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Prólogo
Neste tratado colocarei somente documentos saudáveis, tirados das sentenças dos doutores.
Não aduzirei testemunho algum da Sagrada Escritura ou de algum doutor para prova o que digo ou
para persuadi-lo, já porque intento a brevidade, já porque dirijo minha palavra exclusivamente a
quem deseja cumprir, com grande afeto, o que deve se cumprir segundo Deus. Por isso, tampouco
provo o que digo, pois intento instruir ao humilde, não discutir com arrogantes e nem servir às
controvérsias.
Quem queira, pois, ser útil às almas de seus próximos e edificá-los com palavras, procure
primeiro ter em si mesmo o que terá de ensinar aos demais, pois, do contrário, aproveitará pouco.
Porque sua palavra será ineficaz se antes os homens não descubram em ti o que ensina, e ainda
coisas maiores.
Da pobreza
Convém, primeiramente, que despreze todo o terreno e o repute como esterco, servindo-se
dele estritamente para a necessidade. Esta necessidade há de reduzi-la a poucas coisas, ainda
sofrendo algum incômodo por amor da pobreza, como alguém disse: “Sei que não é louvável ser
pobre, senão na pobreza de amar a pobreza, e aguentar com gozo e alegria a escassez da mesma, por
Cristo. Porém, que pena! Muitos se gloriam só do nome da pobreza. Porém em que sentido?
Contanto que nada lhes falte. Chamam-se amigos da senhora pobreza, porém fogem, enquanto
podem, dos amigos e companheiros da pobreza, isto é, da fome, do frio, da sede, do desprezo e da
abjeção”. Não foi assim nosso Beatíssimo Pai Domingos, nem tampouco Aquele que, sendo rico, se
fez pobre por nós (2Cor 8,9), nem todos os Apóstolos que, como sabes, nos ensinaram com a
palavra e com o exemplo.
Nada peças a outro, a não ser por necessidade, nem consintas com quem queira dar-te algo,
ainda que seja com muitos rogos, inclusive com o pretexto de que o repartas aos pobres. Porque,
creia-me, nisto o doador e todos os que o cercam se edificaram muito, e por ele poderás induzir
mais facilmente ao menosprezo do mundo e inclinar-nos ao socorro de outros pobres.
Entendo por necessidade para ti um alimento pouco e simples, e um vestido vil, assim como
o calçado, segundo a necessidade do momento presente. Não chamo necessidade a carência de
livros, sob cujo véu frequentemente se cobre uma grande ganância. Na Ordem se encontram livros
comuns e bons.
E quem queira conhecer claramente o afeto do que foi dito, procure antes de mais nada
cumpri-lo com coração humilde; do contrário, se quisesse contradizer com soberbo coração, ficará
fora. Porque aos humildes Cristo, Mestre de humildade, manifesta-lhes a verdade, que permanece
oculta aos soberbos (Mt 11, 25-29).
Do silêncio
Achado, pois, o fundamento estável da pobreza pelo arquiteto Cristo, que, estando no cume
do monte, disse: Bem-aventurados os pobres de espírito (Mt 5,3), etc., prepare-se virilmente para
refrear a língua, para que a língua, que dever falar coisas úteis, abstenha-se por completo de coisas
ociosas e inúteis. E para melhor restringi-la, apenas fale se é interrogado. Digo, interrogado sobre
coisa necessária e útil. Pois uma pergunta inútil deve contestá-la com o silêncio.
Porém, se alguém lhe disser palavras engraçadas ou brincalhonas, para parecer chato aos
demais, poderás mostrar certa hilaridade e benignidade no rosto, porém, em nenhum caso falar,
ainda quando os presentes, quaisquer que sejam, pareçam que murmuram ou que se entristecem por
isso, ou que profiram palavras difamadoras, tachando-o de antissocial, de supersticioso ou sério.
Deve, melhor, orar por eles mais atentamente, para que Deus tire de seus corações toda a desordem.
Não obstante, poderá falar alguma vez, se se apresenta uma necessidade ou por caridade
pelo próximo, ou solicitado pela obediência. Mas então faça isso muito premeditadamente e com
poucas palavras, com voz humilde e baixa. O mesmo deve fazer também quanto tem que responder
a alguém sobre qualquer coisa. “Silencie algum tempo para edificação do próximo, para que
calando, aprenda como tem que falar utilmente quando chegar o momento. Porém rogando a Deus
que supra por si mesmo, inspirando interiormente no coração de seus irmãos aquilo que você não
falou, enquanto domava sua língua no silêncio” (LODULFO DE SAJONIA, Vita Christi, I, c. 58
).
