Ensaísta, crítico e pesquisador de cinema, com colaborações em
diversas revistas e catálogos de mostras. Organizou as retrospectivas dos
cineastas Rithy Panh e Trinh T. Minh-ha no Brasil. Curador do Festcurtas BH
em 2015, 2016 e 2017, e do forumdoc.bh em 2015. Atua também como
professor e tradutor.
Mariarosaria Fabris
Doutora em artes (cinema) pela ECA da Universidade de São Paulo e
professora aposentada da FFLCH/USP, onde fez toda a sua carreira na área
de língua e literatura italiana. Foi presidente da Sociedade Brasileira de
Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine) (nov. 2001-nov. 2003), para a
qual organizou, junto com outros autores, a publicação de cinco volumes de
Estudos Socine de cinema (entre 2003 e 2005 e em 2011). É autora dos livros
Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? (1994) e O neo-realismo
cinematográfico italiano: uma leitura (1996). Coordenou a edição dos
catálogos Esplendor de Visconti (2002) e Roberto Rossellini: do cinema e da
televisão (2003) para o Centro Cultural São Paulo. Textos de sua autoria
foram publicados em vários periódicos e em publicações coletivas no Brasil e
no exterior.
Patricia Rebello da Silva
Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/FCS/Uerj). Doutora
em comunicação social pela ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Membro do comitê de seleção do festival internacional de documentários É
Tudo Verdade.
Vicente Sánchez-Biosca
Professor de comunicação audiovisual da Universidade de Valência e diretor
da revista Arquivos de la Filmoteca. Fez pós-doutorado na Universidade de
Wisconsin (1991), nos Estados Unidos, e ministrou aulas nas Universidades
Sorbonne Nouvelle Paris-3, Montreal, São Paulo, Buenos Aires, Havana.
Participou dos projetos de pesquisa internacionais: “Os documentários dos
anos 1950 na Europa” e “Guerra e imaginário da guerra na Europa”.
Table of Contents
Capa
Folha de rosto
Créditos
Introdução
1 | Os poderes da imagem: as fotos de perpetradores no genocídio
cambojano e sua migração para o cinema, os museus e a corte penal
2 | Cinema de arquivo, história e exposições universais: Land of liberty
(1939), de Cecil B. DeMille
3 | O desvio das imagens: documentário e montagem de arquivos no
cinema de Gianikian e Lucchi
4 | O inverno da desesperança
5 | Anticolonialismos e reapropriação das imagens fílmicas de uma
emboscada (1969-2014)
6 | Anistia 79: A restauração das imagens da história pelo cinema
7 | Reapropriação como reconfiguração de arquivos: o método poético
do found footage e um estudo de caso no YouTube
8 | The uprising: a desterritorialização das imagens-acontecimentos
9 | Para a mamãe, com amor: arquivo e memória nas cartas filmadas de
A family affair (2016)
10 | Boas moças: a desconstrução do olhar masculino por meio da
retomada do filme doméstico
11 | Não entender: arquivos, documentos e criação no encontro com o
Diário de David Perlov
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