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RELATO DE CASO

Comerlato et al. Transmissão de doença de Chagas por transplante renal

Transmissão de doença de Chagas por


transplante renal1
Liriane Comerlato2, André S. Gomes2, Adriano T. Conceição2,
Adriana R. Ribeiro3, Luiz Felipe Gonçalves4, David Saitovitch4,
Roberto C. Manfro4

Paciente submetido a transplante renal com órgão de doador vivo infectado pelo
Tripanossoma cruzi e que desenvolve manifestações clínicas de doença de Chagas
aguda no segundo mês pós- transplante, sendo tratado com sucesso com benzonidazol.
Discutem-se as vias de transmissão e relevância clínica na transplantação de órgãos
sólidos assim como as atitudes a serem tomadas diante desta situação.

Unitermos: Doença de Chagas; transplante renal; imunossupressão.

Transmission of Chagas disease in renal transplantation


Our objective is to report the case of a male patient submitted to kidney transplant
from a living donor infected with Trypanosoma cruzi. The patient developed clinical
manifestations of acute Chagas disease in the second post-transplant month and was
successfully treated with benzonidazole. We discuss the possible means of transmission
of Trypanosoma cruzi, the importance of its transmission to transplantation of solid
organs, and the approach to this situation.

Key-words: Chagas' disease; renal transplantation; imunosuppression.

Revista HCPA 2000;20(3):302-306


Introdução risco de adquiri-la (2). No Brasil, segundo dados
do Ministério da Saúde, calcula-se em cerca
Doença de Chagas ou tripanossomíase de 5 milhões o número de infectados (3). A
americana é uma zoonose endêmica parasitose é transmitida por várias espécies de
transmitida pelo Tripanossoma cruzi. A infecção triatomídeos hematófagos, sendo a mais
é exclusivamente encontrada nas Américas e comum o triatoma infestans. O Tripanossoma
a área endêmica estende-se do sul dos cruzi assume duas formas distintas em
Estados Unidos até a Patagônia (1). hospedeiros vertebrados, os tripomastigotas
A prevalência de anticorpos contra o circulantes e os amastigotas tissulares. Existem
parasita varia nas populações de diferentes diferentes vias de transmissão, sendo que a
países, assim como em diferentes regiões do vetorial, através dos triatomídeos, representa
mesmo país. No continente americano existem um importante problema de saúde pública. A
cerca de 16-18 milhões de pessoas portadoras segunda forma mais comum de infecção ocorre
deste parasita e cerca de 90 milhões correm o através de transfusões sanguíneas e outra
1
Trabalho realizado no Serviço de Nefrologia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e Programa de Pós-graduação
em Nefrologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2
Serviço de Nefrologia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
3
Programa de Pós-graduação em Ciências Médicas: Nefrologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4
Departamento de Medicina Interna, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Serviço de Nefrologia, Hospital
de Clínicas de Porto Alegre. Correspondência: Dr. Roberto C. Manfro, Rua Ramiro Barcelos 2350, CEP 90035-
003, Porto Alegre, RS, Brasil. Fone: +55-51-3316-8295; e-mail: rmanfro@portoweb.com.br

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possível é a via congênita. dialítico pós-operatório por 3 semanas. O


