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0 CORPO VESTIDO Maria CiAup1a BoNADIO Encobrir, disfargar, revestir Em Enfeitada de sonhos (1985), a historiadora inglesa Elizabeth Wilson ima que em todas as sociedades 0 compo é “vestido”, pois, mesmo que roupas sejam dispensadas, sempre hé alguma camada de indumentitia (3 avra pode ser definida como tudo aquilo que encobre, disfarca ¢ reveste) bre a pele, soja através de taruagens, pinturas corporais ou adornos:! Considerando que 0 corpo é um organismo de cultura com fronteiras uco definidas, é a indumentéria, ou seja, tudo aquilo que envolve, encobre reveste o corpo humano, que em muitos casos funciona como a ligacéo tre 0 corpo bioldgico ¢ o ser social, Nas sociedades contemporineas ¢ anas, é através daquilo que cobre a nossa pele, €, mais visivelmente das sapas (posto que tatuagens, piercings ou escarificagées podem estar cobertos 1 estas) que informamos, ressaltamos ¢ escondemos informagies sobre nds cmos. Portanto, a roupa pode ser entendida como 2 “fronteira entre 0 cu, ¢ do eu” (Wilson, 1985, p. 13), ou entre aquilo que cada individuo pretende nar piblico a respeito dos seus gostos, preferéncias, género, entre outros. ‘Ainda que existam algumas convengées culturais que nos permitem ificar determinadas pecas de roupas como masculinas ou femininas, iais ou senhoris, por exemplo, roupas sao artefatos, e como tal, apenas as Segundo 0 diciondrio Hovaiss, indumentaria deriva de indumento, substantive masculino cujo registro lexical data de 1589. Por extensio de sentido, 2 palavra pode ser definida como 0 que encobre, disfarga ou funciona como envoltério. OO | 180 ‘SOBRE A PELE, IMAGENS E METAMORFOSES DO CORPO suas caracteristicas fisico-quimicas € que sao imanentes, sendo todo o restante construfdo culturalmente e mutével de sociedade para sociedade, individuo para individuo. Ea interagao social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaco, nos lugares ¢ circunstancias sociais, nos agentes que intervém) determinados atributos para dar existéncia social (sensorial) a sentidos ¢ valores e fazé-los atuar. (Meneses, 2003). Assim, 0 corpo vestido, ou a situagao na qual uma pega de roupa é apresentada, poderé trazet novos significados ¢ conotacées para uma determinada pega ¢ vice-versa. Um bom exemplo para 0 enunciado é 0 vestudrio reservado aos bebés. Em lojas de roupas para esse grupo, as peas nas tonalidades rosadas costumam ser reservadas 3s meninas, ¢ os tons de azul aos meninos. Quando usadas, tais pecas funcionam como importantes elementos identificadores, sobretudo diante da dificuldade em attibuir o sexo de um bebé vestido, por exemplo, com tons “neutros” como amarelo ou branco ¢ que nao portam bonés, brincos ou outros acess6rios culturalmente impregnados de conotacéo sexual. Essa associacdo, que hoje parece “natural”, é, entretanto, recente, pois, até 0 inicio do século XX, meninos usavam rosa (cor forte e decidida segundo a literatura da época), enquanto meninas usavam azul (cor delicada) (Garber, 1992, apud Envwistle, 2002). Muitos outros exemplos seriam possiveis, alguns sutis, como o abotoamento de uma camisa, por exemplo, num primeiro momento pode parecer algo exclusivamente funcional, afinal casas ¢ bot6es sio feitos para fechar uma camisa, porém a localizagao da fileira de botes & esquerda ou & direita indica, pelo menos aos iniciados nas conveng6es da alfaiataria, se a camisa é masculina, ou feminina2 E um individuo que nao conhega esse cédigo, ao olhar de outros que o conhecem, pode cometer uma gafe, ou passar uma mensagem confusa. 2, Hi indicios que a convencio do abotoamento do lado direito para os homens ¢ esquerdo para as mulheres parece ter sido criada porque, quando os botses foram inventados no século XIII, 0 comum era os homens vestizem sozinhos, jé as mulheres, cujo abotoamento das roupas muitas vezes se localizava atrés do corpo, contavam com a ajuda de criadas para a tarefa € 0 aboroamento do lado esquerdo facilitava a operagao da mao direita daquelas. Flvia Regina Marquett | Pedro Paulo A. Funari (orgs) 181 ‘As roupas tém tanta importancia em nossa sociedade, que um ato trivial como a simples troca de roupa é capaz de transformar radicalmente a identidade de um individuo — tanto para o olhar do outro, mas especialmente para si mesmo. Nas histérias de super-herdis o poder “magico” das roupas é bastante explorado. Em Superman é a troca do chapéu, éculos ¢ ternos, por um macacio ajustado ao corpo nas cores da bandeira americana e um “pega rapaz” na testa, que transformam Clark Kent em heréi. Mesmo sem usar mascara, ele se torna “outro” e nao é reconhecido nem por sua namorada Lois Lane. Ao entrar na cabine telefonica ¢ se transformar no Superman e vestir seu traje de herdi, o personagem passa a exibir toda sua forga e habilidades, ¢ é outra personalidade, de timido e desajeitado, passa a ser firme e determinado. Nestes casos, as roupas ao encobrirem uma determinada personalidade revelarem outra, podem ser entendidas como méscaras, cujo uso “tem profundas rafzes antropolégicas ¢ miticas” (Dorfles,1988, p. 59), que possibilitariam a suspensio de uma determinada personalidade, para assumir ‘outra, ficticia, clandestina ou capaz de revelar um desejo inconsciente. Mas as roupas sao fundamentais para compor também outros tipos de identidade, tais como aquelas ligadas ao estilo de vida; neste caso, elementos comuns como a camiseta de uma determinada banda de rock ou time de futebol podem gerar aproximacao ou afastamento entre individuos. Estas ‘pecas associadas ao lazer — ainda que alguns ambientes de trabalho permitam © uso desse tipo de roupas — sio mais reveladoras acerca da identidade ¢ ‘gostos dos individuos, do que as roupas de trabalho de modo geral, sejam elas uniformes ou nao. Mesmo os trajes comumente associados & respeitabilidade do mundo do trabalho nao possuem significados fixos, pois podem ser subvertidos. O conjunto terno em cores s6brias (calga e paletd), camisa e gravata, usado pelo diretor de uma empresa, nao tem o mesmo significado que os mesmos usados por um cantor de rock, como David Bowie em meados dos anos 1970, ou ‘es integrantes da banda nacional Joelho de Porco (associada ao surgimento punk no Brasil), popular no mesmo perfodo.* Mais uma vez, 0 corpo que ‘yeste a roupa ¢ o espago no qual ela é utilizada impdem novos significados as esas. 3. Vero documentério Botinada: A origem do Punk no Brasil, direcao de Gastao Moreira, 2006 (cor, 111 min.).

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