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Przeworski, Adam (1985{1989]) Capitalismo e Social-Democracia. Sao Paulo: Companhia das Letras, como fendmeno histérico”: 19-64. I A SOCIAL-DEMOCRACIA COMO UM FENOMENO HISTORICO A DECISAO DE PARTICIPAR A escolha crucial foi entre participar ou nao. Eventos anteriores haviam resultado no estabelecimento do principio democratico na es- fera politica. Entretanto, os direitos politicos eram meramente formais quando acompanhados da coercao e desigualdade imperantes na esfe- ra social. Ao emergir por volta de 1850, 0 socialismo era, pois, um mo- vimento que completaria a revolucao iniciada pela burguesia, arrebatando-lhe o ‘poder social’? exatamente como ela conquistara o poder politico. O tema recorrente do movimento socialista desde en- tao tem sido essa nogao de ‘‘estender”’ 0 principio democratico da es- fera politica para a social, a qual, na verdade, é principalmente econémica. Contudo, principalmente porque o principio da democracia ja se fazia presente nas instituicdes politicas, os meios pelos quais se alcan- ¢aria 0 socialismo apareciam sob a forma de uma escolha. O projeto dos primeiros socialistas, adeptos do comunismo, era construir uma sociedade dentro da sociedade, uma comunidade de produtores ime- diatos associados em oficinas e fabricas, cooperando como consumi- dores e administrando suas proprias atividades. A intencdo era edifi- car essa sociedade de produtores associados em completa independén- cia com relagao ao mundo burgués; ela deveria simplesmente desviar- se da emergente ordem capitalista e, em grande medida, industrial. To- davia, assim que a nova sociedade burguesa desenvolveu suas institui- ¢6es politicas — primeiro a burocracia e 0 exército permanente ¢ a se- guir o parlamento popularmente eleito — nado mais péde ser mantida uma postura de distanciamento e independéncia. Ja nao era possivel 19 asseverar, como fizera Proudhon, que a reforma social nao podia re- sultar da mudanga politica. Mesmo se a acdo politica fosse verdadeira- mente ineficaz em ocasionar a reforma social, as novas instituigdes po- liticas, uma vez estabelecidas, tinham de ser tratadas ou como um ini- migo ou como um instrumento em potencial. A escolha passou a ser entre agdo ‘“‘direta’’ e ac&o ‘‘politica’’: um confronto direto entre o mundo dos trabalhadores e 0 mundo do capital ou uma luta via insti- tuig6es politicas. Construir uma sociedade dentro da sociedade nao bas- tava; fazia-se necessaria a conquista do poder politico. Como argumen- tou Marx no Manifesto de Lancamento da Primeira Internacional, em 1864, *‘Para ser capaz de emancipar a classe operaria, o sistema coo- perativo deve ser desenvolvido em 4mbito nacional, o que implica a necessidade de dispor de recursos em escala nacional. [...] Nessas con- digGes, o grande dever da classe operaria consiste em conquistar 0 po- der politico’’.! Assim, Marx afirmou que os trabalhadores tinham de organizar-se em um partido politico, e que esse partido deveria con- quistar o poder na trajetéria para o estabelecimento da scciedade so- cialista. A questao perturbadora, porém, era se esse partide deveria ou nao fazer uso das instituigdes ja existentes em sua busca do poder politico. A democracia politica, especificamente o voto, era uma arma ja pronta, a disposigao da classe trabalhadora. Tal arma deveria ser rejeitada ou empunhada na trajetéria da ‘“‘emancipacio politica para a emancipacao social’? A resposta dos anarquistas foi uma veemente negativa. O que te- miam e afirmavam era nao s6 ser a aco politica desnecessaria e inefi- caz mas também que qualquer participacao em instituicdes burguesas, independentemente da finalidade e da forma, destruiria o proprio mo- vimento pelo socialismo. O Congresso