Síntese
Até aqui tratei sumariamente e pus brevemente aquilo que é necessário para o homem no
que tange à perfeição de sua vida, se quer, sem nenhum perigo de sua parte, ser útil procurando a
salvação das almas. Isto poderia bastar para o varão ilustrado e de alto entendimento, ou que tivesse
amplo exercício nas obras espirituais, porque de tudo o que expus brevemente, como princípios da
vida perfeita, poderiam tirar todos os demais exercícios de atos mais perfeitos. Pois guardando
exatamente as três coisas que disse, a saber, a pobreza voluntária, o silêncio, e o exercício interior
da mente, o homem julgaria facilmente tudo o que tem que fazer a respeito de todos os demais atos
externos. Entretanto, como nem todos podem compreender com facilidade o que lhes disse
brevemente, insistiremos algo mais detalhadamente acerca dos atos particulares das virtudes.
Do diretor espiritual
Há que saber que o homem que tem um instrutor por cujo conselho te dirige e cuja
obediência siga em todos os seus atos, pequenos e grandes, poderá chegar mais facilmente e em
tempo mais breve à perfeição, que se quisesse aperfeiçoar-se a si mesmo, ainda que tenha um
entendimento muito agudo e tenha livros nos quais se trata da estrutura de todas as virtudes. Mais
ainda, digo que Cristo nunca outorgará sua graça, sem a qual nada podemos (Jn 5,15), se não tem a
alguém que lhe possa instruir e dirigir, e o menospreze, ou não procura abraçar a orientação do
outro, crendo que se basta a si mesmo, e que por si mesmo pode investigar e encontrar
perfeitamente tudo o que lhe é útil para a salvação.
Este caminho da obediência é caminho régio que leva aos homens sem tropeçar ao cume da
escada na qual o Senhor está apoiado (Gen 28,12-13). É o caminho que seguiram todos os santos
padres do deserto e, em geral, todos quantos alcançaram a perfeição, em pouco tempo, sempre por
este caminho, a não ser que Deus instruísse a alguns por si mesmo, por um privilégio de graça
singular, quando lhes faltava ou não encontravam quem os instruísse de fora. Porque então a
piedade divina supre por si mesmo o que não se pode encontrar fora, quando se recorre a Deus com
coração humilde e fervoroso.
Mais, em efeito, neste tempo – miseráveis de nós – não se encontra quase ninguém que
instrua aos demais na vida de perfeição. E mais, se alguém quer entregar-se a Deus, encontrará a
muito que o afastem, e quase ninguém que lhe ajude. Pelo que é conveniente que o homem recorra a
Deus de todo coração e lhe peça com insistência de orações e com humildade de croação ser
instruído por Ele, para que lhe receba benignamente como a um órfão sem pai, pois Deus não quer
que ninguém pereça senão que todos cheguem ao conhecimento da verdade (I Tim 2,4).
Por tanto, a ti dirijo minha palavra, que com grande afeto de coração desejas encontrar a
Deus e aspiras à perfeição, com o fim de ser útil às almas de todos. A ti dirijo minha palavra, que te
aproximas de Deus com coração simples e sem duplicidade e quer penetrar no íntimo das virtudes, e
que pelo caminho da humildade desejas chegar à glória da majestade.
Da bebida
Enquanto a bebida, não sei expor-te outra regra senão que, pouco a pouco te refreies
bebendo menos de dia em dia, porém de forma que não padeças sede excessiva de dia ou de noite.
Especialmente, quando comes sopa, podes facilmente passar com menos bebida, ainda que sempre
seja necessária para a digestão da comida. Não bebas nunca fora da hora da comida, a não ser pela
noite nos dias em que jejuas, e então muito temperado, ou pela fadiga do caminho, ou por qualquer
outro cansaço. Beba o vinho tão aguado que lhe falte a força, e se for um vinho forte, acrescente a
metade de água, ou mais, e assim, mais ou menos, segundo o que Deus te inspire (Constitutiones
primaevae O.P. I, 6; G.de SAINT-THIERRY, Epistola ad fratres de Monte Dei (PL 180, 329)).