O desenvolvimento da doença de esquema de imunossupressão constou de
Chagas em receptores de transplante renal que ciclosporina, micofenolato mofetil e prednisona.
receberam órgãos de doadores soropositivos Uma biópsia de vigilância executada no
foi inicialmente descrito em 1981 (4) e décimo dia pós-operatório evidenciou a
posteriormente estes achados foram presença de rejeição aguda, classificação Basf
confirmados por outros grupos (5-7). No IIB (9), tendo sido instituída pulsoterapia com
contexto do transplante de órgãos sólidos, a metilprednisolona endovenosa por 3 dias, ao
transmissão do Tripanossoma cruzi término dos quais ocorreu lenta e progressiva
provavelmente só ocorra quando houver melhora da função renal, tendo-se suspendido
parasitismo celular. Isto decorre do fato de que o suporte dialítico. Após 2 semanas, o paciente
os enxertos são exaustivamente perfundidos recebeu alta hospitalar com função do enxerto
(todos os órgãos) e mantidos em solução de (creatinina sérica 3,5 mg/dl). Após 12 dias,
preservação (órgãos de doadores cadáver) procurou a emergência do hospital com queixa
previamente ao ato da transplantação. Na de febre, sem outras queixas ou sinais clínicos,
literatura, na maioria dos relatos de doença de a creatininemia era de 3,3 mg/dl e a urocultura
Chagas pós-transplante, o diagnóstico foi resultou positiva para E. coli. Iniciou-se
estabelecido pela detecção de tripomastigotas tratamento em regime ambulatorial com
no sangue periférico, xenodiagnóstico e/ou por norfloxacina em dose ajustada para a função
sorologias, existindo também relato de renal do paciente. Uma semana mais tarde, foi
diagnóstico por demonstração de amastigotas admitido ao hospital com febre alta, calafrios,
no tecido renal (8). artralgias e mialgias intensas. Ao exame clínico,
A proposta deste relato é descrever um o paciente apresentava-se em regular estado
caso de doença de Chagas aguda pós- geral, taquicárdico, febril, com tosse seca. A
transplante renal com doador vivo relacionado. cavidade oral, palpação de linfonodos, ausculta
Neste caso, o doador apresentava sorologias pulmonar e cardíacas não demonstravam
pré-operatórias positivas e o receptor alterações. Não apresentava aumento de
desenvolveu doença aguda no período pós- tamanho de vísceras abdominais e queixava-
transplante. Desejamos também destacar a se de leve dor à palpação do rim transplantado.
importância da vigilância aos sinais de doença Na evolução deste quadro, ainda sem
ou parasitemia para início precoce do identificação de agente etiológico, apresentou
tratamento específico. leucopenia com 1300 leucócitos/mm3. Neste
momento, suspendeu-se o micofenolato mofetil
e iniciou-se cefepime empiricamente. Na
Relato de caso investigação, a ecografia abdominal revelou
pequena coleção líquida peri-renal, cuja punção
Paciente masculino de 26 anos, com foi compatível com hematoma e cujo exame
insuficiência renal crônica terminal de etiologia bacteriológico foi negativo. A persistência de
desconhecida, mantido em tratamento renal febre de até 40o C levou a que se adicionasse
substitutivo com hemodiálise desde agosto de vancomicina, meropenem e ganciclovir, todos
1998, foi submetido a transplante renal de novo empíricos, ao regime anterior.
com doador vivo-relacionado (mãe), de 46 Após uma semana, sem melhora dos
anos, em agosto de 2000. Na investigação pré- sintomas descritos acima, observou-se a
transplante do doador constatou-se sorologia presença de tripomastigotas em esfregaço de
positiva para doença de Chagas sangue periférico, estabelecendo-se assim o
(imunofluorescência indireta e teste diagnóstico de doença de Chagas aguda (figura
confirmatório de aglutinação direta). O receptor 1). Iniciou-se tratamento com benzonidazol na
apresentava sorologias negativas. dose de 5mg/kg/dia o que resultou em
O ato cirúrgico não apresentou importante melhora clínica com
intercorrências, mas o enxerto não apresentou desaparecimento da febre em menos de 48
função imediata, sendo necessário suporte horas. Apresentou inicialmente rush cutâneo

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Figura 1. Visualização do Tripanossoma cruzi em esfregaço de sangue


periférico do paciente descrito, demonstrando parasitemia (aumento 1000x).

discreto que cedeu após algumas doses sem aumento de níveis de anticorpos, passíveis de
necessidade de medicações específicas ou serem detectados por testes sorológicos. Dez
alterações na posologia. Foram afastados os a 13% dos indivíduos infectados desenvolvem
comprometimentos do sistema nervoso central doença crônica que é caracterizada
e cardiológico por exame liquórico e principalmente pelo comprometimento do tracto
ecocardiograma, respectivamente. gastrointestinal e coração (10). Vários testes
Após 15 dias do início da medicação, sorológicos podem ser usados como
recebeu alta hospitalar em uso de ciclosporina, diagnóstico, para afastar os casos falso-
prednisona e benzonidazol, sendo positivos. A comprovação do resultado é
gradualmente re-introduzido o micofenolato sempre efetuada por um ou mais métodos
mofetil a partir do 30º dia de tratamento com sorológicos (3).
benzonidazol, que foi mantido por 60 dias. A Desde a década de 80, o uso de órgãos
pesquisa de parasitemia foi negativa antes da de pacientes com sorologias positivas para
suspensão da medicação. Desde a alta doença de Chagas em receptores negativos,
hospitalar, a função renal encontra-se estável, bem como a transplantação em receptores
com creatinina sérica em torno de 3,0 mg/dl. positivos, é aceita e difundida (4,5,11). No
entanto, a terapia imunossupressora,
Discussão fundamental para a manutenção do órgão
A doença de Chagas é uma entidade transplantado, pode predispor a reativação de
clínica de grande relevância em saúde pública infecção latente ou de doença crônica e ter
em zonas endêmicas. Sua apresentação clínica papel facilitador para que a infecção se
pode ocorrer nas formas aguda, subaguda ou manifeste como doença (12,13). Vários
crônica. A doença aguda costuma ser leve e trabalhos na literatura têm discutido a
com taxas de mortalidade menores de 5% em ocorrência de doença de Chagas em receptores
hospedeiros imunocompetentes (10). Nesta de diferentes órgãos. A transmissão pós-
fase, o diagnóstico costuma ser realizado pela transplante renal foi inicialmente aventada por
detecção direta do parasita em sangue vários autores (6,13,14), porém esta via não
periférico. A doença tende a autolimitar-se em pode ser indubitavelmente confirmada, uma vez
um período de 4 a 6 semanas, iniciando a fase que em todas as séries de casos os pacientes
indeterminada ou subaguda. Esta, por sua vez, haviam recebido transfusões de
é caracterizada por baixa parasitemia e hemoderivados. Em 1997, descreveu-se um