Anarquista em Chaud-de-Fonds alertou em 1870: ‘‘toda participacao dos trabalhadores na politica go- vernamental burguesa s6 podera produzir resultados no sentido de con- solidar o atual estado de coisas, paralisando, assim, a acao socialista revolucionaria do proletariado’’.? A propria consideragdo de uma me- lhora nas condigGes dos operdrios no seio da sociedade capitalista — um debate acerca de normas internacionais para a proteg4o dos traba- Thadores realizado na assembléia inaugural da Segunda Internacional em 1889 — levou os anarquistas a clamar incontinenti que aqueles que aceitassem reformas nao eram verdadeiros socialistas.? Alex Daniels- son, um dos fundadores da Social-Democracia sueca, afirmou em 1888 que a participa¢ao eleitoral modificaria 0 socialismo, transformando- o “‘de uma nova teoria da sociedade e do mundo em um reles progra- ma de um partido meramente parlamentarista, ¢ nesse instante extinguir- 20 se-4 o entusiasmo no niicleo do proletariado e o ideal da revolugao so- cial degenerara em uma busca de ‘reformas’ que absorverdo todo o interesse dos trabalhadores’’.* Como observou em retrospecto Errico Malatesta, ‘‘os anarquistas sempre se mantiveram puros, continuando a ser o partido revolucionario por exceléncia, o partido do futuro, pois foram capazes de resistir ao canto de sereia das cleig¢6es’’.* Os que se tornaram socialistas foram aqueles que decidiram utili- zar os direitos politicos dos trabalhadores nas sociedades onde estes 0s possuiam, ¢ lutar por tais direitos onde ainda ndo haviam sido con- quistados. A corrente abstencionista perdeu seu apoio na Primeira In- ternacional apds 1873, e os recém-criados partidos socialistas, em sua maioria fundados entre 1884 e 1892, adotaram os principios da acao politica e da autonomia dos trabalhadores.° Todavia, a atitude dos partidos socialistas com relagdo a partici- pacio eleitoral foi, na melhor das hipoteses, ambivalente. Tal ambiva- léncia nao era de cunho tedrico — havia pouca vantagem em interpre- tar e reinterpretar cada palavra escrita por Marx a respeito da demo- cracia burguesa, pelo simples motivo de o proprio Marx, assim como os homens e mulheres que levaram os partidos recém-formados a par- ticiparem de batalhas eleitorais, nao ter muita certeza quanto ao que esperar da competigao e¢ieitoral. A questo fundamental — jamais res- pondida pela historia, porque ndo pode ser solucionada definitivamente — era se a burguesia respeitaria sua propria ordem legal no caso de uma vit6ria eleitoral do socialismo. Se os socialistas usassem a institui- cdo do voto — estabelecida pela burguesia em sua luta contra 0 abso- lutismo — para vencer as eleigdes e criar na sociedade leis que condu- zissem ao socialismo, nao iria a burguesia reverter aos meios ilegais para defender seus interesses? Isso ocorrera na Franga em 1851, e pa- recia provavel que acontecesse novamente. Portanto, a questo essencial que se apresentava aos partidos so- cialistas era, como apontou Hjalmar Branting em 1886, se ‘‘a classe dominante respeitaria a vontade popular mesmo que esta exigisse a abo- lic¢do de seus privilégios’’.” Sterky, 0 lider da ala esquerda dos social- democratas suecos, estava entre os que possufam uma opiniao negati- va: “Suponhamos que [...] a classe trabalhadora fosse capaz de obter a maioria no poder legislativo; nem mesmo dessa forma ela chegaria ao poder. Podemos estar certos de que a classe capitalista, com isso, trataria de nao prosseguir na trajetéria do parlamentarismo, recorren- do, antes, as baionetas’’.’ Ninguém podia ter certeza absoluta; os so- cialistas austriacos, por exemplo, prometeram em seu programa de Linz, em 1926, “‘governar estritamente em conformidade com as regras do

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