Do estudo
Nada, por mais agudo entendimento que tenha, deve omitir aquilo que lhe possa mover a
devoção. E mais, tudo o que lê e estuda deve projetá-lo em Cristo, dialogando com Ele e pedindo-
lhe a inteligência.
Muitas vezes, enquanto está estudando, deve afastar, durante um certo tempo, os olhos do
livro e, fechando-os, esconder-se nas Chagas de Cristo, e de novo voltar ao livro. E também
frequentemente deve levantar-se da mesa e, na cela, dobrados os joelhos, dirigir a Deus alguma
breve e fervorosa oração. Ou também sair da cela e passear pela igreja, claustro, ou pelo capítulo,
deixando-se levar pelo impulso do Espírito. E, as vezes com oração expressada, ou calada, implorar
o divino auxílio com gemidos e suspiros do coração fervente, presenteando ao Altíssimo seus bons
propósitos e desejo, reclamando para ele o auxílio dos santos.
Este exercício as vezes se faz sem salmos e sem nenhuma outra oração vocal, ainda que as
vezes nasceu deles, ou de algum versículo de um salmo ou de uma passagem da Sagrada Escritura,
ou da vida de algum santo, ou também pela inspiração íntima de Deus, encontrado pelo próprio
desejo ou pensamento.
Passado este fervor do espírito, que ordinariamente dura pouco, podes trazer à memória o
que antes estudava na cela, e então te dará uma mais clara inteligência. Feito isso, volte outra vez ao
estudo ou à lição, e de novo à oração e uma inteligência mais clara no estudo.
Este fervor na devoção, depois do estudo da lição, ainda que indiferentemente chegue em
qualquer hora, segundo se digna outorgá-lo, como apraza àquele que suavemente dispõe todas as
coisas (Sab. 8,1), geralmente vem mais forte depois das matinas. Por tanto, as primeiras horas da
noite vela pouco para que, depois das matinas, possas ocupar todo o tempo no estudo e na oração.
Do modo de pregar
Nas pregações e exortações use uma linguagem simples e, quanto possa, um estilo familiar
para assinalar os fatos particulares insistindo com exemplos, para que, qualquer pecador que tenha
aquele pecado se sinta aludido, como se pregasse só para ele. Porém de tal maneira que as palavras
procedem não de um coração soberbo ou indignado, senão melhor de entranhas de caridade e de
piedade paterna, como de um pai que sinta dor em ver pecar seus filhos, ou que estão em uma grave
enfermidade, ou caídos em um poço profundo, e se esforça em tirá-los e os ajuda a libertar-se, como
uma mãe; ou como quem se alegra de seu aproveitamento e de da glória que lhes espera no paraíso.
Este modo de pregar será proveitoso aos ouvintes, enquanto que falar em geral sobre as virtudes e
os vícios, move pouco aos que escutam.
Assim mesmo, nas confissões, encorajes aos pusilânimes, atemorizes aos endurecidos,
mostra sempre entranhas de caridade, para que o pecador sinta sempre que tuas palavras provêm da
pura caridade. Portanto, às palavras pungentes precedam sempre palavras cheias de doçura e de
caridade.
Tu, pois, quem quer que sejas, que desejas ser útil às almas de teus próximos, antes de tudo,
recorre a Deus de todo o coração e suplica-lhe sempre em tuas orações que se digne infundir em ti
aquela caridade, compêndio de todas as virtudes, pela qual possas levar a cabo o que desejas.
Alguns remédios contra as tentações que provêm por sugestões do demônio (A partir daqui se
expõem uma série de interrogações para ver a fonte inspiradora de são Vicente: LODULFO DE
SAJONIA, Vita Christi, II, c. 41; VENTURINO DE BERGAMO, De remediis contra tentationes
spirituales, Ed. 1904, Parte segunda, pp. 136-145; PEDRO OLIVI, Spirituali e Beghini in
Provenza, Roma 1959, pp. 282-287)
Em honra a Nosso Senhor Jesus Cristo, dir-lhe-ei alguns remédios contra algumas tentações
espirituais que neste tempo abundam na terra, para provar e combater a soberba. As quais, ainda que
não vão expressamente contra algum dos principais artigos da fé, no entanto, quem bem as olha,
conhecerá que levam perigo para destruir os principais artigos da fé que preparam a cátedra e a sede
ao Anticristo. Não quero enumerar estas tentações para não pôr ocasião e matéria de escândalo ou
de tropeço aos pequenos ou imperfeitos, porém te mostrarei, por outra parte, como e por que vêm
tais tentações.