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caso de transmissão de doença de Chagas, de sorologia positiva não representa uma


em transplante renal, por visualização de contra-indicação formal para a transplantação,
pseudocistos de amastigotas no citoplasma de até mesmo porque a necessidade de órgãos é
células renais em biópsia (8). Este achado foi grande, a demanda insuficiente, a doença
confirmado por imunohistoquímica, aguda facilmente tratável e a prevalência de
comprovando-se então a via do transplante de infecção elevada.
órgãos sólidos como uma possível forma de Nas áreas endêmicas, a pesquisa de
infecção. evidências de infecção torna-se obrigatória pré-
Há relatos, na literatura, de 32 pacientes transplantação, tanto no doador como no
de vários centros sul-americanos que receptor. Na vigência de sorologias positivas,
receberam rins de doadores soropositivos (2, deve-se monitorizar sinais clínicos de infecção
3, 14). Destes, sete desenvolveram aguda bem como de reativação da doença
sintomatologia clínica (febre, mialgia e objetivando o início diligente do tratamento. A
hepatoesplenomegalia), com presença de relação risco-benefício da profilaxia com
Tripanosoma cruzi no sangue periférico, e dois, antiparasitários nos pacientes sob risco
apenas parasitemia sem quadro clínico necessita ser melhor investigada.
demonstrável. O intervalo entre o transplante e Por fim, o conhecimento do status
as manifestações clínicas variou de 1 a 4 sorológico, seja do doador ou do receptor, deve
meses. Nos pacientes que apresentaram levar a que se efetue a monitorização
doença clínica, dois apresentaram cuidadosa do surgimento da parasitemia por
comprometimento de sistema nervoso central. avaliação microscópica ou mesmo pela reação
O tratamento com nifurtimox ou em cadeia da polimerase, com vistas ao
benzonidazol tem se mostrado satisfatório para estabelecimento de tratamento específico antes
pacientes que adquiriram a infecção através do que surjam as manifestações clínicas
transplante ou que reativaram a doença (10,11). decorrentes da replicação sistêmica do
O principal efeito colateral destas drogas é o parasita.
aparecimento de erupção cutânea e de
toxicidade medular, principalmente Referências
granulocitopenia.
O acompanhamento a longo prazo de 1. WHO: Tropical Disease. Prog Int Res Ninth
chagásicos transplantados renais mostra que Program Report, Geneve, 1989.
a maioria dos pacientes não reativa a infecção, 2. Health conditions in the Americans. Pan
mesmo sem receber tratamento profilático American Health Organization 1990;524(1):160.
específico (15,16). O uso de profilaxia com 3. Ferreira MS, Lopes ER, Chapadeiro E, Dias JCP,
benzonidazol foi inicialmente proposto na Ostermayer AL. Doença de Chagas. In Veronesi
tentativa de diminuir a reativação da doença de R, Focaccia R, editores. Tratado de Infectologia.
Chagas em transplantados cardíacos (17). Esta 2.º ed. São Paulo: Editora Atheneu; 1996. p. 1175-
estratégia não foi efetiva, confirmando que a 213.
droga não é capaz de eliminar o parasita do 4. Chocair RP, Sabbaga E, Amato Neto V, Shiroma
organismo. Entretanto, quando ocorre M, Goes G M. Kidney transplantation: a new way
reativação da doença, este tratamento é of Chagas’ disease transmition. Rev Int Med
bastante eficaz. Além disso, há sugestão de Trop São Paulo 1981;23:282.
aumento de incidência de doenças 5. Cantarovich F, Davalos M, Cantarovich M, Castro
linfoproliferativas e sarcoma de Kaposi com a L, Saucedo G, Glitz PG. Should cadaveric donor
associação de benzonidazol e/ou nifurtimox with positive sorology for Chagas’ disease be
com as drogas imunossupressoras (18). excluded from kidney transplantation?
Transplant Proc 1991;23:1367-8.
Conclusão 6. Chocair RP, Sabbaga E, Amato Neto V,
Torrecillas P H. Aspectos clínicos e diagnósticos
A infecção pelo Tripanossoma cruzi pode relativos a doença de Chagas em pacientes
ser transmitida por órgãos sólidos. A presença submetidos a transplante de rim e

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Comerlato et al. Transmissão de doença de Chagas por transplante renal

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11. Vazquez MC, Riarte A, Pattin M, Lauricella M. MH, Fiorelli A, et al. A long term follow up after
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