Primeiro, chegam por sugestão e ilusão do diabo, que engana ao homem na conduta que
deve seguir para com Deus e para com o que é de Deus.
Segundo, pela corrupta doutrina de alguns e pelo modo de viver daqueles que já caíram
nessas tentações.
Por isso quero ensinar-te a conduta que deves observar para com Deus e para as coisas de
Deus, se queres ser imune a tais tentações. E depois, como deves guiar-se ante os demais, enquanto
a sua doutrina e enquanto ao modo de viver.
O primeiro remédio contra as tentações espirituais, deste tempo que procura o diabo nos
corações de alguns, é que aqueles que querem entregar-se a Deus não desejem na oração e
contemplação, ou em outras obras de perfeição, nem visões, revelações e sentimentos que estão
sobre a natureza e sobre o proceder ordinário dos que amam a Deus e lhe tem com verdadeiro amor.
Porque este desejo não pode dar-se sem uma raiz e fundamento de soberba e presunção, ou com
intenção de alguma vã curiosidade sobre os segredos de Deus, ou sem debilidade da fé. Por este
defeito a justiça de Deus abandona a alma que tem este desejo e permite que chegue a tal ilusão e
tentação do diabo por falsas visões e revelações e por falsas seduções, por cujo artifício semeia a
maior parte das tentações espirituais deste tempo e as faz arraigar nos corações daqueles que são
núncios do Anticristo, segundo poderás ver no que segue.
Porque deves saber que as verdadeiras revelações e sentimentos espirituais dos segredos de
Deus não chegam pelos desejos ditos acima, nem por nenhuma conjuração, ou por esforços que faça
a alma, senão que vêm somente por pura bondade de Deus à alma que está cheia de grande
humildade, de grande temor e reverência de Deus. Contudo, o varão de Deus não deve exercitar-se
na profunda humildade e no temor de Deus para isto, para ter visões, revelações e os sentimentos
anteditos, pois cairia no mesmo defeito em que se cai pelo referido desejo.
O segundo remédio é que não consintas em tua alma, na oração ou contemplação, nenhum
consolo, por pequeno que seja, que te pareça fundar-se na presunção ou estimação de ti mesmo que
depois te levaria à ambição da própria honra ou da própria reputação, donde nasceria em tua mente
a ideia de que és digno de glória e louvor desta vida, ou do paraíso. Porque tens de saber que a alma
que se sente em tal consolo incorre em maiores e piores males. Pois o Senhor, em seu justo juízo,
permite depois ao diabo aumentar tal consolo e se apressar em imprimir naquela alma falsíssimos e
perigosíssimos sentimentos e outras ilusões, pensando e crendo que tais sentimentos são
verdadeiros. Ai, ai, Deus meu! Quantas pessoas têm sido enganadas deste modo! Tenha por certo
que a maior parte dos sequestros, ou raivas, dos núcios do Anticristo vêm por este caminho. Por
isso, tenha cuidado de não aceitar em tua oração e contemplação consolo algum, a não se aquele
que vem do perfeito conhecimento e sentimento de si, assim como a grandeza e sublimidade de
Deus, que fazem nascer em ti uma alta reverência e um grande desejo da honra de Deus e de sua
glória. Nisto há de fundar-se o verdadeiro consolo.
O terceiro remédio é que todo sentimento, por alto que seja, e toda visão, por muito secreta e
sagrada que te pareça, qualquer que seja, no momento em que leve teu coração a uma opinião ou
dúvida contra algum artigo da fé, ou contra os bons costumes, e mais, contra a humildade e
honestidade, rechaça-o com horror, porque, sem dúvida, vem da parte do demônio. E ainda quando
apareça qualquer visão sem esta luz e sentimento, pelo qual está seguro que vem de Deus e pelo
qual te certificas em teu coração que aquela tal visão é grata a Deus, não te prendas a essa visão.
O quarto remédio é que, nem por grande devoção, nem pela santidade de vida, nem por claro
entendimento, nem por qualquer outra suficiência que vejas em alguma pessoa, ou em algumas
pessoas, não sigas seus desejos nem seus exemplos do momento em que conheces clara e muito
razoavelmente que seus conselhos não são segundo Deus e segundo a verdadeira discrição,
mostrada pela vida de Jesus Cristo e dos santos, e pela Sagrada Escritura, ensinada e pregada pelas
sentenças dos santos. E não temas pecar por elo de soberba e presunção, desprezando os conselhos
destes, pois o fazes por zelo e amor da verdade.
O quinto remédio é que fujas e evites o trato e companhia daqueles e daquelas que semeiam
e difundem tais tentações, e que evites as pessoas que as aceitam e louvam. E não escutes suas
palavras e conversações, nem queiras ver sua conduta, porque o demônio te mostrará e apresentará
grande sinal de perfeição em muitas de suas palavras e conduta, que, se o aceitas, virás a cair nos
perigos, ruínas e precipícios de seus erros.
Alguns remédios contra aqueles que semeiam tais tentações com sua doutrina
Depois disto, dir-lhe-ei alguns remédios que deves procurar por si mesmo acerca de algumas
pessoas que semeiam tais tentações, assim, com sua vida, como com sua doutrina.
O primeiro que hás de atender para com semelhantes pessoas é não ter grande estima de suas
visões e sentimentos, nem de seus sequestros. E mais, se te dizem algo contra a fé ou contra a
Sagrada Escritura, ou contra os bons costumes, aborrece suas visões e sentimentos como loucos
desvios, e seus sequestros como raivas. Porém, se dizem o que é conforme a fé ou a Sagrada
Escritura, ou que é conforme ao que dizem os santos, ou segundo os bons costumes, não os
desprezes, porque talvez desprezará o que é de Deus (1 Tes. 5,20). Entretanto, não confies
totalmente, porque muitas vezes, e mais nas tentações espirituais, a falsidade se reveste ou se
esconde debaixo da aparência da verdade, e a malícia debaixo da aparência de bem, para que o
diabo possa semear melhor e muitas vezes a suspeita mortífera. Por isso, creio que agrada mais a
Deus que deixes correr as visões, sentimentos e sequestros que, segundo o dito, têm aparência de
verdade e de bondade, no que possam valer, a não ser que se trate de algumas pessoas que por razão
de santidade e discrição e de provada humildade, fique constatado que não possam ser enganadas
pelas ilusões e astúcias do demônio. E, ainda que seja piedoso aceitar as visões e sentimentos de tais
pessoas, entretanto, é mais seguro não crer neles por razão das mesmas, senão porque são
conformes com a fé católica, ou com a Sagrada Escritura, bons costumes e com os ditos e doutrina
dos santos.
O segundo remédio é que, se por revelação ou sentimento, ou por outro caminho, teu
coração é movido a realizar alguma obra notável que não costumas fazer, sobre a que não tens
certeza de que agradará a Deus, e mais, duvidas razoavelmente, adie pô-la em execução, até que
hajas considerado bem todas as circunstâncias, especialmente as do fim, e saibas se agrada a Deus.
Entretanto, não julgues por teu critério, senão, se é possível, por algum testemunho da Sagrada
Escritura, ou por algum exemplo imitável dos santos padres. E digo exemplo imitável, porque,
segundo são Gregório, alguns santos fizeram certas obras que não devemos imitar, por mais que
neles foram boas, senão admirá-las e reverenciá-las. Se por si mesmo podes chegar a esclarecer se o
teu agrada a Deus, pede conselho a pessoas provadas em virtude e ciência, que possam aconselhar-
te sobre a verdade.
O terceiro remédio é que, se te achas livres de tais tentações, de maneira que nunca as
tivesse, ou, se tendo-as, tivesse ficado livre delas, eleva a Deus teu coração e teu entendimento
reconhecendo humildemente a graça que Deus te fez, dando-lhe graças de coração muitas vezes, e
mais, sem cessar. E procura que isso que tens, por pura graça e bondade de Deus, não o atribuas à
tua virtude, sabedoria, ou mérito ou a teus costumes, nem tampouco ao acaso ou fortuna, porque,
segundo dizem os santos, esta é a causa pela qual Deus retira o benefício de sua graça e a tira do
homem, permitindo que caia em tentações e ilusões diabólicas.
O quarto remédio é que, quando passes em teu coração uma tentação espiritual que te deixa
na dúvida, não empreendas por tua própria vontade algo notável que antes era desacostumado para
ti, senão que, refreando teu coração e tua vontade, espera humildemente, com temo e reverência de
Deus, até que Ele clarifique teu coração. Porque, tenha por certo que, se estando nessa dúvida,
começas por tua vontade algo notável, desacostumado para ti, não poderás chegar a bom fim.
Refiro-me só a começar coisas graves e desacostumadas, sobre as que recai a dúvida antedita.
O quinto remédio é que, por causa das ditas tentações, se as tens, não deixes nenhuma obra
boa das que fazias quando não estavas envolto nas mesmas, especialmente não deves deixar de orar,
nem de confessar, nem de comungar, nem de jejuar, nem as obras de piedade e de humildade, ainda
que em tudo isso não encontre consolo.
O sexto remédio é que, se tens essas tentações, levanta teu coração e teu entendimento a
Deus, pedindo-lhe humildemente o que é mais honroso para Ele e mais saudável para tua alma na
tentação, submetendo tua vontade à vontade divina. De tal maneira que, se a Ele lhe apraza que tu
permaneças em semelhantes tentações, que te agrada também, contanto que não lhe ofenda.
Razões pelas quais se move o coração à maior perfeição (LODULFO DE SAJONIA, Vita
Christi, II, c.41; VENTURINO DE BERGAMO, II, pp. 131-134; PEDRO OLIVI, Spirituali e
Beghini in Provenza, pp. 278-281)
Porque me agrada muito que tenhas começado o bem para a honra de Deus, e porque desejo
não só que perseveres senão que continuamente ascendas a maiores obras de virtude, ou ao menos
que as desejes veemente, escrevo-te algumas razões pelas quais poderás excitar e mover teu coração
às maiores perfeições de toda virtude, que nem começaste nem podes guardar por tuas próprias
forças.
A primeira razão é que se consideras quão digno é Deus de ser amado e honrado, por sua
bondade e sabedoria e por suas outras perfeições, que se acham nEle sem número e sem término,
verás que o que te parece muito e grande para sua honro e sua bondade, é mínimo e quase nada a
respeito do que deverias ser em comparação com sua dignidade. Ponho primeiro esta razão, porque
em todas nossas obras o principal que temos de procurar é a honra, a reverência e o amor de Deus,
porque em si mesmo é digno de ser amado por toda criatura.
A segunda razão é que, se pensas quantos menosprezos, vitupérios, necessidades, dores e a
paixão amargurosíssima que sofreu o Filho de Deus por teu amor, para que lhe ames e honres,
compreenderás que é pouco o que tens feito para amar-lhe e honrar-lhe, segundo o que devias ter
feito. Esta razão é mais perfeita e elevada que as que seguem. Por isso a ponho em segundo lugar.
A terceira razão é que, se pensas na inocência e perfeição que deverias ter, segundo o
mandamento divino, pela qual terias que estar livre de todo vício e de toda culpa e na plenitude de
toda virtude, e de acordo com a qual deves amar a Deus com todo teu coração, com toda a tua
alma e com todas as tuas forças (Lc. 25-28), verás claramente tua debilidade e a distância que te
encontras a respeito da inocência e perfeição sobreditas.
A quarta razão é que, se consideras a multidão e a liberalidade dos benefícios divinos e das
graças corporais e espirituais que a ti e a outros, ou as que só a ti em particular te concedeu, sentirás
que o que fazes ou podes fazer por Deus é nada para compensar estas graças e benefícios divinos,
especialmente se consideras a liberalidade e bondade divinas.
A quinta razão é que, se olhas a altura e nobreza do prêmio da glória prometida e preparada
para aqueles que fazem as obras de virtude em honra de Deus, pois lhes dará uma glória tanto maior
quanto mais virtuosas e maiores sejam as obras, conhecerás, com certeza, que teu mérito é nada em
comparação de tanta glória, e desejarás fazer obras mais virtuosas que as que antes fizeste.
A sexta razão é que, se te fixas na formosura e esplendor, ou generosidade que têm em si as
virtudes, assim como a dignidade que recebe a alma pelas mesmas, e se olhas, por outro lado, a
vileza e torpeza que têm em si os vícios e pecados, e a vileza que pelos mesmos recebe a alma,
esforçar-te-ás, se és sábio, por adquirir mais virtudes e fugir mais e mais dos vícios e pecados.
A sétima razão é que, se contemplas a sublimidade e perfeição da vida dos santos padres e
suas muitas e perfeitas virtudes, conhecerás a imperfeição e debilidade de tua vida e de tuas obras.
A oitava razão é que, se conheces a grandeza dos pecados e a multidão de ofensas que
cometeste contra Deus, conhecerás que todas as obras que fazes, por mais boas que sejam, são nada
para satisfazer, por via de justiça, as ofensas feitas contra Deus.
A nona é que, se examinas em conjunto quão perigosas são as tentações da carne, do mundo
e do diabo, trabalharás por alcançar uma maior firmeza e altura em toda virtude, mais que nunca o
fizeras, para poder preservar com maior seguridade contra estas tentações.
A décima é que, se pensas no rigoroso juízo final de Deus, e com quanto aparato de boas
obras e de satisfações das ofensas feitas a Deus deverias chegar a este juízo, verás que é muito
pouco o que tens feito por boas obras e penitência, em comparação com o que deverias ter feito.
A undécima razão é que, se pensares na brevidade de tua vida e na proximidade de tua morte
duvidosa, depois da qual não terás espaço para fazer obras meritórias nem penitência, conhecerás
que com maior afeto e esforço deverias fazer mais obras boas e mais penitência que as que fazes.
A duodécima razão é que, se consideras de que maneira começas a vida da perfeição, em
qualquer grau, porém sem esforço e desejo de subir a maior perfeição e vida mais elevada, verás
que isto não é possível senão por um fundamento de presunção e soberba no que começaste. Nem
tampouco sem que inclua uma grande tibieza e negligência. Pela presença destes dois males, não se
pode proceder sem grande perigo de viver em outros vícios espirituais, como poderia demonstrar-te,
ainda que seria amplo escrevê-lo literalmente. Não duvido, que se queres estar livre e imune desses
males, por mais que hajas começado com ânsias de uma maior perfeição, deves-te esforçar todavia
mais em chegar a uma vida mais elevada e perfeita. São Bernardo, comentando o Salmo 90, “Qui
habitat”, falando daqueles que são fervorosos ao princípio, porém que depois, crendo que são algo,
entibiam-se, disse: “Oh, se soubesse quão pouco é o que tens e quão logo o perdes se quem te deu
não o conserva!” (BERNARDO DE CLARAVAL, Comm. in psalm. “Qui habitat”, I (PL
183,1878)).
A décima terceira razão é que, se pensas nos insondáveis juízos de Deus sobre alguns que
perseveraram muito tempo em grande santidade e muita perfeição, aos que Deus abandonou por
alguns vícios ocultos que criam não ter, não duvido que por mais que haja começado uma vida
elevada, cada dia elevarás teus afetos e intenções, corrigindo, com mais cuidado que antes, todos os
vícios, acercando-te a uma mais plena e perfeita santidade, temendo que talvez haja em ti algum
pecado oculto pelo qual mereces ser abandonado.
A décima quarta razão é que, se pensas nas penas dos condenados no inferno, que estão
preparadas para todos os pecadores, creio que te será ligeira toda penitência, humildade, pobreza e
todo trabalho que nesta vida possas padecer por Deus, com intenção de escapar de tais penas; e que
te esforçarás continuamente para manter uma vida de perfeição mais elevada, temendo o perigo de
chagar às penas sobreditas.
Sete afetos para com Deus, para si mesmo e para com o próximo
Deves exercitar-se principalmente com sete afetos diante de Deus, a saber:
Amor Ardentíssimo;
Sumo Temor;
Honra Devida;
Zelo Constantíssimo.
A estes deve-se unir:
Ação de Graças e Louvores;
Pronta e Total Obediência;
E o sabor, tanto quanto possível, da suavidade divina.
Continuamente deves pedir a Deus estas sete coisas, dizendo:
Bom Jesus, fazei que vos ame do mais profundo de meu ser, que vos tema acima de tudo, que vos
reverencie e que tenha fortíssimo zelo por tua honra, de tal maneira que, ansioso por tua glória,
aborreça veementissimamente qualquer opróbrio contra ti, e mais se faça por mim ou em mim. Dai-
me, Senhor, que te adore humildemente como criatura tua com toda gratidão do coração. Dai-me
também que em todas as coisas te bendiga sempre, te louve e glorifique com sumo júbilo, alegrando
o coração, e que, conformando-me e obedecendo-te em tudo, sacie-me sempre de tua dulcíssima e
inefável suavidade, como comensal de tua mesa, com teus santos anjos e apóstolos, ainda que
totalmente indigno e ingrato. Tu, que com o Pai e o Espírito Santo, etc.
A respeito a si mesmo, deve exercitar-se também com outro septiforme afeto, a saber:
Primeiro, que se confunda totalmente a si mesmo por seus defeitos e vícios.
Segundo, chore e deplore seus pecados com acerbíssima e agudíssima dor, porque ofendem
e mancham sua alma.
Terceiro, com a própria humilhação e desprezo de si mesmo, quer dizer, que com todas as
forças se despreze a si mesmo e deseje ser desprezado como algo vilíssimo e corrompido, com foi
dito.
Quarto, que com rigor serveríssimo castiga asperamente seu corpo e apeteça ser castigado
como cheio de mediocridade pelo pecado, e mais, como latrina (lugar onde se defecta) e esgoto e
cumulado de toda imundície.
Quinto, com ira implacável contra todos seus vícios e contra as raízes e inclinações dos
mesmos.
Sexto, com uma vigilância energética e desembaraçada sobre todos seus sentidos e atos e
potências, sempre atento e vigilante para preservar no bem com esforço varonil.
Sétimo, com uma discrição de perfeita modéstia ou moderação, para que em tudo guarde
exatamente a medida e o modo entre o que é excessivo e o que é menos que suficiente, isto é, que
nada seja supérfluo nele, nada diminuído, nada deficiente, nem mais nem menos do que se deve ser.
A respeito do próximo deve exercitar-se também com outro septiforme afeto, a saber:
Primeiro, com uma piedosa compaixão, de forma que sinta os males e trabalhos alheios
como próprios.
Segundo, com uma doce congratulação, isto é, que se alegra dos bens do próximo, como de
seus próprios.
Terceiro, com uma tranquila acolhida e indulgência, isto é, tolerando pacientemente e
perdoando de coração, esquecendo as moléstias e injúrias que lhe causem os demais.
Quarto, com uma benigna afabilidade, é dizer, que seja benigno para com todos e deseje
todos os bens e os viva para todos, mostrando-se assim em gestos e palavras.
Quinto, com reverência humilde, de maneira que prefira a todos antes que a si mesmo, a
todos reverencie e a todos se sujeite de coração, como a seus senhores.
Sexto, com unânime concórdia, isto é, que em quanto dependa de ti, e enquanto possa
segundo Deus, sinta o mesmo com todos, de forma que se sinta em todos e que todos estejam nele, e
o bom querer de todos o considere como seu, e vice-versa.
Sétimo, mediante uma cristiforme oblação de si mesmo por todos, isto é, que à imitação de
Jesus Cristo esteja preparado solicitamente a entregar sua vida pela salvação de todos e orar dia e
noite e trabalhar para que todos sejam inviscerados em Cristo e Cristo neles.
Entretanto, não creia por isso que não há de precaver e fugir de todos os vícios dos homens,
pois hás de saber que a companhia dos maus ou imperfeitos armazenará algum perigo de afasrtar-se
ou que lhe impeça da perfeição, ou o fervor das mencionadas virtudes, deves afastar-se deles como
de serpentes e dragões. Não há carvão tão aceso que não se esfrie e apague com a água. Pelo
contrário, dificilmente haverá carvão tão frio que na pilha de carvões acesos não se acenda. De
outra sorte, onde não há perigo semelhante, devem, com a maior simplicidade, não ver os defeitos
dos demais, ou, se os ver, julgá-los com compaixão e suportá-los como teus.
Para regular bem tua conduta a respeito do temporal e do eterno, advirta-se que hás de
considerar as coisas temporais sob quatro aspectos:
Primeiro, que, como estrangeiro e peregrino (Sal. 38,13), sintas todas as coisas como
estranhas e alheias, até o ponto que tua roupa seja tão estranha ao teu sentido, como se estivesse na
Espanha, ou na Índia.
Segundo, que no uso das coisas, temas a abundância como veneno, ou como um mar que
tudo o submerge em suas águas.
Terceiro, que no uso das coisas sintas toda a escassez e pobreza, porque esta é a escada pela
qual se sobe às riquezas celestiais e eternas.
Quarto, que fugindo da companhia, conluio e pompa dos ricos e poderosos, ainda que não
por desprezo, te glories da companhia dos pobres e te alegres da recordação, trato e conversação
com eles, pois são a expressa imagem de Cristo, e assim, como se fossem reis, os acompanhes com
sumo agrado e reverência.
APÊNDICE
(Alguns manuscritos do século XV acrescentam este Apêndice, que vem a ser como uma síntese do
Tratado, entre eles os de Bamberg, Munich e Frankfurt)